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DA «DITADURA» DO CAPITAL A UMA SOCIEDADE DE «IDIOTAS»
Fui apanhado desprevenido para a elaboração deste texto da rubrica «Discursos sobre a cidade». Como a minha participação aqui nesta local é esporádica, não contava que tivesse de entrar tão cedo para a confeção desta escrita. Mas, como entrámos em época do defeso - de férias e da pré-campanha política - tem de haver um esforço maior dos escrevedores menos comprometidos para que o «verdadeiro discurso» aconteça.
Como não vivo permanentemente em Chaves e o meu conhecimento sobre a cidade, o concelho e as suas gentes é muito rudimentar, para não dizer até, superficial; porque em época de férias grandes todo o cenário citadino se modifica com a maior parte da entrada dos que estão repartidos pela diáspora e os poucos que ainda conseguem dar uma escapadela extramuros para outras paragens «gozando férias», o assunto de hoje não vai abordar concretamente algo que tenha a ver com Chaves. Vai refletir apenas sobre uma pequena «intrusão» feita às leituras, melhor dizendo, anotações e sublinhados, de dois livros, que são objeto de certa permanência na mesinha de cabeceira de tio Nona.
É sempre com redobrada alegria que recebo tio Nona na minha casa no Douro, entre vinhedos, conversando no terraço, pela noite dentro, defronte ao rio Douro, com o Peso da Régua a seus pés.
![2015 - Fotografia Noturna quinta Santa Isabel (13) 2015 - Fotografia Noturna quinta Santa Isabel (13)]()
2015 - Fotografia Noturna quinta Santa Isabel
Antes, quando tio Nona cá vinha, dizia que era para «carregar baterias». Hoje já não utiliza tanto esta expressão. Prefere, quando vem aos anos dos seus familiares que deixou no Douro, particularmente da sua irmã mais velha, dizer que vem para «matar saudades». Matar saudades que se resumem em conversas de horas intermináveis sobre a família e o passado - os seus temas preferidas.
Apesar de se notar que o tema dominante das conversas seja o passado e a família, para este velho, e desiludido, republicano socialista laico, tio Nona, nota-se que o assunto dominante das suas preocupações diárias é todo outro.
Vi, contudo, desta sua última visita que nos fez, um tio Nona mais triste e saudosista, por um lado e, por outro, mais preocupado.
Num dos livros de cabeceira que o acompanhava - «O outro pé da Sereia» -, um romance de Mia Couto, anotei-lhe apenas duas únicas frases sublinhadas (um hábito muito próprio dele). Rezavam assim: “A viagem acontece quando acordamos fora do corpo, longe do último lugar onde podemos ter casa”. E mais adiante: “Os que morreram não se retiraram. Eles viajam na água que vai fluindo. Eles são a água que dorme”.
Foi-me fácil reportar a origem da dominância de tais pensamentos na «alma» de tio Nona - a perda de um amigo camarada, de mais de quarenta anos de partilha de vida, convivência e cumplicidades pessoais e profissionais. Que nunca desapareceram e, por isso mesmo, nunca morreram, nem, porventura, morrerão.
Já o outro livro, embora pouco volumoso, encontrei-o praticamente cheio de anotações e sublinhados. Confesso que nunca tinha ouvido falar em tal autor - Byung-Chul Han -, um coreano, nascido em Seul, dando atualmente aulas de filosofia numa Universidade de Berlim. Contudo, o que me despertou a atenção foi o seu título - «Psicopolítica».
Quando pegava no livro para, como costumo fazer quando vejo um título, lendo o seu índice, tio Nona, de pronto, diz-me:
- Podes dar-lhe uma vista de olhos. Não repares nas anotações e sublinhados. São coisas minhas. Vais achá-lo interessante. O que nos faz falta hoje em dia é abrirmo-nos para uma visão outra dos quadros de referência a que sempre nos habituámos a ver e a «ler» as coisas e a vida. Muitas vezes, por simples comodidade e preguiça mental, ou por poucos hábitos de leitura e «abertura» ao mundo, muito próprio dos portugueses, e latinos, apegamo-nos a certas leituras ou pré-conceitos do passado e não raras vezes fechamo-nos para essa tal visão outra das coisas e da vida.
Entusiasmado com este seu incentivo, e dados os afazeres profissionais não me proporcionarem uma leitura mais aprofundada do livro, fiquei-me apenas por alguns sublinhados feitos pelo tio Nona que me pareceram mais significativos e que aqui deixo à reflexão dos leitores(as).
No capítulo ‘A crise da liberdade’ refere: “A liberdade foi um episódio (...) Cremos hoje que não somos um sujeito submetido, mas um projeto livre, que se repõe em questão e reinventa constantemente. Esta passagem do sujeito ao projeto é acompanhada pelo sentimento de liberdade. Ora, acontece que o próprio projeto se revela como uma figura de coação, ou até mesmo como uma forma eficaz de subjetivação e de submissão. O eu como projeto, que crê ter-se libertado das coações externas e das coerções alheias, submete-se a coações internas e a coerções próprias sob a forma de uma coação ao rendimento e à otimização. Vivemos uma fase da história particular em que a própria liberdade dá lugar a coações (...) A liberdade, que deveria ser o contrário da coação, engendra coações. Patologias como a depressão e a síndrome de burnout (ou síndrome de esgotamento profissional) são a expressão de uma crise profunda da liberdade. São um indício mórbido de que hoje, através de diferentes vias, a liberdade se transforma em coação.
O sujeito do rendimento, que se pretende livre, é na realidade um escravo. É um escravo absoluto, na medida em que sem qualquer senhor se explora a si próprio de forma voluntária. Não tem diante de si um senhor que o obrigue a trabalhar. O sujeito do rendimento absolutiza a vida sem mais e trabalha. A vida sem mais e o trabalho são as duas faces de uma mesma moeda. A soberania é estranha ao escravo neoliberal, é-lhe estranha a própria liberdade do senhor que, segundo a dialética do senhor e do escravo de Hegel, não trabalha e somente goza. Esta soberania do senhor consiste em elevar-se acima da própria vida e chegar assim a aceitar a morte. Este excesso, esta forma de vida e de gozo, é estranho ao escravo trabalhador preocupado com a vida sem mais. Ao contrário da conclusão de Hegel obriga o senhor a trabalhar também. A dialética do senhor e do escravo conduz à totalização do trabalho.
O sujeito neoliberal como empresário de si próprio não é capaz de estabelecer com os outros relações livres de qualquer finalidade. Entre empresários não surge uma amizade independente de quaisquer outros fins. E contudo, ser livre significa estar entre amigos. «Liberdade» e «amigo» têm a mesma raiz indo-europeia. A liberdade é, fundamentalmente, uma palavra relacional. Cada um de nós só se sente livre numa relação conseguida, numa coexistência satisfatória. O isolamento total a que o regime liberal nos conduz não nos torna realmente livres. Neste sentido, põe-se-nos hoje a questão de sabermos se não deveríamos redefinir, reinventar a liberdade, para escaparmos à dialética fatal que a transforma em coação.
O neoliberalismo é um sistema muito eficaz, e de facto inteligente, de explorar a liberdade. Explora-se tudo o que pertence a práticas e formas de liberdade, como a emoção, o jogo e a comunicação. Explorar alguém contra a sua vontade não é eficaz. Na exploração de outrem, o produto final é parco. Só a exploração da liberdade gera rendimento máximo”. É esta a lógica do novo capitalismo neoliberal.
Mais à frente, Byung-Chul Han continua: “Segundo Marx, as forças produtivas (a força do trabalho, o modo de trabalho e os modos de produção materiais), a partir de um determinado nível do seu desenvolvimento, entram em contradição com as relações de produção dominantes (relações de propriedade e de dominação). O que sucede porque as forças produtivas progridem continuamente. Assim, a industrialização engendra novas forças produtivas que entram em contradição com as relações de propriedade e de dominação de tipo feudal, o que conduz a crises sociais que se esforçam por promover uma transformação das relações de produção. A contradição é eliminada através da luta do proletariado contra a burguesia e gera a ordem social comunista. Ao contrário do que conclui Marx, não é possível superar por meio de uma revolução comunista a contradição entre as forças produtivas e as relações de produção. Porque a contradição é insuperável. O capitalismo, graças precisamente ao caráter permanente desta contradição intrínseca, escapa em direção ao futuro. Deste modo, o capitalismo industrial transforma-se em neoliberalismo ou capitalismo financeiro, com os seus modos de produção pós-industriais, imateriais, em vez de se transformar em comunismo.
O neoliberalismo, enquanto forma de mutação do capitalismo, transforma o trabalhador em empresário. É o neoliberalismo, e não a revolução comunista, que elimina a classe trabalhadora submetida à exploração alheia. Hoje, cada um de nós é um trabalhador que se explora a si próprio na sua própria empresa. Cada um de nós é senhor e escravo na sua mesma pessoa. E também a luta de classes se transforma em luta interna de cada um consigo próprio.
(...) Hoje, pelo contrário, alastra a ilusão de que cada um, enquanto projeto livre de si mesmo, é capaz de uma autoprodução ilimitada. Na atualidade, a «ditadura do proletariado» é estruturalmente impossível. Hoje, todos estamos sob o domínio de uma ditadura do capital”.
O regime neoliberal transforma a exploração alheia na auto-exploração que afeta todas as «classes». A auto-exploração sem classes é totalmente estranha a Marx. Torna impossível a revolução social assente na distinção entre exploradores e explorados. E através do isolamento do sujeito do rendimento, explorador de si próprio, não se forma qualquer nós político com capacidade de ação comum.
Aquele que fracassa na sociedade neoliberal do rendimento responsabiliza-se a si próprio e envergonha-se, em vez de pôr em questão a sociedade ou o sistema (...) No regime neoliberal de auto-exploração, cada um orienta a agressão em direção a si próprio. Esta auto-agressão transforma o explorado, não em revolucionário, mas em depressivo.
Já não trabalhamos para as nossas necessidades, mas para o capital. O capital engendra as suas próprias necessidades, que, erradamente, percebemos como próprias. O capital representa uma nova transcendência, uma nova forma de subjetivação (...) [E] a transcendência cederia perante o discurso imanente à sociedade. A sociedade teria, portanto, de ser construída de novo a partir da sua imanência. Pelo contrário, é a liberdade a ser abandonada de novo no momento em que o capital se erige numa nova transcendência, num novo senhor. A política acaba por se transformar de novo em escravidão. Transforma-se em esbirro do capital.
Queremos ser realmente livres? Não teremos inventado Deus para termos de ser livres? Perante Deus, todos somos devedores em falta. Mas a dívida (die Schuld = culpa ou dívida) elimina a liberdade. Hoje os políticos acusam o endividamento como causa que limita em enorme medida a sua liberdade de ação. Se estivermos livres da dívida, quer dizer, se formos plenamente livres, teremos de agir deveras. É até possível que nos endividamos permanentemente para não termos de agir - que dizer para não termos de ser livres nem responsáveis. Não serão talvez as dívidas elevadas uma prova de que não temos em nosso poder ser livres? Não será o capital um novo Deus que nos torna de novo devedores em falta? Walter Benjamin concebe o capitalismo como uma religião. Trata-se do «primeiro caso de um culto que não é expiatório, mas culpabilizante». O estado de falta da liberdade perpetua-se porque não é possível liquidar as dívidas: «Uma terrível consciência de culpa que não sabe como expiar-se, recorre ao culto, não para expiar a culpa, mas para a tornar universal»”.
(...) O neoliberalismo transforma o cidadão em consumidor (...)
A participação tem lugar sob a forma de reclamação e de queixa. A sociedade da transparência, habitada por espetadores e consumidores, funda uma democracia de espetadores (...)
Hoje expomo-nos por completo sem qualquer tipo de coação ou de prescrição. Prestamos na rede todo o tipo de dados e de informações sem saber a quem, nem ao quê, nem que ocasião ou que lugar cabe esse saber a quem a nosso respeito. Esta perda de controle representa uma crise de liberdade que deve ser tomada a sério.
Estamos a caminho da época da psicologia digital. Avançamos na via que leva a uma vigilância passiva a um controlo ativo. O que nos precipita numa crise de liberdade de alcance máximo, pois que afeta agora a própria vontade livre. O Big Data é um instrumento psicopolítico extremamente eficaz que permite adquirir um conhecimento integral da dinâmica inerente à sociedade da comunicação. Trata-se de um conhecimento de dominação, que permite intervir na psique e condicioná-la a um nível pré-reflexivo. (...) O Big Data permite fazer prognósticos sobre o comportamento humano. O futuro torna-se assim predizível e controlável (...) O Big Data anuncia o fim da pessoa e da vontade livre.
(...) O smartphone é um objeto digital de devoção, ou até mesmo um objeto de devoção digital em geral. Enquanto aparelho de subjetivação funciona como o rosário, que é também, no seu manejo, uma espécie de telemóvel. (...) O «Gosto» é um ámen digital. Quando clicamos no «Gosto», submetemo-nos a uma estrutura de dominação. O smartphone não é só um aparelho de vigilância eficaz, mas também um confessionário móvel. O Facebook é a igreja, a sinagoga global (literalmente, a congregação) do digital.
No segundo capítulo - ‘Poder Inteligente’ - registo apenas os seguintes sublinhados:
“O poder pode, sem dúvida, exteriorizar-se como violência ou repressão. Mas não é nesta que repousa. Não recorre necessariamente à exclusão, à proibição, à censura. E não se opõe à liberdade. Pode até usá-la. (...) O seu propósito [o do poder] é ativar, motivar, otimizar e não obstar ou submeter (...) Em vez de tornar os homens submissos, visa torná-los dependentes.
O poder inteligente [é] amável, não opera frontalmente contra a vontade dos sujeitos submetidos, mas antes orienta em seu favor essa vontade. É mais afirmativo do que negador, mais sedutor que repressor. Esforça-se por gerar emoções positivas e por explorá-las. Seduz em vez de proibir. Não enfrenta o sujeito, concede-lhe facilidades (...)
(...) O poder inteligente, que se mostra livre e amável, que estimula e seduz, é mais eficaz do que o poder que classifica, ameaça e prescreve. O clicar de «Gosto» é o seu sinal. (...) o neoliberalismo é o capitalismo do «Gosto». Distingue-se substancialmente do capitalismo do século XX, que operava por meio de coações e de proibições disciplinares. (...) Trata-se de uma dominação que simplesmente sucede. Visa dominar procurando agradar e gerando dependências”.
No capítulo - ‘A Toupeira e a Serpente’ -, a toupeira é um trabalhador, a serpente é um empresário, o animal do regime neoliberal. E afirma Byong-Chul Han: “O regime disciplinar, segundo Deleuze, organiza-se como um «corpo». É um regime biopolítico. O regime neoliberal, pelo contrário, comporta como «alma». Daí que a psicopolítica seja a sua forma de governo. Esta «institui entre os indivíduos uma rivalidade interminável sob a forma de competição saudável, como uma motivação excelente». A motivação, o projeto, a competição, a otimização e a iniciativa são inerentes à técnica de dominação psicopolítica do regime neoliberal. A serpente incarna sobretudo a culpa, as dívidas que o regime liberal estabelece como meios de dominação”.
Deixemos os capítulos da ‘Biopolítica’, do ‘Dilema de Foucault’, da ‘Cura como Assassinato’, do ‘Shock’ e do ‘Big Brother Amável’. Fixemo-nos só um bocadinho no do ‘Capitalismo da Emoção’ quando o autor, a determinada altura afirma: “As emoções estendem-se para lá do valor de uso. Com elas, abre-se um novo campo de consumo cujo caráter é infinito (...) Está a produzir-se uma mudança de paradigma ao nível da direção de empresas. As emoções são cada vez mais relevantes. Substituindo a gestão racional, entra em cena a gestão emocional. O gestor atual afasta-se do princípio do comportamento racional. Assemelha-se cada vez mais a um orientador motivacional. A motivação está ligada à emoção (...) As emoções positivas são o fermento que permite o reforço da motivação”.
Deixemos também para trás o capítulo ‘A Ludificação’ para apenas nos referirmos a uma pequena passagem do capítulo ‘Big Data’. A certa altura diz-se: “Nas eleições americanas, o big data e o data mining revelam-se como um ovo de Colombo. Os candidatos acedem a uma visão de 360 graus sobre os eleitores. Recolhem-se enormes quantidades de dados, que se comparam e inter-relacionam, permitindo produzir perfis muito exatos. Acede-se assim a uma imagem da vida privada e à própria psique dos eleitores. Através da introdução do microtargeting, podem-se endereçar aos eleitores mensagens personalizadas e, portanto, influenciá-los. O microtargeting como práxis da microfísica do poder é uma psicopolítica promovida por dados. (...) A capacidade de prospeção da psicopolítica digital significaria o fim da liberdade”.
Deixemos o capítulo ‘Para Além do Sujeito’ e demoremo-nos um pouco mais mo último, que dá pelo nome ‘Idiotismo’.
Citando Deleuze, o autor Byung-Chul Han observa: “Fazer-se idiota foi sempre uma função da filosofia. Representar o papel de idiota é uma função da filosofia. Desde o início, a filosofia está fortemente ligada ao idiotismo. Todo o filósofo de engendra um novo idioma, uma nova língua, um novo pensamento, será necessariamente um idiota. Só o idiota tem acesso ao totalmente outro. O idiotismo descobre ao pensamento um campo imanente de acontecimentos e singularidades que escapa por completo à subjetivação e à psicologização.
A história da filosofia é uma história dos idiotismos. Sócrates, que só sabe que nada sabe, é um idiota. Descartes é também um idiota, que põe tudo em dúvida. Cogito ergo sum é um idiotismo.
(...) Hoje, o tipo do marginal, do louco ou do idiota dir-se-ia que praticamente desapareceu da sociedade. A totalidade da conexão em rede e da comunicação digitais aumentam consideravelmente a coação no sentido da conformidade. A violência do consenso reprime os idiotismos.
(...) A comunicação alcança a sua velocidade máxima onde o igual reage ao igual. A resistência e a rebeldia da alteridade ou da estranheza perturba e desacelera a comunicação nivelada do igual. É precisamente no inferno do igual que a comunicação alcança a sua velocidade máxima.
Frente à coação que impõe a comunicação e a conformidade, o idiotismo representa uma práxis de liberdade. O idiota é por essência o desligado, o desconectado, o desinformado. Habita um lado de fora impensável que escapa à comunicação e à conexão.
(...) O idiota é um herege moderno. Heresia significa eleição. O herético é aquele que dispõe de uma eleição livre. Tem a coragem de se desviar da ortodoxia. Liberta-se corajosamente da coação à conformidade. O idiota enquanto herege é uma figura de resistência contra a violência do consenso. Salva a magia do marginal. Frente à coação e à conformidade crescente seria mais urgente do que nunca hoje aguçar a consciência herética.
O idiotismo opõe-se ao poder de dominação neoliberal, à comunicação e à vigilância totais. O idiota não «comunica». Porque comunica com o incomunicável. Recolhe-se assim ao silêncio. O idiotismo constrói espaços livres de silêncio nos quais é possível dizer alguma coisa que mereça realmente ser dita. Já em 1995, Deleuze anuncia a sua política do silêncio. Esta dirige-se contra a psicopolítica neoliberal que impõe precisamente a comunicação e a informação.
(...) O idiotismo abre um espaço virginal, o longe que o pensamento requer para iniciar um falar totalmente diferente.
(...) O que distingue os idiotas não é a individualidade, ou a subjetividade, mas a singularidade.
(...) O idiota assemelha-se ao homo tantum, «que já não tem nome algum, embora não seja possível confundi-lo com ninguém. O nível de imanência a que acede é a matriz da des-subjetivação e da des-psicologização. É a negatividade, que arranca o sujeito de si próprio e o liberta «na incomensurabilidade do tempo vazio». O idiota não é um sujeito: «Antes uma existência floral: simples abertura à luz»”.
Tio Nona, depois de saber que tinha dado uma vista de olhos ao livro, procura o nosso encontro e diz:
- Numa altura em que se aproxima mais um ato eleitoral, este livro é muito útil para percebermos os verdadeiros quadros de referência partidária que temos no país e o que nos «oferecem». Na minha ótica, e infelizmente, os socialistas e a verdadeira social-democracia, quer em Portugal, quer na Europa, ficou parada no tempo. Os projetos de uma sociedade diferente não apareceram. Por isso, estou à espera de tudo. Vivemos numa verdadeira economia neoliberal ao qual o PS nestes últimos anos, militantemente, e sem uma verdadeira ideologia e valores compatíveis com os tempos por que passamos, aderiu. Muitos dos seus militantes até do próprio sistema se apropriaram em proveito próprio, pouco se distinguindo daqueles que hoje nos governam. Os que nos governam neste calvário do nosso dia-a-dia, constantemente nos lembram e fazem pagar da culpa que, dizem, ser dos outros, que os antecederam, esquecendo-se que, essencialmente, é por razão deles próprios que vivemos neste estado culpabilizante. Vivemos numa sociedade hipócrita, apropriadora das nossas «almas». Apenas nos resta uma alternativa - o de sermos «idiotas»! Como cidadão vou votar convicto que vou optar por um mal menor, esperando que, ainda em vida, surja uma sociedade verdadeiramente «idiota», diferente, igual ao sonho que nos idos anos 70 do século passado acalentava.
E tio Nona por aqui ficou, remetendo-se ao silêncio.
Confesso que ao ler, na transversal, estes sublinhados fiquei perplexo com o seu conteúdo. Todavia, olhando um pouco retrospetivamente para aquilo que tem sido a vida e a atividade de tio Nona não me admirei com o livro e com o conteúdo dos seus sublinhados. Muito temos falado da importância e do poder das ditas tecnologias de informação e comunicação nas sociedades de hoje. Muito temos falado do ponto a que o país e a Europa chegou. Muito temos falado do poder nefasto sobre o planeta terra da forma como temos explorado os recursos. Muito temos falado do deus capital que tudo comanda e domina. Muito temos falado da miragem de liberdade que todos pensamos, hoje mais do que nunca, que gozamos. Mas também sabemos do sentido de expiação porque nos últimos anos temos passado. Da falta de qualidade de vida que cada vez menos temos. Da cada vez mais precaridade em que as nossas vidas e os nossos projetos se transformaram. A todo o instante, quem nos governa arremessa-nos com bodes expiatórios, com culpados, esquecendo-se que eles mesmos são essencialmente os fazedores desta sociedade sem piedade e sem rosto. Uma verdadeira hipocrisia. Uma autêntica mentira em que vivemos. Não me admira, por isso, tal como Byung-Chul Han, que tio Nona faça a apologia do idiota. Idiota-palavra que anda muitas vezes na boca de alguns seus camaradas, que foram compagnons de route de projetos galvanizadores nas décadas 80 e 90 do século passado para o concelho de quem eram os seus lídimos representantes políticos e para um país diferente que queriam construir. Inesperadamente, tudo virou neoliberal. E tio Nona ficou «no ar», pairando, alertando para uma outra visão, para um outro futuro. Infelizmente em vão. É certo que os programas com que os diferentes partidos nos apresentam para o próximo dia 4 de outubro são alternativas. Alternativas. Mas não diferentes, singulares. Para a diferença é necessário o exercício lúcido do idiotismo e da coragem. E ninguém quer arriscar neste mar imenso da conformidade. De uma sociedade perfeitamente sintonizada e formatada com os princípios e valores daqueles que hoje nos governam e, quiçá, com alguns que apresentando-se como alternativa não são na realidade verdadeiramente diferentes.
Como tão bem entendo o silêncio a que tio Nona se remeteu!...
PS - Alguém ao meu dado me tem vindo a advertir que aquilo que digo e o que tio Nona diz ninguém lê. Obviamente que estou farto de constar tal facto. Meu intento não é escrever para as multidões em poucas frases entrecortadas que suscite imediatamente o clique do «Gosto», afagador do nosso umbigo. Infelizmente já não há tempo para o exercício lúcido do diálogo e da reflexão. Por isso, não estamos nesse registo. Nem é esse o nosso intento. Nosso esforço sabemos ser limitado: basta que ele chegue para a leitura e reflexão de apenas um leitor(a). Somos dos pequenos, mas firmes passos.
António Tâmara Júnior