A Grande Aventura
(SCENAS DA GUERRA)
António Granjo
A GRANDE AVENTURA
(SCENAS DA GUERRA)
Nota: A GRANDE AVENTURA - (SCENAS DA GUERRA) é um pequeno livro que resultou da participação do ilustre flaviense António Granjo na I Guerra Mundial de 1914-1918, que deixamos aqui em episódios, escritos no português da altura, incluindo erros e gralhas tipográficas.
De Brest a Etaples
Não sei bem por que complicadas conveniências, aos oficiaes que vão no meu transporte não é permitido ir a terra. Engrunho os hombros.
Um dos meus camaradas comenta:
— C'est la guerre...
Desembarcamos no dia seguinte e formamos no caes, à espera que se organisem os comboios.
Debruçados de um muro alto, os habitantes olham com curiosidade estes novos soldados do Direito, que veem do extremo ocidental, para tomarem o seu logar na linha de batalha.
Uma velhota vende laranjas de Sagunto, embrulhadas em reclamos da casa exportadora. Anda vestida de preto, e nos olhos azuis, magoados, tristes, parece viver a imagem de algum filho morto em combate.
—Madame, des oranges...
E procuro dar à voz uma entoação de enternecida simpathia.
A velhota fita-me e os seus olhos adquirem subitamente um tom duro e glacial.
Insisto:
—Madame, des oranges...
A mulhersinha volta as costas e afasta-se, numa grande atitude de dignidade ofendida.
Um dos soldados dirige-se-lhe:
—Mademoiselle...
E logo a velhota tira da cesta duas laranjas, oferecendo-as ao soldado, e arremessando-me um olhar fulminador.
É a primeira lição de coisas. Já sei que nesta boa terra franceza terei de considerar solteiras todas as mulheres que encontrar pelo caminho. Não se pode dizer que não haja nisso certa vantagem...
Os pelotões põem-se em marcha e formam em frente dos vagões que lhe são destinados.
Faz-se a distribuição das rações. Verifica-se que não chegam para todos. C'estl la guerre...
Não é possível aguentar na forma os soldados, cançados das vigílias da travessia, sentindo ainda as tonturas do enjôo, e exaustos das longas horas de formatura. Saltam às carruagens, atirando-se uns para cima dos outros, praguejando, insultando-se, empurrando-se, largando os equipamentos, disputando-se as latas de conserva. É o rebanho humano.
Acondicionado o meu pelotão, espapaço-me numa carruagem de 1.ª; e é mergulhado numa
deliciosa modorra, mal percebendo as vozes dos oficiaes, as pragas surdas dos soldados, os apitos das machinas, que sinto rolar o comboio.
Toda a noite o comboio rolou pela planície sem fim. Como cabeleiras de sombra, as florestas ondeiam na noite, e os campos deslisam, intérminos, isóchronos, sem uma parede, sem uma ondulação, como uma imensa superfície tingida de negro.
Um capitão, que se sentou à minha esquerda, deixou pender a cabeça sobre o meu hombro. Um aspirante miliciano, defronte de mim, encostou-se para traz e dorme tranquilamente. Uma pequena sombra, projetada pela esquina duma mala da ordem, e que vae mal segura na rêde, põe-lhe na face um laivo de mau agoiro.
De vez em quando o comboio pára numa estação, vê-se o kepi de um oficial francez assomar á portinhola, e continua-se rolando na noite.
Numa carruagem próxima canta-se o fado. As notas penetram na treva como soluços. A voz eleva-se, primeiro gradualmente, pastosa, cheia, quasi vertendo sangue, como um coração que uns braços aflitos fossem levantando para o céo; depois a voz baixa, devagarinho, suspendendo-se, pairando, como uma
lagrima que se fosse despejando dos olhos duma estrela. Certos soluços parecem quasi gritos, como se estivessem decepando um collo; certos queixumes mais parecem os suspiros de uma alma arrancada a um corpo moribundo. A noite possue-se de maior tristeza, a paizagem carrega-se de maior negrura e a alma abandona-se-nos mais á fatalidade do destino.
Ouve-se uma voz, a uma portinhola visinha, cortando uma conversa:
— Seja o que Deus quizer!
Quando aparece o dia, tudo quer ver a terra estranha, pela qual se vae combater. A planície estende-se até á linha do horizonte. Aqui e ali manchas florestaes; interminavelmente, verdes pradarias, onde pastam vacas leiteiras; campos de trigo, onde a lingua doirada de um sol ainda convalescente lambe gulosamente as hastes, espalhando a sua baba luminosa pelos regos d'agua.
Um soldado meu conhecido, de Barroso, passa junto da minha carruagem e despede-me o estribilho regional:
— O' meu alferes, isto p'r'aqui é que são terras!
Não se vê ninguém a trabalhar. A Terra é que oferece os seus opimos frutos ao homem. Esta gente deve viver quasi sem esforço. A agua corre por todos os lados, como sangue alegre e vivo e as sementeiras gradam por si, como nos nossos campos gradam as urzes e as estevas.
Pobre lavador de Traz-os-Montes, rasgando a enxadão os seios da encosta para poder comer um bocado de pão, remexendo de sol a sol, todo o santo dia, as entranhas do apertado vale para poder comer umas batatas á ceia! Pobre lavrador do Douro, transportando ás costas a terra que ha-de encher os interticios dos rochedos, onde os braços da videira se enrosquem, para que o sol toste os bagos loiros das uvas! Pobre lavrador minhoto, aproveitando as arvores para enforcar as videiras, e sachando o campo com a mesma devoção com que reza o padre nosso para se assegurar uma brôa de milho!
Como é que se não ha-de ter criado nesta terra uma grande civilisação, se a vida parece tão fácil que basta vivel-a?
Soam-nos aos ouvidos, durante o dia, nomes conhecidos de cidades, de rios, de regiões. Amolecidos, enfartados da viagem, mortos por chegar ao fim, tudo passa deante dos nossos olhos como um vago cosmorama.
Não sabemos ainda para onde vamos. Em Lisboa, baldearam-nos do comboio para o transporte, como a uma carneirada; em Brest meteram-nos nos vagões como uma teoria de escravos. Começam a buzinar-nos aos ouvidos com as necessidades estratégicas e o perigo da espionagem.
Pelo fim da tarde, o comboio estaca deante de uns barracões de madeira. Ouve-se falar portuguez. Trepa á carruagem um oficial de infanteria 6 e anuncia:
— E' aqui!
Equipamo-nos. Apeamos. Um grupo de oficiaes inglezes observa-nos. Uns prisioneiros alemães que trabalham na construção de uma nova via suspendem as picaretas e enviesam os olhares para estes novos inimigos.
Quando começamos a subir para o acampamento, em coluna de marcha, com uma banda á frente, um aeroplano paira por cima de nós, como um grande abutre de azas abertas, espionando a preza.
Continua na próxima quarta-feira…