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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

22
Fev22

Chaves de Ontem - Chaves de Hoje

Um regresso ao ano de 1912


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Excursão do grupo «Pró Patria» a Chaves. A passagem dos excursionistas, com o povo, na ponte romana. (Fotografia do flaviense Nicolau Mesquita)

ontem-hoje

 

Nesta rubrica do Chaves de ontem e de hoje, vamos regressar no tempo,  um pouco mais de 100 anos, até 1912, em que a, e da, então Vila de Chaves era, e saíam, notícias para todo o país, através da revista nacional semanal “Ilustração Portugueza” em quase todas as suas edições a partir do 8 de julho de 1912, data em que os flavienses deram a machadada final nos resistentes da monarquia, aquando daquela que teria sido a sua última incursão em território nacional, data essa que ficou registada na História de Portugal e que acabou por ficar como o dia do nosso feriado municipal.

 

Ficam alguns momentos que a “Ilustração Portugueza”, o primeiro  da edição do dia 19 de agosto de 1912,  que sempre registava em fotografia. Momentos de celebração quer de agradecimento ao povo de Chaves, com a vinda/excursão a Chaves do grupo «Pró Patria» publicada no nº 339 da Ilustração Portugueza, Pág.255, na primeira foto deste post, quer de outros momentos que mencionaremos a seguir.

 

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Nesta  segunda foto, fica a receção de “OS HEROES DE CHAVES EM LISBOA” publicada no nº 340 da Ilustração Portugueza, do dia 26 de agosto de 1912, pág. 275 onde em legenda se pode ler:

 

1 – Ao meio o clarim A.d’Azevedo, aos lados os soldados Francisco António e Albino Adriano, rodeados por alguns dos sócios do grupo «Pró Patria».

2 – O clarim António d’Azevedo e o seu filho que avisou as forças fieis da aproximação dos realistas.

3 – O clarim António d’Azevedo e os soldados de Cavalaria 6 Albino Adriano e Francisco António em Lisboa, aclamados pelo povo (clichés Benoliel).

 

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Por último e no mesmo nº340 da revista, na página 284,  em “Figuras e Factos”,  uma curiosa notícia de um duelo em Chaves entre o capitão Filipe de Souza e o Dr. António Granjo, com a fotografia dos dois intervenientes,  onde em legenda se diz: “ 1 e 2 – Srs. Capitão Filipe de Sousza e o deputado Antonio Granjo, que, depois d’uma polemica d’imprensa ácêrca do combate de Chaves, se bateram em duelo n’esta vila, ficando ambos feridos.

 

 

19
Out21

António Granjo

Chaves, 27-12-1881 — Lisboa, 19-10-1921


5outubro

 

António Joaquim Granjo

Chaves, 27 de dezembro de 1881 — Lisboa, 19 de outubro de 1921

 

Lembramos que faz hoje 100 anos que o ilustre flaviense António Granjo foi assassinado em Lisboa, naquela que ficou conhecida como “noite sangrenta”, quando tinha 39 anos de idade e desempenhava o cargo de Presidente do Conselho (atual Primeiro Ministro).

 

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Para não nos estarmos a repetir, deixamos aqui, em reposição, o post que lhe dedicámos em 27 de outubro de 2008:

 

 

In Ilustração Portuguesa nº337, de 5 de Agosto de 1912, Pag.162

 

 

António Joaquim Granjo

(1881 – 1921)

 

António Joaquim Granjo é o ilustre flaviense que hoje vai ficar aqui no blog, e se sobre alguns ilustres flavienses irei ter algumas dificuldades em arranjar imagens e biografia, sobre António Granjo há muita documentação escrita e também algumas imagens, a dificuldade será mesmo resumir o que há por aí em livro, artigos, estudos e na net, tudo isto, porque o Ilustre António Joaquim Granjo não é um nome que limita a sua ligação a Chaves, pois é um nome da República e de Portugal.

 

António Joaquim Granjo nasceu em Chaves em 27 de Dezembro de 1881 e faleceu assassinado em Lisboa em 19 de Outubro de 1921, quando desempenhava as funções de Presidente do Ministério, ou seja, presidente do governo português e que equivale hoje ao Primeiro-ministro. O dia da sua morte ficou para sempre registada na história de Portugal como “A Noite Sangrenta” à qual esteve associada a “Camioneta Fantasma”, acontecimentos e morte que viria a ditar o fim da 1ª República de Portugal.

 

 

“Era franco, rude, generoso e exagerado. Tinha todas as virtudes e todos os defeitos do montanhês e quem atentasse no seu tórax herculeo, julgaria admirar um pedaço de granito arrancado lá de cima, das serranias de Trás-os-Montes e afeiçoado pelo cinzel de qualquer escultor amigo de fortes plásticas.”

Consiglieri Sá Pereira

in A Noite Sangrenta,

Aillaud & Bertrand, Lisboa,1924

 

Casa onde nasceu António Granjo, junto à ponte do Ribelas nas Caldas,

demolida nos finais dos anos 80 para construção do Hotel Aquae Flaviae

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António Joaquim Granjo nasceu em Chaves, em 27 de Dezembro de 1881. Era filho de Domingos Pires Granjo, um curtidor e vendedor de peles e de Maria Joaquina Granjo.

 

Obteve, em 1907, o bacharelato em Direito pela Universidade de Coimbra, para onde se deslocou em 1899, tivera formação religiosa, frequentando o Seminário de Braga, entre 1893 e 1898, e cursando Teologia no Porto, no ano seguinte. Quanto à frequência do Seminário de Braga, não há contudo consenso nos escritos a que tive acesso, pois Júlio Augusto Montalvão Machado, num documento publicado no nº6 da Revista Aquae Flaviae, referia-se a este assunto da seguinte forma:

 

Por 1899-1900 frequentava o Colégio de S. JOAQUIM e conseguiu agrupar bons companheiros, a quem iniciou magistralmente no seu credo republicano! Devido a iniciativa sua, se começou então a publicar em Chaves o semanário republicano «A Alvorada», que foi querelado e punido (devido a artigo do Granjo), passando seguidamente a publicar-se com o título «Aurora». Colaboradores principais: Antonio Granjo, João Amorim, António Castilho, Maximiano Seixas Martins (Vila Pouca de Aguiar) e João Sarmento, de Soutelinho do Monte. 0 Granjo sentia-se cada vez mais revoltado contra a profissão eclesiástica que lhe escolhiam, não tinha feitio; mas também não queria desgostar a família, que muito sinceramente o estimava. Então no seu jornal, que logo conquistou público, conseguindo impor-se pelo seu valor literário, começou a satirizar certas criaturas, inclusive António Carneiro, secretário do Vigário Geral, e ainda outros elementos clericais, - havendo (e desta feita, ainda bem!) quem de tudo desse completo conhecimento para o Ver.º Arcebispo de Braga. Sucedeu porém que, terminados os estudos da latinidade, e por obediência aos pais, viu-se obrigado a requerer sua admissão para 0 Seminário de Braga, - onde muito desejava não chegar a entrar. A pobre mãe, ainda iludida, lá conseguiu arranjar o enxoval para a frequência do caloiro nos estudos canónicos, e foi ela própria acompanhar 0 filho a Braga, onde com outros estudantes amigos e da região nortenha, todos foram almoçar à Hospedaria Igo; por lá se acantonaram até à manhã seguinte, em que foi a pauta de inscrição afixada à porta, no gradeamento do Seminário dos Apóstolos, ou Seminário Conciliar, (espécie de Porta-Férrea, de Coimbra), e onde constavam os nomes dos requerentes admitidos. Na longa coluna dos A-A-A ..., não aparecia 0 nome de António Granjo! Produzira efeito o plano urdido na gazeta flaviense, mas o excluído (intimamente radiante) por necessidade e respeito, acompanhava sentidamente as lágrimas da mãe, - e para a contentar ficou logo ali assente que seguiria a continuar os seus estudos na Universidade de Coimbra, onde iria matricular-se na Faculdade de Teologia.”

 


Tivesse ou não frequentado o seminário o facto é que assentou praça em 1899 no Regimento de Cavalaria nº 6, mas a 15 de Outubro desse mesmo ano pediu baixa da vida militar, experiência a que dará continuidade mais tarde, quando liderar um grupo de voluntários contra as invasões monárquicas de 1911 e 1912 e integrar o Corpo Expedicionário Português na qualidade de alferes miliciano. Depois de concluir os estudos superiores em Coimbra, regressa à sua terra natal, onde se dedicará à advocacia até se fixar em Lisboa, no ano de 1919.

Quando estudante em Coimbra convive com Cândido Guerreiro, José Lobo de Ávila Lima, Fernando Emídio da Silva, António Abranches Ferrão, sendo António Granjo um dos alunos melhor classificados do seu curso. Casou ainda estudante, em 8 de Outubro de 1906, com Cândida Lamelas. Funda o Centro Republicano de Chaves, que se torna uma verdadeira "sociedade revolucionária" (Rocha Martins, Vermelhos, Brancos e Azuis, vol. II).

A sua actividade política começa no contexto das greves estudantis em Coimbra - quando, em 1907, integra o Comité Revolucionário Académico – e consolida-se, logo a seguir, por via da organização de um núcleo revolucionário em Chaves e da participação no Comité Revolucionário de Trás-os-Montes, onde tem um importante papel na propaganda republicana.

 

Desenho em gafite e tinta da china, 14x14cm (1918?) de autoria de Leal da Camara


Participou na tentativa revolucionária de 28 de Janeiro de 1908, tendo desenvolvido contactos na cidade do Porto, onde vivia o irmão Manuel Augusto Granjo. A sua acção, durante esta tentativa revolucionária republicana que fracassou, seria tomar o forte S. Neutel, em Chaves, para apoderar-se das munições e armas ali existentes.

A 8 de Outubro de 1910, foi proclamada a República em Chaves, com a sua presença na Câmara Municipal. Faziam parte do núcleo revolucionário de Chaves, além de António Granjo o Antão Fernandes de Carvalho, Vitor Macedo Pinto, Adelino Samardã (jornalista e organizador da Carbonária na região transmontana), José Mendes Guerra e António da Silva Correia.

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Na segunda fila (esq.-dir) António Granjo, Nicolau Mesquita e António Vilhena,

numa foto do casamento de Artur Maria Afonso e Palmira Rodrigues

(pais do ilustre flaviense Nadir Afonso) também na segunda fila abraçados.

Foto gentilmente cedida por Laura Afonso.

 


A 6 de Outubro de 1911 partiu para Vinhais, para enfrentar as invasões monárquicas comandadas por Paiva Couceiro, levando com ele António Cachapuz, Joaquim Monteiro, Vitorino Vidago e António Luis Pereira. Nesse mesmo ano, dá início à sua carreira de deputado, eleito e reeleito por Chaves até 1921, em que se destaca, logo em 1912, por defender a amnistia para os inimigos do novo regime.

 

(1)

Em 1912, trava-se de razões contra os denominados jovens turcos: Álvaro de Castro, Sá Cardoso, Álvaro Pope, Américo Olavo, que defendiam as opiniões de Afonso Costa, enquanto António Granjo se perfilava ao lado de António José de Almeida.

Em Maio de 1917, ingressa como alferes miliciano no Regimento de Infantaria nº 19, de Chaves, após ter concluído o curso de alferes no Regimento de Infantaria nº18, no Porto. Antes de partir manda elaborar o seu testamento antes de partir incorporado no Corpo Expedicionário Português em direcção à Flandres.

Quando regressa envolve-se nas conspirações e revoltas de 12 de Outubro de 1918 e de 10 de Janeiro de 1919, contra Sidónio Pais. A primeira das tentativas restringiu-se às cidades de Coimbra, Évora e Vila Real. A segunda, deflagrou somente em Santarém.

 

Um Duelo entre António Granjo e Álvaro de Castro retratado na Ilustração portuguesa

nº354 de 2 de Dezembro de 1912 pág.. 720



Proclamada a República, torna-se administrador do concelho de Chaves e, em 1911, é iniciado na Maçonaria, no triângulo 187, de Santa Marta de Penaguião, adoptando o nome simbólico deBuffon. Pertenceu depois à Loja Cavalheiros da Paz e Concórdia, em Lisboa. Manteve ligações a esta sociedade até ao final da sua vida, quando pertencendo à Loja Liberdade e Justiça, nº 373, de Lisboa, foi alertado por uma prancha datada de 15 de Outubro de 1921, que referia os problemas causados pela "questão dos eléctricos" e a necessidade de "meter na ordem obrigando a cumprir as leis nacionais e estrangeiras" (Rocha Martins, ob. cit.).

Depois de deixar o Partido Republicano Português e de se tornar membro do Partido Evolucionista, integra ainda o Partido Liberal, de que foi líder entre 1919 e a cujo directório pertenceu até 1921. Estreia-se como ministro entre 30 de Março e 28 de Junho de 1919, à frente da pasta da Justiça num governo liderado por Domingos Pereira.

 

Fotografia de António Granjo (Ao centro) quando era Presidente do Conselho de Ministros

Acompanhado dos seus ministros - 1921


Em 15 de Janeiro de 1920, sendo já membro do Partido Liberal, a cujo Directório pertenceu desde os finais de 1919 a 1921, é nomeado ministro do Interior, mas não chega a tomar posse. Quando voltou a ser nomeado para cargos governativos, assumiu a pasta da Agricultura e chefiou o próprio Executivo, ambas as funções decorrendo entre 19 de Junho e 20 de Novembro de 1920, além de se ter encarregado da pasta das Finanças, a título interino, entre 14 de Setembro e 18 de Outubro de 1920. Será, ainda, ministro do Comércio, de 24 de Maio a Agosto de 1921, até acumular, pela última vez, a chefia do Executivo com uma pasta ministerial, desta feita, a do Interior, no período de 30 de Agosto até à Noite Sangrenta de 19 de Outubro de 1921, que ditou a queda do Governo e a sua própria morte.

Da sua participação na Grande Guerra, escreveu um livro de impressões, que intitulou A Grande Aventura (Cenas de Guerra), além de ter publicado poesia e dirigido o jornal A República a partir de 9 de Março a 19 de Julho de 1920, em virtude de António José de Almeida ter sido eleito presidente da República. Volta a assumir esta função entre 20 de Novembro de 1920 e 9 de Junho de 1921. Colaborou ainda na revista Livre Pensamento de Coimbra, em 1905. Foi ainda colaborador de O Norte, Porto, 1918-1920.

Escreveu: Carta à Rainha D. Amélia (1909) e Águas obras em verso; Vitória de Uma Mocidade, 1907; A Grande Aventura (cenas de Guerra), 1919, dedicado ao Regimento de Infantaria nº 19(prosa).

 

Visita do Chefe do Governo (António Granjo) a Bucelas - 1921

 

A Camioneta Fantasma e a Noite Sangrenta

 

Em 19 de Outubro de 1921 a barbárie sai com toda a ferocidade para a rua: uma camioneta fantasma, conduzida por verdadeiros facínoras, vai buscar às suas casas António Granjo, Machado Santos, José Carlos da Maia, e o coronel Botelho de Vasconcelos. Assassinam-nos com uma violência e brutalidade inauditas.

 

O empobrecimento e o embrutecimento do país é geral. Ninguém sabe o que quer. Ninguém se entende. A fome grassa por todo o lado. Por falta de azeite fecham as fábricas de conservas do Algarve.

 

Era o começo do fim da Primeira República que tinha sido um somatório de idealismo, instabilidade, ignorância, revoluções, caos e crimes hediondos.

 

Para melhor se entender o conturbada que foi a primeira república fiquemos com alguns acontecimentos dos dois meses que antecederam a noite sangrenta:

 

 

 

António Granjo e o Presidente da República Bernardino Machado e outras individualidades em 1917

.

 

Setembro de 1921

 

- Deputado António Luís Gomes, em 1 de Setembro, considera que o sistema parlamentar está condenado por causa do regime de mentira, ao mesmo tempo que os ministros são uns verdadeiros criminosos que estão a arrancar o sangue do povo português. Conclui salientando: cada vez enjoo mais a política. Nunca entrei para partido algum, porque os partidos da República têm colocado os homens acima dos partidos … Por isso é que os homens de bem se retraem, afastando-se da política.

 

- Artigo em O Século, em 1 de Setembro, sobre a crise das subsistências considera que a classe média ficou entre o martelo e a bigorna.

 

- Confirmada a burla do empréstimo dos 50 milhões de contos através de comunicação diplomática do visconde de Alte em 4 de Setembro. O gabinete de Barros Queirós já conhecia a trama desde 28 de Agosto.

 

- Em 5 de Setembro, comício em Loures, com violentos discursos anti-católicos. Declarações de António Granjo no Senado, em 2 de Setembro são desvirtuadas pelo relato parlamentar do Diário de Notícias, quando se refere que Granjo reconhecia a religião católica como a única do país.

 

- Em 8 de Setembro, Cunha Leal interpela o ministro das finanças sobre a matéria. Sobre os boatos que correm, Vicente Ferreira apenas diz fumo. Na Câmara dos Deputados, intensos ataques aos banqueiros portugueses que serviram de intermediários no processo.

 

- Em 16 de Setembro, o deputado Carvalho da Silva denuncia o facto do governo ter indemnizado com 4 500 contos indivíduos e empresas consideradas vítimas da última revolução. Jornais O Mundo e O Portugal, afectos aos democráticos, são contemplados com 260 e 330 contos, respectivamente.

 

- Em 17 de Setembro, os trabalhos parlamentares são suspensos até 7 de Novembro.

- Aborta golpe de Estado em 30 de Setembro. O chefe da conjura é o tenente-coronel Manuel Maria Coelho, com o capitão-de-fragata Procópio de Freitas e os oficiais da GNR Camilo de Oliveira e Cortês dos Santos. Presos alguns desses cabecilhas, eles são depois libertados por António Granjo. Entre os presos, o coronel Xavier Ferreira, Orlando Marçal, Sebastião Correia e Procópio de Freitas.

- Surge um esboço de movimento de salvação pública, subscrito por José de Castro, António Luís Gomes, Jaime Cortesão, João de Deus Ramos, Francisco António Correia, Ramada Curto, Cunha leal, Leonardo Coimbra e Sá Cardoso.

 

Visita do Chefe do Governo (António Granjo) a Bucelas - 1921

- Fausto de Figueiredo, um dos financiadores da Imprensa da Manhã, promove encontro de António Granjo e Cunha Leal no Estoril em 5 de Outubro. Nas cerimónias do cemitério do Alto de S. João, na romagem aos túmulos de Cândido dos Reis e Miguel Bombarda, há insultos a Granjo, com morras à reacção e aos jesuítas. Mas o presidente do ministério manda libertar os implicados no 30 de Setembro que se encontravam detidos. Considera que só pela brandura se consegue governar.

 

Outubro de 1921

O 19 de Outubro de 1921 pode-se considerar como a data do fim da 1ª República, embora formalmente ela continuasse até 28 de Maio de 1926.

 

Entre o assassinato de Sidónio Pais e os massacres de 19 de Outubro de 1921, Portugal, teoricamente um regime parlamentar, viveu sob uma ditadura tutelada pelos arruaceiros e rufias dos cafés e tabernas de Lisboa e pela Guarda Nacional Republicana, uma Guarda Pretoriana do regime, bem municiada de artilharia e armamento pesado, concentrada na zona de Lisboa e cujos efectivos passaram de 4575 homens em 1919 para 14341 em 1921, chefiados por oficiais «de confiança», com vencimentos superiores aos do exército. A queda do governo de Liberato Pinto, o principal mentor da GNR, em Fevereiro de 1921, colocou as instituições democráticas na mira dos arruaceiros e pretorianos do regime a que se juntaram sindicalistas, anarquistas, efectivos do corpo de marinheiros, etc.. O governo de António Granjo, formado a 30 de Agosto, era o alvo.

 

Funeral de António Granjo em Lisboa

 

O nó górdio foi o caso Liberato Pinto, entretanto julgado e condenado em Conselho de Guerra por causa das suas actividades conspirativas. Juntamente com o Mundo, a Imprensa da Manhã, jornal sob a tutela de Liberato Pinto, atacavam diariamente o governo, tentando provar, através de documentos falsos, que o Governo projectava o cerco de Lisboa por forças do Exército, para desarmar a Guarda Nacional Republicana. No Diário de Lisboa apareceram, entretanto, algumas notas relativas ao futuro movimento. Em 18 de Agosto, um informador anónimo dizia da futura revolta: «Mot d'ordre: a revolução é a última. Depois, liquidar-se-ão várias pessoas».

 

O coronel Manuel Maria Coelho era o chefe da conjura. Acompanhavam-no, na Junta, Camilo de Oliveira e Cortês dos Santos, oficiais da G. N. R., e o capitão-de-fragata Procópio de Freitas. O republicanismo histórico do primeiro aliava-se às forças armadas, que seriam o pilar da revolução. Depois de uma primeira tentativa falhada, em que alguns dos seus chefes foram presos e libertos logo a seguir, o movimento de 19 de Outubro de 1921 desenrolou-se num dia apenas, entre a manhã e a noite. Três tiros de canhão disparados da Rotunda pela artilharia pesada da GNR tiveram a sua resposta no Vasco da Gama. Passavam à acção as duas grandes forças da revolta. A Guarda concentrou os seus elementos na Rotunda; o Arsenal foi ocupado pelos marinheiros sublevados, que não encontraram qualquer resistência; núcleos de civis armados percorreram a cidade em serviço de vigilância e propaganda. Os edifícios públicos, os centros de comunicações, os postos de comando oficiais caíram rapidamente em poder dos sublevados. Às 9, uma multidão de soldados, marinheiros e civis subiu a Avenida para saudar a Junta vitoriosa. Instalado num anexo do hospital militar de Campolide, o seu chefe, o coronel Manuel Maria Coelho, presidia àquela vitória sem luta.

 

Cunha Leal no uso da palavra no funeral de António Granjo

 

Em face da incapacidade de resistir, às dez da manhã, António Granjo escreveu ao Presidente da República:

«Nestes termos, o governo encontra-se sem meios de resistência e defesa em Lisboa. Deponho, por isso, nas mãos de V. Ex.a a sorte do Governo...»

 

António José de Almeida respondeu-lhe, aceitando a demissão:

«Julgo cumprir honradamente o meu dever de português e de republicano, declarando a V. Ex.a que, desde este momento, considero finda a missão do seu governo...»

Recebida a resposta, António Granjo retirou-se para sua casa. Eram duas da tarde.

 

O PR recusou-se a ceder aos sublevados. Afiançou que preferiria demitir-se a indigitar um governo imposto pelas armas. Às onze da noite, ainda sem haver solução institucional, Agatão Lança avisou António José de Almeida que algo de grave se estava a passar. Perante tal, conforme descreveu depois o PR,

«Corri ao telefone e investi o cidadão Manuel Maria Coelho na Presidência do Ministério, concedendo-lhe os poderes mais amplos e discricionários para que, sob a minha inteira responsabilidade, a ordem fosse, a todo o transe, mantida».

 

Passando a palavra a Raul Brandão (Vale de Josafat, págs. 106-107),

«Depois veio a noite infame. Veio depois a noite e eu tenho a impressão nítida de que a mesma figura de ódio, o mesmo fantasma para o qual todos concorremos, passou nas ruas e apagou todos os candeeiros. Os seres medíocres desapareceram na treva, os bonifrates desapareceram, só ficaram bonecos monstruosos, com aspectos imprevistos de loucura e sonho...».

 

 

Sentindo as ameaças que se abatiam sobre ele, António Granjo buscou refúgio na casa de Cunha Leal. Cunha Leal tinha simpatias entre os revoltosos (tinha aliás sido sondado para ser um dos chefes do movimento, mas recusara) e Granjo considerou-se a salvo. Todavia, a denúncia de uma porteira guiou os seus perseguidores que tentaram entrar na casa de Cunha Leal para deter António Granjo. Cunha Leal impediu-os, mas a partir desse momento ficaram sem possibilidades de fuga porque, pouco a pouco, o cerco apertara-se e grupos armados vigiavam a casa. Apelos telefónicos junto de figuras próximas dos chefes da sublevação, que pudessem dar-lhes auxílio, não surtiram efeito.

 

Perto das nove da noite compareceu um oficial da marinha, conhecido de ambos, que afirmou que levaria Granjo para bordo do Vasco da Gama, um lugar seguro. Cunha Leal vacilou. Granjo mostrou-se disposto a partir. Cunha Leal acompanhou-o, exigindo ao oficial da marinha que desse a palavra de honra de que não seriam separados. Meteram-se na camioneta que afinal não os levaria ao refúgio do Vasco de Gama, mas ao centro da sublevação.

 

A camioneta chegou ao Terreiro do Paço onde os marinheiros e os soldados da Guarda apuparam e tentaram matar António Granjo. Cunha Leal conseguiu então salvá-lo. A camioneta entrou, por fim, no Arsenal e os dois políticos passaram ao pavilhão dos oficiais. Um grupo rodeou Cunha Leal e separou-o de Granjo, apesar dos seus protestos. Os seus brados levaram a que um dos sublevados disparasse sobre ele, atingindo-o três vezes, um dos tiros, gravemente, no pescoço. Foi conduzido ao posto médico do Arsenal.

 

Entretanto, vencida a débil resistência de alguns oficiais, marinheiros e soldados da GNR invadiram o quarto onde estava António Granjo e descarregaram as suas armas sobre ele. Caiu crivado. Um corneteiro da Guarda Nacional Republicana cravou-lhe um sabre no ventre. Depois, apoiando o pé no peito do assassinado, puxou a lâmina e gritou: «Venham ver de que cor é o sangue do porco!»

 

A camioneta continuou a sua marcha sangrenta, agora em busca de Carlos da Maia, o herói republicano do 5 de Outubro e ministro de Sidónio Pais. Carlos da Maia inicialmente não percebeu as intenções do grupo de marinheiros armados. Tinha de ir ao Arsenal por ordem da Junta Revolucionária. Na discussão que se seguiu só conseguiu o tempo necessário para se vestir. Então, o cabo Abel Olímpio, o Dente de Ouro, agarrou-o pelo braço e arrastou-o para a camioneta que se dirigiu ao Arsenal. Carlos da Maia apeou-se. Um gesto instintivo de defesa valeu-lhe uma coronhada brutal. Atordoado pelo golpe, vacilou, e um tiro na nuca acabou com a sua vida.

 

A camioneta, com o Dente de Ouro por chefe, prosseguiu na sua missão macabra. Era seguida por uma moto com sidecar, com repórteres do jornal Imprensa da Manhã. Bem informados como sempre, foram os próprios repórteres que denunciaram: «Rapazes, vocês por aí vão enganados... Se querem prender Machado Santos venham por aqui...». Acometido pela soldadesca, Machado Santos procurou impor a sua autoridade: «Esqueceis que sou vosso superior, que sou Almirante!». Dente de Ouro foi seco: «Acabemos com isto. Vamos». Machado Santos sentou-se junto do motorista, com Abel Olímpio, o Dente de Ouro, a seu lado. Na Avenida Almirante Reis, a camioneta imobiliza-se devido a avaria no motor. Dente de Ouro e os camaradas não perdem tempo. Abatem ali mesmo Machado Santos, o herói da Rotunda.

 

Não encontraram Pais Gomes, ministro da Marinha. Prenderam o seu secretário, o comandante Freitas da Silva, que caiu, crivado de balas, à porta do Arsenal. O velho coronel Botelho de Vasconcelos, um apoiante de Sidónio, foi igualmente fuzilado. Outros, como Barros Queirós, Cândido Sotomayor, Alfredo da Silva, Fausto Figueiredo, Tamagnini Barbosa, Pinto Bessa, etc., salvaram a vida por acaso.

 

Os assassinos foram marinheiros e soldados da Guarda. Estavam tão orgulhosos dos seus actos que pensaram publicar os seus nomes na Imprensa da Manhã, como executores de Machado Santos. Não o chegaram a fazer devido ao rápido movimento de horror que percorreu toda a sociedade portuguesa face àquele massacre monstruoso. Mas quem os mandou matar?

 

Estátua de António Granjo em Chaves

 

O horror daqueles dias deu lugar a uma explicação imediata, simples e porventura correcta: os assassínios de 19 de Outubro tinham sido a explosão das paixões criadas e acumuladas pelo regime. Determinados homens mataram; a propaganda revolucionária impeliu-os e a explosão da revolução permitiu-lhes matar. No enterro de António Granjo, Cunha Leal proclamou essa verdade:

«O sangue correu pela inconsciência da turba — a fera que todos nós, e eu, açulámos, que anda solta, matando porque é preciso matar. Todos nós temos a culpa! É esta maldita política que nos envergonha e me salpica de lama».

 

No mesmo acto, afirmaria Jaime Cortesão:

«Sim, diga-se a verdade toda. Os crimes, que se praticaram, não eram possíveis sem a dissolução moral a que chegou a sociedade portuguesa».

 

É esta a história do ilustre flaviense António Granjo, que dá nome a Uma Escola em Chaves, a uma Avenida e que tem hoje o seu devido monumento, com a sua estátua no antigo largo da Estação. Os acompanhantes deste blog e que desconheciam a história de António Granjo, já ficam a saber quem é o Homem da estátua do largo que aponta para a cidade como quem aponta para Portugal.

 

Bibliografia e fotos:

http://arepublicano.blogspot.com

http://semiramis.weblog.com.pt

http://www.iscsp.utl.pt

Revista Aquae Flaviae nº 6 de Dezembro de 1991

Arquivo Municipal de Lisboa

 

(1) - Publicado neste blog em episódios de 3 de fevereiro de 2021 a 30 de julho de 2021 - (pesquisar por "Grande Aventura").

 

05
Out21

5 de Outubro - Dia da Implantação da República

Dois flavienses com marca na República


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Como tem sido habitual nos anos anteriores, não deixamos passar este dia em claro, trata-se do 5 de outubro, o dia da implantação da República em Portugal. Para trás, ficavam séculos de Monarquia. Este ano tentei procurar imagens flavienses que fossem imagens de marca ou símbolos da república, e na verdade a cidade de Chaves tem muitas imagens de marca que fazem a nossa história, que nos ligam à ocupação romana, à idade média e à monarquia. Da ainda jovem república, onde a cidade de Chaves até teve um papel importante na sua consolidação nas últimas lutas contra monárquicos, pouco temos  para além da bandeira nacional hasteada nos edifícios públicos e alguns edifícios públicos que nos ligam um estilo de arquitetura da 2ª República, mas por sinal ligadas a uma república, a segunda, que está ligada a uma ditadura e da qual o povo guarda más memórias, principalmente as que nos ligam a pobreza, falta de liberdade e analfabetismo ou, mesmo que não analfabeto, não passou da iliteracia.

 

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Temos no entanto dois nomes grandes ligados à República Portuguesa por terem ocupado dois dos mais altos cargos dos órgãos de soberania nacional, ambos em épocas bem conturbadas da República,  um ligado à Primeira República, o Dr. António Granjo,  que foi ministro e Presidente do Concelho (atual 1º Ministro) num dos governos, durante o qual foi assassinado naquela que ficou conhecida como “noite sangrenta”. Foi em 19 de outubro de 1921, vai fazer precisamente 100 anos daqui a 14 dias, pode ser que alguém se lembre disso, nesse dia… Mas de António Granjo, pelo menos, já temos uma escola secundária com o seu nome e uma estátua na rotunda da antiga estação da CP.

 

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O outro nome grande que os flavienses teimam em ignorar, foi o de Francisco Costa Gomes (30-06-1914 (Chaves) – 31-07-2001 (Lisboa), Marechal, Presidente do Concelho da Revolução (1974-1975), Presidente da Junta de Salvação Nacional (1974-1975) e Presidente da República de 30 de setembro de 1974 a 27 de junho de 1976, bem podemos dizer que foi um nome que esteve ligado à implantação da democracia em Portugal, precisamente ao seu início em que mais riscos correu. Do Marechal Costa Gomes, em Chaves temos com o seu nome uma avenida nos arredores da cidade, e tivemos em uma exposição em Chaves promovida pela Presidência da República, com honras militares na inauguração em 30-06-2014.

 

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Ficam assim estes dois nomes/símbolos da República Portuguesa – António Granjo (1ª República) e Marechal Costa Gomes (3ª República).

30
Jun21

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA) - Último capítulo


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António Granjo

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)

 

20

 

Nota: A GRANDE AVENTURA - (SCENAS DA GUERRA) é um pequeno livro que resultou da participação do ilustre flaviense António Granjo na I Guerra Mundial de 1914-1918, que deixamos aqui em episódios, escritos no português da altura, incluindo erros e gralhas tipográficas.

 

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Por Portugal

 

Tendo passado à reserva, por ter mais de 35 anos, fui colocado como advogado oficioso no Tribunal de Guerra que funciona na frente e que está instalado em Saint-Quentin, uma pequena localidade dos arredores de Airesâr-la-Lys.

 

Aboletaram-me numa ferme, onde me deram um pequeno quarto, cuja única janela deita para a linha de batalha. A esta hora em que me disponho a escrever ao povo português, terminada a minha acção militar, dando-lhe conta do que vi e do que aprendi, como é minha obrigação de patriota, o canhão troa para os lados da Bélgica. Há três dias que, sem um minuto de intervalo, se ouve para êsses lados o fogo rolante.

 

Sobre o modesto fogão do meu quarto, entre duas imagens de santos, metidas em rodomas de vidro, há um relógio. Alêm do trovão rolante, só a voz desta língua do tempo chega aos meus ouvidos.

 

Rascanho da alma toda a espécie de sentimento impuro que a injustiça dos homens ou a adversidade dos factos haja gerado dentro de mim. Liberto-me de toda a espécie de prejuízo que me prenda a sistemas. Desfaço-me de toda a espécie de compromissos que me ligue a partidos ou a pessoas. E procuro conseguir que as palavras e os juízos me corram da pena, tão natural e verdadeiramente como a luz corre duma chama.

 

Desejarei que as minhas palavras toquem o coração do povo, porque desejo medir a realidade, como aquela pêndula vai medindo o presente, como o canhão, ao longe, vai medindo o futuro.

 

Tropas Portuguesas desfilando sob o Arco do Triunfo.jpg

 

Eis o que tenho a dizer:

 

Emquanto os sistemas entre os povos não passarem do dominio do comércio, das letras e da diplomacia, e os sistemas de ordenação das sociedades se concretisarem em formulas políticas mais ou menos amplas, a guerra será sempre a condição do mundo. A victoria é que sancionará o direito. O canhão será a voz que se fará ouvir mais alto.

 

Creio num destino melhor para a humanidade, mas convenço-me de que uma era de definitiva paz e perene abundância será por muito tempo, porventura por seculos de seculos, uma generosa conceção de poetas e filósofos.

 

Creio na victoria do povo. Creio que o rebanho imenso, que pastores cúpidos têem conduzido através as idades à morte, tomará conta dos seus destinos. Os caminhos da vida social vão-se alargando e com os tempos a existência sobre este pobre planeta devastado será um pouco mais fecunda e mais feliz.

 

Mas está ainda por descobrir o estado social da perfeição e por mais que se devasse o horizonte não se vê o braço heróico que sustenha o facho que há de guiar as nações à pleniventura. A Revolução Russa é ainda, e sempre, a guerra. Lenine é um estadista tartaro que conhece Karl Marx.

 

Por cada guerra, é certo, o povo, ao mesmo tempo que vai juncando a estrada de cadáveres, vai dando mais um passo para a sua libertação. Por cada revolução, é certo, vai-se criando uma nova ordem de idéas, que se refecte e fixa nas leis como mais uma conquista de liberdade e de justiça. Mas emquanto o direito derivar da fôrça, quer esta seja detida pelas antigas classes priveligiadas, por meio de regimes pessoais ou parlamentares, quer seja detida pelo operariado, por meio de ditaduras ou pelo govêrno das classes, o povo será sempre a fácil presa da tirania.

 

Os exércitos são necessários, porque a guerra perdurará. Só pela fôrça os povos poderão defender aquele conjunto de liberdades e direitos que à custa de torrentes de sangue, e de eras de sofrimentos, ganharam e houveram, constituindo hoje o principal património da civilização.

 

Passou o tempo dos exércitos permanentes. Já não basta a cada nação um certo número de milhares de homens encarregados de velar pela sua independência e segurança. Para uma nação se defender das tentativas de agressão e de rapina dos povos visinhos, não bastam os velhos organismos militares, constituidos por profissionais. Esta guerra diz-nos que se torna absolutamente indispensável, para a vida livre dum povo, organizar as indústrias, de modo a produzir-se um material de guerra inexgotavel, e igualmente indispensável se torna o alistamento nas fileiras de todos os homens válidos, de modo a conseguir-se, nos dois sentidos da extensão e da intensidade, o maior esfôrço útil no menor prazo de tempo. Donde resulta que a soma de sacrifícios em vidas e em dinheiro será cada vez maior, e que, em vez de chegarmos ao desarmamento, caminhamos para o armamento geral.

 

Não é adecuada à nossa situação a palavra — militarismo. Esta palavra subintende uma institùição fechada, um colegio de servidores da violência, em que os seus membros teem direitos e deveres especiais e sôbre os quaes recai a responsabilidade do triunfo ou da derrota — uma espécie de casta destinada a intervir nas grandes ocasiões, quebrando ou fundindo o ataque ou a resistência do inimigo com o prestigio da sua espada e a tradição da sua heroicidade.

 

E' às massas que hoje se pede a victoria, e é às fabricas que hoje se exige a sua preparação.

 

Cada povo deve bastar-se a si próprio. O povo que se não bastar a si próprio, ou arrastará uma existência de condenado, vivendo da humilhação e da miséria, ou gravitará num sistema de alianças, que não será mais do que uma escravidão simulada. O seu comércio, a sua indústria, a sua sciência, a sua literatura, passarão para as mãos do povo que dominar êsse sistema, e a palavra independência soará a ôco, perdendo-se nos corações a fé no futuro e o culto do passado.

 

Esta guerra deu aos povos pequenos os seus grandes meios de defeza — a trincheira e o submarino. Mais do que todos os discursos dos estadistas que prégam a sociedade das nações e afirmam o direito de cada povo se desenvolver livremente, conforme a sua idiosincracia, a sua civilização e a sua história — o morteiro de trincheira e o submarino de alto mar outorgaram às pequenas nacionalidades a sua carta de alforria.

 

Não sei o que o futuro reserva à minha Pátria. Se creio que os povos encontrarão um dia uma fórmula que os apróxime directamente e dispense uma diplomacia secreta, por uma internacionalização cada vez maior do pensamento, por um estreitamento cada vez mais íntimo das relações entre os trabalhadores, creio também que as Patrias viverão eternamente, elementos necessários como são do progresso e do equilíbrio sociais. No presente estado de coisas, as Pátrias são a própria condição da vida social. Por isso todos os cidadãos devem ser implacavelmente adstritos ao serviço da sua defeza e ao serviço do seu ideal.

 

 

Eu amo a minha Pátria, e sou intolerante — confesso-o altivamente — para com todas as teorias e todos os actos das quais possa rezultar a sua fraqueza e o seu desprestígio. A grandeza do seu passado enche de orgulho e de confiança todo o meu ser.

 

A teoria das nações moribundas fez o seu tempo. As próprias nações mortas, como a Polónia, erguem-se dos seus túmulos.

 

Portugueses, é preciso crêr! A crença num outro mundo é só própria do que são incapazes de rasgar neste um caminho luminoso e largo por onde os olhos se estendam sem medo a Deus, onde os pés se firmem sem medo ao inferno. Mas qual é o homem, digno de viver, que não tem a realizar na vida uma missão? E qual é o povo, digno de si próprio, que não tem o seu destino a cumprir?

 

Eu tenho fé na minha Pátria, e quero, porisso, que a minha Pátria tenha à sua disposição a fôrça indispensável ao inteiro cumprimento da sua missão civilizadora. Quero um exercito e uma armada, que sejam as chaves da sua defeza e os instrumentos convenientes e eficazes para a realização completa dos seus destinos no mar e na terra.

 

Um país banhado pelo Oceano tem as portas abertas para o mundo, para a glória e para a riqueza — e já demonstrámos que conhecemos os caminhos do mar.

 

Todos os povos, como todos os indivíduos, devem estar preparados para defender os seus direitos e as suas liberdades: nenhum povo, como nenhum indivíduo, deve hesitar em sair à arena sempre que os seus direitos sejam portergados ou que as suas liberdades sejam ameaçadas.

 

A lição eterna, que fulgura através as idades, é a de que os povos que amoleçam numa paz, que não seja o fruto opimo dos seus esforços de cada hora e das suas energias aproveitadas ao máximo em cada minuto, e seja o rezultado duma existência de humilhações e de pavores, de uma política de hesitações e de fraquezas, deixarão embotar as suas virtudes no mais torpe comodismo e deixarão que os apetites mais grosseiros tomem o logar aos sentimentos de abnegação e de sacrifício.

 

Nas nações, como nos cidadãos, tem de haver uma conciência recta. Os cidadãos não devem limitar-se a formar juízos, embora cheios de imparcialidade e de justiça: devem descer à praça publica a afirmar o seu protesto contra a violação da lei e o esmagamento da inocência. Só tem direito a ser possuidor de idéas quem tenha uma boca para as prégar e um pulso para as defender. Do mesmo modo as nações não devem limitar-se a conceder a um povo espesinhado sob a pata do opressor algumas palavras de simpatia: teem o dever de lutar, de batalhar pelo restabelecimento do direito.

 

 

As nações, como os indivíduos, devem ter uma alma alevantada que não desanime perante as dificuldades nem recue perante os obstáculos.

 

Contestamos que a guerra seja a grande escola de sacrifício, porque nunca foi uma fonte de energia. A guerra declara-se quando o sentimento ofensivo dum povo atingiu o seu momento explosivo. E' na paz que a conciência patriótica encontra os seus motivos e os seus impulsos; é na paz que as energias nacionais se ordenam no sentido de condicionar a victoria. Porisso, os povos que não se prepararam na paz não podem sentir a guerra. A guerra é o entusiasmo dos corações acesos pela paixão da pátria; a guerra é o último período de uma época de alta cultura nacional, em que se infiltra nas massas o sentimento da superioridade da raça. As nações que não se exaltaram no amor da Pátria durante a paz, não podem marchar para a guerra, com êsse ranger de dentes que é a vontade de vencer, com êsse sereno passo que dá a certeza de se cumprir um alto dever.

 

Esta é a razão por que Portugal não sentiu a guerra. Para uns a ida à França foi um expediente dum partido, que queria salvar-se da perda iminente; para outros foi quasi uma blague. Muitos anos duma paz podre deixaram-nos apagados numa vida vegetativa, propícia ao desenvolvimento das facções políticas e obliteradora dos sentimentos fortes. O interesse de dinastia prevaleceu sobre o interesse geral, no tempo da monarquia; o espírito de seita prevaleceu sôbre o espírito nacional, no tempo da República. As questões cuja resolução era necessária ao bem do Estado foram postas de parte a favor das estereis disputas de palavras entre os intelectuais ou a favor dos instintos criminosos das harpias do poder. As narrativas heroicas das descobertas e conquistas fôram esquecidas pelas façanhas dos galopins eleitorais ou pelos crimes impunes das chafaricas secretas. O culto dos grandes homens foi substituído pela adoração extactica dos messias da governança.

 

E' preciso que volte a nós a alma heróica dos descobridores e navegantes, dos fronteiros e dos conquistadores, que levavam no peito, como um sol, a Pátria, e levavam ao alto, como uma espada, a cruz.

 

A proclamação da Republica foi um supremo instante da lucidez popular e a ida para a guerra foi o supremo instante, o unico instante, em que os nossos homens publicos tiveram a compreensão do interesse e do dever nacionaes. Sem a Republica, a nação teria cahido embrulhada no manto régio, ou aos pés de Affonso XIII, ou nos corredores do Foreing-Ofice. Sem a participação na guerra, perderíamos as colonias, e passaríamos a levar uma vida de mendigos, tateando na escuridão uma parede para guiar os passos incertos, buscando em vão na caminhada lugubre um tecto sob que descançar a cabeça.

 

A guerra não foi, em parte alguma do mundo, obra de um homem ou dum partido. A guerra foi a inevitável consequência dum estado social precário e de um sistema politico instável.

 

O que fica são os factos.

 

O facto que fica é que Portugal justificou a sua existência marchando para os campos de batalha em defeza do direito e em cumprimento dos seus tratados.

 

Antes de os Estados Unidos entrarem na guerra em prol da liberdade dos povos, pondo na balança todo o peso do seu oiro e todo o valor dos seus admiráveis soldados, houve um pequeno povo, de minguados recursos em dinheiro, em material e em homens, que nem perante a ruina certa, a ameaça de perder o seu império colonial e o risco da propria independência, deixou de cumprir o seu dever. Esse pequeno povo foi Portugal. A atual geração não podia legar aos vindouros nem maior titulo de gloria nem mais justo motivo de orgulho.

 

Quando os anos da guerra se projetarem nitidamente no horisonte do passado, a Historia, na visão panoramica dos factos, nem sequer atentará nas discussões que se teem travado sobre a necessidade ou desnecessidade, sobre a conveniência ou inconveniência da nossa participação armada na Flandres. Tudo isso que se tem escrito não é mais do que um alarido feito por políticos, entregues às suas paixões, ou por jornalistas que escrevem por oficio ou por vicio. Esse alarido nunca chegará aos ouvidos da Historia.

 

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Pintura de Sousa Lopes

 

Conta-se de um oficial francez que, tendo ficado feridos ou mortos sob um bombardeamento quasi todos os seus homens, e tendo os poucos ilesos procurado na fuga um refugio ao furacão, ao ver a primeira vaga inimiga lançar-se ao assalto, trepára ao parapeito, e, na transfiguração épica que dão as grandes horas, comandara:

 

— Mortos, a pé!

 

E os feridos levantaram-se, as metralhadoras começaram a crepitar e o assalto foi repelido.

 

Parece haver muitos portuguezes que trazem dentro de si os corações mortos. A nossa vida parece estar só nos nossos olhos para nos odiarmos, e nos nossos lábios para nos caluniarmos.

 

Aos homens que na Africa e na Flandres afrontaram a morte compete saltar para o parapeito e gritar a esses corações:

 

— Mortos, a pé!

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António Granjo 

27-12-1881 * 19-10-21

 

FIM

 

 

 

23
Jun21

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)


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António Granjo

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)

19

Nota: A GRANDE AVENTURA - (SCENAS DA GUERRA) é um pequeno livro que resultou da participação do ilustre flaviense António Granjo na I Guerra Mundial de 1914-1918, que deixamos aqui em episódios, escritos no português da altura, incluindo erros e gralhas tipográficas.

 

 

A rendição

 

O batalhão estava nas trincheiras havia perto de quatro mezes. Logo no fim do primeiro mez se começou a falar na rendição. Mas os mezes iam passando, e aquela vida gasta do apoio para a primeira linha, da primeira linha para o apoio, entre tectos esburacados e entre sacos de terra, ia-se prolongando indefinidamente. Os batalhões inglezes tinham sido rendidos. Já, na nossa frente, os inimigos tinham sido rendidos duas ou trez vezes. Nós continuavamos, como forçados da guerra, amontoados dentro dos abrigos e das trincheiras — carne pôdre atirada para o guano.

 

O general dispuzera que as penas correcionaes se cumprissem na primeira linha. Daqui resultava que um soldado a quem faltava um botão era condenado à morte, da qual só escapava pela misericórdia das balas ou pelo perdão dos morteiros. Entretanto, aqueles que tinham de responder em conselho de guerra por cobardia ou por traição, vinham para a retaguarda até serem julgados, com as vidinhas garantidas até ao julgamento. Esta sábia disposição do comando déra já logar ás coisas mais espantosas.

 

Estaria porventura todo o batalhão condenado a pena correcional e a ficar nas trincheiras até desaparecer o ultimo homem?

 

Ia-se fazendo nas almas essa impressão que produz um crepusculo continuo. Abandonavam-se os soldados á sorte, como aquele sol doente se abandonava à terra. Para os manter vigilantes nos postos, era preciso rondal-os a todo o instante. Um posto de fuzileiros tinha-se deixado surpreender e uma patrulha inimiga levara-lhe dois homens, depois de ter matado o cabo.

 

Era no dia seguinte, conforme a nota do comando, que se fazia a rendição. O batalhão, segundo se dizia, iria para Mametz. A marcha far-se-hia a pé até Paradis, onde esperariamos os caminhões que nos levariam a Mametz, para alêm de Ayre-sûr-la-Lys.

 

Nessa ultima semana de trincheiras pertencia-me ficar na reserva. Mas como um oficial de outra companhia fôra chamado não sei para que serviço, eu, que era o oficial mais moderno, fôra nomeado para o substituir.

 

 A minha ultima ronda era á meia noite. Segui com as ordenanças para a primeira linha.

 

Na escuridão as aguas dos drenos escorriam como tranças de sombra. Na Garden Trench um troço de pioneiros compunha um travez destruído na vespera por uma granada pezada. Dois soldados enchiam os sacos de terra, emquanto outros dois, de pé sobre a banqueta, os ajustavam e batiam. Nos postos da segunda linha uma das sentinelas vigiava a campanha, com a cabeça enterrada sobre os sacos, emquanto a outra, sentada, dormitava com a espingarda entre os joelhos. Sucediam-se os foguetes. Para Armentières o canhão troava ininterruptamente, incendiando o horisonte. Um foguete de suspensão ficou pairando no ar, como uma pomba luminosa, e foi descendo lentamente, deixando uma claridade de neve sobre as trincheiras.

 

No primeiro posto de granadeiros, os soldados cochichavam. Viam-se os cunhetes de granadas acumulados a um canto. Os soldados não resistiam à tentação de mandarem uma salva ao inimigo neste ultimo dia de trincheiras, na hora que precedesse a rendição. Chamei os sargentos e tornei-os responsaveis pela boa disciplina da linha. Eles bem sabiam que a retaliação não se faria esperar, desabando as descargas de morteiros sobre o batalhão que nos rendesse. Denunciava-se a rendição e porventura as estradas e as trincheiras de comunicação seriam batidas, apanhando-nos na marcha para o acantonamento. Fazia-se um dispendio inutil e criminoso de munições e praticava-se um acto de cobardia, visto que não seriamos nós a sentir a paga da agressão. Dei instruções rigorosas aos cabos que comandavam os postos para fazerem remover para os depósitos os respectivos cunhetes e fui percorrendo a linha. Num posto de fuzileiros, onde a Terra de Ninguém começava a estreitar até a trincheira inimiga ficar a pouco mais de vinte metros defronte do Lansdowon Post, debrucei-me sobre o parapeito e enterrei os olhos na noite.

 

O bosque de Biez tapava o horisonte como uma cortina de ferro. Como uma aranha colossal, a rêde d'arame emaranhava-se ao longo da linha. Apontei ao alto a pistola e o foguete partiu, abrindo-se quasi perpendicularmente á nossa trincheira. Em baixo a agua corria pelo fosso, como uma babugem da treva, como um dejecto da noite. Alvejaram para a direita os cestões que revestiam um pequeno troço da linha inimiga. Brilhou alguma coisa, para alem da rêde d'arame. Fiquei alguns minutos bebendo o misterioso fluido que, errando pelos funis das granadas e pelas covas dos morteiros, ascendia pelo talude e se metia dentro de nós como um veneno que nos fazia parar, como que apodrecer, o sangue das veias. Sentiu-se um leve rumor logo em baixo, nas primeiras fiadas de arame. Lancei outro foguete. Era um gato, que, ao ver desdobrar-se o docel luminoso, deu um salto, desaparecendo entre as hervas. Porventura teria havido ali alguma ferme, que fôra arrazada pelos sucessivos bombardeamentos, e o gato vinha, em busca do velho lar, aproveitando aquela hora de trégua.

 

Acabou o meu ultimo quarto. Recolho ao abrigo. — Porque marcho com os olhos no chão? Não cumpri eu o meu dever?

 

Quando cheguei ao abrigo, e abri a cortina de lona, que impedia a projeção da véla no campo, um oficial novo dormia, com o capote vestido, sobre a minha cama. Tinha vindo substituir o oficial de morteiros que morrerra ha dias, com o pescoço decepado por um estilhaço.

 

Sentei-me à porta. As ordenanças tinham- -se desviado para traz do abrigo e conversavam baixinho. Levantara-se um vento forte, que fazia ramalhar as arvores que ladeavam a linha d'agua que corria defronte. As estrelas fechavam continuamente as palpebras, como se o vento lhes atirasse aos olhos as poeiras imundas do imenso campo de batalha.

 

—Não tinha eu cumprido o meu dever?

 

Sim, tinha-me arriscado a morrer, como todos os outros. Estava ainda arriscado a morrer, como todos os outros. A retaguarda não era um escudo contra a morte. Um sargento inglez, que havia escapado às matanças do Yzer e do Some, que fizera sem um ferimento a guerra desde o primeiro dia e a quem tinham dado, como um premio dos seus serviços, um logar qualquer junto do nosso quartel general, havia sido morto ha dias por um torpedo largado dum aeroplano. Morria-se em toda a parte.

 

O vento parecia levantar sombras da terra e projetal-as sobre o horisonte, ensanguentado pelo reberbero das fornalhas da fabrica de munições de Yzeberg. As esquadrilhas de bombardeamento não se aventurariam na noite, afrontando a ventania, e na fabrica trabalhava-se confiadamente. — Teria eu cumprido todo o meu dever?

 

Pelo céo começaram a aparecer as primeiras manchas violáceas da madrugada. As estrelas iam-se afastando cada vez mais da terra, seguindo os caminhos remotos da amplidão misteriosa e infinda. Distinguia mais nitidamente os ramos das arvores. Uma passadeira alvejava como um ossuario.

 

0 Faltava uma hora para a rendição. Os primeiros pelotões deviam ter chagado à Croix Rouge.

 

Na primeira linha as granadas de mão estoiram com tal violencia que do comando perguntam se o sector está sendo atacado pelo inimigo. Os soldados despejam os cunhetes sobre a Terra de Ninguém, à tôa, rindo, como acometidos de loucura. Vão sahir por um mez deste inferno, desta lama, desta inundicie de sangue, de dôr, de raiva, de heroismo. Durante um mez só saberão da existência do inimigo pela presença d'algum aeroplano, voando tão alto, para se poder escapar à perseguição dos nossos aviões de caça, que nem sequer se sentirá, acima das nuvens, o barulho do motor.

 

Escorrem já pelo chão uns vagos clarões lacteos, que se precipitam com as sombras, perseguindo-as, nos drenos e nas trincheiras. No céo palido, por caminhos ignotos, as estrelas desaparecem da vista da terra.

 

O primeiro pelotão a ser rendido é o meu. As ordenanças calaram-se e procuram enxergar as primeiras cabeças por cima do paracostas da Lansdown Street.

 

Uma granada rebenta na passadeira e levanta do dreno um montão d'agua e lama que esperrinha para dentro do abrigo. As ordenanças agacham-se. Uma delas comenta :

 

— Diabo! Por tão pouco não merecia a pena incomodarem-se...

 

Outra granada rebenta adiante do abrigo, junto da Lansdowne. Uma granada pezada passa na direcção do comando do batalhão. O inimigo percebeu que se tratava da rendição e bate os caminhos, as trincheiras e os comandos.

 

A artilharia inimiga pontua de explosões o nosso abrigo. Parece dizer-nos:

 

— Bem sabemos que estais ahi, mas ainda não chegou a hora...

 

Quando a hora chegar estaremos longe. Sobe do fundo da minha consciência novamente a pergunta: — Terei eu cumprido o meu dever?

 

O bombardeamento atraza a rendição. O dia espreme-se, como uma esponja luminosa, sobre o ventre da terra. No nascente forma-se uma nuvem roxa, de bordos irregulares, como uma chaga que se abrisse na face do céu.

 

As granadas continuam a passar, espaçadamente, para a rétaguarda. O sol começa a espontar como um disco vermelho, como uma grande carranca sangrenta.

 

Chega o primeiro pelotão. Seguimos para a primeira linha fazer a rendição. Tudo está já equipado e pronto. Conforme são rendidos, as guarnições dos postos vão seguindo aos seus destinos, em direcção ao acantonamento.

 

Rendido o ultimo posto, lanço um ultimo olhar para o bosque e tomo pela Hun-Street. Quando passo pelo abrigo dum morteiro pezado, um soldado envieza para mim um olhar de rancor. Ainda não sabem, os pobres, quando serão rendidos...

 

Quero passar pela estrada de Lens, justamente por onde entrei no sector. A mesma camouflage esconde a estrada das vistas do inimigo. Dois soldados inglezes conduzem às costas o tronco duma árvore. A mesma máquina agricola jaz inerte e abandonada no campo, corroída da ferrugem, torcida, destroçada. Um oficial de artilharia atravessa a estrada, direito a um observatório.

 

Quando me vejo na estrada, levo a cabeça inteiramente vasia e apresso a marcha sem saber porquê, como uma besta de carga, acostumada às grandes caminhadas.

 

Encontro os primeiros soldados na Rue de Bois. Caminhavam aos dois, aos tres, aos bandos, derreados sob o fardo feito com o lençol impermeavel e o capote, com as mascaras e os respiradores deslaçados, com a espingarda às costas, as mãos segurando as extremidades, como quem leva um lodão. Alguns deixam-se ficar sentados nas bermas da estrada, os dolmans desabotodos, os peitos peludos à mostra, gosando a frescura duma sombra ou vendo correr aos pés um fio de água.

 

O sol cobre de glória e explendor êstes farrapos, êstes fantasmas, estas larvas humanas — êstes heroes.

 

 

(Continua na próxima quarta-feira.)

 

 

16
Jun21

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)


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António Granjo

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)

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Nota: A GRANDE AVENTURA - (SCENAS DA GUERRA) é um pequeno livro que resultou da participação do ilustre flaviense António Granjo na I Guerra Mundial de 1914-1918, que deixamos aqui em episódios, escritos no português da altura, incluindo erros e gralhas tipográficas.

 

 

Os dois prisioneiros

 

A noticia correu veloz pela primeira linha. Um maqueiro tinha aprisionado dois alemães.

 

Acabado o meu quarto, enfiei pela primeira trincheira de comunicação e corri ao abrigo do comandante, a saber do caso.

 

A' porta do abrigo, no meio dum pequeno grupo, estavam os dois alemães.

 

Era proibido interrogar os prisioneiros. Tinham de ser remetidos imediatamente para o comando do batalhão e daqui para o quarrtel general, onde sofreriam o necessário interrogatório.

 

Mas os dois homens estavam visivelmente a morrer de fome, e por minha conta e risco, valendo-me da consideração que por mim tinha o comandante da companhia, dei-lhes do que havia — pão, queijo, marmelada e café.

 

Um deles falava bem o francês. Tinha sido caixeiro viajante duma casa alemã, em Paris. Disse-me que era brigadas. O outro era um soldado, sua ordenança.

 

Comiam avidamente, pegando no pão com as mãos ambas, engolindo os bocados quasi inteiros, com os olhos dilatados e uma expressão de quasi ferocidade no rosto. Emquanto comiam, o maqueiro ia-me contando como tinha dado com eles, metidos num abrigo abandonado, atraz da Garden Trench. Quando desembocava da Juntion Street tinha sentido um rumor abafado de palavras. Espreitára e vira dois vultos acocorados ao canto, com as cabeças voltadas para a parede. Puxára da pistola e intimára-os a sair. Um deles desenhou ainda um gesto de resistência, mas logo se converteram á realidade e marcharam, de cabeça baixa, deante dele, pela Garden Trench, até ao abrigo, onde os entregara ao comandante.

 

Só então reparei que os dois prisioneiros traziam dois chapéos de lona, a que tinham dado uma forma semelhante aos nossos chapéos metálicos, segurando as copas, por dentro, com duas tiras de lata. Teriam fugido dalgum campo de concentração de prisioneiros, á nossa rectaguarda, e procurariam alcançar os primeiros postos alemães ou teriam vindo fazer o reconhecimento do nosso sector?

 

O brigadas tinha acabado de tomar o café e sorria, agradecendo. Perguntei-lhe o que tinham vindo fazer.

 

Andavam ha seis dias pelo nosso sector. Estavam cheios de fome, de sôno e de sêde. Tinham conseguido fugir dum campo de concentração, perto de Calais, e depois de se livrarem vinte vezes da morte tinham podido, ha uns oito dias, ganhar um posto alemão, em frente das nossas trincheiras. Deram-lhes dois dias para descançar e mandaram-nos logo fazer o reconhecimento do sector.

 

Parecia despreocupado. Cofiava o bigode loiro e inspeccionava a farda cheia de lama. Vendo que lhe tinha caído um botão do dolman, tapou a casa com o braço, como quem esconde uma falta vergonhosa. Erecto, firme, sorridente, parecia encarar o destino com absoluta confiança.

 

A ordenança estendera a cabeça, num movimento que fazia lembrar o duma ave de rapina pousada, perscrutando hostilmente o espaço, e olhava a linha de abrigos das guarnições dos morteiros. Quando o brigadas acabou de falar voltou-se e fez-lhe qualquer pergunta, levantando de repente a cabeça. O brigadas respondeu secamente:

 

Nein !

 

E dirigindo-se para mim, creio que no receio de que eu tivesse percebido a pergunta da ordenança:

 

— Nous somes prisioniers. Nous somes cer[1]tains de la loyauté portugaise...

 

E enterrou os olhos nos meus, interrogativamente. Eu tinha ouvido falar, havia uns dias, do fuzilamento de dois espiões alemães que, tendo fugido dum campo de concentração, haviam voltado ás linhas alemãs e se tinham prestado a fazer o reconhecimento dum sector inglês. Mas não quiz deixar a esses homens, que falavam da lealdade portuguesa, uma falsa ideia sobre a sua situação. Disse-lhes que, conforme as instruções recebidas, seriam mandados ao quartel general, e aí entregues aos ingleses.

 

Os olhos do brigadas tornaram-se primeiro côr de cinza. Nas corneas passou depois uma sombra, emquanto as iris assumiam um fulgor estranho, como dois traços fuforescentes emergindo de duas ondas de treva. Fechou os olhos e desviou a cara. Vi-o trocar um olhar de inteligência com a ordenança. Este encolheu os hombros resignadamente.

 

Só me lembro de ter sentido uma impressão semelhante á que me produziram os olhos desse homem, uma vez que vi morrer dum tétano um meu visinho.

 

Arrependi-me da minha brutalidade. Um soldado entregou-me os jornais. Perguntei ao brigadas se queria ler.

 

—Mais, oui...

 

Os seus olhos tinham readquirido o verde metálico e todo o seu ser aparentava uma esplendida e impressionante serenidade.

 

Pegou no Matin e correu os títulos que encabeçavam os telegramas da guerra. Os franceses e ingleses tinham desencadeado uma ofensiva fulminante no Yzer. Eram enormes as cifras dos prisioneiros e do material apreendido.

 

— Oh! vous serez vaincus!

 

O brigadas pareceu estranhar o tom de sinceridade das minhas palavras. Fitou-me um instante em silencio e entregou-me o jornal sorrindo desdenhosamente. Esse sorriso era alguma coisa de formidável. Afrontava como uma bofetada, vexava como um escarro, indignava como a cinica apologia duma iniquidade. O sorriso desse homem era uma verdadeira arma ofensiva. Revelava um tal orgulho da raça, uma tal certeza do triunfo final, que acendia de raiva o sangue do adversário.

 

Veiu a ordem do comando do batalhão para os dois prisioneiros seguirem imediatamente.

 

Percebendo do que se tratava, perfilaram-se e esperaram o sinal de marcha.

 

— Si vous voulez, du café encore...

 

Agradeceram, emborcaram as ultimas goladas e perfilaram-se novamente.

 

Os olhos do brigadas tornaram a fazer-se da côr da cinza. Pareciam dois carvões apagando-se. A ordenança olhava agora indife[1]rentemente para tudo, repetindo automatica[1]mente os movimentos do brigadas.

 

Partiram, entre dois soldados. Atravessaram a passadeira lançada á guiza de ponte sobre a linha de agua que corria em frente do abrigo e sumiram-se na Lansdowne Street, a trincheira que ia ter ao comando do batalhão.

 

Seriam fuzilados provavelmente no dia seguinte, encostados ao muro de um cemitério ou aos troncos de duas arvores, depois de verificada a identidade e de se averiguar que tinham fugido dum campo de concentração e fornecido indicações das nossas posições ao inimigo.

 

Éramos nós, os portugueses, que os entregávamos á morte, visto que os nossos costumes não nos permitiam fuzilal-os com a serena firmeza com que o faziam os pelotões ingleses.

 

E mais do que o sorriso desdenhoso daquela boca boche, vexou-me a condição de inferioridade em que estávamos em relação ao comando geral. Aqueles prisioneiros eram nossos. Aquelas vidas pertenciam-nos. Nós é que devíamos dispor delas. Sujava-me a alma a ideia de que, não tendo a coragem de os eliminar, tomados de cobardia perante a responsabilidade de matar inimigos inermes, fazíamos o papel de os mandar para o açougue, desviando os olhos.

 

Porque não os fuzilavamos nós? Não mereciam eles a morte?

 

Se porventura esses dois ignobeis espiões tivessem escapado ás vistas dos nossos e conseguissem voltar para as suas trincheiras, com as nossas posições referenciadas, com os nossos abrigos marcados, não seriamos nós todos assassinados friamente pela artilharia alemã? Não era justo que esses homens pagassem essa tentativa de assassinio em massa?

 

Os ingleses tinham razão. A guerra tinha de ser conduzida em obediência á necessidade de vencer. Os espiões não mereciam quartel. Era preciso defender-nos — e essa defeza exigia o sangue desses inimigos que se haviam aproveitado da circuntancia de lhes haverem poupado uma primeira vez a vidà para promoverem a nossa morte e o nosso aniquilamento.

 

A guerra não podia compadecer-se com sentimentalismos de meninas românticas ou com doutrinas doentias de filosofos faceis. Era preciso vencer e todos os obstaculos tinham de ser eliminados implacavelmente. — Pois não era isto?

 

…………………………................................................................................................................................................

 

Sentei-me no banco de sacos de terra que se tinha feito junto da boca do abrigo, encostado á parede. Uma esquadrilha de caça fugia das linhas inimigas perseguida por outra esquadrilha de caça alemã. Um dos nossos aviões foi cercado pelos aviões inimigos, e, para se salvar, fez o loop the looping verticalmente sobre a segunda linha, escapando-se depois rente ás arvores.

 

Todos esses pensamentos de morte e de vingança não seriam, dentro de mim, o resíduo da raiva que me fizera acender nas veias o sorriso desdenhoso do prisioneiro alemão?

 

…………………………................................................................................................................................................

 

Os aviões boches, ao avistarem no horisonte outra esquadrilha inglesa, retiraram sobre as suas linhas e descreviam agora grandes círculos a enormes alturas, como aves de rapina que haviam deixado fugir a presa e desafogavam a cólera indireitando para o céo, numa ameaça, as meninges agressivas.

 

 

(Continua na próxima quarta-feira.)

 

09
Jun21

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)


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António Granjo

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)

17

Nota: A GRANDE AVENTURA - (SCENAS DA GUERRA) é um pequeno livro que resultou da participação do ilustre flaviense António Granjo na I Guerra Mundial de 1914-1918, que deixamos aqui em episódios, escritos no português da altura, incluindo erros e gralhas tipográficas.

 

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Dois heroes

 

Havia na 1.ª companhia do meu batalhão dois granadeiros, que eram como irmãos. Nascidos na mesma terra, tinham crescido juntos, curtindo a pele ao sol da mesma charneca e fortalecendo os braços e a alma no amanho da mesma leziria. Nos rostos quasi bronzeados os olhos luziam-lhes como carvões, e sobre as espaduas d'atletas a cabeça parecia atarraxar-se-lhes como uma bola de ferro entre duas barras metalicas. Nas marchas, seguravam a espingarda pelo fuste, como quem segura uma vara de marmeleiro. Quando vestiam o colete de granadeiros tomavam um estranho aspeto de guerreiros de lenda, respirando força e violência.

 

Dos seus lábios grossos de beduinos da charneca nunca tinha sahido um murmurio contra a guerra, prestando-se humildemente a tudo quanto deles exigiam os superiores. Só uma vez, quando um deles, por qualquer conveniencia de serviço, foi transferido do pelotão, os dois perguntaram de modo menos respeitoso ao sargento porque é que eram separados, e foram a seguir suplicar com as lagrimas nos olhos ao comandante da companhia para que os deixasse ficar a ambos no mesmo pelotão. Pouco mais sendo do que dois numeros, resvalavam pelas trinheiras ou pelos acantonamentos, sem ninguem se preocupar com eles, merecendo menos cuidado do que os cavalos que conduziam a cosinha rodada, dando menos que falar do que as mulas alentejanas que puxavam aos carros de companhia.

 

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O meu pelotão, dessa vez, guarnecia a Garden Trench. A noite ia decorrendo com uma tranquilidade que fazia desconfiar das intenções do inimigo. No silencio absoluto que dominava a terra apenas se ouvia de vez em quando uma rajada ou outra de metralhadora, cortando o ar como uma lamina e prolongando-se ao longe como uma pequena vaga que morre na areia. Para a rectaguarda mal se distinguiam os primeiros zigue-zagues da trincheira de comunicação. Adivinhava-se, num novelo mais negro de sombras, por traz da segunda linha, a Factory, com o seu esqueleto desconjuntado de engrenagens.

 

O momento critico, a meia-noite, tinha passado. Seriam 2 horas da manhã, quando já a treva começava a adelgaçar-se e o céo começava já a adquirir um vago tom violaceo, que o bombardeamento rebentou com extrema violência sobre a direita do batalhão. Os soldados evacuaram de roldão a primeira linha; e, como as trincheiras de comunicação eram batidas com pontarias certeiras, alguns fugiram a campo descoberto, esgaçando as pernas pelos arames, cahindo nas covas dos morteiros, rastejando pelos drenos para não serem apanhados pelas metralhadoras. Uma dessas trincheiras, a Junction-Street, tinha sido arrombada e obstruída, e os que haviam escolhido esse refugio viram-se obrigados a voltar para o talude e a esconder-se atraz duma antiga trincheira abandonada, onde existia a carcassa dum avião inglez que ali tinha tombado e ali apodrecia, como uma grande ave morta, de ventre para o ar.

 

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O bombardeamento era a preparação para um raid. Tomaram-se as devidas precauções para o caso de os alemães quererem atacar a segunda linha e esperou-se pela madrugada para fazer o reconhecimento e a reocupação.

 

Um sargento deu pela falta dos dois granadeiros. Ou tinham sido mortos ou feitos prisioneiros.

 

—Os pobre rapazes !--comentou o sargento. Aos primeiros alvores da madrugada reocupou-se a primeira linha. Acompanhei o oficial que comandava o pelotão. Foram-se guarnecendo os postos. Foi aclarando o dia. Verificámos que nos abrigos não faltava nada. Nem os lençoes impermeáveis abandonados, nem depositos de granadas, tinham atraído a cubiça do inimigo. Quando passámos pelo abrigo do comandante do pelotão notámos que o S. O. S. estava intacto.

 

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O meu camarada observou:

 

—O inimigo desta vez foi gentil...

 

Uma ordenança chamou a nossa atenção para dois vultos que se entremostravam para a direita, meios escondidos entre os destroços dum travez. Avançámos de pistola na mão. E ao precipitar-se a ordenança, de baioneta calada, sobre os dois vultos, reconhecemos os dois granadeiros, surpresos do ataque, e sorrindo um para o outro.

 

— Como é que vocês estão aqui? Como foi isso?

 

Um deles vae contando, numa voz descançada, como se estivesse contando na praça da terra algum episodio duma ferra de touros:

 

— Ó meu alferes, os meninos sem braços cahiatn ahi como as nozes maduras duma nogueira varejada por boa mão. O chão tremia como um terramoto. Tanto se podia morrer ficando como fugindo. Alapardamo-nos aqui entre os travezes. Se o morteiro rebentava dum lado, escapavamo-nos para o outro. Os estilhaços voavam por cima como vespas. Parecia o fim do mundo. De repente o bombardeamento abrandou. Deixaram de cahir os morteiros na primeira linha. Calculamos que o boche viria ao cheiro da carniça. Arrastamos para aqui dois cunhetes de granadas e puzemo-nos à coca. Vimos uma cabeça erguer-se sobre o parapeito. O boche julgou que aquele tronco d'arvore que está ali defronte era algum dos nossos e atirou para lá uma granada. Lá se vê o ponto onde a granada bateu. Atraz d'aquela, outras cabeças apareceram, como uma fila de diabos. Um deles trepou ao parapeito e ficou de pé espionando a trincheira. Não estivemos com meias medidas. Joguei uma granada ao que tinha trepado para o parapeito. Cahiu logo para traz, soltando um urro, que parecia duma fera. E as granadas seguiram umas atraz das outras. As cabeças desapareceram e nós saltámos para cima da banqueta e atirámos sobre eles as ultimas ameixas. No talude o meu alferes pode ver ainda manchas de sangue até abaixo, à Terra de Ninguém...

 

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Nas caras bronzeadas dos dois granadeiros a madrugada punha uns reflexos metálicos. 

 

Os seus olhos pareciam abrir-se mais, como a penetrarem ainda a treva. O braço direito dum deles guardava ainda o movimento semi-circular do lançamento das granadas. Alguns soldados fizeram cerco, contemplando-os a certa distancia, como se estivessem deante de animaes ferozes.

 

Subimos à banqueta. Viam-se ainda no talude as hervas esmagadas por um corpo que fôra arrastado até à base e levado depois às costas atravez a Terra de Ninguém. Tinham sido arrancados alguns long-picquets e as hastes das gramineas procuravam endireitar-se às primeiras caricias do sol.

 

Quando voltávamos, os dois granadeiros dormiam a sono solto, metidos num abrigo, com as pernas estendidas para a passadeira.

 

Os seus nomes? Que importa conhecer os seus nomes? Ninguém tem nome nesta guerra.

 

Sei apenas que, enquanto os que ficaram pela retaguarda, batendo-se junto duma mulher ou duma garrafa de champagne, trazem no peito a cruz de guerra, esses dois soldados, esses dois heroes, que repeliram sosinhos um raid inimigo, foram simplesmente louvados em ordem do batalhão, como deve constar do arquivo do 22.

 

 

(Continua na próxima quarta-feira.)

 

 

02
Jun21

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)


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António Granjo

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)

16

 

Nota: A GRANDE AVENTURA - (SCENAS DA GUERRA) é um pequeno livro que resultou da participação do ilustre flaviense António Granjo na I Guerra Mundial de 1914-1918, que deixamos aqui em episódios, escritos no português da altura, incluindo erros e gralhas tipográficas.

 

A fuga à Morte

 

Logo que foi declarada a guerra, o tenente X., de um dos regimentos do norte, pensou em pedir a dimissão. Escolheu a carreira das armas, como poderia ter escolhido qualquer outra. Era um modo de vida. Seu pae e seu avô tinham sido oficiais do exército e levaram-no desde pequeno a inclinar-se àquela profissão, para continuar essa nobre tradição na família. Fôra colocado logo depois da promoção a aspirante no regimento aquartelado na sua terra, onde casára e a vida lhe corria tranquila e docemente, como o rio de claras águas corria entre as amigas sombras do vale. Os dois filhos que Deus lhe déra só vieram turbar essa dôce tranquilidade para o obrigarem a pensar no futuro, sonhando a cada hora com a maneira mais azada de lhes garantir o pão e a felicidade.

 

Mas, como apezar das manifestações populares às nações aliadas, apezar da campanha a favor da nossa intervenção na guerra, a ordem de mobilisação se ia demorando, e a vitoria poderia decidir-se dum momento para o outro a favor de qualquer dos partidos, o tenente X. foi-se deixando ficar.

 

Um dia soube-se que o ministro da guerra resolvera indeferir qualquer pedido de dimissão. O tenente X. entendeu que devia expôr a situação à mulher. A mobilisação estava, pois, por dias. O seu regimento devia ser um dos primeiros a mobilisar. Se partisse, a morte era quási certa. Com os meios materiais de que dispunha o inimigo, com a sua admirável preparação para a ofensiva, com a fé que mostrava ter na vitoria, ir para a França era ir para o matadouro, de cabeça baixa, como uma rez. Talvez fosse melhor desertar, fugir. Ganhava-se a vida em toda a parte. No Brasil, na Argentina, em qualquer canto, haviam de encontrar um bocado de pão. Fariam porventura fortuna. Mais tarde viria a anistia. Se os aliados triunfassem, a anistia coroaria a obra da vitoria; se triunfassem os centraes, a anistia demorar-se-ia um pouco mais, mas havia de chegar a sua hora. Eram pobres, o soldo era pequeno, estavam para ali metidos naquele poço. Os filhos teriam de ir tambêm para as fileiras, porque era necessário aproveitar as vantagens do Colégio Militar e da Escola de Guerra. A família seria assim eternamente uma dinastia de forçados do quartel, de condenados à farda.

 

A mulher, ante a perspectiva da viuvez e da miséria, a princípio concordou. Iria para onde êle quizesse. Tanto fazia estar ali como no cabo do mundo, desde que não perdesse o amparo do seu braço. Para levar aquela existência modesta, quási de indigência, em que o soldo mal chegava para as compras da praça, mais valia a pena tentar a vida por outro lado. Pois sim... Ela era sua mulher e seguiria por isso o seu destino.

 

Passaram alguns dias e a mulher entrou a pensar que ali ao menos sempre tinham parentes e conhecidos capazes de lhes acudir numa aflição. Sabia lá para onde a sorte os atiraria... O soldo era pequeno, mas era certo. Deitavam-se com um e amanheciam com dois. E lançarem-se a correr mundo, irem para o Brasil ou para a Argentina, com nomes supostos, com passaportes falsos, como criminosos da peior espécie, o coração sempre num punho até perderem de vista as costas de Portugal, sem poderem contar com o dia de amanhã, sem um braço amigo que os amparasse, era sujeitarem-se, além da vergonha, às mais apertadas privações e às mais crueis desgraças. Tinha de ir para a guerra?... Mas, nem todos haviam de lá ficar. Deus não quereria que aqueles inocentes ficassem sem pai, entregues à sua sorte como as nuvens entregues ao vento ou como as sombras entregues à escuridão.

 

Quando chegou a ordem de marchar, o tenente X. deu parte de doente. Não, não iria para a matança, sem primeiro empregar todos os meios para escapar à choupa. Era o seu direito. Não podia ter menos direitos do que um bezerro, que só de rastos se deixava conduzir ao matadouro. — Depois, tinha o govêrno consultado a nação? O exército era da nação, não era dum govêrno ou dum partido. Já lá ia o tempo em que se dispunha dos homens como de bestas. Sem lhe mostrarem as vantagens da entrada na guerra, não se prestaria a embarcar, como um fardo inutil ou como um animal votado ao sacrifício, para a Flandres. Que fossem os que andavam por Lisboa aos vivas à guerra. .. O batalhão partiu. A mulher sentia sobre si, como fléchas de fogo, os olhos dos filhos, das irmãs e das mulheres dos que tinham marchado. Quando ia para o hospital vêr o marido, nem sequer olhava para os lados, para não surpreender nos transeuntes um gesto de censura ou uma palavra de condenação. Uma vez viu à porta de casa um velho acariciar uma das crianças e dizer alto — que Deus lhe désse um coração mais valoroso do que o do pai. A mulher do oficial que fôra chamado a substituir o seu marido andava grávida e no dia da partida abortára. Passava as noites a chorar. Apezar do amor que lhe tinha, sentia que o marido lhe pezava sôbre a alma como um bloco de granito.

 

Até que um dia, olhando-o de frente, lhe disse que era preciso partir. Acusavam-no de cobardia. O seu nome andava nas bôca dos garotos, como um osso na bôca dos cães. Os que viram partir os outros, referiam-se a êle como a um ente desprezível. Ela bem sabia que fôra o amor dos filhos que o levara a baixar ao hospital. Bem lhe custava a ela, a pobre, ficar sósinha e triste, entre as saudades das horas tranquilas que tinham passado e a visão trágica das terriveis horas que se iam passar. Mas que lhe havia de fazer? Não queria que sôbre a cabeça dos filhos pezasse, como uma maldição, uma falta do pai. Era preciso partir...

 

O tenente X. pediu para lhe darem alta e embarcou comigo no transporte A.

 

Foi a bordo que o conheci. Pálido, magro, com os olhos quási sem brilho, com os labios quási sem sangue, não largava o cinto de salvação. Deparei com êle, uma noite, à prôa, debruçado sôbre as ondas, que referviam em baixo, rasgadas pela quilha, remexidas pela hélice, açuladas pelo vento. Mal lhe dirigi as primeiras palavras, logo fez menção de se afastar. Persegui-o até à popa. Encostado ao pequeno canhão, enquanto os olhos se embebiam na noite, como a água se embebe numa esponja, foi-me contando a sua vida.

 

A mulher ficára na terra com os filhos, quási desamparada. Com a carestia da vida, o soldo mal lhe chegaria para o governo da casa. Êle seguia o seu destino, caminhando verticalmente para a morte, como uma pedra solta do alto duma torre caminha para o chão. Marchava como um boneco articulado, sem vontade, sem confiança, sem fé. Obedecia ás ordens, à voz de comando, como um sonanbulo obedece à mão misteriosa que o guia. Tinha a certeza de que não voltaria. Considerava-se já vivendo por favor, disfrutando uma espécie de vida postuma, como um raio pode viver fora do sol, como uma onda pode viver fora do mar. A Morte ferrara-lhe as unhas na garganta e não o largaria mais até o estrangular e o arremessar inanimado para o chão. Sentia a alma despegar-se-lhe do corpo, como um torrão se despega duma ladeira molhada ou como uma trave se despega dum edifício em ruínas. No coração tinha só cinzas — as saudades da mulher e dos filhos. — E apezar de tudo, pessuia-o um medo horroroso de morrer, esse medo insuparavel e invencível que dizem que faz os grandes criminosos. Compreendia o que se passara na alma daquêle pobre soldado que, para não morrer na guerra, se deixara esmagar pela máquina do combóio que o transportava.— Não sabia se morreria de doença, se de ferimentos. Que lhe importava isso? Não sabia mesmo se morreria antes de desembarcar nessas terras de França, pela qual iamos combater, pagando-lhe com tamanha generosidade as crueldades de que fomos vítimas quando das invasões napoleónicas. Um torpedeamento, um acidente de bordo, qualquer coisa o poderia matar, visto que estava condenado e não podia escapar.

 

As palavras saiam-lhe mansas e trémulas, como gotas dágua pingando duma abóbada. Os braços pendentes ao longo do corpo traziam-me à idêa ramos esgalhados, presos ao tronco por um fio.

 

Encontrámo-nos depois no acampamento de Etaples. Estava quási sempre metido na tenda. Só um dia o vi errar pelo acampamento, quando uma medonha trovoada desabou sobre a colina, revolvendo as areias, arrancando as espias, e fazendo entrar para dentro das barracas baldes dágua.

 

Eu segui para a frente, e só bastante tarde tive noticias dêle, na ocasião em que o meu batalhão se reconstituía à retaguarda, depois do bombardeamento da noite de Santo António. Procurei-o. Estava cada vez mais magro. Os olhos tinham ganho um certo brilho de febre, e os braços pendulavam-lhe aos lados, em movimentos cada vez mais automáticos.

 

Resignara-se à idêa da morte. Dizia-se ancioso por que chegasse o dia de marchar para a primeira linha. Quanto mais depressa viesse um morteiro que o esquartejasse menos duraria a sua via dolorosa. Assim como assim, ninguém podia fugir ao seu destino e resolvera afrontal-o cara a cara.

 

Parecia cheio de decisão e de audácia. Reparei que os seus olhos espreitavam para o lado, como se estivessem à espera duma surpreza, ou me fitavam desconfiados, como se eu lhe tivesse saido ao caminho para lhe evitar a passagem. Outras vezes dançava-lhe um sorriso equívoco nos lábios, mas que logo se desfazia como se desfaz uma ruga à superfície da água dum charco.

 

O batalhão a que êle pertencia entrou nas primeiras linhas, à minha direita, guarnecendo o outro subsector da Ferme du Bois. O meu pelotão era o que fazia a ligação com esse subsector e fui portanto ajustar a colocação do último posto com o comandante do pelotão que alinhava com o meu.

 

Perguntei a este oficial:

 

— E o tenente X.?

 

O meu camarada informou-me entre dentes que tinha dado parte de doente, no próprio dia em que devia marchar para as trincheiras, e baixara à ambulância de Marthes. E enquanto nos lábios lhe aparecia um riso escarninho, continuava a falar do serviço, como se lhe fosse defezo ocupar-se de semelhante criatura.

 

Quando regressei ao apoio, fui à ambulância. O tenente X. tivera alta e recolhera ao batalhão. Passei pelo sitio onde êste acantonava e logo dei com êle, em frente da ferme onde estava instalada a sua companhia, sentado numa das bermas da estrada que conduzia a Bethune, com as pernas metidas na valeta, à sombra dum olmo.

 

Nem se mexeu quando me viu. Sentei-me junto dele. Como a sombra que caía do olmo, a sua voz caindo sôbre a valeta, parecia fazer uma nódoa no chão. Confessou que se possuirá duma cobardia que lhe tolhia todos os movimentos, que lhe obscurecia a alma, que lhe fazia parar o coração. Sentia sôbre si os olhos dos camaradas, dos próprios soldados, acusando-o, vergastando-o, esmagan-do-o. Qaundo saira da ambulância e se apresentara no comando do batalhão ouvira um corneteiro nas suas costas, dizer para outra ordenança:

 

— Olha o gajo!...

 

Mas não podia libertar-se da imensa miséria em que se deixara cair, como um corpo morto se deixa cair numa estrumeira. Podiam chamar-lhe cobarde à vontade. Perdera toda a espécie de vergonha e de pudor. Que o prendessem. Que o fusilassem, se quisessem. Tinha vinte e seis anos. Tinha mulher e filhos. Queria viver. Não se havia de entregar à morte, tão estupidamente como uma tábua se entrega à corrente. Tinha obrigação de resistir. Resistiria até à última extremidade. Tinham despreso por êle? Que lhe importava? A Pátria estava longe. Se voltasse, as flores cairiam sobre a sua cabeça como sobre as cabeças dos outros. E poderia erguer a toda a altura dos seus braços os corpos tenros dos filhos, porque fôra por eles que a tudo se sujeitara, mesmo a ser um miserável.

 

As primeiras palavras que ensaiei procurando chama-lo ao caminho da honra e ao cumprimento do dever, despertaram nele uma reacção tão violenta que os olhos se lhe raiaram de sangue e se lhe encheram os cantos da bôca de espuma.

 

Passados alguns dias, à hora do jantar, enquanto para os lados de Lens o canhão troava, um oficial do 34, que nos tinha vindo visitar, entre uma golada de cerveja e uma garfada de arrôs de coelho congelado, contava-nos o seguinte:

 

O tenente X baixara segunda vez à ambulância de Marthes. Depois de umas horas de observação, o diretor da ambulancia metera-lhe a guia nas unhas, com a rubrica doença simulada. Apresentado no comando, mandaram-lhe levantar o respetivo auto e fizeram-no seguir imediatamente para a primeira linha. Fôra num desses dias atraz, em que reinara em todo o sector uma perfeita calma, tendo-se limitado o inimigo a atirar algumas granadas sobre o observatório da Factory, para fazer o zero. Chegado à primeira linha, meteu-se no abrigo, sem dar palavra, e ahi se ficou, olhando o chão, abrindo e fechando maquinalmente a culatra de uma pistola de very-lights. Quando veio a hora da ronda, voltou-se para o camarada, e, tirando da carteira, pediu-lhe que a fizesse chegar às mãos da mulher. Continha 500 francos, alguns retratos e uma larga carta com instruções sobre a educação a dar aos filhos. E, já na boca do abrigo, com uma serenidade impressionante, com um olhar que parecia atravessar as caneluras da pequena abobada de ferro, disse para dentro:

 

— Não se esqueça do meu pedido. Tenho a certeza de que vou morrer...

 

Fez sinal às ordenanças e enfiou pela trincheira. Momentos depois ouviu-se a explosão dum morteiro pesado. Uma ordenança voltou ofegante ao abrigo, com a farda cheia de terra, e uma mão sangrando dum pequeno ferimento.

 

—Meu alferes, um morteiro matou o nosso tenente...

 

O alferes acudiu. O projetil dum morteiro pezado tinha cahido sobre a passadeira, destruindo um travez e esburacando a parte superior do parapeito. O corpo do tenente X estava meio soterrado na onda de lama que o rebentamento do morteiro tinha levantado. Era uma massa informe de sangue e de troços de carne. Um enorme estilhaço, que se via ainda ensanguentado e com as arestas segurando uns pequenos bocados da farda, agarrara-o pelo ventre e quasi o cortara em dois. Os intestinos descaiam-lhe para o dreno, sob a passadeira partida. Um outro estilhaço partira-lhe o craneo e retalhara-lhe a face.

 

Em todo esse dia não se ouviu mais um único tiro. Parecia que a Morte estava à espera dele e que o seu apetecido cadaver bastara para lhe saciar a fome nesse dia.

 

 

(Continua na próxima quarta-feira.)

 

 

26
Mai21

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)


1024-antonio granjo

 

António Granjo

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)

15

 

Nota: A GRANDE AVENTURA - (SCENAS DA GUERRA) é um pequeno livro que resultou da participação do ilustre flaviense António Granjo na I Guerra Mundial de 1914-1918, que deixamos aqui em episódios, escritos no português da altura, incluindo erros e gralhas tipográficas.

 

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Flores da Terra de Ninguém

 

Minha boa amiga :

 

A Terra de Ninguem está cheia de bem-mequeres e de papoilas. Quando a neblina, como nesta manhã, oculta a linha inimiga, saltamos a trincheira e escolhemos nesse jardim da morte um ramo de flores, que, metido num copo de granada, nos alegre um pouco a meza de jantar, só guarnecida por garrafas vasias de cerveja, latas furadas de confitures, granadas de mão e pentes de balas.

 

Acudiu-me hoje o pensamento gentil, minha boa amiga, de ir buscar a essa tira de terra, que é uma tira viva e sangrenta do corpo esquartejado da pobre humanidade, um ramo de flores para lh'o oferecer e mandar. Não sei se chegará às suas pequeninas mãos, se ficará pelo caminho, entre dois fardos de coelhos da Australia ou entre as lombadas de dois presuntos de York. Que importa? Pensarei sempre que chegaram ao seu destino e que os seus lindos olhos as contemplarão como uma prova da minha amizade. Lembrar-se-há mais algumas vezes de mim: a certeza de que a não esqueço avivará na sua memoria a lembrança deste homem que anda para aqui, ou arrastado como uma folha sêca de canto em canto, ou metido como uma toupeira debaixo da terra — joguete da ventania e irmão da lama.

 

Sei bem que nunca compreenderá o que há de sangue e horror nessas flores, adubadas com cadáveres humanos, coloridas pelo sol doentio destas terras da Flandres, regadas pela água podre dos drenos. Que importa? Fico com a idéa de que às suas mãos chegou, pela única forma graciosa que me é permitida, um grito destas paragens em que o anjo exterminador continuamente faz sibilar a sua espada ardente.

 

Acabada a guerra, quando nós voltarmos, ouvirá contar coisas que nunca fôram imaginadas e que serão inacreditáveis para aqueles que se deixaram ficar na doce paz da sua casa. E reconhecerá então que só um coração muito amigo podia render-se, nestes momentos em que a vida anda sobre a baba duma aranha, ao pensamento de lhe oferecer meia duzia destas petalas que brotam do meio da sangueira desta hecatombe, como a virtude poderia brotar do inferno.

 

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 As papoulas colhi-as junto duma trincheira de sapa, donde ainda ontem os alemães, mascarrados de negro, deslizando como fantasmas, quizeram assaltar um posto de granadeiros. Corri, numa patrulha, certa noite, parte dessa trincheira. Os corredores dessas cavernas onde viviam os lobishomens, de que falam os velhos creados, à lareira, nas longas noites de inverno, não podem ser diferentes dêste valado tenebroso, aberto através a Terra de Ninguem por mãos desconhecidas, donde sobem vozes misteriosas e onde erram sombras disformes. Nas bordas seguem filas de troncos renegridos e despedaçados pelos projecteis de todos os calibres, sem uma folha, sem um galho, com lascas da casca pendentes, como braços decepados erguendo para o alto os cotos sangrentos com esfarpas de carne dependuradas.

 

A nevoa envolvia os ultimos troncos, alêm dos quais começava a rêde de arame inimiga. Através a primeira cortina transparente da nevoa, onde o sol punha irisações fugazes, via-se um cadáver feito em pedaços. A historia dêste cadáver corre pelas trincheiras. Vou-lh'a contar.

 

Os mortos são baldeados por êste furacão de ferro e fogo como os vivos. Logo nas primeiras linhas há algumas sepulturas, sôbre as quais a piedade dos combatentes colocou, como última homenagem, a espingarda e o equipamento que serviram ao morto e algumas ervas caíram, à falta de flores, das mãos comovidas de um camarada. De vez em quando, o bombardeamento arraza as trincheiras, revolve essas sepulturas e deixa à mostra os cadáveres. A's vezes, as explosões dos morteiros pesados levantam-os ao ar; outras vezes, ficam meios enterrados, meios descobertos, com os rostos, já descarnados, adquirindo contorsões as mais sinistras, visualidades desconhecidas de todos os cultores do horror, atitudes que escaparam a todos os romancistas da agonia. Como a trincheira fica aberta, para se passar sem ser visto pelos snipers, que, do seu buraco blindado, com a espingarda de alça telescópica, atiram sôbre a primeira cabeça que se descuide, é preciso ir de rastos, sôbre os restos fedorentos, cosendo a cara aos farrapos apodrecidos da farda ou à terra impregnada dos humores cadavéricos. O sabor desta terra putrida, a impressão horrível dêstes trapos desfeitos que a saliva da morte humedeceu, ficam nos labios, ficam nos olhos, ficam na alma, como nodoas deixadas por larvas.

 

Os cemiterios são em geral entre os postos de reserva da primeira linha e as segundas linhas, aí até 5 quilómetros à rectaguarda. Por via de regra, são situados junto dos acantonamentos, dos postos de socorros, das fermes aproveitadas para posições das metralhadoras pesadas, dos obuzes ou da artilharia. Um dia, uma noite, repentinamente, quando qualquer dessas posições foi descoberta por um aeroplano ou por um observatorio, ou denunciada pela negligência dos soldados, desaba sôbre o cemitério a tempestade de fogo, e as cruzes partidas sirandam no ar e os cadáveres saltam das sepulturas, numa dança macabra de membros despedaçados e de caveiras partidas entre o fragor das explosões.

 

A história dêsse cadáver, que adubou a terra onde nasceram as humildes flores que lhe mando, é uma das mais trágicas. E' o cadáver dum oficial inglês. Comandava um raid, quando foi morto à frente da primeira vaga de assalto. Abandonado na Terra de Ninguem, depois de repelido o ataque, os ingleses batiam de dia e noite o sitio em que ficára o cadáver, para que o inimigo se não apoderasse de quaisquer papeis que o oficial trouxesse no bolso e que podiam fornecer-lhe indicações preciosas. Por sua vez os alemães, sempre que sentiam para aquele lado o mais leve ruído nos arames, atiravam sobre o cadáver uma chuva de metralha, para que os ingleses o não podessem arrastar para as suas linhas. E dias se passaram, num terrível duelo em volta dos troços desconjuntados dêsse corpo humano, que amigos e inimigos retalhavam a canhão numa sanha de bestas feras.

 

Veja, minha boa amiga, a que extremos de crueldade chegou o homem — êsse mesmo homem que por aí amaneira a terra com a solicitude com que ageita um filho no berço, que tira o chapeu humildemente quando os sinos, às primeiras sombras da noite, tocam às trindades e que trata os próprios cães como próximos parentes.

 

Alguns bemmequeres colhi-os já numa trincheira de comunicação, quasi toda destruida, a Plum Street, perto de uma posição de metralhadoras pesadas, e quási no ponto da sua interseção com a trincheira de combate. Sobre aquela trincheira tinham-se sobreposto alguns sacos de terra, e pelo canto esbarrondado dum dos sacos saíam os bemmequeres. Como na frente ficava o abrigo betonado das metralhadoras, os tiros inimigos haviam-nas poupado.

 

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Esses bemmequeres representam as longas horas em que, nos intervalos dos bombardeamentos, nas horas quietas dos dias ensoalhados, nos é dado pensar na vida e destino dos homens, nas razões e conseqùências da guerra, e nas pessoas que vivem dentro de nós, como um raio vive dentro do sol ou como uma gota de água vive dentro de um lago. E' nestas horas que fazemos a escolha das nossas recordações e das nossas saudades, deixando esbater nos últimos planos da memória as tenues simpatias e as vagas amizades, os encontros dum dia e os contactos furtuitos, e trazendo à flôr dos olhos, trazendo à flor da alma, as imagens que se nos apoderaram do coração e lá fizeram a sua eterna morada. E' nestas horas, porisso, que mais me lembro de si.

 

As pobres flores são dignas de serem tocadas pelos seus brancos dedos, porque são o que há de pureza e de graça nestas torvas regiões em que a morte dispõe de todos os elementos de acção e a vida teve de se refugiar no seio da terra, como precita da luz e como escrava do crime.

 

Diz-se que algumas vezes o amor provém do ódio. Será possível que dêste imenso pôço de ódios e de amarguras venha a sair a claridade e a alegria? Será possível que desta guerra saia a paz universal?

 

Se assim fôsse, as pobres flores que lhe mando mereciam ser guardadas religiosamente, num relicario precioso, como se guardam as relíquias sagradas.

 

Tenho medo de a maguar, pedindo-lhe que me não esqueça nas suas orações.

 

 

(Continua na próxima quarta-feira.)

 

 

19
Mai21

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)


1024-antonio granjo

 

 

António Granjo

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)

 

14

 

Nota: A GRANDE AVENTURA - (SCENAS DA GUERRA) é um pequeno livro que resultou da participação do ilustre flaviense António Granjo na I Guerra Mundial de 1914-1918, que deixamos aqui em episódios, escritos no português da altura, incluindo erros e gralhas tipográficas.

 

 

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Um S. O. S.

 

A guerra moderna obrigou os exercitos á adopção de metodos e processos que, sem serem inteiramente novos, jámais tiveram aplicação a operações militares. Sabe-se que os navios quando vão ao fundo teem um sinal convencional para pedir socorro. E´ o S. O. S. Estas três letras são as iniciais das palavras «Save our saults», cuja tradução corrente é: Salvai as nossas almas! As marinhas de todo o mundo seguiram essa boa pratica inglesa, e o S. O. S. generalisou-se, sendo o ultimo recurso, o grito desesperado, a suplica derradeira e anciosa dos que naufragam no alto mar ou dos que se vêem perdidos nalguma costa deserta.

 

Como também se sabe, na guerra actual, por via de regra, os combates são nocturnos. Os sistemas de trincheiras atrás das qnaes os exércitos se defendem, não consentem os ataques frontais, á luz do dia, e apenas por surpreza, e sob a protecção das sombras da noite, se pode actuar. E' verdadeiramente uma guerra de salteadores, em que os costumes da antiga cavalaria foram substituídos pelos mais ferozes métodos de extermínio, e em que não ha outras convenções além das que são impostas pelos elementos, pela extrema fadiga ou pelo mutuo aniquilamento. No inverno, as ofensivas paralizam, porque a neve, o frio e as tempestades não permitem á fraca compleição humana maior esforço do o que é necessario para se defender do ambiente. Nos sectores de repouso e de instrução, que se estendem talvez por dois terços de toda a frente, as divisões destroçadas, que se recompuzeram na rectaguarda, ou as novas formações, fazem apenas a chamada pequena guerra. A frente do Somme, que foi teatro das mais horriveis hecatombes, deixou de dar que falar de si, porque os exércitos que se defrontavam foram, como se diz na nova terminologia bélica, ceifados.

 

A palavra «retaliação», simbolo das velhas epocas de barbaria, entrou nos documentos oficiais e anda em todas as bocas como a mais perfeita expressão desta guerra modernissima. Os mamelukos e os berbéres, com os seus habitos hospitaleiros e a sua lealdade em combate, devem sentir-se infinitamente superiores a estes europeus ultracivilisados, que se assemelham bem mais aos bandidos da Floresta Negra do que aos cavaleiros da Tavola Redonda.

 

Em ambos os campos se adoptou o S. O. S.  E' o sinal dado á artilharia do avanço da infantaria inimiga ou da nuvem de gaz que se adeanta. Nos abrigos dos comandantes dos pelotões da primeira linha, nos comandos das companhias, nos comandos dos batalhões, vêem-se sempre as longas varetas dos foguetões do S. O. S., com as cabeças envoltas em coberturas de latão e tudo oculto das vistas dos aviadores por tiras de lona.

 

Esta organização obrigou as batarias a terem uma sentinela do S. O. S., encarregada de olhar sempre a frente inimiga e fazer avisar o oficial de serviço logo que no ar subam os três foguetões vermelhos do estilo.

 

Aquela tarde, eu estava em apoio, e tinha ido, depois de jantar, com alguns camaradas, pela estrada junto da qual estava a posição da bataria do capitão Beleza, dissimulada sob as ramas do pateo duma «ferme». O oficiál de serviço comandava um «teste». Por dentro dos vidros da janela da casa via-se uma linda rapariga loira que conversava e ria com dois soldados ingleses.

 

Era já quase noite. Um grande cemi-circulo de côr de ouro esbatido, com algumas nodoas de purpura, desenhava-se no poente. A estrela Venus suspendia-se, no ceu baixo, como o farol de um aeroplano. As ruinas duma povoação destruida amontoavam-se como os escombros de um grande incêndio; e como se elevava dos drenos da estrada uma leve neblina, parecia que esses escombros fumegavam ainda.

 

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Um dos meus camaradas conhecia o oficial de serviço e ficámos conversando um pouco. A conversa recaiu inevitavelmente sobre a guerra e as coisas de Portugal e ali nos deixámos ficar até á hora do recolher.

 

Os «very-lights» começaram a ascender na noite suave de verão, por toda a extensa linha da frente, como repuxos intermitentes duma imensa fonte luminosa. Um soldado sentou-se com uma guitarra sobre os joelhos e começou dedilhando o fado do «Ganga». Um automovel carregado de munições passou de luzes apagadas, fazendo tremer o leito saibroso da estrada. Cruzando com o automovel, um grande cavalo normando puxava um carrito de lavoura e desenhava na noite o seu enorme vulto. Sentado no dorso do cavalo um «gavroche» assobiava.

 

Nisto ouviu-se a voz da sentinela:

 

-S. O. S.!

 

Todos nos voltámos para a frente. O ultimo foguetão vermelho palpitava ainda, como uma grande palpebra oftalmica, no ar dormente.

 

O oficial de serviço correu ao telefone. Passado um minuto, chegava a confirmação do S. O. S. pelo telefone do batalhão.

 

— Aos seus logares! Bataria, fogo pela direita! — e a voz estentorica do oficial de serviço dominou a noite.

 

As peças estavam apontadas e os apontadores tinham já repartido entre si o objectivo e feito as correcções. A primeira granada partiu. A chama iluminou o abrigo. Sobre o assento do eixo, o apontador verificou se a peça continuava apontada, o municiador introduziu outra granada no regulador de espoletas e o graduador volteou febrilmente a manivela do fundo da caixa. No abrigo da segunda peça, um cartuxo feriu sonoramente o chão. A essa nova chama, viu-se o carregador da primeira peça erguer-se um pouco sobre o joelho para introduzir outra granada na culatra e viu-se o apontador fazer o disparo. As granadas sucederam-se, cortando o ar flamejante, tisnando as ramarias, fazendo tamborilar as janelas da «ferme» e enchendo a treva de estrondos e clamores.

 

O cheiro da polvora irritava as narinas e as caras dos artilheiros, vistas entre os rebrilhares dos bronzes dos reguladores e dos reforços das peças e entre os clarões dos disparos, faziam pensar em personagens mitologicas arrancadas ás forjas de Plutão ou á imaginação de Dante.

 

Corremos ao acantonamento. Já devia ter chegado a ordem de marcha e provavelmente a companhia de prevenção tinha já partido. Chegámos, e não tive mais que colocar-me à frente do meu pelotão:

 

—Quatro á direita volver! Ordinário marche!

 

Seguimos por um caminho de pé posto, a marche-marche. Ao passarmos defronte da bataria, os cartuchos dansavam no ar. Uma granada pesada inimiga uivou por cima das cabeças e foi rebentar para traz do acantonamento. Conforme nos íamos avisinhando da primeira linha, tornavam-se mais distintas as explosões dos obuzes e dos morteiros. As balas das metralhadoras pesadas batiam os caminhos e sibilavam entre os ramos das arvores.

 

Ouviu-se o tinir da campainha duma bicicleta. O soldado apeou-se e entregou-me um papel.

 

—Alto!

 

O pelotão estacou. O comandante do batalhão dava-me ordem para ocupar a posição de reserva. Os outros pelotões foram chegando, destacando-se como massas alvacentas na escuridão.

 

Os foguetes cruzavam-se em todos os sentidos. O urro cavo dos morteiros pesados abalava a noite, as granadas procuravam na treva os objectivos e as rajadas das metralhadoras pesadas enfiavam as estradas e as trincheiras de comunicação. No misterio da noite, o drama ia-se desenrolando, conforme todas as regras, sobre aquele scenario apocalitico de ruina e assolação. Parecia chegar ás almas o bafo putrido do cavalo da Morte, a qual serenamente ia manejando a fouce implacável por entre os taludes das trincheiras.

 

O bombardeamento abrandou com os primeiros alvores da madrugada. O inimigo não tinha conseguido entrar na nossa primeira linha.

 

Um ou outro soldado dormitava. Veio a ordem de regressar ao acantonamento. Voltámos pelo mesmo caminho de pé posto. Os soldados, de armas em bandoleira, as mãos metidas nos bolsos, marchavam depressa para sacudirem o torpôr da madrugada.

 

Onde o caminho se encontrava com uma estrada vicinal, havia um calvario. Um renque de ciprestes espontados, em fórma semi-circular, formava uma capela de ramos entrelaçados. Projectada sobre o fundo verdenegro a imagem de Christo parecia mais triste e abandonada, a cabeça mais pendida sobre o hombro lacerado, as chagas mais abertas, as mãos a despegarem-se mais dos cravos ensanguentados. Especialmente a chaga dum joelho tinha adquirido o livôr sujo da carne corrupta, e no peito, onde o escultor havia posto certo cuidado anatómico, a podridão alastrava sob a pele de opala.

 

Na bataria, agora, dormia-se. Alguns ramos despedaçados pendiam dos troncos, presos pela casca, e varriam a erva chamuscada.

 

Os soldados desequiparam-se e estiraram-se nos leitos de palha, entre as mantas. Eu tinha deixado sobre um caixote que me servia de meza de cabeceira os «Contos fantasticos», de Edgar Poe. Li algumas paginas e o sono veio lentamente. Adormeci sob a impressão de que tudo quanto se passara era também um conto fantástico, em que as figuras e a propria paisagem eram movimentadas pela mão poderosa dum romancista portentoso.

 

(Continua na próxima quarta-feira.)

 

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