Discursos Sobre a Cidade - Por Gil Santos
As cerejas do Planalto
Maio é o mês do ano que mais me chaldra, não só por representar o pino da primavera, em que a natureza mostra o máximo vigor da regeneração, como ainda porque foi neste mês que respirei pela primeira vez em terras de Santo Amaro. Além do mais, é o mês em que a Virgem Maria se mostrou aos pastorinhos na Cova da Iria. Mas é também o mês dos burros, por ser a época em que as fêmeas se levantam à cria! É ainda o mês das maias, tempo em que as giestas exibem as suas cores, pintando de amarelo e branco as poulas que, ao longo do ano, se mostraram tristes e cinzentas.
Maio é também conhecido por ser o mês das cerejas. Mas só se for nas terras mais macias da ribeira, porque, a bem dizer, o mês das cerejas na meseta fria era mais o junho e, o mais das vezes, o julho. E era bom que assim fosse, pois enquanto os donos dormiam a sesta, a rapaziada pendurava-se nos galhos das cerdeiras e enchia o fole. O pior é que o fruto quente tendia a amolecer a tripa e era muito comum, por via disso, andar-se de leque por este mês.
Ora, é precisamente à volta das cerejas do Planalto que se escreve a estória de hoje.
Cerdeiras, no Planalto do Brunheiro, é coisa rara e preciosa. Quem avezar cerejeira que medre, pode dar-se por muito feliz e acarinhá-la quanto possa, pois somente nos recantos mais merozinhos é que ela se dá e frutifica que valha a pena.
No pátio da farta casa de lavoura, tinha a família Morgado de Fornelos uma vetusta cerejeira que o ciclone de 15 fevereiro de 1941 cortara pelo trepo. Antiga e de respeitável porte, a árvore era aneira. Tanto frutificava, abundantemente, num ano, como no outro nem os melros alimentava. Era uma árvore centenária que algum antepassado, de quem já se perdeu a memória, teria plantado, em boa hora. A verdade é que no ano em que lhe desse para produzir, constituía um espetáculo de beleza impar. Uma farturinha!
Contudo, a cerdeira era altaneira e não se oferecia por dá cá aquela palha. Era necessário arrojo para lhe montar os galhos mais altos e alcançar-lhe as repas, onde as cerejas eram mais carnudas e reluzentes! Só com a ajuda do sacho do cebolo é que se conseguiam derrear as galhas mais carregadas e colher as melhores cerejas francesas, rubras, carnudas e de sabor intenso.
Na casa dos Morgados, uma única pessoa era capaz de tal empreitada. Tratava-se do João Ranzinza, de Vale do Galo, que veio servir ainda com as calças rachadas no rabo. Fisicamente era talhado para o efeito. Parecia uma levandisca de galho em galho, catando as cerejas para uma cesta que descia por uma corda para vazar e subia para tornar a encher. No entretanto, Ranzinza aproveitava para atestar o bornal. Oportunidade única, dada a penúria da época!
Muitas das vezes, as cerejas do pátio dos Morgados serviam para pagar favores aos senhores da cidade. Ao médico, pela disponibilidade de uma consulta, ao veterinário, que salvara um boi galego empertigado ou uma vaca afogada e ao advogado que dera bons conselhos sobre um caminho de serventia ou a torna da água no Lameiro Grande!
A matriarca da família, oriunda da Invicta, tinha por lá muitos parentes que aproveitavam a fresca do Planalto para passar férias no verão. Vinham no comboio até Chaves e depois subiam os dezassete quilómetros do macadame da encosta do Brunheiro alapados nos bancos corridos montados pelo Soqueiro no carro de bois que se disponibilizava para o transporte até Fornelos, lugar limite do concelho de Chaves, sito nos Cornos do Planalto.
A primavera daquele ano de finais da década de trinta foi muito molhada. A canabeque, semeada em março, apodreceu na terra e teve de ser replantada em abril. O centeio, que se segaria no verão, estava tolheito. Chovera desalmadamente desde março e até ao S. João. Não fosse uma pequena trégua no mês de abril, que permitiu que as flores da cerejeira polinizassem, e não se enxugaria uma cerejinha que fosse. Mas, apesar de tudo, a coisa correu bem e, contrariamente ao que era previsível, foi um ótimo ano de cerejas.
Do Porto, costumava vir de férias para Fornelos o Antenor, um velho guarda-freio da Carris, já aposentado, pai da matriarca de Fornelos. Contador de estórias, poeta do improviso e cantador à desgarrada que acompanhava à rabeca, era um homem polido e de grande sapiência. Muito considerado pela idade avançada, o facto de ser tripeiro também lhe conferia um estatuto especial no Planalto. Por isso, os seus conselhos e os seus desejos eram sempre muito bem acolhidos. Vinha a ares, consolidar a cura, milagrosa, de uma tísica que o ia chimpando, mas igualmente com o cheiro nas cerejas do pátio, fruto que ele tanto apreciava. No Porto, lerpava as cerejas de Resende que chegavam a S. Bento no comboio a eram apregoadas pelas ruas da cidade. Todavia, vinham, quase sempre, carregadinhas de bitchos e, além do mais, custavam os tostões que faziam falta para a sêmea. As de Fornelos eram de borla e à tripa forra!
Nesse ano, chegou a meados do mês. A cerejeira do pátio estava pojante. Carregada de pérolas rubras, parecia o andor do S. Caetano pejado de notas de vinte mil-réis. Tentadora, para o comum dos mortais, para o velho Antenor constituía uma espécie de Éden que o levaria, por certo, ao êxtase.
No dia seguinte à chegada, pela manhã, solicitou os favores do Ranzinza para lhe encher uma cesta da meia de cerejas. Levaria uns dois quilos, mais ou menos.
João, depois de ir tocar a cria ao Belão, subiu à cerdeira. Usou uma escada enquanto não pôde abarcar o tronco, depois foi a pulso. Pendurou ao cinto o tal sacho do cebolo para alcançar os galhos mais finos e colher os melhores frutos. Ranzinza era muito solícito e o amigo Antenor agraciava-o, quase sempre, com dois ou três tostões para tabaco.
A cesta ficou cheia em menos de um Padre-nosso.
O Antenor esperava a fruta no cimo das escaleiras de perpianho, sentado num velho banco de carvalho. A cesta de vime, cheia, caiu-lhe no colo e ele nas cerejas!..
Pediu para que o criado se sentasse ao seu lado, não para as partilhar, mas para dois dedos de conversa atualizando novidades.
Comeu, comeu e comeu. Foi até lhe chegar com um dedo!
Regalou-se!..
Havia sobrado uma única cereja no fundo da cesta. Antes de a emborcar perguntou:
— Ó rapaz, as cerejas terão mourrões?
Que não, as cerejas do Planalto não costumavam ter a carne. Mas que a olhasse!
Abriu cuidadosa e demoradamente a última cereja e topou, junto ao caroço, um anafado mourrão branco a rabiar!
Virou-se para João e comentou:
— Fosca-se, Ranzinza, olha se me dá para comer esta!..
— Ó amigo Antenor, não teria problemas, os mourrões das nossas cerejas são limpinhos, pois são criadinhos cá em casa!
Desta vez os tostões da gorjeta quedaram-se no porta-moedas de couro ensebado do Antenor e o João a ver navios, ao longe, cruzando os horizontes das serras do Barroso!
Gil Santos