Discursos Sobre a Cidade
«SOBRESSALTOS DE MEMÓRIAS»
Olhamos para trás. Parece-nos que ainda foi ontem.
Olhamos para o calendário. Ficamos sobressaltados – 44 anos passados!!!
De imediato nos vem à memória um camarada que, nas vésperas do 25 de Abril de 1974, foi connosco para Mafra!
E mais um outro sobressalto nos persegue – já não está entre nós. Partiu!...
Partiu cedo este homem íntegro. Um grande, enorme, amigo. Mais que um amigo – um irmão!
Um grande educador. Um enorme trabalhador, lutador por causas.
E ficaram connosco as suas memórias…
Memórias de dias a fio, preparando, conjuntamente, aulas para os educadores do futuro. Educadores de hoje.
Memórias de dias a fio, batendo-nos pelas causas que sempre defendemos. Sem qualquer desfalecimento.
Memórias de dias a fio, vestindo a camisola de um socialista convicto, sem nada pedir em troca!
Memórias de dias a fio, usando a pena, em prole da informação, do esclarecimento, da cultura.
Informação, esclarecimento e cultura das gentes da terra que adotou, de coração, como sua – Chaves.
Chaves, e a maioria dos seus camaradas, que tão depressa, e tão facilmente, o esqueceram.
Mas ele jamais se esqueceu da «sua» terra e das suas gentes quando, connosco, percorríamos as margens genebrinas do lago Leman, de uma cidade que lhe era tão querida.
Emigrante voluntário genebrino, nunca esqueceu os amigos – poucos infelizmente – que tinha deixado na terra que trazia sempre no coração.
Mesmo sabendo que o seu passamento estava para breve, não queria que os seus amigos o fossem ver, quando extremamente debilitado, numa cama de hospital. Nele raiava uma derradeira esperança de forças – ele próprio queria vir a Chaves dar um abraço aos amigos da terra onde se casou e lhe nasceram os filhos.
Suas forças, contudo, traíram-no.
E seus amigos – sobressaltados – quando lhe queriam dar um forte abraço de amizade, no preciso momento em que aterravam em solo suíço, partia…
Babela - nossa familiar muito querida – que tinha por ele uma admiração profunda, de alma, bem nos dizia – apressem-se!...
Ela antecipou-se. Fez questão de vê-lo. De estar com ele.
Seus amigos mais íntimos não pressagiavam um final tão fulminante!
Um ano antes de ser hospitalizado, meu amigo, meu irmão, por ocasião dos 40 anos do 25 de Abril, escrevia o seguinte texto, na sua página do Facebook:
“Lembro-me daquele mês de Janeiro de 1974, da agitação nas faculdades e da liderança ativa da faculdade de engenharia, com ponte-levadiça interdita a agentes do regime e ameias de informação sobre crimes da guerra colonial. Das correrias diante da polícia de choque, da entrada de militares na faculdade de letras, das esperas de horas refugiados em cafés ou na Igreja do Carmo aguardando que a polícia regressasse a quartéis!
Lembro-me daquele mês de março de 1974, das notícias da Emissora Nacional, dos olhares furtivos de cidadãos suspeitos, da chapa de silêncio dos estudantes da Universidade do Porto que estudavam revoltas e convertiam o medo em músicas de flauta, no café Piollho.
Lembro-me daquele longínquo amanhecer do dia 25 de abril de 1974. Do burburinho da caserna, em Mafra; da agitação dos mais velhos e experientes; do ruído dos motores dos Chaimites e dos Panhards; da chuva miudinha que atrapalhava soldados e máquinas; da incógnita que rodeava a noite e do silêncio pesado dos oficiais da Escola Prática de Infantaria.
Lembro-me das ameaças de incêndio da sede do partido comunista, em Braga, das campanhas de dinamização em Trás-os-Montes, de um verão quente nas ruas, nos quartéis, na cabeça de cada um, da esperança em auroras de uma nova luz.
Lembro-me da primeira vez que cidades inteiras esperaram horas para votar, que vilas e aldeias pareciam renascer, que cidadãos de um país moço tinham brilho nos olhos do futuro. Lembro-me que tão pouco se pedia (paz, pão, habitação, saúde, educação) e que tanto se esperava de cada um: novo compromisso cívico, respeito, colaboração, solidariedade, intervenção cívica, construção de um país mais justo e solidário.
Lembro-me do medo da traição, das armas na mão e pistolas à cinta, da desconfiança do camarada da cama ao lado, da tensão extrema em idos dias de Novembro de 1975. E no silêncio da noite, fazíamos juras de nunca apertar o gatilho contra homens do mesmo uniforme, da mesma família nacional, do mesmo sonho de um país a caminho de novos horizontes.
Lembro-me e sei que o país mudou, que houve receios e esperanças, que fizemos, juntos, muitas coisas lindas e que nunca imaginamos que, 40 anos depois, a vida, o país, a política fosse assim: que deputados tivessem a desvergonha de aumentarem os seus salários quando o povo perde euros de pão todos os dias; que os senhores dos palácios tenham reformas de crime quando homens e mulheres de bengala dobram a cerviz para receberem o pouco a que têm direito; que se estenda a mão para rezar pela consulta médica e pelo medicamento que prolonga a vida; que haja crianças que passam fome; que haja janotas que se governam à luz do dia; que haja noites de facas longas para se roubar a quem menos tem.
Não foi esse o país que sonhei; não foi esse o país no qual acendi uma simples vela de futuro, de armas na mão. Não; não foi esse. Não é esse.
Com 40 anos passados, aumentou a pobreza para muitos e a escandalosa riqueza para alguns; Com 40 anos de rugas, a alma ficou mais pequena e o sono se inquieta pelas noites de fantasmas. Com 40 anos de história, este país que é o meu, o teu e o nosso, merecia mais e melhor: na repartição da riqueza, na solidariedade das gerações, na justiça equitativa, na igualdade de tratamento e de respeito. Na altura, a guerra colonial justificava tudo. Hoje, a guerra social desespera de perdas todos os dias.
Já não é tempo de armas na mão; mas é tempo de consideração pelos mais pobres, pelos mais frágeis, pelos mais sujeitos aos imprevistos da vida, pelos mais sacudidos pelas infâmias de quem decide a paz, o pão, a habitação, a saúde, a educação.
Decidamos nós!
Benjamim Ferreira
Abril de 2014”.
Foi um homem de Abril. Íntegro. Impoluto. Especial. Sonhador…
Se nos perguntarem porque este nosso «Discurso sobre a cidade» deste mês veio aqui ter, não saberemos responder. É como diz o velho ditado: “o coração tem razões que a razão desconhece”.
Porventura não é a nostalgia ou a saudade de alguém que se começa a sentir velho.
Talvez seja um grito de alma de alguém a sentir a necessidade de uma sociedade mais humana, solidária e fraterna, apesar de toda a panóplia de instrumentos que as Tecnologias da Informação e da Comunicação nos propiciam, mas que a todos, individualmente, nos remete para um mundo e para uma sociedade cada vez mais narcisista e solitária.
Uma sociedade líquida, a necessitar de autênticas e verdadeiras relações humanas; do face a face uns com os outros – o verdadeiro fermento que faz levedar o verdadeiro amor e as amizades autênticas.
Precisamos, cada vez mais, da palavra. Da poesia. Como a deste poema que o nosso amigo especial nos deixou na sua obra - «Corpo Quebrado»:
“CÉU E TERRA
está um dia lindo
rasgaram terra fora os sulcos das videiras
na terra que nós temos pela aldeia
não viste o saltitar do cão fiel
e o assalto do sol nascente?
anda
vem comigo
contempla a maravilha do acordar da manhã
cada manhã
vejo nos teus olhos sol novo
manhã nova para os dois
destroça em mim o teu corpo insinuante
o frio que esta noite me embalou
vem
aproveitamos os sulcos do arado
fazendo deles calor morno
leito heroico e nobre dos antigos
mítico encontro de deuses e mortais
anda
está linda a manhã para o amor”.
António de Souza e Silva