Discursos Sobre a Cidade - Por Gil Santos
O TI MOREIRAS
António Pereira dos Santos, mais conhecido por Ti Moreiras, por seu pai assim ser chamado, era meu avô paterno. Nasceu em 1895 na Amoinha Nova no concelho de Valpaços, mas viveu grande parte da sua vida no Carregal, aldeia próxima, já do concelho de Chaves. Era um homem de trabalho e de respeito. Foi combatente na primeira Grande Guerra em França e aprisionado pelos alemães em 9 de Abril de 1918 na célebre batalha de La Lys, passando quase um ano em campos de concentração do império alemão. Foi amigo pessoal do célebre Milhões. Conservo, religiosamente, um manuscrito das suas memórias de guerra, com relatos inigualáveis publicado no livro De Chaves a Copenhaga, a saga de um combatente.
Desta feita, vou contar três curtas estórias que, entre inúmeras outras, conservo na memória. Muitas delas deliciadas à garupa do seu cavalo, nos numerosos passeios com que me brindou enquanto criança.
O Ti Moreiras tinha umas mãos de oiro para a madeira e a sua vida era quase exclusivamente dedicada à tanoaria, sempre em obra de castanho. Um dia, um tal Silveira de France, aldeia a meia légua do Carregal, encomendou-lhe um tonel com a capacidade de uma dezena de pipas. Deitou mãos à obra e em mês e meio tinha pronta a vasilha. Coisa nunca vista! Contudo, lembrou-se tarde que era demasiado volumosa para ser transportada para France num tradicional carro de bois. A solução passaria por fabricar uma carroça propositadamente para o efeito. Assim aconteceu. Carro e tonel eram obra de admiração, autênticos objectos de romaria. Nunca tal se vira por aquelas bandas. Perfeitas obras-primas quer na perfeição quer na envergadura. Numa tarde de um qualquer Sábado de um mês de Agosto, lá ia a procissão: uma junta de bois galegos, taludos, puxando um carro invulgar cujo peso provocava uma chiadeira que coloria de festa este acontecimento inédito. Um verdadeiro espectáculo! À saída do Carregal, no Peto, para se entrar na estrada principal tinha que se arrouçar à direita. Então era ver o Ti Moreiras, vaidoso, a gritar para o criado Cabeça Grande que conduzia o arcanho:
— Ó Manel, arrouça p´rá estrada de France!
Chegado ao destino, foi o bom e o bonito! É que ninguém se lembrou que não havia portas de adega, por carrais que fossem, que dessem passagem a tal avantesma. Os velhos do lugar discutiram com entusiasmo a solução: retirava-se o telhado e o sobrado da casa, improvisava-se um guindaste e o tonel entraria de landó! Assim se pensou e assim se fez. Depois de muito tempo e esforço, afinal bateu certo!
O pior foi quando se apresentou a conta: vinte notas, uma fortuna! Bem entendido que para além do tonel, incluía o carro, a montagem e a desmontagem do telhado e do sobrado. O cliente pagou… e que bufasse, podia gabar-se de ter o maior pipo das redondezas!
Do tonel, fabricado há mais de cinquenta anos, ainda há pouco recebi a notícia de que continua a fazer do vinho de Cova do Ladrão um néctar dos deuses!
O Manel Cabeça Grande, era o criado lá de casa. Tinha uma cabeça como um malho carreiro. Veio um dia, ainda rapazote, dos lados de Ribeira de Pena, à procura de trabalho e o Ti Moreiras empregou-o. O homem era castiço e lambareiro. Quando sentia que a comida lhe agradava, esfregava as mãos sem parar e tagarelava como uma rela. Quando não, torcia o nariz, punha um focinho de metro e meio e, fechado como um ouriço-cacheiro, ninguém lhe ouvia a fala. O trabalho corria como comesse! Se lhe chaldrasse, trabalhava desalmadamente, de contrário não fazia a ponte de um corno. O velhote andava farto destas manias do criado. Ou por causa do seu mau feitio, ou porque, por mais que escondesse a chave da adega, o mafarrico dava sempre com ela e era de caixão à cova, ou ainda porque, no tempo do fumeiro, os salpicões e as linguiças mingavam misteriosamente nos lareiros, urgia encontrar uma solução radical. Talhou-a para a adega. Fez constar no Carregal que comprara um almude de uma jeropiga de estalo na feira de Carrazedo, para o tempo das castanhas. Meu amigo, o Manel, mal o soube, ficou em pulgas.
— Por onde andaria a chave da adega? Pensava ele.
Uma semana bastou para que lhe descobrisse o eido. Noitinha, foi cá botar o gado. Chegou, o patrão estava no Prado à volta dos pipos que fabricava e a patroa na cozinha a ultimar a ceia. Era boa a hora! Sorrateiro deslizou até à adega, ao lusco-fusco, e de um trago único botou o primeiro copo da dita pinga!
Ah, homem de mil diabos!... Saltou a fugir, desalmado, parecendo que tinha o diabo no corpo! Afinal em vez da jeropiga era petróleo do motor de rega o que continha o pipo!..
Apareceu curado passado uma semana mas sem um pingo de vergonha na cara!
A consoada na casa do Ti Moreiras, por tradição, era uma festa farta. Para além de outros petiscos não podia faltar o polvo de meia cura. Oito dias antes do Natal, montava no seu cavalo e, aproveitando a feira de Chaves, comprava sempre uma polvoreira de respeito. Assim aconteceu nesse ano como nos outros. A meia cura exigia que o bicho ficasse de molho uns dias. No Linhar, onde o terreno era mimoso e o renovo se dava a fartas colheitas, havia um poço de águas férreas, geladas, coberto com grossas pranchas de granito e com um alçapão de pouco mais de meio metro quadrado, por onde penetrava a manga do motor de rega. Pendurado por uma corda de sisal, aí ficava a polvoreira, de molho, a inchar e a perder o sal. Na tarde do dia de consoada, o Ti Moreiras dirigia-se ao poço recolhendo a polvoreira que enfiava num pote de ferro de três pés que já fervia no braseiro.
Naquele ano teve uma surpresa desagradável: O polvo havia desaparecido! Alguém se afiambrou ao dito cujo. O velhote ia morrendo!
Como homem decidido que era, não perdeu a calma, aparelhou o cavalo e galopou a toda a sela para Carrazedo, onde tinha a certeza de que o seu amigo comerciante Amílcar não o deixaria ficar mal. Sem essa iguaria, nem o Natal sabia a festa nem o Menino Jesus nascia escorreitinho na casa do Ti Moreiras!..
Arranjar arranjou-o, mas quando chegou a casa já alvorecia!
Gil Santos, In Ecos do Planalto - adaptado