A GRANDE AVENTURA
(SCENAS DA GUERRA) - Último capítulo
António Granjo
A GRANDE AVENTURA
(SCENAS DA GUERRA)
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Nota: A GRANDE AVENTURA - (SCENAS DA GUERRA) é um pequeno livro que resultou da participação do ilustre flaviense António Granjo na I Guerra Mundial de 1914-1918, que deixamos aqui em episódios, escritos no português da altura, incluindo erros e gralhas tipográficas.
Por Portugal
Tendo passado à reserva, por ter mais de 35 anos, fui colocado como advogado oficioso no Tribunal de Guerra que funciona na frente e que está instalado em Saint-Quentin, uma pequena localidade dos arredores de Airesâr-la-Lys.
Aboletaram-me numa ferme, onde me deram um pequeno quarto, cuja única janela deita para a linha de batalha. A esta hora em que me disponho a escrever ao povo português, terminada a minha acção militar, dando-lhe conta do que vi e do que aprendi, como é minha obrigação de patriota, o canhão troa para os lados da Bélgica. Há três dias que, sem um minuto de intervalo, se ouve para êsses lados o fogo rolante.
Sobre o modesto fogão do meu quarto, entre duas imagens de santos, metidas em rodomas de vidro, há um relógio. Alêm do trovão rolante, só a voz desta língua do tempo chega aos meus ouvidos.
Rascanho da alma toda a espécie de sentimento impuro que a injustiça dos homens ou a adversidade dos factos haja gerado dentro de mim. Liberto-me de toda a espécie de prejuízo que me prenda a sistemas. Desfaço-me de toda a espécie de compromissos que me ligue a partidos ou a pessoas. E procuro conseguir que as palavras e os juízos me corram da pena, tão natural e verdadeiramente como a luz corre duma chama.
Desejarei que as minhas palavras toquem o coração do povo, porque desejo medir a realidade, como aquela pêndula vai medindo o presente, como o canhão, ao longe, vai medindo o futuro.
Eis o que tenho a dizer:
Emquanto os sistemas entre os povos não passarem do dominio do comércio, das letras e da diplomacia, e os sistemas de ordenação das sociedades se concretisarem em formulas políticas mais ou menos amplas, a guerra será sempre a condição do mundo. A victoria é que sancionará o direito. O canhão será a voz que se fará ouvir mais alto.
Creio num destino melhor para a humanidade, mas convenço-me de que uma era de definitiva paz e perene abundância será por muito tempo, porventura por seculos de seculos, uma generosa conceção de poetas e filósofos.
Creio na victoria do povo. Creio que o rebanho imenso, que pastores cúpidos têem conduzido através as idades à morte, tomará conta dos seus destinos. Os caminhos da vida social vão-se alargando e com os tempos a existência sobre este pobre planeta devastado será um pouco mais fecunda e mais feliz.
Mas está ainda por descobrir o estado social da perfeição e por mais que se devasse o horizonte não se vê o braço heróico que sustenha o facho que há de guiar as nações à pleniventura. A Revolução Russa é ainda, e sempre, a guerra. Lenine é um estadista tartaro que conhece Karl Marx.
Por cada guerra, é certo, o povo, ao mesmo tempo que vai juncando a estrada de cadáveres, vai dando mais um passo para a sua libertação. Por cada revolução, é certo, vai-se criando uma nova ordem de idéas, que se refecte e fixa nas leis como mais uma conquista de liberdade e de justiça. Mas emquanto o direito derivar da fôrça, quer esta seja detida pelas antigas classes priveligiadas, por meio de regimes pessoais ou parlamentares, quer seja detida pelo operariado, por meio de ditaduras ou pelo govêrno das classes, o povo será sempre a fácil presa da tirania.
Os exércitos são necessários, porque a guerra perdurará. Só pela fôrça os povos poderão defender aquele conjunto de liberdades e direitos que à custa de torrentes de sangue, e de eras de sofrimentos, ganharam e houveram, constituindo hoje o principal património da civilização.
Passou o tempo dos exércitos permanentes. Já não basta a cada nação um certo número de milhares de homens encarregados de velar pela sua independência e segurança. Para uma nação se defender das tentativas de agressão e de rapina dos povos visinhos, não bastam os velhos organismos militares, constituidos por profissionais. Esta guerra diz-nos que se torna absolutamente indispensável, para a vida livre dum povo, organizar as indústrias, de modo a produzir-se um material de guerra inexgotavel, e igualmente indispensável se torna o alistamento nas fileiras de todos os homens válidos, de modo a conseguir-se, nos dois sentidos da extensão e da intensidade, o maior esfôrço útil no menor prazo de tempo. Donde resulta que a soma de sacrifícios em vidas e em dinheiro será cada vez maior, e que, em vez de chegarmos ao desarmamento, caminhamos para o armamento geral.
Não é adecuada à nossa situação a palavra — militarismo. Esta palavra subintende uma institùição fechada, um colegio de servidores da violência, em que os seus membros teem direitos e deveres especiais e sôbre os quaes recai a responsabilidade do triunfo ou da derrota — uma espécie de casta destinada a intervir nas grandes ocasiões, quebrando ou fundindo o ataque ou a resistência do inimigo com o prestigio da sua espada e a tradição da sua heroicidade.
E' às massas que hoje se pede a victoria, e é às fabricas que hoje se exige a sua preparação.
Cada povo deve bastar-se a si próprio. O povo que se não bastar a si próprio, ou arrastará uma existência de condenado, vivendo da humilhação e da miséria, ou gravitará num sistema de alianças, que não será mais do que uma escravidão simulada. O seu comércio, a sua indústria, a sua sciência, a sua literatura, passarão para as mãos do povo que dominar êsse sistema, e a palavra independência soará a ôco, perdendo-se nos corações a fé no futuro e o culto do passado.
Esta guerra deu aos povos pequenos os seus grandes meios de defeza — a trincheira e o submarino. Mais do que todos os discursos dos estadistas que prégam a sociedade das nações e afirmam o direito de cada povo se desenvolver livremente, conforme a sua idiosincracia, a sua civilização e a sua história — o morteiro de trincheira e o submarino de alto mar outorgaram às pequenas nacionalidades a sua carta de alforria.
Não sei o que o futuro reserva à minha Pátria. Se creio que os povos encontrarão um dia uma fórmula que os apróxime directamente e dispense uma diplomacia secreta, por uma internacionalização cada vez maior do pensamento, por um estreitamento cada vez mais íntimo das relações entre os trabalhadores, creio também que as Patrias viverão eternamente, elementos necessários como são do progresso e do equilíbrio sociais. No presente estado de coisas, as Pátrias são a própria condição da vida social. Por isso todos os cidadãos devem ser implacavelmente adstritos ao serviço da sua defeza e ao serviço do seu ideal.
Eu amo a minha Pátria, e sou intolerante — confesso-o altivamente — para com todas as teorias e todos os actos das quais possa rezultar a sua fraqueza e o seu desprestígio. A grandeza do seu passado enche de orgulho e de confiança todo o meu ser.
A teoria das nações moribundas fez o seu tempo. As próprias nações mortas, como a Polónia, erguem-se dos seus túmulos.
Portugueses, é preciso crêr! A crença num outro mundo é só própria do que são incapazes de rasgar neste um caminho luminoso e largo por onde os olhos se estendam sem medo a Deus, onde os pés se firmem sem medo ao inferno. Mas qual é o homem, digno de viver, que não tem a realizar na vida uma missão? E qual é o povo, digno de si próprio, que não tem o seu destino a cumprir?
Eu tenho fé na minha Pátria, e quero, porisso, que a minha Pátria tenha à sua disposição a fôrça indispensável ao inteiro cumprimento da sua missão civilizadora. Quero um exercito e uma armada, que sejam as chaves da sua defeza e os instrumentos convenientes e eficazes para a realização completa dos seus destinos no mar e na terra.
Um país banhado pelo Oceano tem as portas abertas para o mundo, para a glória e para a riqueza — e já demonstrámos que conhecemos os caminhos do mar.
Todos os povos, como todos os indivíduos, devem estar preparados para defender os seus direitos e as suas liberdades: nenhum povo, como nenhum indivíduo, deve hesitar em sair à arena sempre que os seus direitos sejam portergados ou que as suas liberdades sejam ameaçadas.
A lição eterna, que fulgura através as idades, é a de que os povos que amoleçam numa paz, que não seja o fruto opimo dos seus esforços de cada hora e das suas energias aproveitadas ao máximo em cada minuto, e seja o rezultado duma existência de humilhações e de pavores, de uma política de hesitações e de fraquezas, deixarão embotar as suas virtudes no mais torpe comodismo e deixarão que os apetites mais grosseiros tomem o logar aos sentimentos de abnegação e de sacrifício.
Nas nações, como nos cidadãos, tem de haver uma conciência recta. Os cidadãos não devem limitar-se a formar juízos, embora cheios de imparcialidade e de justiça: devem descer à praça publica a afirmar o seu protesto contra a violação da lei e o esmagamento da inocência. Só tem direito a ser possuidor de idéas quem tenha uma boca para as prégar e um pulso para as defender. Do mesmo modo as nações não devem limitar-se a conceder a um povo espesinhado sob a pata do opressor algumas palavras de simpatia: teem o dever de lutar, de batalhar pelo restabelecimento do direito.
As nações, como os indivíduos, devem ter uma alma alevantada que não desanime perante as dificuldades nem recue perante os obstáculos.
Contestamos que a guerra seja a grande escola de sacrifício, porque nunca foi uma fonte de energia. A guerra declara-se quando o sentimento ofensivo dum povo atingiu o seu momento explosivo. E' na paz que a conciência patriótica encontra os seus motivos e os seus impulsos; é na paz que as energias nacionais se ordenam no sentido de condicionar a victoria. Porisso, os povos que não se prepararam na paz não podem sentir a guerra. A guerra é o entusiasmo dos corações acesos pela paixão da pátria; a guerra é o último período de uma época de alta cultura nacional, em que se infiltra nas massas o sentimento da superioridade da raça. As nações que não se exaltaram no amor da Pátria durante a paz, não podem marchar para a guerra, com êsse ranger de dentes que é a vontade de vencer, com êsse sereno passo que dá a certeza de se cumprir um alto dever.
Esta é a razão por que Portugal não sentiu a guerra. Para uns a ida à França foi um expediente dum partido, que queria salvar-se da perda iminente; para outros foi quasi uma blague. Muitos anos duma paz podre deixaram-nos apagados numa vida vegetativa, propícia ao desenvolvimento das facções políticas e obliteradora dos sentimentos fortes. O interesse de dinastia prevaleceu sobre o interesse geral, no tempo da monarquia; o espírito de seita prevaleceu sôbre o espírito nacional, no tempo da República. As questões cuja resolução era necessária ao bem do Estado foram postas de parte a favor das estereis disputas de palavras entre os intelectuais ou a favor dos instintos criminosos das harpias do poder. As narrativas heroicas das descobertas e conquistas fôram esquecidas pelas façanhas dos galopins eleitorais ou pelos crimes impunes das chafaricas secretas. O culto dos grandes homens foi substituído pela adoração extactica dos messias da governança.
E' preciso que volte a nós a alma heróica dos descobridores e navegantes, dos fronteiros e dos conquistadores, que levavam no peito, como um sol, a Pátria, e levavam ao alto, como uma espada, a cruz.
A proclamação da Republica foi um supremo instante da lucidez popular e a ida para a guerra foi o supremo instante, o unico instante, em que os nossos homens publicos tiveram a compreensão do interesse e do dever nacionaes. Sem a Republica, a nação teria cahido embrulhada no manto régio, ou aos pés de Affonso XIII, ou nos corredores do Foreing-Ofice. Sem a participação na guerra, perderíamos as colonias, e passaríamos a levar uma vida de mendigos, tateando na escuridão uma parede para guiar os passos incertos, buscando em vão na caminhada lugubre um tecto sob que descançar a cabeça.
A guerra não foi, em parte alguma do mundo, obra de um homem ou dum partido. A guerra foi a inevitável consequência dum estado social precário e de um sistema politico instável.
O que fica são os factos.
O facto que fica é que Portugal justificou a sua existência marchando para os campos de batalha em defeza do direito e em cumprimento dos seus tratados.
Antes de os Estados Unidos entrarem na guerra em prol da liberdade dos povos, pondo na balança todo o peso do seu oiro e todo o valor dos seus admiráveis soldados, houve um pequeno povo, de minguados recursos em dinheiro, em material e em homens, que nem perante a ruina certa, a ameaça de perder o seu império colonial e o risco da propria independência, deixou de cumprir o seu dever. Esse pequeno povo foi Portugal. A atual geração não podia legar aos vindouros nem maior titulo de gloria nem mais justo motivo de orgulho.
Quando os anos da guerra se projetarem nitidamente no horisonte do passado, a Historia, na visão panoramica dos factos, nem sequer atentará nas discussões que se teem travado sobre a necessidade ou desnecessidade, sobre a conveniência ou inconveniência da nossa participação armada na Flandres. Tudo isso que se tem escrito não é mais do que um alarido feito por políticos, entregues às suas paixões, ou por jornalistas que escrevem por oficio ou por vicio. Esse alarido nunca chegará aos ouvidos da Historia.
Pintura de Sousa Lopes
Conta-se de um oficial francez que, tendo ficado feridos ou mortos sob um bombardeamento quasi todos os seus homens, e tendo os poucos ilesos procurado na fuga um refugio ao furacão, ao ver a primeira vaga inimiga lançar-se ao assalto, trepára ao parapeito, e, na transfiguração épica que dão as grandes horas, comandara:
— Mortos, a pé!
E os feridos levantaram-se, as metralhadoras começaram a crepitar e o assalto foi repelido.
Parece haver muitos portuguezes que trazem dentro de si os corações mortos. A nossa vida parece estar só nos nossos olhos para nos odiarmos, e nos nossos lábios para nos caluniarmos.
Aos homens que na Africa e na Flandres afrontaram a morte compete saltar para o parapeito e gritar a esses corações:
— Mortos, a pé!
António Granjo
27-12-1881 * 19-10-21
FIM