Discursos sobre a cidade - Por António de Souza e Silva
RECORDANDO APRESENTAÇÃO DO LIVRO
“CRÓNICA TRISTE DE NÉVOA”
Arrumando gavetas, sem contar, fomos dar com este texto que, na íntegra, reproduzimos:
“Quando começamos a ler Crónica Triste de Névoa e os nossos dedos lentamente vão esfolheando as páginas que a cada movimento nos contam as histórias da história ou nos remetem para o esconderíjio, recôndito, onde o pequeno João nos relata as suas memórias, ficamos com a sensação de que o autor, um flavienese, na ressaca das suas noites de insónia ou nas manhãs de pesadelo, outra coisa não quis senão nos contar uma história de “névoa” para flaviense reviver, ou seja, e como um amigo me dizia, um livro de um flaviense para flavienses.
Os estereótipos representados quer pela figura do Dr. José Fino, quer do Eng. Filipe Pereira, quer ainda do bem conhecido Rosmaninho soam, são familiares para muitos flavienses. E quem é que já não ouviu falar das tertúlias dionisíacas como aquelas do Café Comercial? Aqueles, como eu, que aqui viveram a sua adolescência, nas décadas 60 e 70, outra coisa não ouviam contar!
Mas o que torna esta narrativa diferente é a forma sui generis como está arrumada e é tratada. Ou seja, a afronta do opíparo viver durante 12 longos movimentos – ou 12 longos meses - de certos personagens, no recanto de Névoa, na década de 40, enquanto milhões de seres humanos morriam por essa Europa fora e outros, bem junto de nós, pelas ruas de Névoa, mostravam a mais pura pobreza.
Este contraste neorealista, por vezes cínico, de retratar a realidade flaviense, servindo-se do palco encoberto, de Névoa, é apenas um pretexto, um artifício usado, ao longo dos doze movimentos da obra para nos interrogarmos sobre a nossa condição humana. As atrocidades da guerra, o pensamento do senhor Oliveira Salazar e até as reuniões de Câmara, presidida pelo medíocre capitão José Borges, para acabar com a pobreza em Névoa, entre outros, outra coisa não são que simples quadros aos serviço desta tarefa: a descrição de cidades sem rosto nas quais a pobreza e miséria moral é bem mais preocupante e degradante do que a pobreza material.
E quão bem longe estão os quadros da pobre e miserável Névoa das memórias dos 12 meses vividos em Montalegre e em especial em Ervededo, imersa em ruralidade!... São histórias de vida, tristes, é certo, as do João Domingos e do seu amigo Manuel Fortunato, bem como da avó Maria Fonseca, entre outras, mas autênticas, edificantes, cheias de valor e amor, de um verdadeiro calor humano. São memória as palavras sábias da Maria Fonseca para o pequeno João e a camaradagem e solidariedade entre o Manuel Fortunato e o João Domingos, que jamais deverão ser esquecidas! Num mundo em que cada vez mais se questionam e põem em causa princípios e valores que devem pautar e reger a conduta dos homens e da sociedade, os diálogos entre o pequeno Joazinho e a avó Maria Fonseca são de um enlevo, de uma doçura! Verdadeiramente de encantar!... Obrigam-nos a refletir sobre os verdadeiros e genuínos valores das relações e convivência humana!
O vale de Chaves mergulhado em névoa
O livro Crónica Triste de Névoa é assim, e antes de mais, um genuíno tratado de pedagogia, para além de um verdadeiro ensaio de história de época, de um estudo da sociedade flaviense da década de 40 bem como um verdadeiro estudo de etnografia transmontana, digno de um autor que nunca negou o exercitar activo da cidadania, entendendo que a construção do homem como cidadão se faz pela vivência e partilha dos usos, costumes e tradições, com os seus princípios e valores, nas comunidades que nos viram nascer e nos acolhem.
Foi como aprendiz de professor que, em finais da década de 70, conheci João Madureira na então Escola do Magistério Primário de Chaves. Já lá vão vinte e quatro anos!...
João Madureira
O meu relacionamento com o João nem sempre foi fácil nem tão pouco linear, apesar de sempre rico de intensidade humana. A sua personalidade não se apreende e “apanha” facilmente. João Madureira, quem é? Apesar de estarmos em presença de uma obra que também nos relata a sua saga familiar, devemos contudo ter sempre presente que a natureza humana é, pela sua específica, polifacetada e transitória condição, sempre difícil de se definir numa simples pincelada. Mas creio que o livro que hoje nos é dado à leitura, em certo sentido, nos levanta essa “névoa” e, por isso, poderemos arriscar. Vejamos se, nas palavras do professor de filosofia, em empolada e acesa cavaqueira no Café Comercial com os seus comparsas, e nas da avó Maria Fonseca. Porventura aqui ele não se deixa “apanhar” e nos levanta, de alguma forma, parte do seu «véu».
Torre de Ervededo
Enfim, que o exercício de altivez apreendido e diagnosticado pela rica e intensa personagem da Maria Fonseca na personalidade do pequeno João redunde em capacidade de ousar uma vez mais em nos deliciar com temas e histórias dos nossos pais e avós mas também sobre temas do mundo que, também nós, ajudámos a construir e que vamos deixar como legado aos nossos filhos. Esse mundo, no dizer de uma conhecida colunista de uma revista semanal, que nos fala, lá fora, do terrorismo, da guerra do Iraque, da política externa americana, da política externa europeia, dos Balcãs, do Médio Oriente, do 11 de Setembro, do Afeganistão, do Presidente Bush, dos Berlusconis e Tony Blairs, da liderança europeia, do caso espanhol, do atentado de Madrid, da economia mundial, do Brasil, do Terceiro Mundo, das novas exclusões sociais, da ciber-sociedade, do problema das televisões e do papel não só informativo mas também formativo, como veículo privilegiado de comunicação que são, dos compromissos internacionais de Portugal, do envio de tropas portuguesas para palcos de guerra, dos miseráveis que constituem a maioria da população mundial, da sida, do fundamentalismo islâmico, das novas religiões; e cá dentro, da sociedade depois do 25 de Abril, do nosso sistema político, se a economia muda ou não, se a qualidade média dos governantes e governos muda ou não; dos média, da justiça, da educação, da cidadania, da saúde, dos direitos humanos. E do pensamento em relação à cultura, às cidades, à ruralidade, à administração pública, enfim, de todos os lugares-comuns da nossa contemporaneidade, do mundo em que vivemos e em que os nossos filhos hão-de viver... Nunca esquecendo, atendendo à especificidade e tristeza do dia que hoje todos vivemos, de reflectir sobre a precaridade da vida e do momento que hoje atravessamos com a morte de um homem que viveu sempre em função das suas convicções e dos seus ideais de solidariedade humana e da convivência entre os povos, como um iminente e convicto europeísta – Sousa Franco!...
E aqui não me queria antecipar, como a avó Maria Fonseca para o ronronante Joaozinho, no final desta obra: “Não sei se faço bem em contar-vos estas histórias”!...
Pela minha me interrogo se faço bem em estar para aqui a repetir-vos todas estas coisas.
Mas... creio que vale a pena!
Ler, refletindo, faz falta.
Leiam esta obra!
E ponham-se também a escrever. Coisas que tenham a ver com todos nós. Com o nosso viver. Porque todos seremos poucos para construirmos um mundo cada vez melhor!”.
Montalegre, 9 de Junho de 2004
João Madureira com o Barroso e a Serra do Larouco de fundo
Já se aproximam 15 anos que proferimos estas palavras.
Os protagonistas são outros. Os acontecimentos também.
Mas será que no mundo, no país e, nesta nossa cidade, mudou assim tanta coisa?
Não estaremos em presença de uma Europa sem rumo, num país, de certa forma, «amordaçado», e vivendo numa cidade sem rosto na qual a pobreza e miséria moral é bem mais preocupante e degradante do que a pobreza material?
Que pena só se poder ouvir e ler, muitas das vezes, a voz e a escritas «de legião de imbecis», que, a todo o custo, nos pretendem reduzir a simples mercadoria, nos media e redes sociais, dizendo e falando de pura banalidades, tal como o recente falecido Umberto Eco enfatizava, fazendo-nos esquecer da escrita que verdadeiramente nos retrata e nos questiona, fazendo-nos pensar como seres humanos!...
António de Souza e Silva