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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

06
Dez16

Ocasionais


ocasionais

 

 

DA CIDADE DE CULTURA AO GOVERNO DE INCULTOS

 

Estamos de acordo com Antoni Remesar e Fernando Nunes da Silva quando, na obra coletiva Arte pública e cidadania - Novas leituras da cidade criativa enfatizam que “a paisagem integral, isto é, o tratamento material do território assumido de onde vem (a sua memória) e para onde vai (a sua sustentabilidade), converte-se num dos atuais paradigmas de intervenção”.

 

Por outro lado, na mesma obra, Don Julíán Aliseda e D. Edgar Maria Gomes de Andrade, a dado passo, escrevem que “o facto de vivermos atualmente numa aldeia global, leva a pensarmos as cidades como «os nossos bairros». [E] neste sentido, a Cultura tem papel preponderante na gestão das cidades. Ela está intimamente ligada à identidade do desenvolvimento dos territórios, às nossas raízes. É importante sabermos rececionar o legado que os nossos antepassados nos deixaram, sabendo vivê-lo e transmiti-lo às gerações vindouras [...preservando o] património cultural, na sua forma tangível como intangível”.

 

Temos em Chaves um património milenar, orgulho os flavienses e, por isso mesmo, considerado por todos como o nosso «ex-libris», fruto do lavor e contributo dos povos autóctones da altura, que aqui construíram uma das mais belas pontes romanas.

 

Se vemos tanto frenesim e afã na «folclorização» e encenação «rasca» dos trajes e «cenas» dos romanos que por esta terra passaram, é nosso dever fundamental, como flavienses, assumir essa memória de uma forma plena, convertendo-a em fator de sustentabilidade para o futuro. E não atender só aos aspetos «folclóricos», mas cuidar efetivamente desta magnífica estrutura que os nossos antepassados nos legaram, integrando toda a sua envolvente.

 

Na década de 90 do século passado, em Chaves, ainda não estando muito conscientes que estávamos, cada vez mais, imersos numa nova sociedade - a da globalização - e em que ainda não se tinha completa consciência de que vivíamos, ou estávamos caminhando, para uma aldeia global, tinha-se clara consciência que o desenvolvimento do território flaviense tinha de ser assumido a partir da sua genuína identidade, na qual a Cultura era um dos seus fatores primordiais.

 

A aposta na dotação de toda a cidade - e depois todo o concelho - com o saneamento básico; o arranjo e valorização do nosso Centro Histórico; a melhoria soa arruamentos e acessibilidades; o integrar o Tâmega, e as suas margens, na convivência urbana, em que a atual ponte pedonal era a sua aposta mais visível; a reestruturação do Museu da Região Flaviense, assumido na sua vertente castreja e romana; os Encontros de Arte Jovem; os Simpósios do Granito e os Cortejos Etnográficos, entre outras atividades e eventos, inseriam-se numa estratégia, depois plasmada no Plano Diretor Municipal, da cidade de Chaves como uma Cidade de Cultura.

 

Foi no respeito não só pela preservação da nossa memória mas também pela valorização do nosso património que se fez a intervenção na Alameda Trajano, contígua à Ponte Romana, relvando aquele espaço e, por ocasião do Simpósio do Granito, ali se colocou uma obra em granito - um dos recursos da nossa região - feita por um jovem escultor português.

 

Na rotunda que faz a junção da Travessa da Alameda Trajano com a Alameda Trajano, colocou-se uma coluna romana que, posteriormente, se achou mais condigna estar no Museu da Região Flaviense, ficando-se de, posteriormente, ali colocar uma sua réplica.

 

Quase trinta anos depois, o que foi colocado no plinto onde assentava a coluna romana?

 

 A imagem que se mostra, recentemente tirada, é verdadeiramente significativa. Nada!...

 

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E na Alameda Trajano, o que se fez para a sua preservação e/ou valorização?

 

Aqui, há uns escassos meses, embora com nítido mau trato do relvado, ainda podíamos ver o que esta imagem mostra:

 

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No verão passado, quando por ali passávamos, eis o que nossos olhos presenciaram e nossa objetiva registou...

 

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Na semana passada, quando passávamos por este «atropelo», o local pareceu-nos ser objeto de recuo. Arrebate de consciência dos responsáveis pelo governo da nossa coisa pública ou puro calculismo eleitoral, face a eventuais críticas feitas à devassa deste espaço?

 

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Alguém sabe porque se fez esta nova alteração de uso deste espaço? Ou sequer foi informado?

 

Alguém sabe o que fizeram à obra em granito que ali estava colocada?

 

Será que gerir uma cidade, e o seu espaço público, é estar constantemente a fazer e a desfazer o que outros fizeram, sem que se informe ou, tão pouco, se tenha uma ideia do que se pretende? E quanto é que tudo isto custo ao erário público, suportado por todos nós?

 

Alguém dizia que falar de arte pública implica naturalmente falar também de espaço público. A arte «apodera-se» do espaço público e o espaço público não cessa de retomar da arte aquilo que esta restituiu após ter sido digerida e transformada. Nós, atualmente em Chaves, e principalmente os representantes que elegemos, parece que não restituem nada, digerem ou transformam; apenas se limitam a desfazer, destruindo!

 

Ou seja, e em síntese, o que os nossos responsáveis autárquicos estão fazendo na nossa cidade - e nos seus espaços públicos -, não é um ato de cultura, pelo contrário, é uma manifesta atividade de gestão inculta!

 

António Tâmara Júnior

 

 

21
Ago15

Discursos Sobre a Cidade - Por António Tâmara Júnior


TAMARA

 

DA «DITADURA» DO CAPITAL A UMA SOCIEDADE DE «IDIOTAS»

 

Fui apanhado desprevenido para a elaboração deste texto da rubrica «Discursos sobre a cidade». Como a minha participação aqui nesta local é esporádica, não contava que tivesse de entrar tão cedo para a confeção desta escrita. Mas, como entrámos em época do defeso - de férias e da pré-campanha política - tem de haver um esforço maior dos escrevedores menos comprometidos para que o «verdadeiro discurso» aconteça.

 

Como não vivo permanentemente em Chaves e o meu conhecimento sobre a cidade, o concelho e as suas gentes é muito rudimentar, para não dizer até, superficial; porque em época de férias grandes todo o cenário citadino se modifica com a maior parte da entrada dos que estão repartidos pela diáspora e os poucos que ainda conseguem dar uma escapadela extramuros para outras paragens «gozando férias», o assunto de hoje não vai abordar concretamente algo que tenha a ver com Chaves. Vai refletir apenas sobre uma pequena «intrusão» feita às leituras, melhor dizendo, anotações e sublinhados, de dois livros, que são objeto de certa permanência na mesinha de cabeceira de tio Nona.

 

É sempre com redobrada alegria que recebo tio Nona na minha casa no Douro, entre vinhedos, conversando no terraço, pela noite dentro, defronte ao rio Douro, com o Peso da Régua a seus pés.

2015 - Fotografia Noturna quinta Santa Isabel (13)

2015 - Fotografia Noturna quinta Santa Isabel

Antes, quando tio Nona cá vinha, dizia que era para «carregar baterias». Hoje já não utiliza tanto esta expressão. Prefere, quando vem aos anos dos seus familiares que deixou no Douro, particularmente da sua irmã mais velha, dizer que vem para «matar saudades». Matar saudades que se resumem em conversas de horas intermináveis sobre a família e o passado - os seus temas preferidas.

 

Apesar de se notar que o tema dominante das conversas seja o passado e a família, para este velho, e desiludido, republicano socialista laico, tio Nona, nota-se que o assunto dominante das suas preocupações diárias é todo outro.

 

Vi, contudo, desta sua última visita que nos fez, um tio Nona mais triste e saudosista, por um lado e, por outro, mais preocupado.

 

Num dos livros de cabeceira que o acompanhava - «O outro pé da Sereia» -, um romance de Mia Couto, anotei-lhe apenas duas únicas frases sublinhadas (um hábito muito próprio dele). Rezavam assim: “A viagem acontece quando acordamos fora do corpo, longe do último lugar onde podemos ter casa”. E mais adiante: “Os que morreram não se retiraram. Eles viajam na água que vai fluindo. Eles são a água que dorme”.

 

Foi-me fácil reportar a origem da dominância de tais pensamentos na «alma» de tio Nona - a perda de um amigo camarada, de mais de quarenta anos de partilha de vida, convivência e cumplicidades pessoais e profissionais. Que nunca desapareceram e, por isso mesmo, nunca morreram, nem, porventura, morrerão.

 

Já o outro livro, embora pouco volumoso, encontrei-o praticamente cheio de anotações e sublinhados. Confesso que nunca tinha ouvido falar em tal autor - Byung-Chul Han -, um coreano, nascido em Seul, dando atualmente aulas de filosofia numa Universidade de Berlim. Contudo, o que me despertou a atenção foi o seu título - «Psicopolítica».

 

Quando pegava no livro para, como costumo fazer quando vejo um título, lendo o seu índice, tio Nona, de pronto, diz-me:

 

- Podes dar-lhe uma vista de olhos. Não repares nas anotações e sublinhados. São coisas minhas. Vais achá-lo interessante. O que nos faz falta hoje em dia é abrirmo-nos para uma visão outra dos quadros de referência a que sempre nos habituámos a ver e a «ler» as coisas e a vida. Muitas vezes, por simples comodidade e preguiça mental, ou por poucos hábitos de leitura e «abertura» ao mundo, muito próprio dos portugueses, e latinos, apegamo-nos a certas leituras ou pré-conceitos do passado e não raras vezes fechamo-nos para essa tal visão outra das coisas e da vida.

 

Entusiasmado com este seu incentivo, e dados os afazeres profissionais não me proporcionarem uma leitura mais aprofundada do livro, fiquei-me apenas por alguns sublinhados feitos pelo tio Nona que me pareceram mais significativos e que aqui deixo à reflexão dos leitores(as).

 

No capítulo ‘A crise da liberdade’ refere: “A liberdade foi um episódio (...) Cremos hoje que não somos um sujeito submetido, mas um projeto livre, que se repõe em questão e reinventa constantemente. Esta passagem do sujeito ao projeto é acompanhada pelo sentimento de liberdade. Ora, acontece que o próprio projeto se revela como uma figura de coação, ou até mesmo como uma forma eficaz de subjetivação e de submissão. O eu como projeto, que crê ter-se libertado das coações externas e das coerções alheias, submete-se a coações internas e a coerções próprias sob a forma de uma coação ao rendimento e à otimização. Vivemos uma fase da história particular em que a própria liberdade dá lugar a coações (...) A liberdade, que deveria ser o contrário da coação, engendra coações. Patologias como a depressão e a síndrome de burnout (ou síndrome de esgotamento profissional) são a expressão de uma crise profunda da liberdade. São um indício mórbido de que hoje, através de diferentes vias, a liberdade se transforma em coação.

 

O sujeito do rendimento, que se pretende livre, é na realidade um escravo. É um escravo absoluto, na medida em que sem qualquer senhor se explora a si próprio de forma voluntária. Não tem diante de si um senhor que o obrigue a trabalhar. O sujeito do rendimento absolutiza a vida sem mais e trabalha. A vida sem mais e o trabalho são as duas faces de uma mesma moeda. A soberania é estranha ao escravo neoliberal, é-lhe estranha a própria liberdade do senhor que, segundo a dialética do senhor e do escravo de Hegel, não trabalha e somente goza. Esta soberania do senhor consiste em elevar-se acima da própria vida e chegar assim a aceitar a morte. Este excesso, esta forma de vida e de gozo, é estranho ao escravo trabalhador preocupado com a vida sem mais. Ao contrário da conclusão de Hegel obriga o senhor a trabalhar também. A dialética do senhor e do escravo conduz à totalização do trabalho.

 

O sujeito neoliberal como empresário de si próprio não é capaz de estabelecer com os outros relações livres de qualquer finalidade. Entre empresários não surge uma amizade independente de quaisquer outros fins. E contudo, ser livre significa estar entre amigos. «Liberdade» e «amigo» têm a mesma raiz indo-europeia. A liberdade é, fundamentalmente, uma palavra relacional. Cada um de nós só se sente livre numa relação conseguida, numa coexistência satisfatória. O isolamento total a que o regime liberal nos conduz não nos torna realmente livres. Neste sentido, põe-se-nos hoje a questão de sabermos se não deveríamos redefinir, reinventar a liberdade, para escaparmos à dialética fatal que a transforma em coação.

 

O neoliberalismo é um sistema muito eficaz, e de facto inteligente, de explorar a liberdade. Explora-se tudo o que pertence a práticas e formas de liberdade, como a emoção, o jogo e a comunicação. Explorar alguém contra a sua vontade não é eficaz. Na exploração de outrem, o produto final é parco. Só a exploração da liberdade gera rendimento máximo”. É esta a lógica do novo capitalismo neoliberal.

 

Mais à frente, Byung-Chul Han continua: “Segundo Marx, as forças produtivas (a força do trabalho, o modo de trabalho e os modos de produção materiais), a partir de um determinado nível do seu desenvolvimento, entram em contradição com as relações de produção dominantes (relações de propriedade e de dominação). O que sucede porque as forças produtivas progridem continuamente. Assim, a industrialização engendra novas forças produtivas que entram em contradição com as relações de propriedade e de dominação de tipo feudal, o que conduz a crises sociais que se esforçam por promover uma transformação das relações de produção. A contradição é eliminada através da luta do proletariado contra a burguesia e gera a ordem social comunista. Ao contrário do que conclui Marx, não é possível superar por meio de uma revolução comunista a contradição entre as forças produtivas e as relações de produção. Porque a contradição é insuperável. O capitalismo, graças precisamente ao caráter permanente desta contradição intrínseca, escapa em direção ao futuro. Deste modo, o capitalismo industrial transforma-se em neoliberalismo ou capitalismo financeiro, com os seus modos de produção pós-industriais, imateriais, em vez de se transformar em comunismo.

 

O neoliberalismo, enquanto forma de mutação do capitalismo, transforma o trabalhador em empresário. É o neoliberalismo, e não a revolução comunista, que elimina a classe trabalhadora submetida à exploração alheia. Hoje, cada um de nós é um trabalhador que se explora a si próprio na sua própria empresa. Cada um de nós é senhor e escravo na sua mesma pessoa. E também a luta de classes se transforma em luta interna de cada um consigo próprio.

 

(...) Hoje, pelo contrário, alastra a ilusão de que cada um, enquanto projeto livre de si mesmo, é capaz de uma autoprodução ilimitada. Na atualidade, a «ditadura do proletariado» é estruturalmente impossível. Hoje, todos estamos sob o domínio de uma ditadura do capital”.

 

O regime neoliberal transforma a exploração alheia na auto-exploração que afeta todas as «classes». A auto-exploração sem classes é totalmente estranha a Marx. Torna impossível a revolução social assente na distinção entre exploradores e explorados. E através do isolamento do sujeito do rendimento, explorador de si próprio, não se forma qualquer nós político com capacidade de ação comum.

 

Aquele que fracassa na sociedade neoliberal do rendimento responsabiliza-se a si próprio e envergonha-se, em vez de pôr em questão a sociedade ou o sistema (...) No regime neoliberal de auto-exploração, cada um orienta a agressão em direção a si próprio. Esta auto-agressão transforma o explorado, não em revolucionário, mas em depressivo.

 

Já não trabalhamos para as nossas necessidades, mas para o capital. O capital engendra as suas próprias necessidades, que, erradamente, percebemos como próprias. O capital representa uma nova transcendência, uma nova forma de subjetivação (...) [E] a transcendência cederia perante o discurso imanente à sociedade. A sociedade teria, portanto, de ser construída de novo a partir da sua imanência. Pelo contrário, é a liberdade a ser abandonada de novo no momento em que o capital se erige numa nova transcendência, num novo senhor. A política acaba por se transformar de novo em escravidão. Transforma-se em esbirro do capital.

 

Queremos ser realmente livres? Não teremos inventado Deus para termos de ser livres? Perante Deus, todos somos devedores em falta. Mas a dívida (die Schuld = culpa ou dívida) elimina a liberdade. Hoje os políticos acusam o endividamento como causa que limita em enorme medida a sua liberdade de ação. Se estivermos livres da dívida, quer dizer, se formos plenamente livres, teremos de agir deveras. É até possível que nos endividamos permanentemente para não termos de agir - que dizer para não termos de ser livres nem responsáveis. Não serão talvez as dívidas elevadas uma prova de que não temos em nosso poder ser livres? Não será o capital um novo Deus que nos torna de novo devedores em falta? Walter Benjamin concebe o capitalismo como uma religião. Trata-se do «primeiro caso de um culto que não é expiatório, mas culpabilizante». O estado de falta da liberdade perpetua-se porque não é possível liquidar as dívidas: «Uma terrível consciência de culpa que não sabe como expiar-se, recorre ao culto, não para expiar a culpa, mas para a tornar universal»”.

 

(...) O neoliberalismo transforma o cidadão em consumidor (...)

 

A participação tem lugar sob a forma de reclamação e de queixa. A sociedade da transparência, habitada por espetadores e consumidores, funda uma democracia de espetadores (...)

 

Hoje expomo-nos por completo sem qualquer tipo de coação ou de prescrição. Prestamos na rede todo o tipo de dados e de informações sem saber a quem, nem ao quê, nem que ocasião ou que lugar cabe esse saber a quem a nosso respeito. Esta perda de controle representa uma crise de liberdade que deve ser tomada a sério.

 

Estamos a caminho da época da psicologia digital. Avançamos na via que leva a uma vigilância passiva a um controlo ativo. O que nos precipita numa crise de liberdade de alcance máximo, pois que afeta agora a própria vontade livre. O Big Data é um instrumento psicopolítico extremamente eficaz que permite adquirir um conhecimento integral da dinâmica inerente à sociedade da comunicação. Trata-se de um conhecimento de dominação, que permite intervir na psique e condicioná-la a um nível pré-reflexivo. (...) O Big Data permite fazer prognósticos sobre o comportamento humano. O futuro torna-se assim predizível e controlável (...) O Big Data anuncia o fim da pessoa e da vontade livre.

 

(...) O smartphone é um objeto digital de devoção, ou até mesmo um objeto de devoção digital em geral. Enquanto aparelho de subjetivação funciona como o rosário, que é também, no seu manejo, uma espécie de telemóvel. (...) O «Gosto» é um ámen digital. Quando clicamos no «Gosto», submetemo-nos a uma estrutura de dominação. O smartphone não é só um aparelho de vigilância eficaz, mas também um confessionário móvel. O Facebook é a igreja, a sinagoga global (literalmente, a congregação) do digital.

 

No segundo capítulo - ‘Poder Inteligente’ - registo apenas os seguintes sublinhados:

“O poder pode, sem dúvida, exteriorizar-se como violência ou repressão. Mas não é nesta que repousa. Não recorre necessariamente à exclusão, à proibição, à censura. E não se opõe à liberdade. Pode até usá-la. (...) O seu propósito [o do poder] é ativar, motivar, otimizar e não obstar ou submeter (...) Em vez de tornar os homens submissos, visa torná-los dependentes.

 

O poder inteligente [é] amável, não opera frontalmente contra a vontade dos sujeitos submetidos, mas antes orienta em seu favor essa vontade. É mais afirmativo do que negador, mais sedutor que repressor. Esforça-se por gerar emoções positivas e por explorá-las. Seduz em vez de proibir. Não enfrenta o sujeito, concede-lhe facilidades (...)

 

(...) O poder inteligente, que se mostra livre e amável, que estimula e seduz, é mais eficaz do que o poder que classifica, ameaça e prescreve. O clicar de «Gosto» é o seu sinal. (...) o neoliberalismo é o capitalismo do «Gosto». Distingue-se substancialmente do capitalismo do século XX, que operava por meio de coações e de proibições disciplinares. (...) Trata-se de uma dominação que simplesmente sucede. Visa dominar procurando agradar e gerando dependências”.

 

No capítulo - ‘A Toupeira e a Serpente’ -, a toupeira é um trabalhador, a serpente é um empresário, o animal do regime neoliberal. E afirma Byong-Chul Han: “O regime disciplinar, segundo Deleuze, organiza-se como um «corpo». É um regime biopolítico. O regime neoliberal, pelo contrário, comporta como «alma». Daí que a psicopolítica seja a sua forma de governo. Esta «institui entre os indivíduos uma rivalidade interminável sob a forma de competição saudável, como uma motivação excelente». A motivação, o projeto, a competição, a otimização e a iniciativa são inerentes à técnica de dominação psicopolítica do regime neoliberal. A serpente incarna sobretudo a culpa, as dívidas que o regime liberal estabelece como meios de dominação”.

 

Deixemos os capítulos da ‘Biopolítica’, do ‘Dilema de Foucault’, da ‘Cura como Assassinato’, do ‘Shock’ e do ‘Big Brother Amável’. Fixemo-nos só um bocadinho no do ‘Capitalismo da Emoção’ quando o autor, a determinada altura afirma: “As emoções estendem-se para lá do valor de uso. Com elas, abre-se um novo campo de consumo cujo caráter é infinito (...) Está a produzir-se uma mudança de paradigma ao nível da direção de empresas. As emoções são cada vez mais relevantes. Substituindo a gestão racional, entra em cena a gestão emocional. O gestor atual afasta-se do princípio do comportamento racional. Assemelha-se cada vez mais a um orientador motivacional. A motivação está ligada à emoção (...) As emoções positivas são o fermento que permite o reforço da motivação”.

 

Deixemos também para trás o capítulo ‘A Ludificação’ para apenas nos referirmos a uma pequena passagem do capítulo ‘Big Data’. A certa altura diz-se: “Nas eleições americanas, o big data e o data mining revelam-se como um ovo de Colombo. Os candidatos acedem a uma visão de 360 graus sobre os eleitores. Recolhem-se enormes quantidades de dados, que se comparam e inter-relacionam, permitindo produzir perfis muito exatos. Acede-se assim a uma imagem da vida privada e à própria psique dos eleitores. Através da introdução do microtargeting, podem-se endereçar aos eleitores mensagens personalizadas e, portanto, influenciá-los. O microtargeting como práxis da microfísica do poder é uma psicopolítica promovida por dados. (...) A capacidade de prospeção da psicopolítica digital significaria o fim da liberdade”.

 

Deixemos o capítulo ‘Para Além do Sujeito’ e demoremo-nos um pouco mais mo último, que dá pelo nome ‘Idiotismo’.

 

Citando Deleuze, o autor Byung-Chul Han observa: “Fazer-se idiota foi sempre uma função da filosofia. Representar o papel de idiota é uma função da filosofia. Desde o início, a filosofia está fortemente ligada ao idiotismo. Todo o filósofo de engendra um novo idioma, uma nova língua, um novo pensamento, será necessariamente um idiota. Só o idiota tem acesso ao totalmente outro. O idiotismo descobre ao pensamento um campo imanente de acontecimentos e singularidades que escapa por completo à subjetivação e à psicologização.

 

A história da filosofia é uma história dos idiotismos. Sócrates, que só sabe que nada sabe, é um idiota. Descartes é também um idiota, que põe tudo em dúvida. Cogito ergo sum é um idiotismo.

 

(...) Hoje, o tipo do marginal, do louco ou do idiota dir-se-ia que praticamente desapareceu da sociedade. A totalidade da conexão em rede e da comunicação digitais aumentam consideravelmente a coação no sentido da conformidade. A violência do consenso reprime os idiotismos.

 

(...) A comunicação alcança a sua velocidade máxima onde o igual reage ao igual. A resistência e a rebeldia da alteridade ou da estranheza perturba e desacelera a comunicação nivelada do igual. É precisamente no inferno do igual que a comunicação alcança a sua velocidade máxima.

 

Frente à coação que impõe a comunicação e a conformidade, o idiotismo representa uma práxis de liberdade. O idiota é por essência o desligado, o desconectado, o desinformado. Habita um lado de fora impensável que escapa à comunicação e à conexão.

 

(...) O idiota é um herege moderno. Heresia significa eleição. O herético é aquele que dispõe de uma eleição livre. Tem a coragem de se desviar da ortodoxia. Liberta-se corajosamente da coação à conformidade. O idiota enquanto herege é uma figura de resistência contra a violência do consenso. Salva a magia do marginal. Frente à coação e à conformidade crescente seria mais urgente do que nunca hoje aguçar a consciência herética.

 

O idiotismo opõe-se ao poder de dominação neoliberal, à comunicação e à vigilância totais. O idiota não «comunica». Porque comunica com o incomunicável. Recolhe-se assim ao silêncio. O idiotismo constrói espaços livres de silêncio nos quais é possível dizer alguma coisa que mereça realmente ser dita. Já em 1995, Deleuze anuncia a sua política do silêncio. Esta dirige-se contra a psicopolítica neoliberal que impõe precisamente a comunicação e a informação.  

 

(...) O idiotismo abre um espaço virginal, o longe que o pensamento requer para iniciar um falar totalmente diferente.

 

(...) O que distingue os idiotas não é a individualidade, ou a subjetividade, mas a singularidade.

 

(...) O idiota assemelha-se ao homo tantum, «que já não tem nome algum, embora não seja possível confundi-lo com ninguém. O nível de imanência a que acede é a matriz da des-subjetivação e da des-psicologização. É a negatividade, que arranca o sujeito de si próprio e o liberta «na incomensurabilidade do tempo vazio». O idiota não é um sujeito: «Antes uma existência floral: simples abertura à luz»”.

 

Tio Nona, depois de saber que tinha dado uma vista de olhos ao livro, procura o nosso encontro e diz:

- Numa altura em que se aproxima mais um ato eleitoral, este livro é muito útil para percebermos os verdadeiros quadros de referência partidária que temos no país e o que nos «oferecem». Na minha ótica, e infelizmente, os socialistas e a verdadeira social-democracia, quer em Portugal, quer na Europa, ficou parada no tempo. Os projetos de uma sociedade diferente não apareceram. Por isso, estou à espera de tudo. Vivemos numa verdadeira economia neoliberal ao qual o PS nestes últimos anos, militantemente, e sem uma verdadeira ideologia e valores compatíveis com os tempos por que passamos, aderiu. Muitos dos seus militantes até do próprio sistema se apropriaram em proveito próprio, pouco se distinguindo daqueles que hoje nos governam. Os que nos governam neste calvário do nosso dia-a-dia, constantemente nos lembram e fazem pagar da culpa que, dizem, ser dos outros, que os antecederam, esquecendo-se que, essencialmente, é por razão deles próprios que vivemos neste estado culpabilizante. Vivemos numa sociedade hipócrita, apropriadora das nossas «almas». Apenas nos resta uma alternativa - o de sermos «idiotas»! Como cidadão vou votar convicto que vou optar por um mal menor, esperando que, ainda em vida, surja uma sociedade verdadeiramente «idiota», diferente, igual ao sonho que nos idos anos 70 do século passado acalentava.

 

E tio Nona por aqui ficou, remetendo-se ao silêncio.

 

Confesso que ao ler, na transversal, estes sublinhados fiquei perplexo com o seu conteúdo. Todavia, olhando um pouco retrospetivamente para aquilo que tem sido a vida e a atividade de tio Nona não me admirei com o livro e com o conteúdo dos seus sublinhados. Muito temos falado da importância e do poder das ditas tecnologias de informação e comunicação nas sociedades de hoje. Muito temos falado do ponto a que o país e a Europa chegou. Muito temos falado do poder nefasto sobre o planeta terra da forma como temos explorado os recursos. Muito temos falado do deus capital que tudo comanda e domina. Muito temos falado da miragem de liberdade que todos pensamos, hoje mais do que nunca, que gozamos. Mas também sabemos do sentido de expiação porque nos últimos anos temos passado. Da falta de qualidade de vida que cada vez menos temos. Da cada vez mais precaridade em que as nossas vidas e os nossos projetos se transformaram. A todo o instante, quem nos governa arremessa-nos com bodes expiatórios, com culpados, esquecendo-se que eles mesmos são essencialmente os fazedores desta sociedade sem piedade e sem rosto. Uma verdadeira hipocrisia. Uma autêntica mentira em que vivemos. Não me admira, por isso, tal como Byung-Chul Han, que tio Nona faça a apologia do idiota. Idiota-palavra que anda muitas vezes na boca de alguns seus camaradas, que foram compagnons de route de projetos galvanizadores nas décadas 80 e 90 do século passado para o concelho de quem eram os seus lídimos representantes políticos e para um país diferente que queriam construir. Inesperadamente, tudo virou neoliberal. E tio Nona ficou «no ar», pairando, alertando para uma outra visão, para um outro futuro. Infelizmente em vão. É certo que os programas com que os diferentes partidos nos apresentam para o próximo dia 4 de outubro são alternativas. Alternativas. Mas não diferentes, singulares. Para a diferença é necessário o exercício lúcido do idiotismo e da coragem. E ninguém quer arriscar neste mar imenso da conformidade. De uma sociedade perfeitamente sintonizada e formatada com os princípios e valores daqueles que hoje nos governam e, quiçá, com alguns que apresentando-se como alternativa não são na realidade verdadeiramente diferentes.

 

Como tão bem entendo o silêncio a que tio Nona se remeteu!...

 

 

PS - Alguém ao meu dado me tem vindo a advertir que aquilo que digo e o que tio Nona diz ninguém lê. Obviamente que estou farto de constar tal facto. Meu intento não é escrever para as multidões em poucas frases entrecortadas que suscite imediatamente o clique do «Gosto», afagador do nosso umbigo. Infelizmente já não há tempo para o exercício lúcido do diálogo e da reflexão. Por isso, não estamos nesse registo. Nem é esse o nosso intento. Nosso esforço sabemos ser limitado: basta que ele chegue para a leitura e reflexão de apenas um leitor(a). Somos dos pequenos, mas firmes passos.

 

António Tâmara Júnior

 

 

24
Jul15

Discursos Sobre a Cidade - Por António Tâmara Júnior


TAMARA

 

RECADO

(Tio Nona ocasionalmente a terreiro...)

 

Não existe qualquer compromisso formal entre mim e o dono do blogue «CHAVES» para participar periodicamente na rubrica «Discursos sobre a cidade». «Entro» uma vez por outra, dada a bondade do seu proprietário em aceitar os meus escritos, sabendo da relação afetiva que tenho com a cidade de Chaves e o seu concelho.

 

Sou, assumidamente, de coração, um alto-duriense. Corre-me nas veias o sangue de um povo sacrificado que fez o mais belo e prestigiado jardim natural português, hoje dado como Património da Humanidade, mas cujas «delícias» apenas são gozadas por meia dúzia de «eleitos», que pouco ou nada sabem da sua verdadeira história (e vida), porquanto lhes falta o profundo humanismo que perpassa e é «reincarnado» nas obras dos nossos maiores, como Miguel Torga, João de Araújo Correia, João Pina de Morais e Domingos Monteiro, entre outros.

 

Sou, por isso, tal como tio Nona, um duriense nato, convertido às «paragens» da cidade de Trajano, um resmungão por natureza.

 

Ocasionalmente, vou entrar em polémica com o ilustre flaviense «de gema», mas vivendo noutras bandas, articulista de «Ocasionais - Saudades do Tio Nona», escrito no passado dia 21 de julho neste blogue - Luís Henrique Fernandes. Não por minha expressa vontade, mas a pedido, a jeito de «recado» enviado pelo tio Nona.

 

Não que minha prosa seja tão elegante quanto a sua, a ponto de ser mais conhecido do público até com outro «apodo»; não que minha inteligência seja tão arguta, ao ponto de perceber o que seja um «pitigrama»; não que, efetivamente, não saiba tanto ler quanto Luís Henrique Fernandes o evidencia, apesar de não se aprender apenas nos livros ou outros suportes modernos, mas com o ver e o viver; não que o que diz Luís Henrique Fernandes no seu aludido escrito seja inverdade, mas, singelamente, a sua douta e reputada opinião, ser tão refutável quanto a dos demais; não que o blogue «CHAVES» não tenha o seu mérito e, por isso mesmo, nos mereça os maiores encómios. Simplesmente é conatural à natureza humana a insatisfação, o querer mais.

 

Por isso, entendi o desabafo de tio Nona, quando escrevia, em 30 de novembro de 2012, «Os ‘desencontros’ dos Discursos sobre a cidade» não como uma verdadeira resmunguice, outrossim uma posição crítica quanto ao papel daqueles que ajudam a «criar» o blogue «CHAVES». Crítica no sentido de querer mais. Muito mais. E melhor.

 

Pena que o autor de «Ocasionais» tenha interpretado aquele «discurso» avant la lettre!

 

Não está em causa aqueles que falam, mostrando-nos “a humanidade dos corações dos Flavienses”; não está em causa aqueles que nos lembram “frações do tempo (dos tempos) de uma CHAVES - cidade e Região – ainda recente, e que muitos, mas mesmo muitos de nós, desejamos que persistissem”; não está em causa aqueles que fazem “uma reflexão política acerca de preceitos que poderiam conduzir por mais e melhor acerto as decisões da administração municipal e por melhores caminhos a vida dos Flavienses”; não está em causa o «discurso» poético e rimado com metáforas tão bem caidinhas com as realidades da NOSSA TERRA”; não está em causa os “elegantes relatórios de Contas mal feitas por quem administra a Cidade e lembrando-nos que também por aí, por Chaves, «Somos enganados pela aparência do bem»”; não está em causa as reveladoras «Intermitências» “de uma jovem escritora Flaviense, cuja qualidade engrandece a CIDADE”; não está em causa aqueles que produzem testemunhos “de um tempo em que na NOSSA TERRA os sentimentos de afeição estavam mais espalhados, eram mais vincados e davam mais sabor e alento à vida”; não está em causa aquelas «Cartas» nas quais se “mostra (...) [o] grande coração dos verdadeiros Normando-Tameganos ausentes”; não está em causa as “memórias egrégias daqueles que souberam fazer-se homens, uns; outros, sérios avisos à navegação dos mares políticos, assinalando os fundos falsos das águas, as traiçoeiras correntes e os cabos de tormentos que a rota seguida pelos Flavienses está sujeita a continuar a encontrar, numa fatalidade irrecuperável”; não está em causa os Post(ais) do blogue que “foram e são chamamentos constantes de alerta para o que lindo e maravilhoso sempre teve e ainda vai tendo a NORMANDIA TAMEGANA, por um lado, e, por outro, principalmente para os desmandos, os desaforos, a insensatez, e a cretinice, até, que sobre ela exercem os Governantes Centrais e, muito especialmente, os administradores municipais”.

 

Na verdade, sem momentos reveladores, criativos, sem poética, memória e história não há comunidade que resista e «viva».

 

Mas nunca, nas conversas de tio Nona, se vê pôr em causa ou questionar a posição de abertura à discussão e ao debate por parte do blogue «CHAVES». Pelo contrário, tio Nona evidencia, tão só, querer mais por parte de quem, dia a dia, «ajuda» a construir aquele «espaço».

 

Obviamente que cada um tem a sua posição política (e partidária); obviamente que cada um, caso o entenda, a deve militantemente defender, segundo o livre princípio da aceitação das convicções de cada um. Para tio Nona, a assunção da diferença, das diversas diferenças, é, absolutamente, essencial para a construção de uma verdadeira democracia. Democracia que não é o reino do unanimismo, mas do conflito permanente. Democracia entendida como o palco onde se questionam e debatem esses conflitos. Democracia onde, por via desses mesmos conflitos, se assume «permanentemente», sempre, e renovadamente, compromissos.

 

Tal como tio Nona é exigente em relação a si próprio, face à sua terra e às suas gentes do coração também o é.

 

E pede-lhes que saiam do seu «casulo», deixando de olhar para o seu umbigo.

 

E enfatiza que, cada um, individualmente ou em grupo, assumindo as suas diferenças, «discuta» verdadeiramente o futuro da cidade de Chaves e do seu concelho, construindo uma «visão» desse mesmo futuro capaz de congregar o maior número possível de pessoas com vista a acreditarem numa cidade e num município com mais progresso, mais moderno, com mais equidade e solidariedade, no respeito pela memória e pela tradição, naquilo que distingue os flavienses, como transmontanos que são, dos demais.

 

É este «toque a reunir”, de todos, apesar das diferenças, que tio Nona apela e exorta!

 

Aliás, quem acompanha o blogue «CHAVES», especificadamente os postais ou reportagens que o seu proprietário faz sobre a cidade e os seus núcleos rurais, facilmente se apercebe da mensagem que subliminarmente o seu autor nos quer transmitir! São belas fotografias e alguns expressivos textos de um território que, caso não haja uma visão outra quanto ao seu futuro, a muito curto prazo, quedará em simples ruínas.

 

E, das ruínas, apenas saem cinzas. Cinzas que não «suportam» qualquer memória. E, sem memória, que cidade e território municipal se vai construir de uma forma genuína?

 

Por isso, tio Nona insiste na cidadania ativa e na participação cidadã. Porque está visto que, para certos poderes, como diz Miguel Real, chamando à colação Maquiavel, “a garantia mais segura da manutenção do poder reside nos escombros, na desagregação do tecido comunitário, estado social propício à emergência da autoridade d’O Príncipe”.

 

Tio Nona, em 2012, tal como ainda hoje, defende que todos nós, cada cidadão em concreto, tem que ser um visionário, sem, de todo, ser demagógico, levando-nos a acreditar que ninguém melhor do que a população conhece os seus interesses e ninguém melhor do que ela intui o limite dos seus desejos.

 

Mas, para isso, é necessário consciencializarmo-nos de décadas de televisão, de religião supersticiosa - que não a devota -, e de futebol, como tendo sido os instrumentos mais importantes de anestesia social. Ou seja, no dizer de Miguel Real, “meios intensos de provocação do sonambulismo em que o português [e, entre ele, o flaviense] sobrevive, distraído do que mais importa e atafulhado de imagens superficiais e problemas medíocres, incapaz de se associar em assembleias e decidir do seu futuro”, saindo delas a sua verdadeira voz.

 

Para o efeito, há um combate a levar a cabo - o da não cedência ética ao império da tecnocracia. Com mulheres e homens (políticos) que, para além de competentes, sejam justos, na aceção bíblica do termo.

 

Parafraseando, uma vez mais, Miguel Real, diríamos que “deve ser a razão utópica a guiar o combate pela transformação do mal (a pobreza, a ignorância, o desemprego...), em bem, elevando os níveis de igualdade social, permitindo a mobilidade social, favorecendo o trabalho digno, a conquista do saber e da lucidez, a distribuição equitativa dos bens, recusando igualmente uma sociedade totalmente imaculada ou perfeita”, (In «Portugal - Um país parado no meio do caminho [2000-2015]»), mas com mulheres e homens competentes, lúcidos e justos, e não simples tecnocratas de qualquer aparelho.

 

Mas este trabalho não apenas dos políticos. É de todos nós.

 

A cidadania não se exerce somente nos dias das eleições. É feita, constrói-se todos os dias.

 

A época dos políticos heróis finou-se!

 

Há que mergulhar nas raízes gregas da polis.

 

Para que uma outra Europa com ela se refunda e, com ela, também Portugal.

 

Iniciando-se um novo ciclo político em que o humanismo das opções políticas se sobreponha ao cidadão olhado como simples mercadoria, descartável.

 

António Tâmara Júnior

 

 

21
Mar14

Discursos Sobre a Cidade - Por António Tâmara Júnior


 

CHAVES, PARA ONDE VAIS? ...

 

Tenho de confessar: tenho um fraco por Chaves.

 

Não, que de todo em todo, seja uma cidade deslumbrante. Possui, naturalmente, os seus encantos. Que me ficaram bem gravados aquando da minha passagem por aquela terra na adolescência e primeira juventude.

 

Mas, confesso, que esta cidade que tantas recordações e coisas boas me evoca, toda ela, hoje em dia, «cheira» a não sei quê. De princesa, herdeira de um cetro real, não passa de uma rainha sem coroa e sem trono.

 

Minha predileção por Chaves, tem a ver não só com o encantamento do seu centro histórico e das recordações que me traz, mas também das minhas afeições: nela residem pessoas que muito estimo e preso.

 

Infelizmente, em mais de meio século, anda associada a uma porta de saída fácil e franca de uma pátria que pouco estima e acarinha seus filhos. Filhos que tão denodo têm por ela!

 

Tudo o resto em Chaves não passa de lembrança de uma glória passada de seus antanhos. Hoje, o que vemos verdadeiramente, é mera prosápia retórica de alguns, poucos, felizmente, que se «encavalitam» nos seus «pergaminhos», mas que, pouco ou nada, fazem para os «pôr a render». Triste sina a desta terra| Aliás como de muitas outras espalhadas pelo interior do nosso país. Cantam-se muitas loas ao facto de este cantinho estar à beira mar plantado. Contudo - malfadada sorte a nossa - quem nos governa e dirige, esquece-se, reiteradamente, das terras originárias da gesta lusíada que, atravessando mares tenebrosos, deram a conhecer novos mundos ao mundo! Depois foi o desvario de tantos séculos até aos dias de hoje! Quando esta nossa má sorte, de toda a maltrapilha que nos tem governado, acabará?

 

Vem todo este arrazoado a propósito de uma visita que recentemente fiz a Chaves para ir ver e estar com tio Nona. Desde que se meteu o inverno, nunca mais estive com ele. Meus primos iam-me informando do seu estado: que andava acabrunhado; cada vez mais deprimido e que não saia de casa.

 

Aproveitei estes últimos dias lindos de sol, pronunciadores de uma primavera a aproximar-se, e, das arribas do Douro, dei uma «saltadela» até às portas de Trás-os-Montes profundo.

 

E tirei tio Nona de casa para dar uma «passeadela» comigo, vagueando pelas ruas da cidade, ou seja, dar um passeio a pé, tão a seu gosto.

 

Notei-lhe um pouco as «dobradiças» enferrujadas. Mas sempre me foi acompanhando.

 

A páginas tantas estávamos quase na saída da cidade, pelo lado norte.

 

E fiquei deveras admirado com o que fui presenciando. E, depois, estupefacto com o que vi. A pé tem-se uma visão muito diferente das coisas!

 

Como trago sempre comigo uma pequena máquina fotográfica, aqui vos vou deixar o registo.

 

Inopinadamente, saídos de um dos bairros, construído mais recentemente, - que mais lhe chamaria urbanização que bairro -, por entre um emaranhado de casas humildes, de um lado, e de prédios de andares, por outro, servidos por amplas ruas, fomos por uma humilde rua desembocar a um Centro de Saúde, ao quartel da GNR e à Escola Profissional. Infletindo um pouco à direita, demos com uma enorme rotunda.

 

 

No centro da rotunda uma placa:

 

 

 

A partir desta rotunda, a meus olhos, Chaves parece-me um outro mundo. Mas que grandiosos acessos!

 

Perante este cenário, comentava com tio Nona:

 

- Ainda bem que esta gente está empenhada na construção de bons e rápidos acessos à sua cidade, aproveitando os dinheiros da União Europeia...

 

Tio Nona olha para mim com aquele seu ar meio sarcástico, meio crítico e, puxando-me pela mão, arrasta-me para um ponto um pouco mais acima, e diz-me:

 

- O que vês aqui, apontando-me para uma placa sinalizadora:

 

 

 

De imediato lhe respondo:

 

- Uma placa indicativa para o centro da cidade de Chaves e para o Hospital!

 

De rajada, volta-me a perguntar:

 

- Sabes onde fica o Hospital?  Vês onde está o que resta do Hospital de Chaves? E vês alguma rodovia direta ao Hospital? Pois, aqui tens uma rodovia que, com certeza, em 2012, foi inaugurada com pompa e circunstância. Mas queda-se por aqui, meu espertalhão, na confluência do Centro de Saúde nº2!

 

Intrigado, pergunto-lhe:

 

- O que resta do Hospital?!

 

- Sim, responde-me tio Nona! Sabes, porventura que raio de serviços hospitalares nós hoje temos em Chaves? É uma vergonha os serviços hospitalares que temos instalados em Chaves! Não sabes que a lógica política em Portugal é mais napoleónica que o próprio Napoleão? Tudo para a capital! No país funciona simplesmente a lógica da capitalidade. Que infecta, inclusive, as ditas capitais de distrito, que acabam por «engordar» à custa da pobreza de todos nós que as sustentámos com os poucos recursos que positivamente, dia a dia, e cada vez mais, nos estão roubando. Isto que nos estão a fazer os «cretinos» que nos governam (e infelizmente aqueles que nos têm governado), a soldo do capital e dos senhores que comandam a batuta, desde a União Europeia, é um autêntico esbulho! Mas adiante... Nós aqui em Chaves ficamos sem serviços e os da Vila vivem na ilusão que são reis... em terras de cegos! Coitados, pobres de espírito, que não se dão conta que ninguém prospera com a miséria dos outros! Mas o que verdadeiramente me preocupa é a completa apatia, inércia ou, quiçá, incompetência, dos que aqui gerem a causa pública municipal.

 

E continuou:

 

- Agora, o que vês mais à frente, para norte? Não é, manifestamente, uma obra verdadeiramente faraónica?

 

 

 

Uma verdadeira autoestrada a servir três, quatro equipamentos: dois lares privados para a terceira idade (que até lhe chamam hotéis e resorts); uma Unidade de Cuidados Continuados, que nem sei se funciona e cumpre cabalmente a sua missão, a par de um serviço de fisioterapia, e o Casino de Chaves, já na confluência da entrada na A24.

 

 

 

O resto é terra de ninguém, digo, de alguém, à espera de mais uma especulaçãozinha. Um polvo, mal se conhecendo a cabeça. Uma enorme mancha de obra construtiva, espalhada por todos os quadrantes. Começou pela destruição da Veiga, como recurso agrícola nacional fundamental para a agricultura, com o gasto de milhões no seu regadio e acaba aqui, neste «santuário», onde se gasta, todos os dias, a vida dos que nada ou pouco fazem para o enriquecimento da sociedade, na procura vã de uma sorte (lucro) fácil nas mesas de jogo! É assim, meu rapaz, que esta minha gente entende construir uma cidade e suas respetivas infraestruturas: sem planeamento, sem qualquer critério ou nexo. Gere-se o território ao sabor das ondas e gostos do momento daqueles que «metemos no poleiro» e dos apetites especulativos de algumas gentes da terra e outros forasteiros. É triste ver como se gere esta cidade! A falta de critério e o gosto de saber - e bem - ordenar uma cidade está ausente. Chaves é um verdadeiro despautério de bens e recursos utilizados sem qualquer nexo. Não somos, não fomos capazes de saber como construir uma polis.

 

Vendo as coisas por este prisma, não podia deixar de estar mais que de acordo com tio Nona.

 

E, interiormente, interroga-me: mas, afinal, onde estão, verdadeiramente, os flavienses amantes da sua terra? Porventura, têm efetiva consciência para onde vai parar a sua querida cidade de Chaves?...

 

É nos momentos de crise, de penúria e dificuldades, que mais nos devemos questionar sobre que sociedade estamos construindo; que cidade temos e que cidade queremos para o futuro. Não apenas por nós, mas pelo ingente e inalienável dever ético: o de passarmos aos nossos vindouros o testemunho de uma terra na qual afincadamente trabalhamos com carinho e amor. Uma terra bem lavrada.

 

Se não tivermos a atitude de um bonus pater familias não seremos capazes de preparar um futuro alegre e risonho para os nossos filhos! Não lhes deixaremos uma herança, uma autêntica e verdadeira herança. Mas um chorrilho de dívidas e dificuldades.

António Tâmara Júnior

 

30
Nov12

Discursos sobre a cidade - Por António Tâmara Júnior


 

Os «desencontros» do Discurso sobre a cidade

 

Os leitores desta rubrica sabem da minha afeição por tio Nona.


Não são apenas as derivadas das relações de natureza familiar. Tem a ver também com a mesma visão das coisas, do mundo. O mesmo gosto pela vida. A mesma partilha dos autores de que gostam e lêem. Pelas mesmas correntes de opinião. Da crítica sobre a realidade e do mundo em que vivemos.


Apesar de toda esta cumplicidade, de tio para sobrinho, nem tudo é pacífico nas nossas relações.


É sabido o gosto de tio Nona pelos passeios pela natureza. Mesmo com uma certa idade, pois já algum tempo passou dos sessenta, no caminhar pelas veredas e caminhos vicinais das terras daquela que foi a nossa antiga Gallaecia, sinto que acompanho uma alma jovem, amante e respeitadora da natureza. Nela (na natureza) tudo o entusiasma; tudo o distrai; tudo é ensejo para me debitar oratória de exaltação deste nosso terrunho, quando o acompanho, e que tanto ama.


E, vejam só, agora deu-lhe na cabeça de, nos princípios do próximo mês, juntamente com alguns amigos, levar a cabo o Caminho de Santiago Primitivo, desde Oviedo até Santiago de Compostela, num total de, aproximadamente, 280 Km. 280 Km que não são pera doce. Veja-se, por exemplo, que têm de ultrapassar troços de grande altimetria, nas Astúrias, como os Picos da Europa.


Por isso, com afinco, prepara-se, mesmo com fortes críticas do seu «colectivo» familiar quanto ao empreendimento que quer levar a efeito. É que é tempo frio e o tio Nona tem problemas e sequelas relacionadas com problemas anteriores, cardíacos. Mas não ouve ninguém. Apenas atende aos conselhos dos seus médicos assistentes, nas partes que mais lhe convém. E não desiste.


Por isso, uma ou outra vez, lá o acompanho nas suas caminhadas de preparação.


Numa destas últimas, de chofre, e sem estar a contar com tal, dá-me um valente puxão de orelhas.

Em sentido figurado, claro!


Dizia-me ele:


- Então continuas a escrever para aquela rubrica «Discurso sobre a cidade» daquele teu amigo do blog «CHAVES»?


- Continuo, respondi-lhe. Vê nisso algum mal?


- Que escrevas? Não! A maior parte do que lá se escreve é que é uma treta.


- Uma treta?, retorqui-lhe já um pouco intrigado.


- Sim, uma treta, António. Já te deste ao cuidado de analisar todos os conteúdos daqueles «Discursos», inclusive os teus? Pareceis uns narcisos, deliciados apenas com a figura que representais no espelho que o blog vos oferece! Devíeis ter mais ciso, tino, e perspicácia. A maioria do que dizeis são lugares comuns. Ali não se vê qualquer finalidade activa e prospectiva que tenha efectivamente a ver com a nossa cidade, principalmente em termos de futuro. O autor do blog porque lhe pôs o nome de «CHAVES»? E porque pediu a meia dúzia de amigos ou personalidades para falarem (discursarem) sobre a (sua) cidade (de Chaves)? Presumo que o tenha feito com a preocupação de contactar diferentes pessoas para, em face das suas diferentes formações e experiências pessoais e profissionais, falassem sobre o que pensam da cidade, procurando encontrar, nos diferentes saberes e experiências, visão(ões)  para o futuro. Não seria? Ou será que também estou enganado sobre o «rapaz»?


Como não contava com esta conversa, de forma tão inopinada do tio Nona, enquanto ele parava para descansar numa íngreme subida, olhei para ele com um olhar confuso e estarrecido, talvez até agastado e com um certo azedume, pois, confesso, que me estava mordiscando o meu amor-próprio. Sem me deixar retorquir, de pronto, me diz:


- Não me olhes dessa maneira. Sabes muito bem que tenho razão, caramba! Tendes – se verdadeiramente “os” tendes no sítio -, de fazer daquele blog, que se diz «CHAVES», um verdadeiro fórum ou movimento de discussão sobre o futuro que queremos para a nossa terra, para a nossa cidade. Que é e já foi tão rica e importante para a história do país que nós somos. E, se não estou enganado, a maior parte das vezes, desde o autor do blog até ao mais humilde colaborador, só se escreve olhando simplesmente para o umbigo de cada um e não vão mais além do que às pequenas mundividências do dia-a-dia, transformando aquele meio numa pequena feira de vaidades. Saibam usar os meios e tecnologias de informação que a sociedade do conhecimento põe ao nosso dispor e alcance para transformarmos, para melhor, o dia-a-dia das pessoas, da terra e da cidade onde vivemos. E não me digas que não querem nada com a política, que não se querem meter em política. Caramba, António, mas se tudo é política, tudo diz respeito a política! Deixem-se de hipocrisias e farisaísmos! É discutindo politicamente a cidade, todos, que tudo começa a mudar, António! Saiam dos vossos casulos. Mostrem, na prática, que sois efectivamente cidadãos activos. Portadores de um discurso coerente, quer nas vossas vidas, quer para a vossa (nossa) terra. Demonstrando que há outra maneira de estar na sociedade e de fazer política, sem os militantismos cegos e as posições idiotas partidárias! Pensa bem nisto que te digo, rapaz! E se esse teu amigo achar que tudo está muito bem assim, então, aconselho-te, sinceramente, a que reflictas para que ele quer aberto aquele blog, e com aquela designação.


Perante aquele discurso, fiquei sem palavras, estarrecido, pois nem sonhava com esta sarabanda.

Obviamente que, no início, entendi a filosofia subjacente à nascença deste blog. Mas as palavras do meu velho tio Nona, questionando-me desta forma, confesso, que me inculcaram a dúvida (metódica) da necessidade de repensar, porventura profundamente, da necessidade de repensar, hoje, uma outra linha para este meio de comunicar, obrigando-nos, a todos, a recentrar o(s) discurso(s) bem assim a nossa participação como colaboradores.


E tudo isto não tem nada a ver com as eleições que estão aí a aproximar-se. Tem a ver com a cidadania. Activa. Actuante. Empenhada. Solidária com as pessoas e com os lugares. Comprometida.


Pela minha parte, caso assim se entenda, estou disposto a ajudar e contribuir para esta nova tarefa.


Efectivamente não me interessa quantos internautas entram no blog - qual Casa dos Segredos -, exibindo as estatísticas dos “mirones”.


Preocupa-me que Chaves tenha pelo menos um blog que reflicta, seriamente, sobre a sua cidade e do que desejamos para ela. Com efectiva e entusiástica participação dos cidadãos, amantes da sua terra e da sua história. E interessados na construção de um outro futuro.


Porque só assim, creio sinceramente, é que a classe política que temos se poderá vir a regenerar.


António Tâmara Júnior



06
Mai11

Discursos Sobre a Cidade - Por António Tâmara Júnior


 

 

 

COINCIDÊNCIAS

 

 

Conheci a cidade de Genève na década de 90.


Naquela altura vivia debaixo de uma tensão emocional intensa.


O convite de um amigo para lá passar uns dias tornou-se providencial – oportuno, terapêutico.


Genève, para mim, foi amor à primeira vista.


Aquele lago – o Léman – fez parte, enquadrou-se, na perfeição, no contexto da minha cura, como apelo à calma e tranquilidade, de que tanto necessitava.

 

 


 

A par do Jura e o Salève, as suas montanhas maternais, protectoras.


Quase vinte anos depois, voltei a Genève.


A visitar amigos e familiares. E descansar das peripécias de um país que uma comunicação social frenética, diria mesmo, histérica, não pára de nos desassossegar, transformando-nos em crianças assustadas.


Genève, a cidade suíça francófona por excelência que, nesta quadra pascal, tinha à minha frente, apresentou-se como se fosse um amigo, dos verdadeiros, que largámos há muitos anos mas que, na hora do reencontro, é como nos tivéssemos deixado na véspera.


No seu regaço passei uns dias tranquilos, reconfortantes, na companhia de familiares e de um grande amigo, que me recebeu, como há anos atrás, junto às margens do lago, pelas bandas de Versoix.


Revisitámos lugares, recordámos peripécias das nossas vidas, falando de uma outra cidade – e das suas gentes – que há muitos anos adoptámos como a nossa cidade.


E constatando o mesmo fascínio que Genève exerce sobre nós.

 

 


 

Cheguei a Chaves vai um par de dias.


E com a sensação que, desde a minha partida até à minha chegada, tudo tinha parado no tempo. Como o tempo das inúmeras telenovelas que passam nos canais da nossa televisão – deixam de se ver vários episódios e basta apenas escassos minutos para entender todo o enredo não visto. Ou seja, pouco ou nada de novo, efectivamente, se passou. Continua tudo na mesma.


Recebi hoje um e-mail do meu amigo genebrino, em viagem de trabalho por terras do Brasil.


Em anexo vinha um texto de Jaques Amaury, sociólogo e filosofo francês, professor na Universidade de Estrasburgo, que publicou recentemente um estudo sobre A crise Portuguesa, que não resisto aqui de o transcrever:


Portugal atravessa um dos momentos mais difíceis da sua história que terá que resolver com urgência, sob o perigo de deflagrar crescentes tensões e consequentes convulsões sociais.


Importa em primeiro lugar averiguar as causas. Devem – se sobretudo à má aplicação dos dinheiros emprestados pela CE para o esforço de adesão e adaptação às exigências da união.


Foi o país onde mais a CE investiu “per capita” e o que menos proveito retirou. Não se actualizou, não melhorou as classes laborais, regrediu na qualidade da educação, vendeu ou privatizou a esmo actividades primordiais e património que poderiam hoje ser um sustentáculo.


Os dinheiros foram encaminhados para auto estradas, estádios de futebol, constituição de centenas de instituições publico - privadas, fundações e institutos, de duvidosa utilidade, auxílios financeiros a empresas que os reverteram em seu exclusivo benefício, pagamento a agricultores para deixarem os campos e aos pescadores para venderem as embarcações, apoios estrategicamente endereçados a elementos ou a próximos deles, nos principais partidos, elevados vencimentos nas classes superiores da administração publica, o tácito desinteresse da Justiça, frente à corrupção galopante e um desinteresse quase total das Finanças no que respeita à cobrança na riqueza, na Banca, na especulação, nos grandes negócios, desenvolvendo, em contrário, uma atenção especialmente persecutória junto dos pequenos comerciantes e população mais pobre.


A política lusa é um campo escorregadio onde os mais hábeis e corajosos penetram, já que os partidos cada vez mais desacreditados, funcionam essencialmente como agências de emprego que admitem os mais corruptos e incapazes, permitindo que com as alterações governativas permaneçam, transformando – se num enorme peso bruto e parasitário. Assim, a monstruosa Função Publica, ao lado da classe dos professores, assessoradas por sindicatos aguerridos, de umas Forças Armadas dispendiosas e caducas, tornaram – se não uma solução, mas um factor de peso nos problemas do país.


Não existe partido de centro já que as diferenças são apenas de retórica, entre o PS (Partido Socialista)  que está no Governo e o PSD (Partido Social Democrata),  de direita, agora mais conservador ainda, com a inclusão de um novo líder, que tem um suporte estratégico no  PR e no tecido empresarial abastado. Mais à direita, o CDS (Partido Popular), com uma actividade assinalável, mas com telhados de vidro e linguagem publica, diametralmente oposta ao que os seus princípios recomendam e praticarão na primeira oportunidade. À esquerda, o BE (Bloco de Esquerda), com tantos adeptos como o anterior, mas igualmente com uma linguagem difícil de se encaixar nas recomendações ao Governo, que manifesta um horror atávico à esquerda, tal como a população em geral, laboriosamente formatada para o mesmo receio. Mais à esquerda, o PC (Partido comunista) vilipendiado pela comunicação social, que o coloca sempre como um perigo latente e uma extensão inspirada na União Soviética, oportunamente extinta, e portanto longe das realidades actuais.  


Assim, não se encontrando forças capazes de alterar o status, parece que a democracia pré – fabricada não encontra novos instrumentos.


Contudo, na génese deste beco sem aparente saída, está a impreparação, ou melhor, a ignorância de uma população deixada ao abandono, nesse fulcral e determinante aspecto. Mal preparada nos bancos das escolas, no secundário e nas faculdades, não tem capacidade de decisão, a não ser a que lhe é oferecida pelos órgãos de Comunicação. Ora e aqui está o grande problema deste pequeno país; as TVs as Rádios e os Jornais, são na sua totalidade, pertença de privados ligados à alta finança, à industria e comercio, à banca e com infiltrações accionistas de vários países.


Ora, é bem de ver que com este caldo, não se pode cozinhar uma alimentação saudável, mas apenas os pratos que o “chefe” recomenda. Daí a estagnação que tem sido cómoda para a crescente distância entre ricos e pobres.


A RTP, a estação que agora engloba a Rádio e Tv oficiais, está dominada por elementos dos dois partidos principais, com notório assento dos sociais democratas, especialistas em silenciar posições esclarecedoras e calar quem lenta o mínimo problema ou dúvida. A selecção dos gestores, dos directores e dos principais jornalistas é feita exclusivamente por via partidária. Os jovens jornalistas, são condicionados pelos problemas já descritos e ainda pelos contratos a prazo determinantes para o posto de trabalho enquanto, o afastamento dos jornalistas seniores, a quem é mais difícil formatar o processo a pôr em prática, está a chegar ao fim. A deserção destes, foi notória.


Não há um único meio ao alcance das pessoas mais esclarecidas e por isso, “non gratas” pelo establishment, onde possam dar luz a novas ideias e à realidade do seu país, envolto no conveniente manto diáfano que apenas deixa ver os vendedores de ideias já feitas e as cenas recomendáveis para a manutenção da sensação de liberdade e da prática da apregoada democracia.


Só uma comunicação não vendida e alienante, pode ajudar a população, a fugir da banca, o cancro endémico de que padece, a exigir uma justiça mais célere e justa, umas finanças atentas e cumpridoras, enfim, a ganhar consciência e lucidez sobre os seus desígnios”.


Coincidência no diagnóstico, dizia eu em voz alta, lembrando-me da conversa que, no Jardim Perl du Lac e no Pâquis, mantivemos, a propósito da situação que se vivia em Portugal.


Por trás de mim, Tio Nona replicava – “Et voilá!”

António Tâmara Júnior

 

 

 

 

25
Mar11

Discursos Sobre a Cidade - Por António Tâmara Júnior


 

 

 

 

CRISE(S)

 

Nona encerrou-se nas quatro paredes de sua casa. Já faz muito tempo. Os amigos, poucos, que conserva, raramente os visita. Diz que cada um tem a sua vida e, se eles não o procuram, porque ele os há-de incomodar, impondo-lhes a sua presença? De vez em quando, dá quase sempre o mesmo passeio matinal na companhia de Leo, um casmurro como ele. Nas faldas da cidade, ao longo do açudesco Tâmega, tendo como pano de fundo uma urbe que se buliça, mas que não lhe vê alma, e o Brunheiro, que a protege, mas que lhe encobre a visão de outros horizontes. Entre eles uma Veiga rica de potencialidades, prenhe de fertilidades mas, praticamente improdutiva, estéril. Produto de sucessivas gestões autárquicas que a deixaram esventrar em sucessivas especulações imobiliárias; o desleixo e o descuido de um Estado que a aprisiona a uma Reserva Agrícola Nacional, mas que não a assume, em todas as suas consequências, como uma riqueza do país, e a mesquinhez dos seus proprietários, capazes de matar por um naco de terra, mas de todo incapazes de encontrar formas de a transformar em fonte de riqueza efectiva. A simples posse pela posse. Sem cuidar da utilidade social da coisa.


Nona, um velho socialista, republicano e laico, não gosta muito de ouvir falar dos seus camaradas. Há anos que anda de costas voltadas para eles. Desabafa que, às vezes, compreende melhor os outros partidos que a eles. A estes sempre soube o que os movia na conquista da gamela do poder. Aos seus camaradas que, intrépidos, tanto defendem princípios e valores tão nobres como a solidariedade e o Estado do Bem Estar Social, não sabe o que a deriva do poder para onde os levou. Já não os reconhece. Sinceramente não vê hoje qualquer diferença entre eles. O Estado, a quem deveriam servir, quando o povo lhes deu a prerrogativa de o orientar e gerir, transformou-se num oásis para gozo e deleite dos umbigos de uns quantos.

 

 

 

 

 

Fui hoje visitar Nona, como faço todas as quartas-feiras. Hoje que paira no ar a quase certa demissão do Governo e a consequente crise política que se adivinha, a acrescentar às nossas enormes dificuldades financeiras, em resultado de um país que consome mais do que produz e gasta mais do que o que tem. Que se habituou a ver a adesão à União Europeia e o Euro como se fosse os antigo cravo e a canela da Índia, os escravos e o ouro dos Brasis. Porque, desde a era de Quinhentos, sempre se habituou a viver do fácil, não dando o devido valor ao papel da instrução, na construção de cidadãos, e ao trabalho, como verdadeiras fontes de riqueza.


Dei com Nona a ler Carlos Ruiz Zafón. Um jovem escritor barcelonês. Encontrei Nona alheio à arena da Assembleia da República e aos gladiadores de serviço. Uma sala, enorme, com a televisão muda. Apenas uma sombra pacata de uma calva debruçada sobre um livro que parecia transportá-lo para outro tempo e outro lugar, vivendo numa outra dimensão.


Nona levantou seus olhos, pequenos, tristes e nostálgicos e, como calculando de antemão a minha pergunta, disparou: - uma data de canalha; estes putos deveriam levar um puxão de orelhas. Mas a culpa não é deles. É nossa! Deixámo-nos embalar no canto na sereia da Europa. Gastámos sem tino e sem critério. Foi um regabofe. Um fartar vilanagem. Houve uns tantos que encheram os odres – os mesmos de sempre -; e serão os mesmos de sempre que pagarão o descalabro do atoleiro em que estamos metidos. Ninguém dá nada de graça, a não ser para, na volta, nos exigir a dobrar. É essa a regra da sociedade mercantilista. Chegou, agora, a hora de pagar a factura das obras, dos gastos e dos presentes que demos aos amigos que nos ajudaram a vestir a fatiota, o fraque, que nos permitiu entrar no clube dos ricos. Um estatuto sem a condição.


Não fomos nós, António, que elegemos ou deixámos eleger, um homem que, como candidato a primeiro-ministro, torcia o nariz aquele clube e, uma vez no poleiro, foi o que mais desbaratou e deixou desbaratar, sem critério, os dinheiros de dele vinham? Não foi ele que mais engordou e deixou engordar a máquina do aparelho do Estado? Não foi ele, por outro lado, ou/e os seus amigos, que criarem aquele monstruoso buraco financeiro que lhes enriqueceu os bolsos próprios e vai deixar, por muitos anos, os nossos vazios? Mas a nossa memória é curta! Ainda há pouco o elegemos como Presidente da República! E hás-de ver o que mais se seguirá!...


António, sou um velho marxista. Há muito que vinha pressentindo este final, o desfecho deste acto. Isto, para mim, não é novidade nenhuma. É o reino da mentalidade neoliberal no seu melhor. E de uma esquerda que não soube acompanhar os tempos que correm. Que não soube acompanhar uma sociedade que evoluiu tecnologicamente de uma forma tremendamente acelerada, que provocou uma crise de valores e de identidade – enfim, entrou em crise cultural – e que não soube acompanhar, com novas soluções, adequadas ao tempo presente. Esta esquerda passa antes o tempo, quezilando e gladiando-se de morte uns com os outros. Não aprendeu nada com a história!...

 

 

 

 

 

Urge mudar de paradigma. E de novos actores.


Aqueles que hoje estão no palco, criados e levados pela nossa mão, são efectivamente bons actores. Bons actores dos palcos dos media. Mas nós precisamos de bons actores políticos. Que saibam tratar a coisa pública como um verdadeiro serviço público.


A sociedade dos media em que estamos imersos confundiu-nos. Precisamos de voltar à escola para entendermos como esta nova sociedade funciona e quais os mecanismos que utiliza.


Para não confundirmos a nuvem por Juno.


Porque, se com o voto, eles entenderem que nós mudamos, eles também serão obrigados a mudar. A dizerem a verdade sem subterfúgios, porque sabem que dificilmente nos enganarão. E, desta forma, poderão apresentar as diferentes alternativas para que nós, cidadãos informados, conscientes e responsáveis, possamos optar.


Caso contrário, continuaremos na mesma forma.


E, sendo assim, não nos deveremos queixar.


Porque… as escolhas foram nossas!...


Nona fez uma longa pausa.


Lentamente baixei os olhos e dei comigo preso à leitura da página do livro que Nona segurava na mão:


 “Um escritor nunca esquece a primeira vez em que aceita umas moedas ou um elogio a troco de uma história. Nunca esquece a primeira vez em que sente no sangue o doce veneno da vaidade e acredita que, se conseguir que ninguém descubra a sua falta de talento, o sonho da literatura será capaz de lhe dar um tecto, um prato de comida quente ao fim de um dia e aquilo por que mais anseia: ver o seu nome impresso num miserável pedaço de papel, que certamente lhe sobreviverá. Um escritor está condenado a recordar esse momento pois nessa altura já está perdido e a sua alma tem preço”.


Tio Nona, saindo de uma espécie de sono ou torpor, deu conta que meus olhos percorreram aquela passagem e, adivinhando o meu pensamento, concluiu: - na literatura, tal como na política, somos todos feitos da mesma massa!...

 

 

António Tâmara Júnior

 

 

 

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