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Torga serviu-se de quase todos os meios que a literatura tem de se pronunciar para falar de Portugal e dos portugueses, e mesmo quando o fazia de forma mais intimista como o poderiam ser os diários, Torga falava dos sonhos, das ilusões, dos tormentos e da realidade de Portugal e dos portugueses, embora também tivesse feito umas incursões pelos povos ibéricos. A poesia, a prosa, o teatro, o conto, o diário, o ensaio e até nos discursos ou nas poucas entrevistas que deu foram formas que Torga encontrou para participar de forma ativa socialmente e politicamente tomando como único partido o povo português, participação essa que o chegou a levar à prisão e ao homem marcado, com todos os seus passos seguidos pela polícia política da ditadura, mas nem por isso deixo de dizer e escrever aquilo que lhe ia na alma.
Dizia eu no início desta rubrica que era obrigatório ler a «Criação do Mundo», os «Contos da Montanha» e os «Novos Contos da Montanha». Hoje acrescento que toda a obra de Torga é obrigatória, mas enquanto a maioria da sua obra é para ler e ir relendo de tempos a tempos, os Diários são para ter sempre na mesinha de cabeceira para leitura e consulta também diária, pois é nos diários que Torga aborda todas as realidades dos tempos que atravessou. Curioso é a maioria desses registos se manterem atuais, como se o tempo e novos ventos tivessem passado por eles.
São 16 volumes, numerados de I a XVI. O primeiro registo é de 3 de janeiro de 1932. Abre com um poema intitulado “Santo-e-Senha” e é curioso o que escreve, pois fica como um aviso, ou talvez um pedido, mas no fundo uma antevisão daquilo que irão ser os diários e a sua obra ao longo da grande aventura dos seus mais de sessenta anos de escrita que irá rematar em Diário XVI num “Requiem por mim”, em jeito de despedida também em poema, em 10 de Dezembro de 1993, um ano antes da sua morte (17 de janeiro de 1995).
Coimbra, 2 de Janeiro de 1932
SANTO-E-SENHA
Deixem passar quem vai na sua estrada.
Deixem passar
Quem vai cheio de noite e de luar.
Deixem passar e não lhe digam nada.
Deixem, que vai apenas
Beber água se Sonho a qualquer fonte;
Ou colher açucenas
A um jardim que ele lá sabe, ali defronte.
Vem da terra de todos, onde mora
E onde volta depois de amanhecer.
Deixem-no pois passar, agora
Que vai cheio de noite e solidão.
Que vai ser
Uma estrela no chão
Miguel Torga, in Diário I
Do primeiro registo para o último registo dos seus diários:
Coimbra, 10 de Dezembro de 1993
REQUIEM POR MIM
Aproxima-se o fim.
E tenho pena de acabar assim,
Em vez de natureza consumada.
Ruína humana.
Inválido do corpo
E tolhido da alma.
Morto em todos os órgãos e sentidos.
Longo foi o caminho e desmedidos
Os sonhos que nele tive.
Mas ninguém vive
Contra as leis do destino,
E o destino não quis
Que eu me cumprisse como porfiei,
E caísse de pé, num desafio.
Rio feliz de ir de encontro ao mar
Desaguar.
E, em largo oceano, eternizar
O seu esplendor torrencial de rio.
Miguel Torga, In Diário XVI
E se inicia e termina em Coimbra os seus diários, ao longo dos XVI volumes há como uma procissão de terras a desfilar cada uma com seu andor, com o esplendor por cima e por baixo a dor de quem os carrega. Terras por onde passa ocasionalmente ou que visita propositadamente por uma qualquer razão, para in loco, melhor entender a realidade.
Muitos dos seus registos são escritos em Trás-os-Montes e muitos deles em Chaves e nas redondezas, pelo menos a partir de Maio de 1955, no Diário VII, onde se inicia em terras flavienses com o Cambedo da Raia, logo seguido de um registo de Negrões (Barroso), e não é inocentemente que faz que estes registos estarem juntos e tivesse visitado o Cambedo no dia 27 de Maio de 1955 e Negrões no dia seguinte:
Cambedo (Chaves), 27 de Maio de 1955
Estranha, esta vida fronteiriça, fim de respiração de uma pária e princípio da respiração de outra! Tudo parece ao mesmo tempo esfumar-se e renascer; o solo, as casas e os moradores. Estes últimos, sobretudo. Ambíguos na fala, na raça e nos costumes, presentes e fugidios, lembram-me pássaros que tivessem licença de voar com uma asa apenas, e utilizassem clandestinamente as duas. Carenciados de espaço concreto, mesmo parados é como se caminhassem no espaço abstrato possível. O habitante do centro do país é dono de todos os horizontes que o envolvem. Mas ao rainano falta-lhe um lado do ambiente. O gume arbitrário do destino roubou-lhe um seguimento à fome redonda de movimentação. E só no contrabando teimoso da própria alma, na furtiva negação dos limites, consegue ter o mundo dos outros – o mundo aberto que lhe sugere a imagem sem estremas do firmamento. Proibido de olhar o ilícito, não lhe apetece o lícito. E todo ele é uma ânsia, um desespero e uma esperança – chama que se apaga à luz do sol e se reacende na escuridão.
Miguel Torga, In Diário VII
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Cambedo da Raia
Negrões, Barroso, 28 de Maio de 1955
Por mais que tente, não consigo reduzir estas vidas de planalto a uma escala de valores comuns. Foge-me das duas mãos não sei que força incomensurável que, exactamente por ser assim, se alcandora nos olimpos possíveis do mundo. Nada existe aqui de notável a testemunhar uma actividade humana superior ou singular. Seres esquemáticos , num ambiente esquematizado. E, contudo, cada indivíduo parece trazer à sua volta um halo de intangibilidade divina.
Talvez seja a própria pobreza do meio que, despindo-os de todo o acessório, lhe evidencie a essência. E a nossa perturbação diante deles seria a perplexidade de pobres Adões cobertos de folhas diante de irmãos que permanecem nus.
Miguel Torga, In Diário VII