O Factor Humano
Um mundo que está a acabar
À medida que a população da nossa região vai envelhecendo, a minha consulta vai-se povoando de gente com cada vez mais anos.
Ainda me lembro nos anos 90, do século passado, de eu não ter um único nonagenário na consulta. Agora tenho várias dezenas e cada vez mais gosto de os ter comigo.
Outro dia houve até um desabafo de uma senhora: “Estou muito triste Sr. doutor, o meu filho está com Alzheimer”. E era verdade.
A formação médica no meu tempo ensinou-me pouco a lidar com a delicadeza das questões de saúde dos muito idosos. Ao contrário do pensamento clássico de interpretar todos os dados clínicos, enquadrando-os numa só doença, a questão nos muito idosos é a de integrar todos as pequenas ou grandes alterações inerentes à idade, de forma a uma interpretação global do ser humano que estamos a tentar ajudar.
Mas não é de questões médicas, geralmente técnicas e maçadoras, que quero aqui falar. Gostava de salientar que é muito mais comum encontrar naturalidade perante a morte nos muito idosos do que nos outros. Dir-me-ão que é óbvio, mas eu tenho a sensação de que quando a minha geração chegar a essas idades, não vai ter a mesma naturalidade perante a morte. É que o seu convívio com esta vem de longa data. Quase sempre viram morrer irmãos, amigos ou filhos. Sempre conviveram com os ritmos naturais da vida. Dos homens, dos bichos, das plantas.
Às vezes tenho pena de não ter mais tempo disponível na consulta para poder falar com eles. Ouvir as suas histórias, contadas quase sempre com mais vagar e fazê-los sentir o prazer que dá poder conhecê-las. É especialmente interessante ouvir muitos deles, referirem-se aos trabalhos agrícolas, ou relacionados com os animais, com carinho e quase como se houvesse uma comunhão entre todos eles. Podem falar com ternura de uma galinha que acabaram de matar. Que abismo com os ritmos tecnológicos de hoje. Que profundidade em comparação com tanta superficialidade. Que atenção ao pormenor, à mudança subtil, da árvore ao longo dos anos, ou no mesmo ano, ao longo das estações. E como me ajuda a equilibrar poder ouvi-los. E como eles gostam de ser observados, palpados, auscultados. Para eles é essa a visão que ainda têm de um médico. Aquele que ouve, observa, examina, aconselha e trata.
Eles não se espantam, como nos telejornais, em que sempre se fala do “inverno mais frio dos últimos cinco anos” ou da “maior chuvada do último mês”. Acham que é natural, no inverno, estar frio e chuva e no verão estar calor. E têm sempre naturalidade e um ditado, para quando o clima se confunde no calendário. É que já viveram tantas estações, que não é fácil espantarem-se.
A sua tragédia actual é a solidão e o empobrecimento. Esta crise veio interromper-lhes um longo processo de melhoria no seu nível de vida, que talvez já não esperassem sofrer. Aqui sim, podem ter ficado surpreendidos por esta quebra. Verem filhos e netos emigrar, ou no desemprego, ou em trabalhos mal remunerados. Quantas vezes sem correspondência com o seu nível de formação. Eles que tanto se esforçaram por terem um filho ou um neto “doutor”, tão confundidos ficam, por esse “doutor” não encontrar um trabalho digno, como eles tinham sonhado.
É sobre isso, que os oiço falar, alguns há quase vinte anos.
Infelizmente, a nossa sociedade perdeu essa capacidade de os ouvir, de os respeitar, de os acarinhar. E vamos pagar bem caro por esse desperdício.
Manuel Cunha (Pité)