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O Canto do Rio
Por vezes apetece-me escrever com o coração.
Quando as cordas da lira tangem vibrantes, o coração dita.
Então voo na memória, a velocidade alucinante e só paro na saudade.
Hoje apeei-me no Canto do Rio.
Correm os anos 50.
Lá está o João Grilhos, o líder da miudagem, à sombra da velha ponte junto ao arco de pedras seculares.
Rodeamo-lo e ouvimo-lo com atenção.
Mais velho que nós, ele é o chefe da malta.
Joga connosco o hóquei do nosso encantamento e ensina-nos tácticas para levarmos de vencida os adversários que vierem.
Ajuda-nos a moldar os «steaks» construídos de paus de amieiros.
Antes do jogo ou do treino, faz a prédica.
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Depois começa a contenda, sempre entusiástica.
O Zéquita, o Adriel, o Flavinho Carroleto, o Telmo, o Mário e o Eduardo Papito, são alguns dos craques do “team”.
Mas a vedeta é o Zé Saroto que, com o seu pé coxo finta e despista com mestria os mais temíveis adversários.
Uma das balizas no arco da ponte, a outra no extremo oposto, delimitada por dois calhaus.
Nos bolsos os cromos dos ídolos Emídio, Jesus Correia, Edgar, Correia dos Santos …
Nas grades da ponte, colam-se mirones para apreciarem as habilidades da rapaziada.
Muitas vezes, findo o hóquei, com o suor por enxugar, aparece o Dji-Djé, guarda-redes do Desportivo, que mora perto e é nosso amigo.
Saltamos então todos para a lameira e alinhamos numa peladinha de bola que proporciona lanços espectaculares aos guarda-redes sobre a relva macia.
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Desta vez o “técnico” é o atleta cabo-verdiano, homem afável, simpático, que gosta de crianças.
Quando o sol vermelho começa a esconder-se no distante horizonte, voltamos para casa, sujos, cansados, mas muito felizes.
A reprimenda dos pais (ou da avó) pela chegada tardia ou pela fadiga que os rostos vincavam, não nos diminuía o vício da tarde seguinte no Canto do Rio.
O trem de regresso é mais difícil de tomar.
Na hora do desembarque, apetece encontrar amigos e companheiros desse tempo.
Onde estão, onde param?
Os carris da vida levaram alguns por caminhos opostos, para terras longínquas.
Por aqui, quedamos poucos.
Um ou outro, visita fugazmente a cidade.
Mas a lembrança de todos, suspira sempre, quando recordo o hóquei, as jogatinas de bola, as belas tardes passadas, ali no Canto do Rio.
António Roque