![a pertinacia.png a pertinacia.png]()
E, de repente parece que se fez uma brecha no tempo e o mundo parou, o que na verdade é ilusório.
Remexo prateleiras à procura de algo para beber nesta tarde de calor infernal: talvez algum livro por encetar. Eis que o vejo: quase escondido a escapar-se pela fenda, entre a prateleira e a parede do armário, como se quisesse esconder de mim, algo na sua expressão exterioriza culpa. Ás vezes a culpa que sentimos exterioriza-se involuntariamente e denuncia-nos, embora, nem sempre essa culpa seja culpa aos olhos da vida mundana e nem de um supremo juiz... às vezes é a uma espécie de culpa que nos impomos. Por isso, sou da opinião que nós mesmos somos a nossa maior fonte de poder e de debilidade.
![1600-rio.jpg 1600-rio.jpg]()
Fotografia de Lúcia Cunha
Tem capa crepe como eu gosto e estava completamente esquecido. Do interior das suas páginas cai, como cai de forma espontânea uma pétala de rosa, daquelas que ostentam fartas corolas de sumptuosas pétalas, porque as pétalas suaves das rosas caiem com facilidade, um pequeno cartão em forma de envelope. Tem na capa uma imagem com rosas vermelhas e um “amo-te” a vermelho. Instantaneamente pensei: “Que coisa pirosa, não me recordo disto! Nem, faz o meu género!” Mas, depois, olho melhor a imagem e realmente há um não sei o quê que toca a simplicidade e quase que acabo por achar que realmente podia ter sido uma boa escolha.
O autor do livro é Daniel Filipe. Não sei se veio junto com o cartão... ou se fui eu que o procurei… não me tenho qualquer memória sobre a sua proveniência, mas realmente eu já lhe percorri as páginas, sublinhei as estrofes e fiz apontamentos. Eu sou assim, há quem diga que os livros são sagrados e devem ser preservados intactos. Eu, porém, amo os livros e namoro com eles, envolvo-me com as suas páginas, roço-lhes as linhas, enrolo-me às suas capas, beijo-lhe as histórias e depois com a ponta da minha caneta de tinta negra e permanente atingimos o clímax com anotações que escrevinho nas margens.
![1600-vage_B.jpg 1600-vage_B.jpg]()
Fotografia de Lúcia Cunha
Por duas vezes, folheio inadvertidamente e chego por coincidência à mesma página: 43.
“Não basta estender as mãos vazias para o corpo mutilado,
acariciar-lhe os cabelos e dizer: Bom dia, meu amor.
Parto amanhã.
Não basta depor nos lábios inventados a frescura de um beijo
Doce e leve e dizer: Fecharam-nos as portas. Mas espera.
Não basta amar a superfície cómoda, ritual, exata nos contornos
a que a mão se afeiçoa e dizer: A morte é o
caminho.
Não basta olhar a Amante como um crime ou uma injúria
E apesar disso murmurar: somos dois e exigimos.
Não basta encher de sonhos a mala de viagem, colocar-lhe as
Etiquetas e afirmar: Procuro e esquecimento.
Não basta escutar, no silêncio da noite, a estranha voz distante,
Entre ruídos e interferências aladas.
Não basta ser feliz.
Não basta a Primavera.
Não basta a solidão.”
(a invenção do amor e outros poemas, de Daniel Filipe)
![1600-vage-hera.jpg 1600-vage-hera.jpg]()
Fotografia de Lúcia Cunha
E chego à página 45 sem me aperceber que vamos reatar o nosso namoro, pois ele, o livro, cativou-me, isto só acontece porque algo nele faz uma conexão com algo dentro de mim, e isso só acontece porque acontece neste momento.
“É preciso cantar, é preciso sorrir,
encher a escuridão com árvores sem nome.
Estamos sós no mistério dos nossos quinze anos.
A tormenta passou. A comida arrefece.
A viagem sem história concede-nos a calma:
Serenos existimos, ocultos, dominados.
(...)”
E na página 49: “(...)
Lutaremos meu Amor
Na aparência sozinhos multidão na verdade
Lutaremos meu Amor
(...)”
![166-VAGSUM-1.jpg 166-VAGSUM-1.jpg]()
Fotografia de Lúcia Cunha
A poesia é aquilo que quisermos, aliás a arte deixa de ser objeto vinculado e pertencente ao artista a partir do momento que é partilhada. Cada um vê nela o que procura, o que sente, o que quiser ver, no fundo! E no fundo nada disso é o que o artista sentiu ou projetou. Na minha adolescência, revoltava-me intensamente o facto de alguns colegas de turma papaguearem os comentários das sebentas, sobre os grandes escritores, estudados na aula de português. Eu, como se fosse uma voz ativa do próprio Pessoa ou de Florbela Espanca, reencarnados em mim, achava eu, que os estudos analíticos e as conclusões daí resultantes não faziam jus às pessoas.
De qualquer modo, a grandeza das pessoas está no seu desprendimento, na sua generosidade e simultânea discrição, mas, estas qualidades não acompanham os inseguros e invejosos. Assim, do mesmo modo o artista partilha na sua grandeza e no seu desprendimento e não se incomoda com a apropriação que os outros dão à sua obra porque a criação não se esgota na obra, nem num só objeto. Há não sei quê ligado ao infinito, à eternidade, algo de etéreo.
![1600-vagvegetal_A.jpg 1600-vagvegetal_A.jpg]()
Fotografia de Lúcia Cunha
Abri o cartão que dizia, apenas: “BIS”. Então, recordei.
De acordo com o momento o mesmo objeto poder ter connosco uma conexão profunda ou então pode ser-nos completamente alheio à nossa realidade. Às vezes até os objetos que criamos são temporais para nós e simultaneamente intemporais para os outros.
Repentinamente, penso: “Não somos flores, nem somos membros quaisquer, somos troncos de onde saem ramos.”
Não podemos é prender as águas, as represas são prisões. Quem tem asas deve voar, não voar é antinatural.
A borboleta deve voar e ser a beleza a que está destinada ser, ainda que efémera e fugaz, há um dever profundo e fundamental que cada um de nós tem: ser-se.
Lúcia Pereira da Cunha