Crónicas da Quarentena
Primeiro dia
Quarentena
Eu sabia que mais dia, menos dia, o corona vírus me iria entrar em casa, transportado por mim ou, o mais provável, transportado por um membro da família que na primeira linha lidava com ele. A probabilidade passou a suspeita num elemento da família no dia 12 de outubro de 2020. Dia 13 passou-se ao teste e no final do dia 15 vinha a confirmação – positivo. Por precaução, enquanto se aguardava o resultado do meu teste, tal como recomendava a DGS, no dia 14, já tinha ficado confinado em casa, e dia 16, vinha a ordem oficial da DGS para ficar confinado até dia 28 de outubro.
No entretanto, um amigo, quando soube da possibilidade do meu confinamento, fez-me uma proposta de, caso passasse a confinamento obrigatório, lhe enviar duas fotografias do dia para um texto, e assim aconteceu, com início em 17 de outubro de 2020, precisamente há um ano, saíam do confinamento as duas primeiras imagens para o primeiro texto, dos quais resultaram doze crónicas de reflexões e memórias, ficcionalizadas e cruzadas, correspondentes a três diferentes pessoas... com imagens do confinado e texto de Augusto de Sousa.
Quanto ao confinamento, confesso que nos dois primeiros dias até lhe achei piada, mas a partir de aí o sentimento mudou, pareceu-me ser aquilo que seria o mais próximo de uma prisão domiciliária, em que a casa se transforma numa cela e, com a sorte de ter um espaço ajardinado ao ar livre, se transforma em pátio de recreio, e tão real parecia essa prisão, que até a polícia (PSP), me batia à porta para verificar se estava ou não “preso”, tudo isto, com a agravante de poder a vir contrair a doença do Covid, que felizmente acabou por não acontecer.
Assim, iniciamos hoje a publicação diária dessas doze crónicas, precisamente um ano após elas terem sido escritas e ilustradas com duas imagens do dia.
Fernando DC Ribeiro
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PRIMEIRO DIA
Sábado, 17 de Outubro de 2020
Aguardo, ainda, o resultado do teste que fiz há dois dias. Como entretanto se intrometem o sábado e o domingo, apenas saberei o resultado quase uma semana depois de o ter solicitado. A lentidão de todo este processo recorda-me o absurdo da guerra de 1908, que tinha horas para abrir e fechar.
Será que o processo infeccioso também vai de fim-de-semana?
Recolho preventivamente ao domicílio. Entre o Brunheiro e a veiga, aconchego-me no casulo que é a casa, quase não saindo sequer para o jardim. Aqui descubro ainda um outro casulo, dentro de mim próprio e das minhas memórias.
Olho este tosco camiãozinho, que comprei nos Santos, com a desculpa que todos os pais dão, de ser para um filho, e recordo as pranchas de pinho empilhadas nas serrações, com o seu cheiro fresco a resina e madeira.
São memórias que me vêm como se estivesse no interior dessas pilhas quadradas e as visse através das frinchas de cada prancha alternadamente sobreposta – agora vejo, agora não vejo.
Sim, agora entrevejo a Rua da Muralha, os camiões da Exportadora e a figura maciça do Pipa, que de guarda-redes do Desportivo passou a temerário e periclitante condutor de camiões.
E logo me ocorrem, também, histórias do Matateu em fim de carreira, na pensão da Dorinha, com cama, comida, roupa lavada e uma grade de cervejas, que ele fazia questão de consumir na esplanada do passeio fronteiro, evidenciando o cumprimento de uma das cláusulas do contrato.
Penso no actual contexto pandémico e sinto-me como um jogador de futebol que estivesse já em campo, preparado para iniciar um jogo nocturno, com os holofotes ligados, as câmaras televisivas a transmitir em directo, mas tão perplexo com a inusitada e longa pausa que antecedia a partida como o próprio árbitro que, sem saber muito bem o que fazer, percebia que não dependia dele, afinal, o início ou o fim daquele jogo.
A angústia de todo este interregno de fim-de-semana não reside tanto no tempo que o resultado do teste levará a ser-me comunicado, mas no facto de não saber quando o jogo poderá voltar a ser jogado, de não saber se as regras voltarão a ser as mesmas ou de não saber, sequer, se voltará a haver jogo.
E sinto que algo me falta, que algo me foi retirado sem meu consentimento e sem que eu o pudesse evitar. Como se olhasse para todas aquelas ferramentas penduradas na parede e sentisse que nenhuma delas é a adequada. Que só aquelas que ali deixaram o seu contorno vazio seriam, agora, as imprescindíveis para enfrentar estes tempos.
Olhando mais atentamente, percebo a falácia e acabo por me interrogar – de que me serviria hoje uma catana? Indubitavelmente, estes tempos requerem outras ferramentas, que ainda teremos de inventar e às quais teremos de nos adaptar.
Não podendo sair à rua, para honrar o meu contrato de vida e beber umas cervejas em público, descubro simplesmente que, a partir de agora, a essência da nossa existência ou da nossa felicidade, e até mesmo de uma suprema afirmação da nossa liberdade individual, poderá assentar apenas na renovação e revalorização de insuspeitos e menosprezados detalhes do nosso quotidiano…
Augusto de Sousa