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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

12
Jul17

Cartas a Madame de Bovery


cartas-madame

 

Minha cara Madame de Bovery (10)

 

Afinal não sou capaz! E digo-lhe isto da mesma forma que o disse ao Comendador. Talvez não bem da mesma forma!

 

As cartas, quando lidas por mim, gosto delas, mas quando lidas imaginando que é a senhora a lê-las, acho-as tão aquém, tão pobres, tão esvaziadas de sentido! Pergunto por si: para quê isto? Porquê isto? Que significado tem o que aqui é dito e o que aqui, sem ser explícito, é, da mesma forma, dito, escrito?

 

De quem vêm estas palavras? Onde pretendem chegar? Há uma direcção nelas, um propósito? Qual? E não vejo nestas “suas” perguntas qualquer resposta à altura delas. Sei que pode não as fazer, nem sequer as pensar, mas não serei eu a poder dar-lhe essa decisão.

 

Envio-lhe esta última, as outras que anteriormente lhe escrevi, serviram-me ontem para acender a lareira e saiba, facto curioso, que mais depressa que o papel, ardeu nelas a tinta das palavras!

 

Estranho é eu vê-las a arder sem qualquer lamento, assistindo simplesmente a esse acto de combustão pacífico!

 

Ao mesmo tempo que as palavras se iam convertendo em cinza, da tinta preta subia aos céus uma luz branca. Se fosse crente diria que era, à semelhança da alma que se evade dos corpos quando eles perecem, também uma alma, pois que após a morte tudo é imaterial e o que distinguirá um ser que foi vivo de outro que nunca o foi?!

 

Mas a senhora, acreditaria nisso? Que das minhas palavras, depois de ardidas, se desprendeu uma massa invisível com consistência de alma?

 

Saiba que, enquanto as cartas ardiam, as letras saíam das linhas imaginárias, bailavam, entrelaçavam-se e faziam desenhos, grafismos, imitavam fotografias. Houve uma altura em que me pareceu até um filme, tal era a rapidez com que as imagens das fotografias se sucediam uma após outra e com o evoluir da peça e o caminhar lentamente para o fim, o meu estado de espírito elevava-se e, facto para mim inexplicável, a última carta que ardeu foi a primeira onde, por uns segundos, ainda consegui ler as primeiras frases e sabe qual foi a palavra que me saiu? Nenhuma dessas!

 

Poupo-a, por isso, a uma série de questões às quais, nem eu que as fiz, sei responder.

 

Intuí que não devemos, ainda que pudéssemos,voltar a trás, porque não podemos refazer o passado! Nem bom seria! Podíamos, irremediavelmente, lá ficar e ele já é por si irremediável! Mas há outra razão: respeito o livre curso do tempo, como a água de um rio que passa indelevelmente. Podemos olhá-la, contemplá-la até das margens, mergulhar nela, lavarmo-nos nela, mas é sempre relativo se ela nos refresca ou se nos asfixia!

 

Há ainda uma terceira, é lícito, teremos nós algum direito de acrescentar o quer que seja à vida dos outros, quando isso nos não é pedido? Ainda que o façamos com a honesta convicção de que ao fazê-lo a podíamos melhorar? É sempre uma intenção, nunca passará disso e não podemos nem sabemos medir ou avaliar o impacto que essa nossa atitude teria, sendo ela executada. Não estamos nem por dentro dos outros nem no lugar deles e nunca, por mais que seriamente nos esforcemos, conseguiremos atingir a percepção que não é nossa, que é só deles! É sempre com os nossos olhos que vemos as coisas, o nosso ângulo de visão é só o nosso ângulo de visão!

 

Podemos colidir em vez de ir ao encontro, podemos esbarrar em vez de acompanhar, podemos fracturar em vez de complementar, podemos invadir em vez de colaborar, podemos estragar em vez de melhorar, podemos destruir em vez de edificar, podemos fissurar em vez de completar, podemos matar em vez de ajudar a sobreviver!

 

Na dúvida, que sempre haverá em qualquer e todos os casos, é preferível ficar quieto. Não mexer, não interferir. Assistir, tem de ser possível, ao evoluir natural do que não nos diz respeito, sem qualquer intromissão. Ganhamos todos.

 

Nunca ficaremos reféns da culpa, nunca nos enganaremos nos juízos de valor que não emitiremos, nunca falharemos na avaliação que não foi feita, nunca seremos incompetentes por ter visto só uma parte do problema, nunca ficaremos na expectativa das respostas às perguntas que não fizemos, nunca seremos inconvenientes por dizermos o que os outros já sabiam, nunca seremos inoportunos por não interrompermos nenhuma oportunidade, nunca veremos coisas que nem sequer identificámos, nunca seremos arrogantes por convicções que, embora as tendo, as não daremos a conhecer, nunca seremos inconsequentes porque nenhum efeito poderá advir do que se não fez ou disse. Nunca mentiremos, revelando certezas que não temos, nunca seremos injustos nos julgamentos parciais do que só em parte sabemos, nunca seremos ingratos no agradecer em parte o que nos foi dado em todo, nunca seremos cruéis na omissão de atitudes, nunca faltaremos ao respeito pelo que não foi dito, nunca teremos de justificar comportamentos que não foram notados, nunca denunciaremos o que nos não foi dito, nunca seremos mal interpretados, nunca ficaremos mal vistos. Nunca incutiremos dor nem sofrimento, nunca odiaremos, nunca provocaremos guerra nem conflito.

 

E uma terceira. Nunca faremos concessões pondo em causa a nossa dignidade, nunca teremos que defender a nossa honestidade, nunca teremos que lutar pela nossa felicidade, nunca seremos escravos da nossa inteligência, nunca ficaremos dependentes das nossas emoções, nunca teremos de justificar as nossas razões, nunca correremos o risco de incumprimento das metas que traçámos, nunca abdicaremos da nossa própria vida!

 

Nunca, pelos outros ou por nós, seremos quem não somos! Viveremos felizes e para sempre, em perfeita comunhão!

 

Haverá quem, há gente para tudo, veja nisto cobardia! E?

 

Maria Francisca

 

 

05
Jul17

Cartas a Madame de Bovery


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Minha cara Madame de Bovery (9)

 

 

Deixo-a aqui, desta vez para sempre, ainda que tenha a noção exacta da inexactidão do que digo. Acontece também isto na vida!

 

A perda do Comendador é irreparável e não tem isto nada de trágico. Ambas estamos melhor sem ele e, de alguma forma, ele sem nós! Mas não basta, para ser feliz, coragem e determinação, é preciso vontade, talvez o que não temos!

 

Aconteceu-me aqui, aquilo a que chamo um sinal: ao escrever, saiu-me em escrita a frase inversa ao que inicialmente pretendia dizer! Deixo estar, até não está mal, talvez esteja até melhor, talvez assim faça até mais sentido!

 

Ambas sabemos e ambas soubemos, sem, no entanto, nunca termos falado disso uma única vez! Depois desta, quase eterna, ausência do Comendador na nossa vida, o seu regresso jamais fará sentido! Chegou a altura de ficarmos também em paz!

 

E só há talvez uma forma de o Comendador e nós descansarmos para todo o sempre. E ainda que a primeira parte nunca me tenha preocupado, já a segunda incomoda-me. Mas para isso preciso da sua ajuda! Sendo a senhora o único familiar com vida, terá de ser a senhora a requerê-lo. Pretendo que peça a exumação do corpo do Comendador para se proceder à concretização do seu último desejo: a sua cremação.Às vezes só a morte não chega! Esta foi talvez a última lição do Comendador e eu na altura não percebi!

 

A dificuldade está em que a senhora não tem forma de saber se isto é, ou não, verdade, a não ser acreditando em mim, o que não é de todo fácil, tendo em conta o assunto em causa.

 

Pois foi isso, ora aí está, rasguei o documento assinado pelo nosso caro comendador em que ele manifestava, não essa vontade, mas esse pedido! E repare no que é, sem dúvida nenhuma, estranho. Sempre li no texto que ele deixou escrito apenas um desejo, um gosto, uma vontade, pois que foram essas as palavras que ele usou e que por isso, no meu entender, eram susceptíveis de serem contrariadas, sem qualquer penalização moral. A amizade que por ele tinha, concedia-me esse direito: onde é que já se viu?!

 

Mas vejo agora, já sem o documento, que talvez o significado dessas palavras fosse o que hoje me assaltou o pensamento. O comendador era incapaz de pedir fosse o que fosse! Tinha aquela linguagem formal, cheia de adereços, em parte dissimulada, que nunca deixava transparecer a verdade, ainda que pudesse ser essa a intenção, que a senhora muito bem conhece, e que escondia ou dificultava muitas vezes o entendimento das coisas. Sempre encarei isto como uma escolha sua, mas penso agora que se calhar não era. Ele pura e simplesmente não era capaz de outra!

 

A ser assim, e digo-o desta forma porque não tenho sobre ela uma certeza absoluta, apenas a que baste para agir nesse sentido, pergunto-lhe sem rodeios: a senhora acredita em mim?

 

Saiba que compreendo bem, se nunca me responder a esta carta e que saberei respeitar o seu silêncio mais até do que consegui fazer com o do comendador, pois que o dele não foi uma resposta e o seu será sempre muito mais do que isso! Mas quero também que compreenda, e se puder aceite, que lhe coloco esta questão com seriedade absoluta, pois que a não ser assim, eu nunca me perdoarei tê-la feito só agora.

 

Por mim e por si.

 

Da sua, sempre amiga,

 

Maria Francisca

28
Jun17

Cartas a Madame de Bovery


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Minha cara Madame de Bovery (8)

 

Fechou-se um ciclo, percebe o que quero dizer!? Fechou-se um ciclo! E a única coisa que posso dizer com alguma lucidez, é que olhando a linha da circunferência que o delimita, ela é perfeita. É este o meu único conforto ou satisfação. Como uma camisola de malha que fazemos e refazemos, desfazendo os enganos de que tivemos consciência, depois da obra feita ninguém conseguirá saber qual foi o ponto em que nos enganámos e cometemos o erro, porque o restaurámos logo a seguir e de forma eficaz! Em algumas das vezes, aconteceu repetidamente, mas olhando a linha ou o seu contorno, nenhum ponto nela tem qualquer inflexão! Há, por um lado, o consolo de ela estar perfeita, mas em simultâneo o desencanto de nunca ninguém saber o quanto sofrimento isso nos custou, para que agora ela esteja ou transpareça assim! E pergunto-lhe a si, porque a sei atenta: quem se importa com isso?

 

Claro que o nosso ego, falo do seu como do meu, não se alimenta com este tipo de aparência ou visão exterior, nem sequer com a anuência alheia que discretamente reclamamos, porque é sempre sofrida a vitória interior que não se espelha no Céu nem resulta em estrela! Nenhuma de nós precisa disso e ambas precisamos de mais do que isso! Pergunto-me e pergunto-lhe ainda porquê?

 

Satisfação pessoal, dir-me-á talvez e eu concordaria consigo, não fosse esta sensação inquietante de fazer sempre pouco na possibilidade do que podíamos fazer! Não nos julgamos, em consciência, um génio, mas actuamos como se o pensássemos: só toleramos em nós a perfeição! Já mo disse e eu devolvo-lho agora!

 

O que nos faz achar que, se nós quisermos, a conseguimos? Sempre a mesma dúvida: se existir uma possibilidade nós, se nos empenharmos, atingimo-la! Era talvez mais fácil e reconfortante acreditarmos que pode não ser assim, mas nós não nos permitimos isso: se há alguém que o pode conseguir, somos candidatas!

 

E vem-me junto a isto a quantidade de momentos, de esforços, de lutas perdidas em batalhas ganhas, de medos, de ansiedades, de angústias, de preocupações, de projectos concluídos sem qualquer plano de início, de frases sem autor, de textos inacabados, de gestos não concluídos, de esboços não transformados em desenhos, de caminhos percorridos sem fim à vista e até, imagine a senhora, de atitudes emotivas sem qualquer sustento de racionalidade, quando em nós isto é inadmissível!

 

Devaneios, bem sei, inconsequentes, talvez! A minha questão é sempre a mesma: quando faço afirmações conscientes, fica sempre em suspenso o terminar das frases, não expresso: “... ou não!” Alguns chamam-lhe lucidez, mas não sei se é!

 

E a consciência é esta, a de que o tempo de mãos dadas com o desenrolar da vida não espera por nós nem depende da nossa opinião ou vontade para determinar o que quer fazer! É também isto ou ainda isto, que me provoca este desconforto de não saber ou poder determinar se o caminho ou o rumo que as coisas seguem é a correcta, sequer a que quero! Pior que isso, não saber se são efectivamente essas coisas dependentes ou determinadas por mim! Ainda pior do que isso, se independentemente da minha vontade nelas, elas se concretizam da mesma maneira!

 

E é isto, minha cara amiga, o que me é de todo insuportável e insustentável: achar que qualquer que seja a minha vontade, as coisas não dependem de mim! Que a minha vontade ou o meu querer são uma parcela desprezível na decisão que a vida, ou o que a comanda, insiste em tomar! O eu ser-lhe inútil, é talvez e de tudo o mais predominante na forma como eu me submeto a essa decisão, contrariada!

 

Sabe como eu sou, nos dias bons, com aquela mania de que o destino depende de mim e que me consulta sempre que quer tomar decisões em meu nome! Pois são efetivamente tudo tretas, eu não passo de um escape, um pormenor em todo este processo que me remete, sem piedade, para a minha insignificância! Veja, mesmo assim, ao que eu me agarro, achando que o destino é prepotente e de todo ingrato, por não me achar uma peça determinante! E como o faz! No tabuleiro de xadrez o único espaço que o destino me arranja, é o papel de peão! Ainda assim eu agarro-me com unhas e dentes a esta decisão dele, acreditando que é fundamental para o desenlace e concluir do jogo, a jogada de abertura! Sim, estou farta de o saber, engano-me deliciosamente, não por opção, mas porque estou consciente de que a opção que tenho a esta, é ainda pior e eu não suporto que me digam qual é o meu espaço de manobra, consciente ainda de que é o que me resta, afirmo que fui eu que o escolhi!

 

Acontece a todos minha cara, vale-me talvez ou prejudica-me, agora aqui também não sei bem, que faço isto porque de alguma forma aceito que o que me é dado é aquilo que eu mereço, embora me ache com direito a mais, mas como me julgo eterna, acredito que chegará esse momento. Completamente ridículo! Dava disto conta no Comendador, como lho disse, e não dou conta dele em mim! Dou, mas faço de conta!

 

No fundo, tudo isto é relativo e não importa grande coisa se quando olhamos para o círculo a linha da circunferência é ou não perfeita!

 

Hoje, ao entardecer, enquanto a Terra se afastava do Sol e a água do mar avançava lenta, mas eficazmente sobre a areia, veio-me aquela sensação quase imperceptível da felicidade alheia a instalar-se em mim. Não lhe saberei dizer com exacta certeza, ao menos com aquela de que gostaria, se foi um instante eterno ou a circunstância divina da fugacidade de um instante, mas foi consciente! O sorriso, aquele que sabe, esboçou-se nos meus lábios e trouxe-me uma tranquilidade que rondava a paz interior. Como é que me foi possível neste início de Verão a impressão sublime do que não acaba?! E, repare, sem motivo nenhum! Acho até que foi isso ou por essa razão que me impressionei a ponto de me questionar se estava mesmo ali ou se era aquela vertigem, digo embriaguez, que o Sol provoca quando é intenso, brilha como estrela que é ou encandeia a ponto de nos turvar a visão e nos deixar sem perceber se se trata apenas de um raio de Sol ou se da proximidade do inferno, que nos faz sentir esse calor que queima por dentro, sem aquecer! Seja como for, a sensação era boa por ser nova, inesperada e desconhecida.

 

Sabe quando estamos no meio de um deserto sem estar, mas a duvidar disso porque a sensação que nos dá é a de estar?

 

Bem sei que não há grande lógica nisto, mas não me preocupa agora o palpável das coisas materiais, ao invés, foi a dúvida do estar ou não realmente ali, que me fez apreciar o entardecer de hoje como se de alguma forma se tratasse de algo que nunca me tinha acontecido! E eu sabia que tinha, mas não assim, vinda do nada, como aquelas coisas que não precisam de realidade para ser ou estar ali!

 

Isso mesmo, tal e qual, uma coisa que vem de dentro e que se instala à nossa frente como sendo alheia, mas que reconhecemos nela ser unicamente nossa!

 

Nossa, mas sem propriedade dela e acho que era isto que me incomodava ou que me agradava: uma coisa da qual eu me apropriava sem saber se era ou não minha! Sim, era como se fosse, a Natureza desperta em nós este milagre das coisas.

 

Da, hoje não mais que isso,

Maria Francisca

 

 

21
Jun17

Cartas a Madame de Bovery


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Minha cara Madame de Bovery (7)

 

“Espero que esta carta a vá encontrar de perfeita saúde!” Não era assim que se começava dantes, no tempo em que as cartas andavam? E eram palavras não eram, o que se escrevia nelas?!

 

Acontece-me a mim o que se calhar acontece a todos, às vezes confundir conceitos! Lembra-se daquela obra prima que um dia ofereci ao Comendador? Pois havia no propósito, uma intenção: a de lhe mostrar que o espaço que ele ocupava no Universo não era o centro, posto que ele não o tem e que somos partículas tão ínfimas, com tão pouca massa e gravidade (força gravitacional?! Corrija-me a senhora!), que não passamos de poeira cósmica e se não fosse a órbita que os mais próximos nos impõem, andaríamos aos trambolhões pelo espaço, infinito que é!

 

Pois o Comendador não fez essa leitura, se bem que tenha achado a obra impressionante! Consegue apreender o que o impressionou nela? Sim, a sua grandeza, mas não como coisa absoluta, senão antes como mais uma a reforçar o tamanho do seu umbigo!

 

Há características no ser humano que são ao mesmo tempo fortes e débeis. Falo do orgulho, da capacidade que temos de termos mais consideração por nós do que pelos outros, embora também os consideremos grandes, mas sempre mais pequenos que nós. De acharmos que durante a nossa vida criamos com arte e sabedoria um sistema semelhante ao solar, onde os outros gravitam como planetas à nossa volta, com a estrela no centro. Ou seja, os outros não existem senão na medida em que nós os iluminamos, não têm brilho próprio, o brilho é nosso!

 

Há pessoas que têm a capacidade de olharem para o espelho e verem apenas os defeitos dos outros porque em si só veem qualidades. Não há espelhos para elas, não precisam deles, não são nem susceptíveis de comparação nem mensuráveis. Conhecem-se bem, estão seguros de si, para quê um espelho? Nunca nenhum deles lhe mostrará o que não sabem, porque elas sabem tudo!

 

Há, na sua realidade, também uma escala, como no livro, grande e pequena, que aumenta e diminui. Estas pessoas aplicam a primeira a si e a segunda aos outros. Não se apercebem da dualidade de critérios que utilizam para achar diferentes coisas iguais e iguais coisas diferentes! Em si tudo tem outro sentido que, se não é perfeito, se assemelha o mais possível à perfeição. Se alguém tem o atrevimento de lhes dizer isto, acham-no arrogante e mal-educado. Pior do que isto, fazem-lho notar e se a pessoa não entende, acham-na ainda mais desprezível: “e o mais impressionante é que nem sequer dá conta! ”Nós conta damos, estamos lúcidos e conscientes, não fosse assim e não o denunciaríamos em atitude! Mas na verdade quem não dá conta disto são eles e isto sim, é impressionante: como é que há alguém tão estúpido, que acredita que haja alguém tão estúpido, que não reconheça como simples o que é simples de reconhecer!

 

E fazem isto naturalmente, porque em si tudo é certo, porque o erro, o lapso ou a falha, até a simples e natural desatenção, lhes são coisas alheias, dos outros! Estas pessoas nunca se distraem, nunca estão desatentas, nada lhes escapa, não perdem tempo com nada, nem com o que é importante ou fundamental, porque nada é mais importante que estarem bem e estas pessoas conseguem estar sempre bem, mesmo quando têm alguém ao seu lado a sofrer, porque o sofrimento dos outros não é delas! Nada do que se passa com os outros as afecta, porque elas não são os outros! E se há alguém mais desprevenido que ainda tem esperança que isto mude e lhes pede ajuda, elas afastam-se em silêncio, porque haver alguém que precise de alguma coisa as assusta, porque elas nunca precisam de nada!

 

É mesmo verdade, há pessoas assim, que precisam de tudo dizendo a tudo que não e não conseguem dar nada, porque não têm nada para dar! São assim! E quando os outros, lúcidos, não são assim, dizem: “não seja assim!”

 

Não conseguimos abrir os olhos a estas pessoas, porque já os têm abertos! Embora durmam grande parte do tempo, dormem de olhos abertos! E isto sim, é ainda mais impressionante!

 

Nunca lhe aconteceu, minha cara Madame de Bovery, ter pena destas pessoas?!  Bem sei que é um sentimento estranho e que tê-lo é, às vezes, encarado como desumanidade por implicar que de alguma forma nos estamos a considerar superiores àqueles de quem temos pena e que nenhum ser humano pode achar isto do seu semelhante, mas, esqueça lá por um bocado esses conceitos filosóficos e responda-me sinceramente: dá ou não dá pena?

 

Concordo consigo, entramos em conceitos difíceis de abordar e de tirar com eles alguma conclusão! Pena, tolerância, arrogância… estas pessoas já não mudam! Sei-o agora e tenho também pena de mim por isso! Porque se o tivesse sabido antes tinha-me valido a pena e agora, a pena, não me serve de nada, nem a que tive por elas nem a que tenho por mim, porque o que sentimos agora que é verdade, é que se tivéssemos tido pena delas na altura certa, tínhamos evitado agora a nossa! Se calhar somos piores do que elas, ainda mais egoístas, ainda mais cruéis, mas isto é só uma sensação porque na realidade, bem vistas as coisas, isso não é possível!

 

Sempre sua,

Maria Francisca

 

 

14
Jun17

Cartas a Madame de Bovery


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Minha cara Madame de Bovery (6)

 

Desculpe esta minha ausência prolongada, mas tive de vir a Londres! Precisei de perceber o que tem esta cidade, para que o Comendador nela passasse os últimos anos da sua vida. Ainda não encontrei o motivo ou a razão, mas começa a esboçar-se em tudo o que me rodeia uma desculpa ou um argumento, se quiser. A luminosidade do dia ou a ausência dela, predispõe a um desnecessário assumir de responsabilidade. Não sei como definir este sentimento ou sensação, mas é como se fossemos arbitrariamente livres!

 

Há, sem dúvida nenhuma que há, a sensação de estar em casa, mas sem o peso dos objectos, das paredes que falam, da música que conhecemos e que ouvimos em determinados momentos e que nos deixa reféns, dependentes! É como um apagar de memórias, completo, das boas e das más, como se renascêssemos, como se a nossa vida, a única que temos, nos desse uma segunda oportunidade! Como é que eu hei-de traduzir em palavras o sentimento que me vai na alma?!

 

Atravesso a rua e vejo o Comendador do outro lado, com o seu sobretudo, a sua bengala. Já alguma vez lhe ocorreu pensar porque razão a usava!? Sim, é verdade que depois daquele acidente, do qual falava sempre com ironia, mercê das circunstâncias em que ocorreu, nunca depois dele lidou bem com as consequências! Mas a história da bengala não era uma delas, ele só achava que ela lhe dava mais carisma! Pois é, brincava com o facto, mas a ideia de perfeição que tinha colada à pele e da qual ele era, não um exemplo, mas o exemplo, fechou-o sempre num disfarce de sedução, charme se quiser, com o qual falsamente sabia lidar!

 

Pois foi essa, minha cara Madame de Bovery, a segunda impressão que absorvi desta cidade: a neblina que esconde os pequenos defeitos, os do corpo e os da alma, trá-los à luz do dia, ao meio-dia! Nessa altura o Comendador recolhia-se para um breve descanso. Soube-o por uma vizinha, uma jovem diplomata por quem o Comendador se interessou e a quem ela achava alguma graça! Forma de dizer. Suscitava-lhe indignação e surpresa, a par de admiração e fascínio, a forma como ele abordava os temas no parlamento!

 

As voltas que o mundo dá! Foi-me apresentada, a jovem, num evento social e, sabe como é, portugueses no estrangeiro, parecem irmãos! Como início de conversa falou-me de um Comendador português, que em tempos tinha conhecido! Claro que eu explorei o quanto pude e pude bastante, a convicção que tinha ficado nela desse ser humano que, supunha ela, eu não fazia ideia de quem se tratava. Brilhante a descrição! Tudo quanto não sabíamos, fiquei a sabê-lo num simples jantar, sem qualquer esforço, nem o de perguntar!

 

As características dela tinham de certo, percebi-o facilmente, impressionado o Comendador. Era, veja a senhora, eloquente na forma como expunha os assuntos, vivenciava com impressionante à vontade tudo o que lhe era estranho e alheio. O Comendador gostava disso, de como se subverte a natureza humana ao poder da inteligência! Ela tinha isso. A par da juventude, uma enorme força e vontade de viver. Feliz com tudo. O que estava mal, modificava-o, ajustava-o a si e o que estava bem, elogiava-o. Era fácil de adivinhar que para ela o Comendador era o exemplo do que estava bem e que ela o admirava e lhe alimentava o ego constantemente. Sabemos o quanto ele gostava disso, de se sentir o centro, a convergência dos olhares e da admiração. Ela servia-o na medida exacta das suas necessidades!

 

Não tirei nenhuma conclusão sobre o grau de intimidade com que se relacionaram, sabe que isso não é um aspecto que eu considere ou valorize e que tenho por menor as fraquezas do corpo comparadas com as da alma, por as achar circunstanciais e improdutivas, quase sempre! Sei que muito provavelmente me engano, porque o Comendador, que eu respeitava tão superiormente, dava a isso muito valor. Nunca percebi, honestamente, em que medida exacta e quando é que isso acontecia, mas era muito clara essa parte nele. Eu é que não tinha a lucidez bastante para ver compatibilidade nisso! Sabe como sou, separo coisas inseparáveis e o Comendador juntava os presumíveis opostos em harmonia. Sim, claramente, quando lhe interessava!

 

Hoje, enquanto passeava pelas ruas, perseguia-me uma voz que me fazia entrar em alguns locais e noutros não. Depois de entrar percebia porquê, mas ao mesmo tempo não tinha explicação para o que a isso me impelia! Foi numa das conversas com a jovem diplomata que soube a razão disso. Eram locais onde ela tinha estado, exactamente, com ele! Os armazéns Liberty, acredita nisto, onde tinha comprado o fato de lã e cachemira para o último evento; a relojoaria de Regent Street onde tinha adquirido a sua última peça da colecção de relógios! Foi exactamente ali, no luxuoso hall de entrada, que encontrou o coleccionador inglês de quem sempre tinha andado à procura! Alguém que hipoteca a própria vida, se for caso disso, para completar uma colecção! Admirável! E sabe que não era esse o caso!? Era apenas o dono da loja! O Comendador enganou-se! Não podia, depois disso, regressar! Nem para si nem para mim e muito menos para ele!

 

Daquela que não a esquece,

Maria Francisca

 

 

07
Jun17

Cartas a Madame de Bovery


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Minha cara Madame de Bovery (5)

 

Sabe aquele ponto a partir do qual não sabemos se existimos?! O ponto onde a matéria se dilui, se liquefaz? Aquele estado das coisas próximo das não-coisas em que parece que tudo acaba ou começa e nós meio perdidos agarramos em qualquer coisa, a primeira que nos vem à mão?! O lençol da cama, a almofada do sofá, o fio do pescoço, o copo da água ali posto não sabemos por quem, o rabo da gata, o que seja, o que for, como se nos quiséssemos agarrar, amarrar, prender, colar a qualquer coisa para não ir, porque há alguém do outro lado a puxar-nos e nós por medo a contrariar, a gastar as últimas forças, sem nenhumas, e a resistir, já depois do último momento!

 

Aconteceu-me algumas vezes e numa delas não omiti e contei ao Comendador e ele respondeu-me com a sua habitual complacência: pronto, está bem! Como se aquilo que eu lhe tivesse dito não tivesse importância nenhuma, fosse um exagero de mulher, um devaneio, um histerismo e eu o que queria era perceber porquê!

 

E eu lamentava, profundamente lamentava, não me saber fazer entender, não saber identificar o que sentia, não encontrar as palavras certas para o transmitir, posto que era um sentimento, e deixava-me invadir pela impossibilidade de se ter uma vida sem compreender isto, como me parecia ser a do Comendador e dizia intimamente: como é vã! Mas não era a dele, era a minha e eu não percebia!

 

A senhora sabe do que falo? Já lhe aconteceu também? Com o Comendador? Tê-lo ali à nossa frente e ele a quilómetros de distância, imóvel, petrificado, sem sequer se dar ao trabalho de dizer: mas eu estou aqui! Efectivamente não estava! E era isso que magoava, era isso que doía, assim por dentro, como um sangramento interior, uma hemorragia interna que se sente e se não vê! Adiantava nesse ponto afirmar que era real? Sim, sim, é exactamente disso que falo!

 

Depois ressuscitava, voltava a mim e tudo aquilo entrava na minha memória sempre com uma réstia de dúvida, a de se tinha ou não acontecido ou sido real! Metia então numa caixa, selava e arrumava! Mas de vez em quando a coisa regressava, como um animal faminto, satisfeito, mas não saciado e insistia. Não era bem um repetir das coisas, era mais um voltar a senti-las, mas de outra forma. E nesses escassos segundos em que aquilo durava, como se fosse um ataque, fugaz, mas violento, eu fervilhava em emoções e a probabilidade do não retorno parecia-me tão real que me deixava ao mesmo tempo extasiada e perdida! Pensava: e se isto é o fim? E não me conseguia decidir se era bom ou mau e importava-me com isso, como se tivesse de o explicar depois a alguém! Mas não tinha, nem sequer a mim! E insistia nisto e o Comendador olhava de novo para mim, do outro lado da fronteira, como se não estivesse ali, ou estivesse e dissesse: está-lhe outra vez a dar! E era exactamente aqui que eu sentia um enorme desconforto, porque começava a pensar que aquilo podia ter sido uma alucinação, um contorno só aparente do real, uma sombra, uma experiência extra-sensorial, um flash, e o Comendador outra vez ausente, cheio de lógica e razão, a insistir na sua, muito sua, característica complacência, a impacientar-me ao limite: deixe lá isso! E eu deixava, numa submissão talvez censurável, eu deixava, mas era por cansaço, mais do que por estar a absorver a mesma complacência e dizia, por ele: pronto, está bem! Mas não estava, eu só queria evitar que ficasse pior!

 

E era aqui, minha cara Madame de Bovery, que me vinha aquele seu conceito do deslizamento do eu, em favor de um alter ego que, por definição, não era meu! O fio do novelo, como diz, que eu não sabia se havia de puxar ou não, porque queria ao mesmo tempo que o novelo se desfizesse e que ele permanecesse íntegro, com a única finalidade de parecer ignorá-lo. Esteve de facto presente essa intenção!

 

Podia sim, seria talvez até expectável, como diz, uma nota final, mas, não sei porquê, não me apeteceu falar dos Maias!

 

Não lhe posso, por isso, responder com sinceridade, como gostaria! Não sei se foi um final feliz, não sei sequer se o pretendido! Mas concordo consigo: improvável e magistral!

 

Desculpe ter escrito com esta dificuldade notória no uso e na concordância dos tempos dos verbos, nem me explico, a senhora sabe perfeitamente de onde isto vem!

 

Como habitualmente,

Maria Francisca

 

 

31
Mai17

Cartas a Madame de Bovery


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Minha cara Madame de Bovery (4)

 

 

Esta nossa necessidade de vida, causa-nos às vezes constrangimentos com os quais nem sempre é fácil lidar! Ultrapassamo-los é certo, mas leva algum tempo por ser uma grandeza infinitamente real, só por alguns perceptível.

 

Lembra-se de uma vez lhe ter falado, não foi a si, foi ao Comendador, na submissão de que ele era escravo? Pois referia-me ao corpo pela alma, não à alma! Na verdade, a sua morte foi um assassínio, não um suicídio, posto que não foi consciente! O corpo revoltou-se contra a alma por a não conseguir vencer ou dominar e embora o corpo tenha cérebro, obedece à alma! E como é que se pode lutar contra uma coisa impalpável, mas grandiosa? Só de forma irracional, a sangue frio! Assim, a sua morte foi um disparate completo. O Comendador não percebeu que para viver livre, tinha de dominar a alma, mas sem a matar, porque sem ela deixou de ser. Viveu, depois disso, anos a fio num estado vegetativo, ligado a máquinas, num coma que ele próprio induziu. Como sair dele, tendo matado a parte dele consciente? Ficou dependente da vontade alheia, de pessoas que lhe não eram próximas, sem ter deixado nada escrito! Há pior dependência do que esta? Quantas vezes lhe falei do testamento vital, enquanto consciente e em plena capacidade de tomar decisões! Mas o Comendador achava-se eterno!

 

Ficou numa cama que nem sequer era uma cama, mas um equipamento próprio ou adequado a seres que estão entre a vida e a morte e onde a decisão de passar a uma ou a outra depende de factores incontroláveis e incontornáveis. Serviu isto para quê? Serviu de exemplo, não teve servidão para nada mais. E mesmo esse, é preciso saber tomá-lo na medida certa ou também de nada serve ou se aprende com ele!

 

Digo-lhe isto não em tom de crítica, mas apenas de constatação! É difícil, muito difícil nascermos puros, como Deus nos pôs no mundo e termos depois uns fantasmas infiltrados a comandar a nossa vida, a dizer “faz isto, não aquilo” sem nos explicarem porquê, a nós que até nascemos com espírito crítico, porque Deus também nos pôs lá isso. E parece que fez de propósito, porque ele não dá ponto sem nó, como quem diz: digo-te o que hás-de fazer e dou-te o poder de o questionares, mas não de o contrariares. É maldade isto, não lhe parece? Então se era para obedecer, para que nos deu ele a capacidade de interpretar? Para vivermos inconformados, eternamente reféns, numa luta constante e inglória, por saber que a vitória era qualquer coisa de inatingível? Ou será que nesses seres a quem ele ofereceu a prenda, os achava mais dotados, capazes de se revoltarem contra Ele próprio e de O vencerem? “Deus só nos coloca nas mãos aquilo que nós somos capazes de fazer!”. Faz-lhe sentido isto?

 

Receio estar a ser injusta, porque talvez a ideia esteja no contexto ou no conceito de Agostinho da Silva quando disse: “Os meus discípulos, se alguns tenho, são aqueles que estão contra mim, porque consegui incutir neles o que tenho como mais sagrado, o poder de se não conformarem”. A ser assim, ainda O podemos perdoar! Seria Deus filósofo?

 

Mas ainda bem que o Comendador morreu pelas suas próprias mãos, porque se fosse assassinado era daqueles que morria com catorze tiros, tendo o primeiro bastado.

 

Sim, estou consciente de que é sempre fácil falar no post mortem! O morto já cá não está para dizer o que pensa! Mas não lhe traz algum peso saber, ou duvidar não sendo tão crente, que enquanto esteve em coma o podíamos ter ressuscitado, se tivéssemos querido? Trazer-lhe de volta a, ou uma, vida a que ele eventualmente teria direito?

 

Pois é, concordo consigo, valeria a pena? Não seria a vida dele, depois desse acordar, uma repetição da antiga? Isto é, teria aprendido ele alguma coisa com o que viveu ou persistiria no erro, assim julgado do nosso ponto de vista? E que critérios temos nós para julgar isso errado? A vida era dele, não nossa!

 

Temos agora um substantivo para ponderar, o nosso egoísmo é mais importante que a livre decisão dos outros? Porque nos julgamos merecedores disso? Achamos que a razão está do nosso lado, que a nossa visão é a correcta, que temos o esclarecimento suficiente para diferenciar o bem do mal, mas quem garante e assina isso? Não podemos estar tão ou mais enganados que os outros?

 

Há de facto um convencimento infundado em todos aqueles que se acham detentores de uma lucidez que os impede de se enganarem ou de tropeçarem em situações da vida pouco claras ou susceptíveis de várias interpretações. E não é assim, os juízes da sociedade enganam-se tanto ou mais que os não juízes. É um facto que foram treinados mais que os outros para isso, mas há sempre um erro, o emotivo, sempre presente, que vicia a razão!

 

Não conseguimos ser isentos no julgamento dos outros, porque temos uma experiência de vida passada que associamos e accionamos sempre à interpretação do presente. A empatia, essa palavra que quer dizer que entendemos bem, mas só, aquilo porque já passámos. E o resto, com que ferramentas o interpretamos? Com o saber? Saber de quê? Como é que se sabe sem experienciar? Mas mudemos de assunto, posto que este não me traz nem alívio nem conclusões.

 

Acha que o comendador, depois que lhe desligaram as máquinas, teve ainda algum grau de consciência ou morreu a sério?

 

Sabe como eu sou céptica nestes assuntos e como acredito que há pessoas que, embora vivas, estão mortas e é por isso que lhe pergunto a si se acredita que há pessoas que, embora mortas, estão vivas!

 

Hoje deixo-a aqui, embora sinta que a situação é desconfortável para ambas, mas a senhora sabe-me implacável quando na busca da verdade e sei que me perdoa por isso!

 

Sempre sua,

Maria Francisca

 

 

24
Mai17

Cartas a Madame de Bovery


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Minha cara Madame de Bovery (3)

 

Sabe que também eu me faço essa pergunta e que, à semelhança da senhora, também para ela não encontro resposta?!

 

Podemos ao longo da nossa vida repeti-la em pensamento as vezes que quisermos ou precisarmos, mas duvido, com algum grau de certeza, que alguma vez qualquer uma de nós lhe saiba responder! O mais que nos é possível, com alguma probabilidade de acertarmos, é tecermos conjecturas à cerca disso. Ora isto não é quase nada para quem procura certezas absolutas ou verdades universais, ainda que saibamos que nem uma nem outra existam, ainda assim procuramos, por causa daquela impaciência interior de que um dia falámos, lembra-se, sem com isso tirar conclusão alguma?!

 

Veja como são as coisas, ainda não disse nada e já escrevi dois parágrafos, mas a senhora terá certamente lido qualquer coisa nisso, nem que seja ter visto parte do espelho dos seus pensamentos!

 

Concordo consigo, o Comendador assustou-se! É talvez esta a única coisa aceite por ambas, mas desconhecemos os motivos que a isso o levaram. Talvez seja diferente, ou não, a ideia que a esse respeito as duas fazemos!

 

O Comendador sentiu-se engolido, amordaçado e com isso, ou ao mesmo tempo, as coisas fugiram do seu controlo. O primeiro passo para ser dominado estava criado e ele teve consciência disso. Temos aqui dois cenários, talvez mais, mas simplifiquemos em dois que já nem assim a coisa é simples! Se a questão fosse racional, argumentativa, lógica ou de inteligência, o Comendador estava como peixe na água. Sabia equacionar, identificar e resolver as incógnitas em ordem a x, a y e a z, integrar o resultado, determinar as parcelas do somatório de dados e deduzir com relativa facilidade a fórmula de cálculo, estabelecendo o factor comum, a ordem da sucessão e os termos intermédios! O Comendador sabia que nunca nos são dados claramente todos! Derivar e exponenciar já não era o seu forte, era demasiado consciente para isso!

 

De qualquer forma, a questão não era esta. A questão era puramente de ordem emotiva, isto é, se nela estivessem contidos valores morais, éticas pessoais e/ou profissionais, nada havia à face da terra que o tornasse incapaz de lidar com isso, por mais amplo que o problema fosse. Mas no caso em causa, o sentimental, o Comendador não tinha nem treino nem ensinamento nenhum e acabou por se sentir como peixe fora de água, a asfixiar!

 

Chegado aqui, a lutar pela sobrevivência mais que pela vida, que passa neste concreto caso a ser secundária, o que é que qualquer um de nós faz?

 

Vale tudo, até arrancar olhos! Quem diz olhos diz coração, qualquer coisa que nos faça ver ao longe e ao perto e ao tirarmos os olhos dos outros, isto o Comendador não sabia, tiramos também os nossos!

 

Minha cara Madame de Bovery, o Comendador cegou!

 

Acha por acaso que foi por acaso, que antes da sua partida o Comendador deu uma fortuna por aquele Labrador Retriever, preto, treinado durante dois anos?

 

Perdoe-me se lhe digo coisas que já sabe, mas continuo com esta ideia peregrina de achar que as descobertas partilhadas trazem para casa mais troféus que quando vividas isoladas.

 

Posso estar completamente enganada, mas não reparou no facto do Comendador, desde que se mudou para Londres, fazer todas as descrições dos factos de forma sensorial, como se tivesse adquirido uma sensibilidade paranormal que não lhe era de todo própria? Repare na linguagem que ele passou a utilizar, que não é de facto dele característica: “senti” em vez de “vi”, “apercebi-me” em vez de “observei”, “pressenti” em vez de “presenciei”! Não me diga que isto lhe é familiar! O Comendador tinha e punha enorme reticências em tudo o que não era observação empírica! Lembra-se das enormes discussões em que eu validava tudo pelo sentimento e ele, depois de me ouvir calmamente, perguntava: “mas viu?” E eu dizia com os olhos não e era aqui que ele encolhia os ombros como se aquilo que eu tivesse dito contivesse de verdade, nada.

 

Eu contestava, argumentava, sabe a senhora como eu sou nestes casos, se me sinto dona da verdade vou ao limite e afirmava: há várias formas de ver! Ao que ele sempre contestava: “há só uma e duvidosa, dependente de quem vê, mais do que o que vê!”

 

A senhora acha que ele mudou ou que só cegou?

 

Da sua, sempre amiga,

Maria Francisca

 

 

17
Mai17

Cartas a Madame de Bovery


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Minha cara Madame de Bovery (2)

 

 

Um dia, não hoje, haveremos de falar sobre a amizade, de como se escolhem, se seleccionam, se mantêm e se desiste dos amigos, como se desfolhássemos as pétalas de um mal-me-quer: este sim, este não, este sim, este não, ... O que nos faz, em realidade, preservar alguns e desistir de outros, às vezes com muita resistência e persistência, no primeiro caso, e outras vezes sem dificuldade e insistência nenhuma.

 

Julgo que não se trata de, como uma vez me disse um amigo: “o que nós gostamos nas outras pessoas é que elas gostem de nós!” Não me parece, às vezes, nada disto, mas outra coisa: o que nós somos é uns preguiçosos e é-nos muito mais fácil compreender quem é parecido connosco do que quem é diferente de nós, dá-nos menos trabalho, independentemente da nossa auto-estima ser grande ou pequena. Quando pensamos da mesma forma ou temos características semelhantes, o esforço de entendermos os outros é pequeno ou quase nulo e isso dá-nos conforto, satisfação, bem-estar, ilude-nos a inteligência! Ora era aqui que eu queria chegar, não hoje como lhe disse, um dia. Perceber porque no nosso caso a pétala do mal-me-quer foi: este sim! Deixemos por ora isso. Neste momento preocupam-me outras coisas.

 

Lembra-se da vida preenchida do Comendador? De como retirava tudo da nossa, do tempo que não tinha para nós, até para as pequenas coisas que não consumiam tempo e das desculpas inconsistentes que arranjava para se justificar, de como o fazia de forma gratuita e sem qualquer critério? Perguntava-me na altura se ele não dava conta que nós dávamos conta disso ou se dava conta e fazia de conta! O Comendador estava-se nas tintas para isso, perdoe-me a vulgaridade dos termos! Não era para nós que ele não tinha tempo, era para ele! Era com ele que não conseguia estar a sós e como nós lhe permitíamos isso e algumas vezes até o confrontávamos com isso, ele fugia. Mas não era de nós que fugia!

 

Não posso dizer que me sinto ridícula ao descobrir isso agora, porque isto era na altura impensável! Ainda hoje o é, porque se trata apenas da minha perspectiva dos factos, apenas uma e esta!

 

Mas, repare a senhora, que razão plausível poderia haver para a recusa persistente, constante, perpétua no tempo e sistemática, de convites puramente inofensivos e inconsequentes?! Unicamente o medo! Não, minha cara Madame de Bovery, não é preciso saber responder a isso, o medo, só por si, justifica tudo!

 

Recusava ter uma conversa a dois com o mesmo não que utilizaria se o pedíssemos em casamento. Já no caso das cartas, sendo escritas, funcionava de forma completamente diferente porque não lhe podíamos ver a cara e porque dispunha do tempo que precisava para se preparar, estudar, encenar. Ainda assim não resultava.

 

Acha que foi por isto que se foi embora?

 

Repare que o Comendador nunca soube lidar com o confronto, que nunca soube gerir conflitos. Nessas situações saía sempre discretamente pela porta das traseiras, escudava-se no silêncio como se isso fosse o resultado de uma educação esmerada. Mas era pura impotência, cobardia, insegurança.

 

Repare ainda que se foi embora avisando que ia, mas não deu nenhuma explicação sobre isso, não fundamentou a sua decisão e é estranho isto nele, porque as duas sabemos como ele era preciso e exaustivo no defender, justificar e argumentar das suas atitudes. Mesmo quando, aconteceu-me tantas vezes, se concordava com ele, não prescindia de expor os motivos que o levavam à tomada de decisão. Pergunto-me também, e só agora, se não era a si próprio que tinha verdadeira necessidade de se justificar, se não era a si que tinha absoluta necessidade de se perceber, entender e fundamentalmente aceitar, mais grave do que isso, conhecer!

 

Mas porquê isso? Que vazio existiria nele para esta necessidade abstracta de preenchimento, como se tivesse nascido amputado, tivesse tido durante o seu crescimento sempre consciência disso e em vez de se achar enganado e se sentir tentado a corrigir-se, fizesse exactamente o contrário, quisesse contrariar a falha com que tinha nascido e que só por ele era notada, cavando um buraco ainda maior!

 

Talvez fosse essa a questão, o défice, o que tinha realidade nele, tinha para ele realidade no mundo exterior e não era assim, ao menos não parecia ser!

 

E repare ainda que nada disto é normal. Dos sentimentos mais naturais que tem o ser humano é fazer constantemente a pergunta: estarei enganado? O Comendador não a fazia! Tem esta mesma impressão a seu respeito, estarei enganada, estaremos as duas? Tudo é possível! Eis o que me parece saudável: questionar do mais simples ao mais complexo, de um extremo ao outro.

 

Talvez, para melhor entendimento, seja preciso procurar primeiro nos seus pais, os senhores seus sogros, e depois na sua infância. Haverá numa dessas situações, senão nas duas, a razão do ser assim?!

 

Quem é que mandava lá em casa: o senhor seu pai ou a senhora sua mãe? Teria havido em sua casa uma clara inversão de papéis ao que era habitual na época? A mãe governava a casa, dava as ordens, ditava o que se devia ou não fazer, punha e dispunha, era autoritária e prepotente, enquanto o pai não passava de um tosco? Nunca lhe ouviu este comentário!? Teria ele crescido em toda a infância revoltado com o papel que o seu pai assumia, passivo, obediente e submisso? Teria nessa altura ele jurado a si próprio que consigo isso nunca seria aceitável e que jamais aconteceria, levando isso ao limite, como se quisesse na idade adulta vingar o próprio pai, sem nunca ter percebido que ele fazia isso de bom grado e que até agradecia à mulher por lhe poupar tanto trabalho, reconhecendo que ela fazia melhor o papel que ele alguma vez faria!

 

Teria sido isto a conturbá-lo, o facto de o seu pai reconhecer que, em certos casos, havia alguém melhor do que ele ou mais adequado a desempenhar uma tarefa? O reconhecimento de maior competência num ser supostamente mais débil, ter-lhe-ia invertido conceitos que se recusava a os ver assim!? Ter-lhe-ia faltado na figura paterna o que ele tinha por ideal de ser homem!? Seria por causa disso que tratava as mulheres com distanciamento, arrogância e frieza como se tivesse pavor de se aproximar delas, com o medo de ser dominado, ficar dependente ou refém, como tinha, no seu ver, acontecido ao pai a quem ele sempre tinha visto como um fraco!?

 

Teria ele ouvido alguma conversa entre os pais, aos cinco anos de idade, quando já tinha a personalidade formada, mas ainda não a maturidade capaz de o fazer perceber o contexto, o entendimento das palavras, as razões de ambos para escolher essas e não outras, coisas que nem os adultos têm!? Poderá ter tido isso uma implicação determinante na sua vida, limitante, castradora!?

 

Era o mais novo, o mais velho ou um do meio? Estava entre irmãos homens ou entre irmãs mulheres ou as duas coisas? A ser este o caso, quem era mais velho e mais novo? Os avós viviam na mesma casa dos pais? Maternos ou paternos? Havia um ou uma tia-avó solteira, daquelas que têm uma disponibilidade infinita para as crianças? Havia amas, daquelas que substituem quase inteiramente as mães no seu papel de cuidar das crianças? Quem é que lhe dava banho? Quem é que lhe contava uma história ao deitar? Que histórias é que lhe contavam antes de adormecer? Com que idade foi dormir para um quarto sozinho? Quando chorava de noite quem é que se levantava da cama para lhe dar colo? Partilhava o quarto com algum dos irmãos? Quando tinha pesadelos os seus pais permitiam que ele se enfiasse na cama deles? Quem é que lhe arranjava o pequeno-almoço?

 

Alguém em casa praticava o desporto da caça? Havia armas, algum acidente na sua habitual limpeza que feriu não o próprio, mas um inocente, o raio de um azar do estar ali em vez de noutro sítio? Seria por causa disto que o Comendador tinha aquela consciência sempre presente e da qual era refém, de que estava ali, mas podia não estar?! Desculpe a pergunta que sei ser demasiado íntima, mas havia alguma cicatriz no seu corpo?

 

Havia missa aos domingos? Ia de livre vontade ou contrariado? Recusava-se a ir?

Alguma vez os seus pais foram chamados à escola por comportamento pouco digno ou desadequado? Quem o ajudava nos trabalhos de casa? Estudava sozinho ou acompanhado? Quando tinha más notas alguém o repreendia? Era castigado por isso? Que castigos lhe davam? Quem o levava à escola? Quem é que estava presente, ao fundo da sala, no seu exame de admissão na quarta classe?

 

Obrigavam-no a comer a sopa quando ele dizia que não queria?

Com que idade...?

Nunca haveremos de saber!

 

Pois é exactamente essa, minha cara Madame de Bovery, a grande dificuldade que eu tenho, a de saber que importância é que tudo isto tem e em que dose certa a devemos dar a essas mesmas coisas! Damos a que sabemos, mas sabemos pouco!

 

Há contudo um erro sistemático que sempre podemos cometer nos raciocínios: quando são lógicos parecem-nos correctos, mas alguns de nós sabem que neste puzzle as peças podem encaixar todas e apesar de não sobrar peça alguma, não quer dizer que o puzzle esteja bem construído! As peças encaixam de várias maneiras porque há semelhança no formato ainda que o seu conteúdo seja diferente, às vezes oposto, às vezes sem nada de coincidente! Temos a verdade e o seu contrário em pé de igualdade! Não é bom!

 

O Comendador quando fazia puzzles nunca lhe sobravam peças e via nisso uma vitória, quando nem sempre era disso que se tratava! Talvez fingisse ver, tinha as suas máscaras, como todos nós! Esta era apenas uma delas, a mais simples, a mais óbvia e a mais fácil de descobrir! Quanto ao resto não posso dizer nada, pelo menos com a convicção com que digo esta!

 

Com um abraço da sua grande amiga

Maria Francisca

 

 

10
Mai17

Cartas a Madame de Bovery


cartas-madame

 

Minha cara Madame de Bovery (1)

 

Conhecemo-nos há demasiado tempo e bem para que seja necessário eu fazer-lhe qualquer nota introdutória ou dar-lhe alguma satisfação deste meu propósito. Sei que nunca me questionaria sobre essa ausência, mas não posso deixar de o fazer.

 

Ambas somos reféns de uma educação que sempre colocou em segundo plano a liberdade individual e autónoma do pensamento, a decisão do livre arbítrio ou o simples manifestar de sentimentos, ainda que estando eles cobertos de razão. Sempre nos foi dito o contrário disso, que importa mais a razão e que só secundariamente e em casos muito específicos lhe podemos colocar o véu das emoções.

 

Começo então. Há muito tempo que sentia em mim esta vontade de lhe escrever e o facto de só agora o fazer e de ter coincidido com o post mortem do Comendador não é, ao menos de forma consciente, conto consigo para mo fazer ver à sua maneira e questionar a minha, como um substituto da alma ou uma pretensa forma de sublimar a minha solidão. Aceito bem que possa estar enganada, porque a recente partida do Comendador me não deixou indiferente e o que neste momento me surpreende, repare, mais do que preocupa, é o estado de alma ou de espírito em que me encontro.

 

Era fácil, talvez simples, chamar-lhe vazio, um sentimento de ausência, um inconformismo pelo já não estar! Tudo isto se adequava, do meu ponto de vista, a este presente que hoje vivo, mas não sinto nada disso e o que sinto não lho sei transmitir pela linguagem escassa e precária das palavras. Apesar disso, vou tentar.

 

É uma paz muito grande! É como se tivesse partido também com ele o meu desassossego. Ora isto é incompreensível! Então agora que me falhou o interlocutor para o meu agitado debate de ideias, pontos de vista e raciocínios ou diferentes ângulos de visão e perspectiva, é que me veio a quietude, a tranquilidade, o sossego?! E isto leva-me, literalmente transporta-me, para um pensamento estranho: simbolizaria o Comendador, em si mesmo, o meu próprio problema?! Uma sombra que só existe porque há simultaneamente um corpo?!

 

Tem toda a razão, já me ocorreu isso mesmo, se não será antes ou em vez disso aquele sentimento de que falávamos no outro dia: o desapego! Como se houvesse coisas cuja existência só é real quando estão relacionadas com outras e que quando as partes que de alguma forma as constituem se desintegram, morresse também com elas a intenção, o propósito, a razão de ser, a sua própria existência! Poderemos chamar a estas coisas reais ou elas são unicamente o produto, o resultado, a consequência de tudo o que ficticiamente as rodeia, a que apenas o nosso imaginário apela!? O ninho da águia sem a águia, que significado tem?

 

Sim, pergunto-lho a si porque a sei disponível para este tipo de coisas a quem, mais do que as questões intimamente relacionadas com o ser humano, lhe é grato o tema das relações humanas. É também verdade, não lhe colocaria a questão se eu mesma tivesse resposta para ela, ou colocar-lha-ia de outra forma!

 

Digo, quando a identidade do ser humano se molda pelas circunstâncias em que ele próprio vive e das quais significativamente depende, tem sinónimo em personalidade mais frágil?! Ou estamos, em sentido oposto, não contraditório, a falar de inteligência adaptativa, elasticidade mental, maturidade cerebral, sabedoria de vida, flexibilidade neuronal, sinapses conversíveis, emoções de substituição, compensações subversivas, raciocínios de alternância comportamental, etc. ou estamos tão-somente a falar de novos neurotransmissores, cuja actuação nos receptores está ainda por definir!? É por aqui?

 

Recuemos um pouco. Quando sentimos a falta do que deixámos de ter é porque isso era importante para nós ou simplesmente porque estávamos habituados a isso e é da mudança que temos receio e à qual nos não conseguimos adaptar?! Não, não fui completamente honesta quando falei no “simplesmente” habituados, porque é de facto muito custoso deixar hábitos, criar outros ou perdê-los sem ter novos! Acha verdadeiramente que os hábitos se podem substituir? Somos capazes disso? Com que intenção o fazemos? É sempre a de preencher um vazio? Será mesmo necessário este processo? Como caracterizaria este mecanismo: é primário, instinto de sobrevivência ou é um processo mais elaborado, com pressupostos estratégicos bem definidos? Há consciência nisto?

 

Recuemos mais um pouco. Antes de ter, temos necessidade disso? É no conhecimento das coisas que está a necessidade delas? Há quem diga o contrário, que as coisas surgem depois da sua necessidade: o fogo, a roda, a luz... a economia!

 

Sim, o processo é dinâmico! Dizemos sempre isto quando não sabemos responder às questões e achamos que elas não podem ficar sem resposta. Seria fácil se não soubéssemos isto ou se fossemos capazes de o ignorar, ainda que o soubéssemos! Nenhuma de nós é capaz disto, de fingir. Claro que sim, mas não chega, fica-nos a consciência disso por resolver!

 

Hoje, enquanto caminhava junto ao rio, veio-me à memória aquela sua frase que sempre me faz sorrir e instintivamente procurei uma pedra que, à semelhança das pessoas que vêm pelo rio abaixo aos trambolhões sem encontrarem uma pedra que as detenha, pudesse deter os meus pensamentos! Mas nada, a corrente era forte, o rio transbordava do leito pelas recentes cheias e arrastava tudo com ele, sem dó nem piedade. As águas eram turvas, pastosas, térreas, lamacentas e o meu pensamento espelhado nelas era de uma clareza aflitiva: o Comendador tinha partido e eu não sentia absolutamente nada, nem sequer culpa por causa disso!

 

Mais do que paz, subiu-me nesse momento pelas veias até à cabeça uma sensação de liberdade a ponto de ter falado: queres ver que eu estava presa?! Era por isso, minha cara Madame de Bovery, que de vez em quando me mandava entregar flores e doces, como se existissem grades nas minhas janelas, através das quais eu contemplava este nosso mundo?!

 

A senhora sabia e tentou dizer-mo de uma forma tão discreta e sublime que eu nunca percebi! Hoje, deixo-a aqui, não com os seus, mas com os meus pensamentos! Vê egoísmo nisto? De quem?

 

Com um abraço desta sua amiga

Maria Francisca

 

 

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