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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

01
Mai16

O Barroso aqui tão perto... Padornelos


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Como já vem sendo hábito nos últimos fins de semana, aos domingos damos uma voltinha pelo Barroso, que está aqui tão perto. Começámos a nossa incursão barrosã a partir do concelho de Chaves em direção a Montalegre, via Vilar de Perdizes. Já por aqui passaram Meixide, Vilar de Perdizes, Solveira, Stº André Gralhas e Meixedo, curiosamente todas aldeias das proximidades da raia que faz fronteira com a Galiza mas também todas elas da proximidade da Serra do Larouco. Exceção para Meixide que embora próxima da raia já fica mais distante do Larouco e exceção também na abordagem que fizemos à aldeia, pois foi muito breve, pelo que fica a promessa de uma abordagem a sério, mas ainda não será hoje.

 

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Hoje vamos continuar com a metodologia que aplicámos até aqui, com aldeias da raia e das proximidades da Serra do Larouco ou mesmo já em pleno Larouco, como é o caso da nossa aldeia de hoje que dá pelo nome de Padornelos. A única exceção é que deixámos de nos dirige a Montalegre para tomar a direção contrária.

 

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Padornelos já é uma antiga conhecida nossa. Sempre foi um nome sonante e muito badalado, começando logo em casa dos meus pais, a quem a minha mãe se referia amiúde e o meu aproveitava sempre para nos dizer que era a terra do romance “Terra Fria” de Ferreira de Castro. Mas não só, pois nos meus tempos de liceu apareceu por lá um puto castiço da minha idade, muito extrovertido e que vestia com orgulho o ser barrosão e que por coincidência tínhamos amigos de Montalegre em comum. De nome Afonso, tinha uma especial sensibilidade para as coisas da arte – pintura e escultura – com a particularidade de recorrer a materiais naturais, como tintas extraídas da cor das flores ou objetos/esculturas feitos a partir de raízes de urze e outros arbustos ou arvores, entre outros.

 

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Ao Afonso tinha-o encontrado pela última vez há coisa de vinte e tal anos com uma tenda na feira de artesanato que então se fazia no Jardim Público de Chaves. Cada vez que passava nas proximidades ou por Padornelos lembrava-me dele e perguntava sempre – que será feito do Afonso de Padornelos. Das últimas vezes que fui por lá em recolha de imagens, resolvi perguntar por ele. Pois que sim, que vivia lá com os pais, mas que ainda devia estar a dormir. Artistas! E a um artista nunca se incomoda o seu descanso. Contudo da última vez que lá estivemos, perguntámos mais uma vez por ele. Por coincidência quase em frente à casa dele. Eram 16 horas e a resposta foi a mesma – ainda deve estar a dormir, mas eu ligo-lhe a ver se atende – e atendeu e logo apareceu. Que ficara ali pela aldeia, agora com a mãe viúva e lá ia fazendo as suas coisas (esculturas). Coisas e Afonso que um dia traremos, com mais tempo, a solo, pois sou um dos fãs da sua arte.

 

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E se sou fã da arte do Afonso também o sou de Ferreira de Castro. Quis a sorte que nos meus tempos de liceu, numa fase poética, me tivesse dado para escrever umas coisas. Escrevi e um dia calhou ganhar o Prémio Ferreira de Castro, que, para além da medalha e do certificado, me ofereceu a obra completa de Ferreira de Castro. Não tardei muito e começar a lê-la.

 

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Claro que comecei pelo tão badalado romance “Terra Fria”. Além do próprio romance é impressionante como Ferreira de Castro nos faz sentir a própria aldeia onde a ação se passa, Padornelos, ao fazer-nos sentir a dura realidade da sua vida. Recordemos que o romance foi publicado em 1934 em que Ferreira de Castro observou in loco as aldeias barrosas, e em particular Padornelos, traçando-nos um retrato da vida do povo, evidenciando o sofrimento, a luta quotidiana e o modo de vida quase medieval que se fazia sentir nos inícios dos anos 30 do século passado.

 

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A aldeia de hoje já nada tem a ver com o Padornelos dos anos 30 do século passado. Alguns vestígios do que poderia ter sido, apena isso, do cenário atual já não há Leonardos  a lutar dia a dia pelo sustento da sua família. Ele a mulher, ainda sem filhos, procura em trabalhos esporádicos e principalmente no contrabando, ganhar algum dinheiro enquanto sonha para se estabelecer por conta própria com uma venda. É neste contexto que Ferreira de Castro nos descreve a atividade do contrabando, que então era o pão nosso de cada dia de contrabandistas a calcorrear o Larouco e Guardas-fiscais atrás ou à espera deles. Mas Ferreira de Castro vai mais longe. De volta a Padornelos um homem que havia estado emigrado nos Estados Unidos, o «americano» como ficam apelidados todos os que regressavam de terras americanas. Depressa começa a mostrar a sua riqueza que o leva a ser considerado um dos homens mais importantes e influentes da aldeia e é ele que dá origem ao drama que irá assolar a aldeia.

 

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“Terra Fria” é um romance que nos faz sentir uma constante solidão. Somos assaltados por imagens de uma terra desoladora, fria, onde a pobreza é a única condição conhecida e onde o rico julga ter todo o poder sobre o pobre que faz sentir em nós um sentimento de revolta. Ferreira de Castro para além de evidenciar a pobreza do Portugal profundo, neste caso o do Barroso, lança aqui uma crítica feroz ao abuso de poder do regime caracterizado no «americano» e na sua forma de agir.  Romance “Terra Fria” que passou a fita de cinema com um filme realizado por António de Campos em 1995 e protagonizado por atrizes como Alexandra Lencastre, Ana Bustorff  e Alexandra Leite, entre outra(o)s. Para quem gosta do Barroso, há dois livros que eu recomendo como de leitura obrigatória. Um é precisamente este,  “Terra Fria” de Ferreira de Castro. O outro, é do há pouco falecido Bento da Cruz, “O Lobo Guerrilheiro” . Diferentes, mas ambos muito reais quanto à vida do Barroso do século passado. Aliás as estórias que dão origem ao “Lobo Guerrilheiro” são todas elas estória reais do Barroso, e sei-o, porque antes de chegarem a livro, já eu as conhecia por serem contadas nos serões à lareira de casa dos meus pais.

 

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Mas vamos a Padornelos de hoje, sem Leonardos (que eu saiba), sem contrabandistas, sem guarda-fiscal mas com o Larouco sempre presente e com uma vida muito mais fácil que nos tempos do romance, mas ainda com o rigor dos frios ingratos de inverno, que embora os barrosões estejam habituados a ele, não deixa de ser frio, mesmo o da neve que para muitos é uma atração, para Padornelos é uma realidade que obriga os seus habitantes ao recolhimento forçado.

 

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Na página oficial na NET do Município de Montalegre, sobre Padornelos pode-se ler:

“É a referência lógica à terra fria barrosã, desde os tempos de Camilo, muito antes de Ferreira de Castro! Mas Padornelos goza de outras referências bem mais importantes (ou devia gozá-las)! Importa recordar que lhe foi concedido um foral autêntico, por D. Sancho I e confirmado, a 5 de Outubro de 1266, por D. Afonso III. Foi ‘’conselho sobre si’’, isto é, gozava dos privilégios que aos grémios municipais se concediam: “Os homens de Padornelos devem meter juiz e serviçal e mordomo e clérigo” E assim, por este documento que substituía o de Sancho I, se conferia existência jurídica ao rudimentar concelho, com magistraturas próprias. Dessas glórias antigas (foi depois uma das honras fronteiriças de Barroso) sobeja ainda o facto de ter direito a capitão residente para poder arregimentar homens, dos 18 aos 60, para a defesa nacional, sempre que Portugal fosse acossado.”

 

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Por sua vez no Arquivo Distrital de Vila Real sobre Padornelos pode-se retirar a seguinte informação:

“A freguesia de Padornelos esteve anexa à freguesia de Santa Maria de Montalegre, tornando-se depois reitoria independente.

Foi-lhe concedido foral por D. Afonso III, a 5 de Outubro de 1205.

Em 1839 surge na comarca de Chaves e, em 1852, na de Montalegre.

Freguesia do concelho de Montalegre composta pelos lugares de Padornelos e Sandim.

A paróquia de Padornelos pertence ao arciprestado de Montalegre e à diocese de Vila Real, desde 22 de Abril de 1922. O seu orago é Santa Maria.”

 

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Ora cá estão mais uma vez as contradições da História. Neste caso não é que seja importante, pois o essencial é historiado corretamente, que no caso é o foral que foi concedido a Padornelos.  Noutros casos a coisa é bem mais séria e altera a realidade dos acontecimentos. Mas para apoiar aquilo que eu digo, reparem que no sítio oficial na NET do Município de Montalegre se diz que o foral foi concedido por D. Sancho I e confirmado a 5 de Outubro por D. Afonso III, enquanto no Arquivo Distrital diz que o foral foi concedido por D. Afonso III, no mesmo dia 5 de Outubro, mas 61 anos antes, em 1205. Isto foi um pequeno aparte só para reforçar que nem tudo que está reproduzido na história está correto, e vem-me sempre à lembrança daquilo que a história diz sobre o Silveira e o Pizarro nas Segundas Invasões Francesas em Chaves.

 

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Por muita palavra que aqui se deixe sobre os locais que visitámos, a realidade, o viver estes locais ao vivo é outra coisa. As palavras têm a força que têm e as imagens, idem, aspas, mas ainda não há palavras nem imagens para fazer sentir os sons , os aromas e o tempero do ar a deslizar  nas nossas faces, principalmente estando na terra fria onde o ar é sempre diferente.

 

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E como o post já vai longo vamos ficar por aqui, para já, pois será sempre com gosto que regressaremos a Padornelos, não só pelo cozido à portuguesam, que isso é outra história, mas pelo ambiente, pela Serra do Larouco, pelo forno do povo, a igreja, a capela, a caso do sino ou do boi, pelo casario típico que ainda mantém a sua integridade e pela tais coisas que as palavras e a imagem das fotografias não conseguem transmitir e também para revisitar os amigos como o Afonso de Padornelos e a sua arte.

 

Como  de costume ficam os sítios da net consultados para recolha de informação:   

http://digitarq.advrl.dgarq.gov.pt/details?id=1066822

http://www.cm-montalegre.pt/

http://www.jfmeixedo.com/

 

Anteriores abordagens deste blog a aldeias ou temas do Barroso:

A Água - http://chaves.blogs.sapo.pt/o-barroso-aqui-tao-perto-a-agua-1371257

Gralhas - http://chaves.blogs.sapo.pt/o-barroso-aqui-tao-perto-gralhas-1374100

Meixedo - http://chaves.blogs.sapo.pt/o-barroso-aqui-tao-perto-meixedo-1377262

Solveira - http://chaves.blogs.sapo.pt/o-barroso-aqui-tao-perto-solveira-1364977

Stº André - http://chaves.blogs.sapo.pt/o-barroso-aqui-tao-perto-sto-andre-1368302

Vilar de Perdizes - http://chaves.blogs.sapo.pt/o-barroso-aqui-tao-perto-vilar-de-1360900

Vilar de Perdizes /Padre Fontes - http://chaves.blogs.sapo.pt/o-barroso-aqui-tao-perto-vilar-de-1358489

 

 

02
Out15

O Barroso aqui tão perto... Hsitórias da Vermelhinha de Bento da Cruz


montalegre (549)

 

OS DOIS COMPADRES

 

Era uma vez dois compadres: um barrosão, outro galego.

Um domingo à tarde, o espanhol veio visitar o português. Após os cumprimentos da praxe, efusivos de parte a parte, o barrosão convidou o compadre para a merenda. Eram chouriças, pão e vinho. O galego deu um estalo com a língua:

— Que ricas chouriças!

— Gosta?

— Nunca na minha vida comi algo que tanto me soubesse.

— Pois bote-lhe para baixo.

— Como é que faz para as chouriças ficarem tão saborosas?

— É um segredo que nunca revelei a ninguém, embora muita gente mo tenha pedido. Mas ao compadre, eu daria a própria vida, quanto mais o segredo das chouriças. É o seguinte: antes de matar os porcos, encho-lhe a barriga de pão-de-ló, vitela, marmelada, letria, figos, vinho do Porto, tudo coisinhas boas. Depois é só espetar-lhes a faca, tira-lhes as tripas e pô-Ias ao fumo.

— Obrigado, compadre. Vou fazer o mesmo.

O galego foi para a terra comprou um cochino e cevou-o a doces, caramelos, ternera, compotas, anis e outros manjares finos. Depois sacou-lhe as tripas e pô-Ias assim mesmo ao fumo.

Quando as chouriças lhe pareceram maduras, meteu duas ao pote para provar o fumeiro. Comeu a primeira duma assentada, arrotou e torceu o nariz:

- Pero, se não soubesse o que o porco tinha comido, havia de jurar que isto era merda, coño!

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Doutra feita, o português foi visitar o espanhol. Este fez uma grande fogueira e sentou-se no escano, de mãos estendidas para as chamas e a dizer para o hóspede:

— Chegue-se para o lume, compadre. Que uma boa fogueira é meia mantença...

— E a outra meia? — perguntou o barrosão, que já tinha a barriga a dar horas.

— Não se preocupe usted. Tenho aqui duas peruas no pote que valem duas galinhas. Com uma areia de sal e um naco de pão, quedamos que nem dois curas.

— Venham de lá essas peruas, compadre.

Então o galego, todo radiante, sacou duas cebolas do pote...

Tempos depois, o espanhol veio pagar a visita. O barrosão acendeu duas fogueiras, pôs um banco ao meio e disse ao hóspede:

— Sente-se aqui, compadre. Que duas boas fogueiras são mantença inteira...

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Doutra ocasião, o espanhol convidou o português para ir merendar com ele à Senhora da Saúde, no sopé do Larouco.

O barrosão lá estava, à hora e dia combinados. O galego chegou pouco depois, com um saquitel a tiracolo. Fazia calor. Sentaram-§e na relva, à sombra dum carvalho. Enquanto conversavam, o barrosão reparou que o galego não largava o saquitel.

— Que traz aí, compadre?

— Frango assado, metade dum queijo, duas panochas e uma botelha de vinho.

— Quer fazer uma aposta comigo?

— Diga, compadre.

— Vamos dormir a sesta. O que tiver sonhos mais bonitos, come o farnel; o outro, chucha no dedo.

— Apostado!

Estenderam-se na relva, à sombra do carvalho, e adormeceram.

O galego dormiu, roncou e esfueirou-se até mais não. Só acordou quando uma vespa lhe entrou para uma venta, julgando por aí que era um favo.

— Então que sonhou usted, compadre? — disse o português.

— Ai compadre, que sonho mais lindo! Sonhei que era um anjinho e que tinha voado para o céu... Vi Jesus Cristo, a Virgem Maria, o apóstolo Santiago, meu padrinho, e todas as

Belezas e delícias que a Santa Madre Igreja nos promete na outra vida... Que sonho mais lindo! E o compadre? Que sonhou usted?

— Eu, para dizer a verdade, nem cheguei a fechar os olhos. E quando vi o compadre no paraíso, convenci-me de que nunca mais cá voltava e comi a merenda...

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Numa e noutra, entraram na guerrilha patriótica: ambos queriam ser mais um do que o outro.

Um dia o espanhol mandou recado ao português para o ir ver, que tinha uma novidade para lhe mostrar.

O barrosão foi. Encontrou o galego feliz da vida.

— Então essa novidade?

— Depois. Primeiro o almocinho.

A mesa já estava posta. Pulpo à la féria com batatas cozidas. Estava o português no postre, sente a barriga aos pulos. O galego parece que já estava a contar com aquilo.

— Se passa algo, compadre?

— Tenho de ir à horta...

— Qual horta? Em minha casa não se vai à horta, compadre! Em minha casa...

E o galego saboreava o triunfo. Era a novidade: um quarto de banho moderno, todo automático... O português nem se atrevia a baixar as calças, para não borrar a baixela. Mas o sacana do galego devia ter-lhe ministrado qualquer substância purgativa na sobremesa... Teve de correr para a sanita, se não queria desfeitear as ceroulas...

Enquanto cagava, o portuguezito soltou mais ahs! do que traques. Mais admirado ficou quando, findo o parto, aliás fluente, avança de lá um braço automático, munido de algodão em rama, e lhe limpa o cu...

O galego esperava-o à porta, ar de triunfo.

— Então?

— Coisa rica, sim, senhor!

— Disto é que não há em Portugal...

— Alto aí. O meu quarto de banho não é tão rico... está mesmo a cair de podre... mas sempre foi automático!

— Que vá?

— Não acredita? Venha comigo.

Vieram para o Barroso. A meio caminho, diz o galego:

— Parece que me estão a chegar as de parir...

— Já agora, aguente um bocado, que estamos perto.

Estugaram o passo, não fosse por lá o galego borrar as bragas.

À entrada do povo, diz o português:

— Eu vou indo à frente, compadre, para ver se o quarto de banho está livre.

Ora o quarto de banho do barrosão era um buraco redondo, à medida do cu, donde, da varanda, se cagava directamente para o pátio.

O português enfiou uma estriga de linho na ponta duma cana e disse a um criadito que lá tinha:

— Pões-te aqui debaixo da varanda e, quando o meu compadre acabar, percebeste? limpas-lhe o cu.

Nisto chega o galego, muito atrapalhado:

— O quarto de banho, que estou aflito?

— Ali, compadre! - respondeu o português, indicando-lhe o buraco, ao fundo da varanda. — Cague à sua vontade e que lhe preste.

De aflito que estava, o galego pôs-se logo de cócoras, sem tempo para qualquer comentário.

Quando, já aliviado, se preparava para gozar o português, o rapaz passou-lhe duas vezes a estriga no cu. Intrigado, o galego meteu o nariz no buraco, para ver o que era que lhe estava a fazer cócegas no rego. Não se apercebendo do câmbio, o rapaz passou-lhe a estriga nas ventas...

— Pero, este, ademáis de automático, é de repeticion, coño! — repetia o galego limpando as fúcias ao canhão da véstia.

 

Bento da Cruz, in «Histórias da Vermelhinha»

26
Ago15

O Barroso aqui tão perto... de luto


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Ainda ontem tivemos aqui o Barroso com algumas “Histórias da Vermelhinha” de Bento da Cruz. Hoje é de novo o Barroso e Bento da Cruz que nos traz aqui , mas um Barroso mais pobre e de luto pela morte, hoje, do escritor e ilustre barrosão Dr. Bento da Cruz. O Barroso está de luto e todos estamos mais pobres com a partida de um grande escritor que sobretudo escrevia sobre nós, sobre a nossa gente de Trás-os-Montes, sobretudo a do Barroso. Parte o Homem Bento da Cruz, parte o seu corpo mas ficará para todo o sempre a sua presença e sabedoria na inúmera obra que publicou e com a qual nos continuaremos a deleitar.

 

E sobre o Bento da Cruz, em jeito de repositório, deixo aqui aquilo que foi publicado no blog no dia 24 de março de 2010, aquando do lançamento do seu livro «A Fárria» em Chaves.

 

+++++++++++++++++

 

 

PROLEGÓMENO 30 de Agosto de 2009.

 

Caia a tarde e eu regressava das Caldas de Chaves onde tenho estado em tratamento de águas quando, ao desembocar na Rua Direita, ouvi um violino. Ou seria um violoncelo? Por esta hesitação se podem avaliar os meus conhecimentos musicais. Para além do realejo e do bombo, não sou homem de distinguir um violino Stradivarius de uma viola chuleira. Mas lá por não perceber nada de música, não quer dizer que a não saiba apreciar. E aquela que enchia a Rua Direita era aquilo que os poetas julgam que é o canto da sereia.

 

Quedei logo de nariz no ar e ver de onde é que aquilo vinha. Alguma escola de música? Não. Aquilo não era de principiante. Alguma jovem apaixonada e triste? Mas onde é que hoje se encontra uma jovem triste? Andam todas alegres e despreocupadas como andorinhas. Alguma velha saudosa de amores antigos? Como se as velhas não tivessem mais em que pensar.

 

Nisto especulava eu quando descobri, à esquina da “Sociedade Flaviense”, um pequeno grupo de mirones. Aproximei-me. Um indivíduo ainda novo montara ali o seu guinhol de feira: uma figura feminina, delicada, gentil, vestida de princezinha da Baviera, a fingir que tocava violino. Um trecho de Mozart, assim me pareceu, executado na perfeição. Pérolas a porcos. A maioria dos transeuntes passava indiferente. Que o digam três moedas de cobre a reluzir aos pés da grácil e aristocrática violinista.

 

Eu também me não detive nem descosi, com vergonha o confesso. Mas indiferente não fiquei. Aquela suave melodia acompanhou-me até ao cimo da rua. Mesmo depois de ter deixado de a ouvir, ela persistiu no meu ouvido durante muito tempo e fez-me saudades. Da flauta do Virgílio, para não ir mais longe.

 

Que ninguém fique a pensar que me estou a referir ao poeta latino do mesmo nome, o melhor tocador de avena de todos os tempos. Não. O Virgílio de que falo era um adolescente dos seus catorze ou quinze anos, servia em casa do meu vizinho Pitrasca e tinha uma flauta de cana.

 

Não estou em condições de dizer se o Virgílio era bom ou mau executante. O que sei é que, quando ele ia com o rebanho e se punha a tocar flauta na solidão dos montes, eu quedava pensativo. É caso para dizer que a minha inclinação para a poesia bucólica vem de longe. Dos meus seis ou sete anos, idade em que, influenciado pelo Virgílio, pedi uma flauta à minha mãe.

 

Ela foi à feira, vendeu uma dúzia de ovos e comprou-me um pífaro de barro. Comecei logo a ensaiar. E ao cabo de um mês já tocava o tiroliro razoavelmente.

 

Principiava eu a ensaiar o malhão, quando a desgraça aconteceu. Fui com as vacas lá para um prado ribeirinho, sentei-me numa pedra, à sombra de um salgueiro, e agarrei-me à flauta. Tão fora de mim e do mundo, que não dei conta de que as vacas me tinham ido para o lameiro do Pitrasca. Este surdiu detrás de uma parede, correu a mim como um lobo, e perpetrou dois crimes qual deles o mais execrável. Primeiro, desfez-me a flauta no cangote. Depois suspendeu-me pelas orelhas. Deu-me cabo do ouvido para o resto da vida, o bruto…

 

Esta a razão pela qual cheguei a velho sem perceber nada de música. Mas isso não tira que eu a saiba apreciar. Como aconteceu hoje, no regresso das Caldas, ao cair da tarde.

 

VIVA BARROSO!

 

Bento da Cruz

 

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Estas foram algumas das palavras que o Dr. Bento da Cruz partilhou com quem assistiu ao lançamento em Chaves do seu último livro « A Fárria ». Livro que aliás tive o gosto de anunciar aqui o seu lançamento, e tive esse gosto, pelas mais variadas razões, como ser apreciador da obra de Bento da Cruz, mas também porque este blog já bebeu muito daquilo que o autor escreveu em alguns dos seus livros, principalmente na feitura dos posts do Cambedo Maquis que viria a dar origem a outro blog, mas também, porque Bento da Cruz, barrosão, é um dos nossos, que tão bem tem sabido contar e enaltecer o Barroso e a região, fazendo a nossa história de uma forma universal, ou seja, em estória e romances.

 

 

Pois embora este blog já muitas vezes tenha bebido nas obras de Bento da Cruz e dezenas de vezes ele tivesse sido referido ou mencionado, nunca falei de Bento da Cruz, do homem e a sua obra. É tempo de o fazer, pois este blog há muito que está em dívida com ele e com o escritor que já fez 50 de vida literária.

 

 

Bento Gonçalves da Cruz

 

Filho e neto de lavradores, nasceu em 22 de Fevereiro de 1925 na aldeia de Peireses, concelho de Montalegre.

Até 1940 trabalhou na lavoura. Nesse ano ingressou na Escola Claustral de Singeverga, dirigida por monges beneditinos.

Em 1946, após noviciado, abandonou, de moto próprio, a vida religiosa.

Em 1948 matriculou-se na faculdade de Medicina de Coimbra.

De 1956 a 1970 trabalhou em Barroso, acumulando a clínica geral com a estomatologia.

Em 1971 fixou-se no Porto.

Foi deputado à Assembleia da República, distinguido com a medalha de honra (oiro) da Câmara Municipal de Montalegre e é patrono da Escola Secundária da mesma vila.

Logo após o 25 de Abril, fundou o quinzenário regionalista Correio do Planalto que ainda hoje dirige.

 

 

Bento da Cruz Jornalista, Médico, Deputado, “Monge”, Lavrador, todo um percurso de vida, no entanto, será como contador de estórias e escritor que registará, ou melhor, já tem registado o seu nome na história e para a posteridade.

 

Publicou o seu primeiro livro em 1959. Chamava-se Hemoptise e era de versos. É, como ele diz, um livro do qual não fala nem menciona na sua bibliografia, mas também não enjeita, como um pai nunca enjeita um filho.

 

Da sua bibliografia constam:

 

PLANATO EM CHAMAS – romance, 1963

 

AO LONGO DA FRONTEIRA – romance, 1964

 

FILHAS DE LOTH – romance, 1967 (4 edições, a última em 1993 – Circulo de Leitores)

 

CONTOS DE GOSTOFRIO – 1973 – Prémio “Fialho de Almeida” (2ª edição – 1993)

 

HISTÓRIAS DA VERMELHINHA – Contos de tradição oral de Barroso – 1991 (2ª Edição – 2000)

 

PLANATO DE GOSTOFRIO – romance – 1982 – (2ª edição – 1992)

 

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O LOBO GUERRILHEIRO – romance – Prémio Literário “Diário de Notícias”, Prémio de literatura (Ficção) da Sociedade Portuguesa de Escritores Médicos. Traduzido para galego: Edicións Xerais de Galícia, 1996. (2ª Edição – 2001).

 

VICTOR BRANCO – Escritor Barrosão – Vida e Obra, Prémio Literário de Investigação da Câmara Municipal de Montalegre, 1995.

 

O RETÁBULO DAS VIRGENS LOUCAS – romance – Prémio Literário (Ficção) da Câmara Municipal de Montalegre – 1996.

 

HISTÓRIAS DE LANA-CAPRINA – contos – 1998 (2ª edição – 1999)

 

A LOBA – romance. “Prémio Eixo Atlântico de Narrativa Galega e Portuguesa” de 1999 e “Prémio Arzobispo Juan de San Clemente” na modalidade “ A melhor novela em galego do ano 2000” 1ª Edição – 2000. 2ª Edição – 2000. 3ª Edição – 2001.

 

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GUERRILHEIROS ANTIFRANQUISTAS EM TRÁS-OS-MONTES – história – 1ª Edição – 2003. 2ª Edição – 2005.

 

EIXO ATLÂNTICO – Um mundo a descobrir. Co-autoria - 2004.

 

A LENDA DE HIRÃN E BELKISS – Novela, 2005.

 

PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso, 2007. 2ª Edição – 2008.

 

PROLEGÓMENOS II – 2009.

 

A FÁRRIA – romance – 2009.

 

Para já é esta a sua obra publicada.

 

Pela minha parte, confesso-me um devoto leitor de Bento da Cruz desde que o descobri com o “Lobo Guerrilheiro”.

 

Fica a minha pequena homenagem a este Homem grande do Barroso que tão bem escreve e descreve nos seus escritos e romances. Escritos que muitas vezes também passam por Chaves e que faz grande parte da história dos acontecimentos de Dezembro de 1946 no Cambedo da Raia, com o relato dos acontecimentos no seu livro «Guerrilheiros Antifranquistas em Trás-os-Montes».

 

Para saber mais sobre Bento da Cruz:

 

http://www.bentodacruz.com/

 

 

 

25
Ago15

O Barroso aqui tão perto... Histórias da Vermelhinha


montalegre (549)

 

Pelo Tribunal

 

O Regedor de Donões

 

Um dia o Regedor de Donões andava com as vacas num prado ribeirinho ao Cávado. Era Janeiro e os montes cobertos de neve. Nisto, vê chegar um figuro junto do rio e começa a despir-se.

 

O Regedor, que andava a limpar uns regos, recostou-se ao cabo da sachola.

 

— Ó alma perdida! Tu que vais fazer?

 

O desconhecido fez que não ouviu.

 

— Não me digas que te queres deitar à água com um frio destes…

 

O promitente banhista acabou de se despir e foi colocar a roupa em cima de uma pedra.

 

— Não, catano! — disse o Regedor, virando o rabo à sachola.

 

Ia já o figurão a correr para formar o mergulho, cai-lhe o Regedor em cima de sachola em riste.

 

— Ó filho da puta! Que apanhas alguma pneumonia que te leva o diabo…

 

Só então o banhista se apercebeu do perigo e fugiu, direito à roupa. Mas não tão lesto que não apanhasse duas derrabadas testes pelas nádegas.

 

— Eu é que te dou o banho, maluco dos infernos… — gritava o Regedor , correndo e brandindo a sachola atrás do tipo.

 

763-montalegre (763)

Quando o viu longe do rio, regressou para junto das vacas, monologando, com voz incrédula:

 

— Um homem vê cada um neste mundo…

 

Dias depois, tinha o citote à porta:

 

— Assine aqui.

 

— Que é isto?

 

— Uma contra-fé.

 

— Para quê?

 

— Comparecer no tribunal no dia e hora aí indicados.

 

— Mas para quê?

 

— Você lá sabe.

 

— Se soubesse não perguntava.

 

— Não fez nada ao juiz?

 

— Quem?...

 

O Regedor tirou-se dos seus cuidados e foi ter com o advogado. Afinal, já toda a vila sabia da história: o banhista era o novo juiz da comarca, um morenaço com a mania do desporto ao ar livre. O advogado muito se ria.

 

— Ora conta lá, João: ele estava mesmo em pelote?

 

O Regedor coçava a cabeça.

 

— E agora, doutor?

 

— Não te aflijas. Eu trato do caso.

 

Chega o dia do julgamento, estava o meritíssimo no seu trono, o delegado na sua poltrona, o Regedor de Donões no banco dos réus, a sala cheia de gente.

 

Pergunta o juiz:

 

— Sabe do que vem acusado?

 

— Eu não.

 

— Lembra-se de, no dia 13 de Janeiro, pelas 11 horas, quando eu me preparava para tomar banho na represa do Moinho Velho, o senhor me ter insultado e agredido?

 

— Ó raio! Ai ele eras tu? Olha que te não reconheci, catano…

 

O juiz olhou para o escrivão. O escrivão, que também estava por dentro da marosca, fez o gesto de furar a testa com o indicador, como quem diz: « É maluquinho…»

 

— Mande lá o homem embora — remata o juiz, após breve hesitação.

 

1600-montalegre (233)

 

A Rosária

 

Esta do Regedor de Donões fez-me lembrar uma da Rosária.

 

A Rosária foi a última recoveira a muar a carroça entre Montalegre e Chaves. Mulher de estrada que era, tinha uma língua de fazer corar um almocreve.

 

Um dia, estando a Rosária a despejar água na valeta da Rua Direita, apareceu a guarda republicana.

 

— A senhora não sabe que é proibido fazer despejos na via pública?

 

— Oh, almas do diabo! Não vistes vós a puta da Cândida ainda agora a fazer o mesmo… Só tendes olhos para a desgraçada da Rosária…

 

— Tento na língua, senão…

 

— Se não, o quê?, «carvalho»?

 

— Apanha duas multas. Uma, por infracção às posturas da Câmara; outra, por ofensas à autoridade e à moral pública.

 

— Oh! «Carvalho»!...

 

A Rosário nunca mais se calou e os guardas carregaram-lhe nos calos.

 

Foi a multa para tribunal.

 

No dia do julgamento, o juiz pega no atestado de pobreza que a Rosário juntara ao processo, olha para a ré sentada muito compostinha no mocho e pergunta-lhe:

 

— Então a senhora é assim tão pobre como diz?

 

— Oh senhor doutor, tenho o dia e a noite…

 

— Mas traz uma saia nova?...

 

— Oh! «Carvalho»! Ainda agora a fui pedir emprestada à puta da Maria Pinheira, para não vir para aqui com o cu ao léu, e já me está a olhar para o «carvalho» da saia… Mas que porra de…

 

Ainda a Rosária não acabara, já o meritíssimo ordenava ao meirinho:

 

— Ponha a mulherzinha lá fora! Ponha a mulherzinha lá fora…

 

1600-n103 (1)

 

A Quininha do Relvas

 

À cadeia devia ir parar a Joaquina do Rilvas, não pelo que fez entre o feno, mas pelo jeito com que falou ao pai. Se não, vejamos:

 

Contava a Joaquina uns 15 anos incompletos, começou a circular entre as más línguas que o Zé da Poça a tinha enganado. Sabedor do que rosnava a respeito da filha, o pai da moça levou-a à examina. Se a rapariga estivesse virgem, calava as bocas do mundo; se desonrada, obrigaria o sedutor a casar ou dotá-la.

 

Os médico deram a Joaquina como desflorada e com sinais de comércio sexual antigo e frequente.

 

O Zé da Poça negou que tivesse sido o primeiro.

 

Foram para tribunal.

 

No dia do julgamento, iam pai e filha a caminho de Montalegre, diz o velho:

 

— Ó rapariga? Agora vê lá como falas com o doutor juiz, ouviste?

 

— Esteja praí calado! Eu sei bem como é que se deve falar a um doutor juiz, ou o que é que vomecê julga?

 

Chegaram à sala de audiências, o aparato do costume, as bancadas cheias de curiosos, diz o juiz:

 

— Levante-se a queixosa.

 

A Joaquina levantou-se, toda lampeira e coradinha.

 

— Então a menina jura que este senhor a desflorou?

 

— Pela minha salvação.

 

— Ora conte lá como é que as coisas se passaram.

 

— Olhe, senhor doutor juiz: eu e aqui o Zé da Poça andávamos com as vacas nos lameiros da Corga. Eu no meu e ele no dele, que são pegados. Então ele veio para junto de mim e meteu conversa. Ele disse que eu estava uma rapariga pimpona. Eu respondi que ele estava um rapaz pimpão. Ele puxou-me pelos úberes. Eu puxei-lhe pelos tomates. Ele filou-se em mim. Eu catrafilei-me nele. Começámos a estarroiçar no feno, aos rebolões. Eu mordi-o. Ele beijou-me. Eu atriguei-me. Ele encanzinou-se. Eu aluei-me. Ele aleivou-se…

 

— E depois menina?

 

— Só me largou depois de me ter cuspido no nascedoiro…

 

Bento da Cruz, In Histórias da Vermelhinha

 

 

30
Jun15

O Barroso aqui tão perto...


montalegre (549)

 

PALAVRAS LOUCAS, OUVIDOS MOUCOS…

 

O bispo ficou elucidado. Transferiu o P.e Cosme para Parvalheira da Serra, com ordens expressas de ser mais prudente, quando não, ficaria sem missa.

 

Remédio santo. Com medo de perder o ganha-pão, P.e Cosme não quis mais criadas novas de portas adentro. Lá se ia remediando de portas afora. E bem, segundo reza a crónica. A prova-lo, está o seguinte passo:

 

Uma vez estava a confessar um sacristão. Pergunta o confessor:

 

— Quem anda a roubar a lâmpada do Santíssimo e a caixa de esmolas?

 

— O quê, senhor abade?

 

— Quem anda a roubar o azeite da lâmpada e o dinheiro das almas?

 

— Não se ouve nada, senhor abade…

 

— Não se ouve ou não te convém?

 

— Não se ouve nada deste lado, P.e Cosme. Não Acredita? Passe Vossa Reverência para aqui.

 

Trocaram de poiso. Pergunta o sacristão:

 

— Quem anda a pôr-se na minha mulher?

 

— Que dizes?

 

— Quem anda a pôr-me os cornos?

 

— Tens razão, rapaz! Não se ouve mesmo nada…

 

Bento da Cruz, in “Histórias da Vermelhinha”

 

1600-sendim (25)

 

1600-sendim (27)

 

 

 

 

21
Abr15

O Barroso aqui tão perto... Histórias da Vermelhinha


montalegre (549)

 

Freguês Antigo

 

Mas nem sempre o P.e Cosme bebia de graça.

 

Uma vez um de Parvalheira da Serra ia por um caminho adiante e encontrou vinte escudos.

 

— Já tenho para tabaco…—exclamou ele, todo contente.

 

E gastou o dinheiro em cigarros.

 

Mas depois teve um rebate de consciência e foi-se confessar.

 

P.e Cosme, que estava de bons azeites, disse-lhe:

 

— Pegas em vinte escudos, entrega-los à primeira pessoa que encontrares e estás redimido.

 

O homem saiu da igreja com vinte escudos na mão e a primeira pessoa que avistou foi uma rapariga que andava às leitugas num lameiro, à berma do caminho. Dirigiu-se a ela e disse:

 

— Toma vinte escudos.

 

— Não são vinte, são cinquenta — emendou ela.

 

— Mas o P.e Cosme disse-me que eram vinte… — contestou ele, meio intrigado.

 

— Ah, sim? Mas o padre é freguês antigo…

 

Bento da Cruz  in "Histórias da Vermelhinha"

 

1600-barroso XXI (198)

 

 

20
Fev15

O Barroso aqui tão perto... Histórias da Vermelhinha


montalegre (549)

 

Bela Parelha

 

P.e Cosme hoje anda de automóvel. Mas lá nos princípios dele andava de mula.

Mudou várias vezes de marca, até encontrar uma marca maior: besta de bons cascos e melhor dente, andarilha e possante como não havia outra. Só tinha um defeito: ainda era mais teimosa que o dono. Era ele a puxar para um lado e ela para o outro. Até que um dia o padre lhe deitou as unhas, a suspendeu do chão e lhe disse:

— Eh! Mula! Tu podes ser mais inteligente do que eu. Mais valente é que tu não és! Portanto, faz o que te mando.

Daí em diante, o abade e a mula deram-se como Deus com os anjos.

 

1600-bessa (66)

 

Ora acontece que um rapaz se veio confessar e o padre lhe perguntou:

— Já namoras?

— Não senhor.

— Mas já olhas para as raparigas?

— Lá isso…

— Com maus pensamentos?

— Às vezes… Mas não queria falar nisso agora.

— Porquê?

— Tenho medo que Vossa Reverência me ralhe.

— Meu filho: tens de te abrir comigo, para eu te ajudar a vencer as ciladas do inferno. Sou o teu director espiritual. Como é que te posso dirigir, se não souber o que se passa no teu íntimo? Abre-te, meu filho!

— Outro dia olhei para as pernas da sua criada…

— Ah! grande malandro! Então isso faz-se? Não sabes que tudo que pertence ao padre é sagrado? Para tamanho sacrilégio, só uma grande penitência. Vou pôr-te três dias e três noites a jejum absoluto. Escolhe: ou arrependimento, ou fogo eterno…

Naquela tarde, desapareceu a mula do P.e Cosme. O abade saiu a perguntar pela mula a toda a gente. Mas ninguém a vira.

Ao cabo de três dias, encontrou o rapaz do confesso:

— Viste por aí a minha mula?

— Está presa no moinho velho.

— E quem a levou para lá?

— Eu.

— Porquê?

— Encontrei-a a olhar para a erva da minha lameira.

— E depois? Por te olhar para a erva comia-ta?

— E eu? Por lhe olhar para as penas da criada, comia-lha, senhor abade?

 

Bento da Cruz, in Histórias da Vermelhinha

 

 

06
Nov14

O Barroso aqui tão perto... Histórias da Vermelhinha


montalegre (549)

 

AI, MINHA FALECIDA!

QUE MO TRAZIA QUENTINHO À CAMA…

 

Um viúvo de Paspalhó mandou falar em casamento a uma rapariga de Parvalheira da Serra. A mãe da cachopa ainda lhe disse:

 

«Rapariga não cases,/Com homem que enviuvou./Pois sempre está dizendo:/ — Mulher que Deus me levou…»

 

Mas como o pretendente era rico, a moça mandou a mãe à fava e casou-se.

 

Ao princípio, tudo foram tagatés e falinhas doces. Mas acabada a lua-de-mel, aliás curta, o velho ia para a cama e suspirava:

 

— Ai, minha falecida! Que mo trazia quentinho à cama…

 

A rapariga tantas vezes ouviu aquilo que um dia fez uma grande fogueira, levantou as saias e escachapernou-se sobre o lume até sentir a peida em brasa. Depois correu para a cama do velho.

 

— Ó homem? Prepare-se lá, que hoje trago-lho quentinho…

 

O velho, que o que suspirava era pela chícara de café que a falecida todas as noites lhe trazia à cama, deitou a mão de fora das mantas.

 

— Está bem. Obrigado. Vira-me para cá a asa.

 

— Oh, rais o partiram! Então a crica tem asas?

 

Bento da Cruz, in Histórias da Vermelhinha

 

 

17
Out14

O Barroso aqui tão perto... Histórias da Vermelhinha


 

GAITA-DE-FOLES COM OLHOS E BOLSA ROTA…

 

Um dia o Prica foi à feira da Venda Nova. Andava ele a ver o toural do gado, esbarra com o Lobete da Coimbró e o Raposo do Salto a marralharem o preço duma vaca.

 

Chamam-no para fechar o negócio.

 

Ora o Prica ficou, por assim dizer, entre o diabo e a mãe. O Lobete era primo; o Raposo, vizinho de porta.

Pergunta o Raposo, que, no caso, era quem vendia:

 

- Ó Prica, diz lá: a vaca é boa ou não é?

 

- É boa é! – responde o Prica em voz alta. E depois, cosendo-se com o primo em surdina: - Mas abortou há quinze dias…

 

Mas o Lobete ouvia mal…

 

- Que dizes?

 

- Que a vaca é boa! – Repete o Prica, arredondando a voz. E, entre dentes: - Mas abortou há quinze dias…

 

- O quê? – Volta o Lobete, pondo a mão em concha atrás da orelha.

 

- Que a vaca é boa! – Grita o Prica. E, voltando costas: - Vai-ta-foder…

 

Mas meia hora depois, o Raposo estava direito com ele.

 

- Vamos beber um copo.

 

- Obrigado, mas por agora não me apetece – responde o Prica, ainda com a má consciência de ter enfiado o barrete ao primo.

 

- Não me faças uma desfeita dessas! – Insiste o Raposo. – Com um sol destes, quem não há-de ter sede? Cá por mim, estou com um secão que nem me tenho nas pernas. Vamos ali ao Machado, que tem lá um verdinho detrás da orelha.

 

Realmente estava calor e o Prica sentia a garganta seca.

 

Aceitou o convite.

Estavam eles no balcão, aparece o Lobete. Atrás do Lobete, vieram outros. Agora pago eu, depois pagas tu, pelo varrer da feira o Prica estava com uma zurca de todo o tamanho. Comprou um quarteirão de sardinhas para levar à patroa, meteu-as entre a camisa e a coirata e juntou-se aos vizinhos que regressavam a casa. Lá veio vindo, monte arriba, de canto em esquina. À entrada do povo, apeteceu-lhe mijar. Desabotoou a carcela, puxou da cabeça duma sardinha para fora e pôs-se a mijar pelas pernas abaixo.

 

Sentido o mijo nas coxas, começou a gritar:

 

- Ó rapazes? Quereis lá ver que se me rompeu a veia da urina? Ai a minha desgraça…

 

E, olhando para a sardinha na mão direita, à luz do luar, benzeu-se com a esquerda:

 

- Tó, diabo! Há sessenta anos que te tenho, e só agora reparo que tens olhos…

 

Bento da Cruz, In Histórias da Vermelhinha

 

17
Abr14

O Barroso aqui tão perto... Histórias da Vermelhinha


 

HISTÓRIAS DE PADRES

 

História de Gatos

 

Menos prudente foi o outro a quem o P.e Cosme inquiriu:

 

- Facadas na castidade?

 

- Facadas em quem?

 

- Se já tiraste o virgo a alguma rapariga?

 

- À minha namorada.

 

- Quando?

 

- Pelo tempo das castanhas.

 

- E continuas a dar nele?

 

- Todas as noites.

 

- Aonde?

 

- Na cama.

 

- Na tua?

 

- Na dela.

 

- Quem é?

 

- A Zulmira Toutinegra.

 

P.e Cosme deu um pulo no assento. A Zulmira era o melhor virgo da freguesia. P.e Cosme fizera dela catequista das crianças e zeladora do altar-mor, na mira de a apanhar a sós na igreja e iniciá-la, a bem ou a mal, no culto de Vénus. Fizera já uma tentativa séria, mas fora repelido a unha e dente. Dente na beiçola, quando tentava beijá-la; unha no pau, quando, levantando de repelão a batina, lhe mostrava o aríete de cabeça ameaçadora apontada ao alvo… Atribuíra tamanha ferocidade à inexperiência da cachopa… E vinha agora este labroste dizer-lhe que a montava todas as noites… P.e Cosme sentiu ganas de lhe apertar o gasganete. Mas dissimulou  a raiva numa voz melíflua:

 

- E como é que tu fazes para ir ter com ela, meu filho?

 

- Vou pela eira, finjo que sou um gato: Miau! Miau!, e ela abre-me a porta.

 

- Ai, que grande pecado meu filho! Duplo e imperdoável pecado! Violação de domicílio alheio e da pureza de menina tão prendada! Só vejo um castigo digno de tal pecado: o inferno! Nem te posso absolver…

 

 

O rapaz ficou apavorado.

 

- A não ser – volveu o confessor – que me prometas uma coisa.

 

- O que Vossa reverência quiser.

 

- Me prometas solenemente que nunca mais lá voltas.

 

O rapaz hesitava.

 

- Lembra-te do fogo do inferno! – insistia o padre. – Prometes ou não?

 

- Prometo.

 

- Eu te absolvo. Vai em paz e não voltes a pecar.

 

O rapaz deixou a igreja e pau murcho.

 

Nos primeiros oito dias fugia da namorada como o diabo da cruz. Ao fim de quinze, espicaçado pela carne e pelas saudades, atirou o cinto às malvas: « Se tiver de ir para o inferno, paciência…»

 

Horas mortas, foi pela soleira da jovem amante fingir de gato: Miau! Miau! Miau!

 

Começaram de dentro: Buf! Buuf! Fff!

 

- Ah! Filho da puta! Que se eu te não tivesse ensinado a miar, já agora tu não me bufavas…

 

Bento da Cruz, In Histórias da Vermelhinha

 

 

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