O LEGADO DE NADIR AFONSO ARQUITETO
Somos filho da Galáxia de Gutenberg. Nascemos no culto do Livro e da sua Leitura. Por muito que o digital nos apele a seguirmo-lo, não prescindimos, na leitura, no sentir da textura das folhas de um livro, no seu manuseamento constante.
Daí que, quando nos deslocamos de Chaves para outros centros urbanos de maior dimensão, não deixamos de frequentar uma boa livraria - que infelizmente por cá não há! E saber das novidades editoriais, nos livros que vão aparecendo nas áreas que mais gostamos, e investigamos, e nos prendem a nossa atenção e curiosidade.
Desta feita, num dos escaparates de uma delas, na cidade Invicta, fomos dar com um livro, editado no verão passado pela editora Caleidoscópio, com o título «Arquiteturas-Imaginadas: Representação Gráfica Arquitetónica e ‘Outras Imagens’. Desenho [...] Cidade [...] Lugar».
Trata-se de um conjunto de textos (1º volume), de vários autores, que tiveram por base um Projeto de Investigação, criado em 2009, com a designação do título do Livro, do Centro de Investigação em Arquitetura, Urbanismo e Design (CIAUD), da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa, FA/Lisboa, Fundação para a Ciência e Tecnologia, FCT, coordenado cientificamente por Pedro António Janeiro, o editor deste 1º volume, de coletânea de textos.
De um relance de olhos ao índice, fizemos uma leitura transversal ao conteúdo dos diferentes autores. Sem desprimor, e enorme importância dos restantes, despertou particularmente a nossa curiosidade dois textos: um, de Michel Toussaint, «Nadir Afonso e a Arquitetura»; o outro, de Sylvio Barros Sawaya, «As Decisões que constroem o Espaço Humano».
Pelo primeiro, para além de nos dar o percurso do artista/arquiteto flaviense Nadir Afonso, correndo as sete partidas do Mundo e trabalhando nos ateliers dos arquitetos mais famosos do seu tempo, em projetos que hoje marcam e fazem parte da História da Arquitetura moderna, como Le Corbusier e Oscar Niemeyer, somos informados que “o discurso de Nadir Afonso coloca a Arquitetura e a Arte em mundos diferentes, mas não deixa de se centrar na proporção e harmonia, no entanto [continua Michel Toussaint, seguindo o pensamento de Nadir Afonso], só a Arte no seu isolamento é capaz de assegurar tal. Sob este ponto de vista, Nadir Afonso situa-se na continuidade do pensamento estético desde o século XVIII com Kant, com a separação concetual entre Arte e Técnica, entre Arte e Utilidade, entre Arte e Ciência”. E, mais à frente, continua Michel Toussaint, transcrevendo uma parcela de pensamento de Nadir, ínsita na obra «Mecanismes de la Création Artistique»: “No ato artístico a forma resiste pela sua proporção sensível e no ato técnico ela resiste pela sua estrutura racional. O indivíduo que se propõe ser ‘artista técnico’ força as formas a um jogo duplo que o desenvolvimento progressivo das suas funções diferentes torna insustentável”. No fim do seu artigo Michel Toussaint, a propósito do projeto de uma igreja escreve da seguinte forma o pensamento de Nadir: “Na conceção de toda a obra técnica está aí, sim, a grande contradição a resolver: enquanto as estruturas funcionais, empurradas pela ciência, avançam, as estruturas tradicionais, empurradas pelos ‘destinos espirituais’, puxam para trás. E sobre Gaudi, o arquiteto catalão cujas obras são hoje grande atração turística em Barcelona [Nadir Afonso] afirma: «Não, Gaudi não foi um ‘arquiteto genial’. Querendo ser um arquiteto e um artista ao mesmo tempo, Gaudi falhou numa e noutra dessas atividades. A arquitetura de Gaudi, ‘essa escultura habitável’ que Le Corbusier ele próprio admirava tanto, não é finalmente nem escultura, nem ‘habitat’». Só a extravagância pôde sustentar, mais de meio século, as suas obras»” E Michel Toussaint conclui que “Nadir Afonso não quis mais jogar (...) [este ] insustentável ‘jogo duplo’, quis terminar com o [seu] ‘verdadeiro martírio’ e voltar à pureza da sua escolha inicial [antes de entrar no curso de Arquitetura]: ser artista. Por isso, abandonou a arquitetura [como profissão]”.
Entretanto, Nadir Afonso, enquanto se degladiava com o ‘seu verdadeiro martírio’ - entre ser Artista e /ou Arquiteto, fazendo uma opção em função daquilo que pensava o que eram estas duas áreas, deixou-nos, como arquiteto, nove projetos, sendo a fábrica de panificação (Panificadora de Chaves) uma das obras mais emblemáticas, precisamente localizada na sua terra natal, Chaves.
Mas não é do legado desta obra que hoje nos motivou à escrita sobre Nadir, o Arquiteto.
Hoje, muito sucintamente, queremos falar do «Anteplano de Urbanização da Cidade de Chaves», por ele coordenado, em 1965, e que acaba por culminar, definitivamente, a sua carreira como arquiteto.
Teria todo o interesse que, em futuras iniciativas do Museu de Arte Contemporânea Nadir Afonso, se procedesse a um ciclo de conferências subordinado ao tema «Repensar o Urbanismo na cidade de Chaves», tendo como mote aquele Anteplano, historicamente bem situado.
Refere Michel Toussaint: ”Como não podia deixar de ser, assentou a proposta de plano na descentralização, isto é, na criação de novos núcleos habitacionais com alguma autonomia, separados do Centro Histórico por áreas verdes inscrevendo-o no modelo das cidades satélites proveniente das doutrinas de Hebzener Howard, conhecido tanto por Le Corbusier, como pela disciplina urbanística em Portugal, nomeadamente a partir da presença de De Groër, arquiteto urbanista convidado por Duarte Pacheco.
A ideia de zonamento, ou seja, da constituição de zonas funcionalmente especializadas, está igualmente plasmada neste plano, defendida como basilar pela Carta de Atenas, documento escrito por Le Corbusier [...]. E, entendendo que a «ossatura das cidades é o traçado das suas ruas» como Nadir Afonso escreveu no Anteplano, organizou-o de acordo com as vias existentes, mas não seguindo a predeterminação de um modelo «radiocêntrico, ramificado ou em xadrez». O rio Tâmega e a sua Veiga, bem como as Águas Termais, são aqui defendidas como uma das bases económicas do futuro, não deixando de preconizar a indústria como outra perspetiva de desenvolvimento no horizonte de 20 anos [...]. Afinal este trabalho inscreve-se nos saberes e práticas urbanísticas da época em Portugal e apresenta-se já não apenas como um plano que define as formas dos edifícios e espaços exteriores em desenho, mas aposta sobretudo para um esquema de ordenamento do território da cidade existente e a sua expansão com um regulamento que orientaria as intervenções nesse território [...].
Bem pregou Frei Tomás!...
O que assistimos a seguir, e fundamentalmente depois de 76 do século passado, com a gestão autárquica do PPD, de Branco Teixeira, foi à subversão total de tudo quanto este autor, cidadão flaviense, preconizava!...
Hoje, volvido meio século sobre este trabalho de Nadir Afonso, que desenvolvimento e ordenamento territorial temos na nossa cidade?
Será que planeamos, ordenamos e desenvolvemos a nossa cidade, como muito bem diz Sylvio Barros Sawaya, tendo em linha de conta que “é, a todo o instante, que o espaço humano, gerando afirmação do que entende como sendo e do que deseja ser, uma fala social em que a sociedade concreta ali localizada se manifesta através dos gostos, das afeições, das necessidades e anseios, deixando traços inscritos no próprio espaço falando da sua vida e indicando um devir”?
As consultas públicas, quando as há, são meros proformas. E os cidadãos são verdadeiramente ostracizados acerca do que se passa e se faz na sua cidade. E, mais ainda, do que se vai passar, nos seus espaços vitais, quer sejam públicos, quer privados.
Estamos com Sylvio Barros Sawaya quando fala ser necessário explicitar, de antemão, todos os aspetos que vão levar à modificação do espaço público e privado da cidade onde «habitamos», através do projeto que se vai encomendar, ouvindo previamente os diferentes pontos de vista do(s) cidadão(s). Caso assim não aconteça, o projeto que se encomenda transforma-se numa decisão aleatória, não partilhada e distante da efetiva participação da sociedade, das suas comunidades e seus indivíduos.
Quantos projetos encomendados a técnicos para o ordenamento e desenvolvimento do território flaviense tiveram a participação social na conceção do mesmo?
É que uma decisão sobre qualquer projeto para a cidade, a nossa cidade, o nosso ‘habitat social’, deve basear-se numa audição prévia à decisão da encomenda do projeto. Trata-se de uma atitude sábia, consequente e harmoniosa, diz Sylvio Barros Sawaya, que vai depois tornar o projeto querido e participado por aqueles a quem se destina para nele estarem todos os dias, usufruindo do seu espaço, de qualquer natureza que seja - público ou privado. Quando um espaço é querido e partilhado por quem o habita, o usufrui, ou simplesmente gosta de o contemplar, não se transforma num corpo estranho à nossa vivência quotidiana...
Infelizmente não é isso que, pelas nossas bandas, todos os dias se passa. Exemplos? Não faltam!...
Intervir num espaço, em especial de uma cidade, não é apanágio exclusivo daqueles a quem confiamos, pelo voto, os destinos dos espaços que «habitamos». É de todos nós. Que, por isso, devemos ser ouvidos antes de qualquer intervenção. E partilharmos na execução dos mesmos. Porque não estamos aqui simplesmente em presença da elaboração ou execução de uma obra de arte, mas de um espaço que se destina a ser «habitado», usufruído, por todos. Quem não entender isto que siga outras áreas, deixando a política, a arquitetura ou o urbanismo, ou o que quer que seja, e que tenha a ver com o espaço onde a sociedade e as comunidades se desenvolvem e o Homem vive. E, tal como aconteceu sabiamente com Nadir Afonso, mude de rumo. Sejamos honestos!
Na verdade, estamos com Nadir - Arquitetar, Urbanizar e Ordenar não é a mesma coisa que Arte.
São, positivamente, duas atividades bem diversas uma da outra. Que exigem visões e posturas diferentes sobre a realidade.
Ordenar e gerir um território exige-se não só competência, sensibilidade social mas, acima de tudo, cultura efetivamente democrática, em que a abertura à participação cidadã - isenta do faz de conta e de pequenos ditadores - é a chave decisiva para o sucesso do desenvolvimento e bem-estar das populações que ocupam um determinado espaço - aquele onde a nossa vida, individual e coletiva, se desenrola e acontece.
António de Souza e Silva