Cartas a Madame de Bovery
Minha cara Madame de Bovery (10)
Afinal não sou capaz! E digo-lhe isto da mesma forma que o disse ao Comendador. Talvez não bem da mesma forma!
As cartas, quando lidas por mim, gosto delas, mas quando lidas imaginando que é a senhora a lê-las, acho-as tão aquém, tão pobres, tão esvaziadas de sentido! Pergunto por si: para quê isto? Porquê isto? Que significado tem o que aqui é dito e o que aqui, sem ser explícito, é, da mesma forma, dito, escrito?
De quem vêm estas palavras? Onde pretendem chegar? Há uma direcção nelas, um propósito? Qual? E não vejo nestas “suas” perguntas qualquer resposta à altura delas. Sei que pode não as fazer, nem sequer as pensar, mas não serei eu a poder dar-lhe essa decisão.
Envio-lhe esta última, as outras que anteriormente lhe escrevi, serviram-me ontem para acender a lareira e saiba, facto curioso, que mais depressa que o papel, ardeu nelas a tinta das palavras!
Estranho é eu vê-las a arder sem qualquer lamento, assistindo simplesmente a esse acto de combustão pacífico!
Ao mesmo tempo que as palavras se iam convertendo em cinza, da tinta preta subia aos céus uma luz branca. Se fosse crente diria que era, à semelhança da alma que se evade dos corpos quando eles perecem, também uma alma, pois que após a morte tudo é imaterial e o que distinguirá um ser que foi vivo de outro que nunca o foi?!
Mas a senhora, acreditaria nisso? Que das minhas palavras, depois de ardidas, se desprendeu uma massa invisível com consistência de alma?
Saiba que, enquanto as cartas ardiam, as letras saíam das linhas imaginárias, bailavam, entrelaçavam-se e faziam desenhos, grafismos, imitavam fotografias. Houve uma altura em que me pareceu até um filme, tal era a rapidez com que as imagens das fotografias se sucediam uma após outra e com o evoluir da peça e o caminhar lentamente para o fim, o meu estado de espírito elevava-se e, facto para mim inexplicável, a última carta que ardeu foi a primeira onde, por uns segundos, ainda consegui ler as primeiras frases e sabe qual foi a palavra que me saiu? Nenhuma dessas!
Poupo-a, por isso, a uma série de questões às quais, nem eu que as fiz, sei responder.
Intuí que não devemos, ainda que pudéssemos,voltar a trás, porque não podemos refazer o passado! Nem bom seria! Podíamos, irremediavelmente, lá ficar e ele já é por si irremediável! Mas há outra razão: respeito o livre curso do tempo, como a água de um rio que passa indelevelmente. Podemos olhá-la, contemplá-la até das margens, mergulhar nela, lavarmo-nos nela, mas é sempre relativo se ela nos refresca ou se nos asfixia!
Há ainda uma terceira, é lícito, teremos nós algum direito de acrescentar o quer que seja à vida dos outros, quando isso nos não é pedido? Ainda que o façamos com a honesta convicção de que ao fazê-lo a podíamos melhorar? É sempre uma intenção, nunca passará disso e não podemos nem sabemos medir ou avaliar o impacto que essa nossa atitude teria, sendo ela executada. Não estamos nem por dentro dos outros nem no lugar deles e nunca, por mais que seriamente nos esforcemos, conseguiremos atingir a percepção que não é nossa, que é só deles! É sempre com os nossos olhos que vemos as coisas, o nosso ângulo de visão é só o nosso ângulo de visão!
Podemos colidir em vez de ir ao encontro, podemos esbarrar em vez de acompanhar, podemos fracturar em vez de complementar, podemos invadir em vez de colaborar, podemos estragar em vez de melhorar, podemos destruir em vez de edificar, podemos fissurar em vez de completar, podemos matar em vez de ajudar a sobreviver!
Na dúvida, que sempre haverá em qualquer e todos os casos, é preferível ficar quieto. Não mexer, não interferir. Assistir, tem de ser possível, ao evoluir natural do que não nos diz respeito, sem qualquer intromissão. Ganhamos todos.
Nunca ficaremos reféns da culpa, nunca nos enganaremos nos juízos de valor que não emitiremos, nunca falharemos na avaliação que não foi feita, nunca seremos incompetentes por ter visto só uma parte do problema, nunca ficaremos na expectativa das respostas às perguntas que não fizemos, nunca seremos inconvenientes por dizermos o que os outros já sabiam, nunca seremos inoportunos por não interrompermos nenhuma oportunidade, nunca veremos coisas que nem sequer identificámos, nunca seremos arrogantes por convicções que, embora as tendo, as não daremos a conhecer, nunca seremos inconsequentes porque nenhum efeito poderá advir do que se não fez ou disse. Nunca mentiremos, revelando certezas que não temos, nunca seremos injustos nos julgamentos parciais do que só em parte sabemos, nunca seremos ingratos no agradecer em parte o que nos foi dado em todo, nunca seremos cruéis na omissão de atitudes, nunca faltaremos ao respeito pelo que não foi dito, nunca teremos de justificar comportamentos que não foram notados, nunca denunciaremos o que nos não foi dito, nunca seremos mal interpretados, nunca ficaremos mal vistos. Nunca incutiremos dor nem sofrimento, nunca odiaremos, nunca provocaremos guerra nem conflito.
E uma terceira. Nunca faremos concessões pondo em causa a nossa dignidade, nunca teremos que defender a nossa honestidade, nunca teremos que lutar pela nossa felicidade, nunca seremos escravos da nossa inteligência, nunca ficaremos dependentes das nossas emoções, nunca teremos de justificar as nossas razões, nunca correremos o risco de incumprimento das metas que traçámos, nunca abdicaremos da nossa própria vida!
Nunca, pelos outros ou por nós, seremos quem não somos! Viveremos felizes e para sempre, em perfeita comunhão!
Haverá quem, há gente para tudo, veja nisto cobardia! E?
Maria Francisca