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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

07
Abr20

Chaves D´Aurora

ROMANCE


1600-chavesdaurora

 

 

  1. SUB JUDICE.

 

 

Ao dizer tudo isso a Lucinda, esta, com o auxílio de um dedo indicador e um polegar sobre as pálpebras da rapariga, atentou para o facto de que os olhos de Aurita deveriam ficar bem abertos, cada vez mais e sempre. Depois falou-lhe, a balançar a cabeça com descrédito – Tens que estar muito segura de que ele te ama, de facto. Quando duas almas unem seus corpos por se amarem de verdade, podem voar bem livres, até às mais altas nuvens e montanhas. Tudo pode se tornar mágico e belo, como num circo, mesmo entre as paredes de uma humilde habitação. Mas te pergunto, minha boa Aurita, será que esse gajo te ama, realmente, ao menos um tantito assim, de tudo o quanto estás a merecer? – Tornou a balançar a cabeça – Ou será que ele está apenas a querer se aproveitar de ti, como às mulheres pataqueiras?

 

Ante à previsível reação de Aurora, acalmou-a – Não, não! Estás a ver que eu não estou a insinuar coisa alguma... lá isso, não! Tal não é, nem nunca haverá de ser do teu feitio! Ah, minha rica menina! É preciso perceber se ele te ama para todas as horas e não apenas para os minutos de seu bel prazer – e tirou então, do baú de suas experiências, a assertiva de que a maioria dos homens (pelo menos os daquela época), está pouco a se importar em ver suas mulheres alcandoradas, antes, durante e após fazer amor. Quase todos querem, na verdade, apenas que elas fiquem a satisfazê-los, em seus caprichos de macho.

 

Aurora tentou dizer – Mas o Hernando... – calou-se, porém, incerta quanto ao que ia completar, enquanto a amiga explicava – Os machos orgulham-se de seus membros viris e até se comparam, entre eles, as grossuras e tamanhos, mas troçam das partes íntimas de nós, mulheres. Alguns chegam até a demonstrar nojo de chegar a face perto de nossas partes íntimas, acham uma coisa feia de se ver e, quando se aventuram a olhar, dizem a rir que “aquela coisa sabe a bacalhau” – factos para os quais Aurita jamais atinara e tudo isso a deixou impressionada – Mas são todos assim ?! – Lucinda balançou a cabeça – Salvam-se alguns.

 

Tudo isso era o que a amiga opinava, mas, pelo menos àquela altura e até várias décadas depois, era bem real o que ela estava a afirmar e talvez pudesse, estatisticamente, confirmar-se no contexto de então. Ela prosseguiu, convicta – Aqueles que amam de facto as mulheres, sabem achar bonito qualquer cantinho do corpo de cada uma de nós; sabem beijar suas amantes de várias formas; sabem encontrar caminhos raros e carinhos intensos, que até mesmo algumas meninas não sabem existir e sequer imaginam como encontrar em si mesmas.

 

Aurora Bernardes, ainda que ficasse várias vezes a corar, chocada com a crueza da amiga ao falar de tantas coisas novas e estranhas (mormente que, ao falar disso tudo, a linguagem de Lucinda fosse bem mais rude e mais explícita do que a deste narrador) e embora muitas coisas e loisas ainda não lhe coubessem entender, guardou essas informações dentro de si, o máximo que pôde. E, dessa vez, aquém do Brunheiro e do Barrosão. Continuava a sonhar, todavia, que o amor de Hernando para consigo estava a se tornar tão grande, quanto a sua paixão para com ele. Portanto, logo tratou de pôr o seu pote com água na cabeça, sobre uma rodela de pano torcido e se afastar do poço de incertezas onde, estarrecida com as palavras de Lucinda, estava prestes a mergulhar.

 

Embora sem nutrir qualquer simpatia pelo jovem Camacho, Lucinda consentiu em procurar o rapaz e lhe expor toda a conflituosa situação em que Aurita se encontrava. Pediu então ao gajo para confirmar, uma vez mais, se ele iria ao Porto buscar sua brasilita. Ao retornar, a modista retransmitiu à amiga, afinal, o sim tão desejado. Isso gerou em Aurora uma grande alegria, ainda que melhor fora se tal palavra tivesse sido proferida, diante de si mesma, pelos lábios do próprio amante.

 

 

  1. PÁSSAROS.

 

No último dia dos Bernardes ao Raio X, ao abrir uma janela, Aurélia deixou seus ouvidos...

 

(continua na próxima terça-feira)

 

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10
Set19

Chaves D´Aurora


1600-chavesdaurora

 

  1. PRECONCEITOS.

 

A um domingo de dezembro, de raro sol e frio mais ameno, após muitos rogos de sua Menina Flor, João Reis levou-a com as filhas e a pequena Fátima a passear. Aurora, como previsto, ficou sozinha em casa. Alfredo e Alice tinham ido até à casa do Gomes, em Vidago, enquanto Afonso fora visitar uma rapariguinha na Raposeira, com quem estava a namorar e que, a essa altura, criava gatos. Portanto, o que lhe havia de mais agradável... nenhum Popó.

 

O passeio correu tranquilo, com o semovente clã a receber de todos, à passagem, educados cumprimentos. À altura do Largo do Bacalhau, todavia, calhou de Arminda retardar-se um pouco diante da Capela de Santa Catarina. Amigos e familiares de alguém da Vila, recém-falecido, lá estavam, contritos e pesarosos, a velar os restos mortais de seu defunto. Entrementes, o morto esboçava um sorriso de Mona Lisa para expressar o que, intimamente, ainda o divertia no espírito, ora prestes a se desfazer no éter. Tentava, ainda, filosofar sobre a hipocrisia de uns e a cara de canastrão de outros.

 

Eis que Mindinha ouviu então, de uma senhora de rica aparência, que estava a chegar à capela, as terríveis palavras pronunciadas à meia voz e à meia distância dos Bernardes – Que tristeza há de ser isso! Ver o falhanço de uma menina trazer a desonra de uma família! – e a outra dama que a acompanhava – Ora, pois, e lá se vão os pobres avós a carregar a bastardinha!

 

Mindinha reintegrou-se aos seus e, desse momento em diante, amuada, não falou mais com ninguém. O resto do passeio lhe perdera toda a graça. Ao chegar de volta à Quinta, pediu para falar a sós com o Papá. Contou-lhe tudo, enfim, do que ouvira sair das bocas de tão elegantes, mas tão ferinas senhoras. Reis apenas respondeu – Deixa lá estar, menina, deixa lá estar. Essas coisas, é melhor esquecer, deitá-las para bem longe dessa tua nobre e leal cabecinha! – Ele, porém, não esqueceu e o que mais lhe doía era essa maldita palavra proferida sobre a netinha que, em sua pureza e inocência, jamais deveria merecer o opróbrio de ninguém, muito menos daqueles que se diziam humanos e cristãos.

 

 

Foi então que João Reis, a uma real demonstração de quanto amava a pequerrucha, decidiu-se a fazer uma última tentativa de salvar a dignidade, se não a da filha, ao menos a da neta, que ora estava a começar por descobrir o mundo, ignorante de qualquer mal. Iria fazê-lo, sim, ainda que tal resolução viesse despi-lo de todo o resto de autoestima possível. Mandou um aviso por Manuel, o cocheiro, de que, na tarde do próximo sábado, pedia que o senhor Germano Camacho e dona Mariazita os recebessem, a si e à sua esposa, dona Florinda, para tratar de um assunto de real interesse para ambas as famílias.

 

 

  1. EMBATE.

 

À véspera do encontro, Germano Camacho quis ter com o filho uma séria e definitiva conversa....

 

(continua na próxima terça-feira)

 

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12
Dez17

...


1600-chavesdaurora

 

  1. “LAUS AMORIS”.

 

Seguiram-se outros breves encontros, com os pombinhos a se aproveitarem das oportunidades da sorte, uma vez que, naquele tempo, os namoros só eram bem vistos quando encarados com uma seriedade pré-nupcial.

 

O moço das belas suíças estava sempre elegante, em seu fato de linho, a portar consigo um vistoso Swiss Tissot, preso a uma corrente de ouro, a qual se estendia de um dos bolsos do colete até à algibeira. À cabeça, tinha habitualmente um charmoso chapéu comprado ao Porto. Ele que, até então, tal como os demais rapazes da Vila, restringia sua religiosidade às missas dominicais e a ofícios em datas festivas, mostrava-se agora um fervoroso devoto, a marcar sua presença em novenas, rezas, ladainhas e que tais, em tudo, enfim, a que a sua amada estivesse presente.

 

Nonô, por sua vez, entregue a esses atos piedosos com real sinceridade e constância, entrara para a congregação das Filhas de Maria na Igreja Matriz, onde cantava ao coro. Acabou por ganhar aquilo que, após os números de mágica, vinha sendo negado à mana Aurita: a confiança de Papá. Vivia saindo de casa, agora, com uma frequência nunca antes permitida, aldemenos que fosse de casa para a igreja e da igreja para casa, e sempre junto de sua fiel escudeira Sancha Maria Pança de Tourém. Por ordens de Mamã, a criada acompanhava a beatífica menina às reuniões vespertinas na igreja, para esta se dedicar às orações e obras de caridade (agora, na caridosa companhia de um recém-beato). Graças a doces afagos verbais e à promessa de um manhuço de réis, Maria sempre deixava que a menina, à saída da igreja, demorasse um pouquinho mais para usufruir de alguns momentos de boa conversa com Sidónio.

 

Os namoradinhos passaram a trocar bilhetes, em que falavam do mais puro amor, como nestes versos que um dia o rapaz, em sua melhor caligrafia (a possível) e de acordo com a ortografia da época, dedicou à sua amada:

 

“A vida é cheia de trevas e de frio.

Só se bebe fel, só se pisam ´spinhos.

Cahem de cima os vendavaes a fio

 Estão cheios d’ abysmos os caminhos

E por todo esse mundo só achamos

Miseráveis e nus os pobrezinhos.

 

 

Por isso se na vida deparamos

Com um amor singello, casto e puro

Paremos, porque o céo já alcançámos.

O amor é o alto e inabalável muro

Contra o qual não prevalece o pecado,

Nem inveja ruim, nem jogo impuro.

 

Seja, por isso, o amor sempre louvado!”

 

Assinou apenas “António”. Tratava-se, todavia, do poema “Laus Amoris”, copiado a um jornal de Chaves e seu verdadeiro autor era um outro António, o Granjo. À altura da escrita desses versos, o poeta era, então, um jovem estudante flaviense em Coimbra, mas já prosseguia em sua obstinada atuação política a favor dos ideais republicanos.

 

A um dos raros bailes em que o Papá concedia que as filhas prestassem o brilho de seu comparecimento, os da Sociedade Recreativa Flaviense, Nonô estava a dançar com Sidónio, ao som da valsa de Armando de Pinho Dias “Os teus sorrisos”, quando o rapaz mirou-a bem nos olhos e disse – Amo-te. Quero que sejas minha companheira para todo o sempre, sob as bênçãos de Deus e dos homens – e Aldenora apertou a mão do rapaz que, a bailar consigo, já a mantinha entrelaçada à de sua jovem parceira – Também te amo, mas sabes que uma rapariga que tem família não é senhora de si. Hás de falar com o Papá – Falarei sim, com ele, com tua Mamã, com Chaves inteira, com Portugal inteiro. Ao mundo inteiro, enfim, gostava de dizer, em alto e bom som: amo-te! Amo-te! Amo-te!

 

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05
Dez17

Chaves D'Aurora


1600-chavesdaurora

 

  1. PRETENSORA.

 

Aldenora valeu-se do pretexto de ir até ao irmão, a perguntar de que riam tanto e nem ao menos se deu conta de sua tamanha ousadia. Estava a sair do grupo de raparigas e a se fazer intrusa no restrito e tradicional espaço masculino. Tal ato, certamente, poderia causar maledicências às suas costas ou, até mesmo, redundar-lhe em um baixo conceito social. O estratagema deu certo, no entanto. Afonso apresentou a irmã a António Sidónio e os pombinhos logo se viram a sós. Após um pequeno iceberg de titânico silêncio, os barcos de cada um singraram as águas aquecidas pelo mútuo encanto e, de imediato, puseram-se os jovens a palestrar, com as bocas e as palavras soltas, a deixarem fluir o que, antes, a timidez dos olhos apenas esboçara.

 

Enquanto alguns miúdos, como inoportunas osgas ou lagartixas, passavam aos corre-corres por entre o jovem e a bela rapariga, antes que seus papás respetivos lhes aplicassem uns generosos cascudos para se aquietarem, Nonô punha-se a trocar com Sidónio algumas ideias de interesse mútuo. Os breves instantes (assim diria o rapaz a Afonso, mais tarde) foram suficientes para lhe revelar que a menina era dotada de um admirável lustre intelectual. Esse era um dote incomensurável, mais raro do que a simples beleza, pois, ao contrário desta, não era fácil encontrar amiúde, entre as arcas de enxoval das jovens flavienses, um mínimo de erudição.

 

Ao contrário de Aurora, com sua paixão e sensibilidade à flor da pele ou, conforme já mencionamos, a sentir pela cabeça e a pensar com o coração; diversa de Aurélia, que não queria crescer nunca, feito um Peter Pan de saias; e posto que Arminda ainda estivesse a se pôr, para que dela já se pudesse analisar o jeito de ser; Aldenora era de uma personalidade forte e determinada, especialmente nos modos de controlar suas ações e emoções e de conciliar pejos com desejos. Quando percebeu que já estava a conversar mais tempo do que devia com o jovem Sidónio, pediu licença e voltou ao sítio das meninas. Não tivesse o rapaz um mau juízo dela, menos ainda se ele a comparasse a essas estrangeiras do novo século, a que tanto o Papá costumava aludir, após a ceia.

 

Era sobre isso, a uma outra roda formada por respeitáveis cidadãos de Chaves, que João Reis estava a comentar, naquele exato momento, com base no que estivera a folhear em um jornal do Porto. Exaltava-se – O que estão a querer, por certo, essas raparigas libertinas a fumarem, beberem e de tudo falarem às escâncaras, como os homens? Alcançar que elas venham a ser iguais a nós, ou, o que seria uma tontice bem pior... superiores?! – ao que outro convidado concordava – Uma imoralidade!!! – e outro mais suspirava – É, desses modos e feitios, para onde vai este mundo?! – uma vez que se fazia questão, ora pois, de se preservarem na Vila as boas tradições e os bons costumes.

 

Eram, certamente, posições avessas aos ares de liberação desses anos 20, quando se iniciavam tantos avanços femininos que, por algumas mulheres carismáticas, em suas reflexões sobre a vida e o modus vivendis, seriam defendidos em várias partes da Terra. Com o seu livre pensar e agir liberto, algumas se tornariam famosas nessa década, como Dorothy Parker, Anaïs Nin, Zelda Fitzgerald, as brasileiras Pagu e Chiquinha Gonzaga, a mexicana Frida Kahlo e, entre as portuguesas, a alentejana Florbela Espanca. Decerto que, a seguirem os passos de tais pioneiras, tais ventos libertários estariam ainda muito longe de arejar por aquelas paragens trasmontanas.

 

Ao resto da noite, não deixaram Aldenora e Sidónio de se entrecruzarem as pupilas e, com elas, exibirem um brilho especial de encantamento. Recíproco, pois. Quando, à hora de se fazer um brinde ao aniversariante, os dois ficaram lado a lado, por alguns instantes, com suas mãos a se roçarem levemente, ele murmurou – A que missa vais, aos domingos? – Sem lhe ver a face, ela sussurrou – À do meio-dia, na Santa Maria Maior.

 

 

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Igreja de Santa Maria Maior. Postal público. Autor desconhecido.

 

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31
Out17

Chaves D'Aurora


1600-chavesdaurora

 

  1. CASÓRIO.

 

Não foi lá muito fácil cair nas boas graças do velho Joaquim Lourenço. A questão maior é que, tão logo os coscuvilheiros da cidade não aguentaram mais os seus comichões linguais, foram logo dar ciência ao Lourenção de que o senhor Bernardes já semeara um fruto em terras brasileiras. A criança, que se chamava Zerlindo, fora gerada com uma mulata graciosa, moça prendada e instruída, filha de uma senhora que prestava serviços ao flaviense como arrumadeira. João não o quisera reconhecer de papel firmado, mas contribuía com algumas pecúnias para uma boa instrução e educação do petiz.

 

Aos olhos da inseparável bengala do aveirense, em plena concordância com seu dono, não agradava nem um pouco aquele namoro, que só poderia ir de mal a pior, por causa da vida pregressa do jovem comerciante de Chaves. Nas reflexões do futuro sogro, a vida de mocetão que o flaviense ainda levava também lhe parecia um tanto quanto desregrada, ainda que tudo aquilo não passasse de meras patuscadas entre os rapazes da época, com as chamadas mulheres da vida.

 

Foi preciso que João Reis lhe jurasse, com as mãos na bengala e diante da bela imitação da Santa Ceia de Da Vinci, em destaque na sala de jantar dos Morais Dias – Ao me casar com a menina Flor, deixarei de pronto qualquer atitude que me possa tornar ou parecer um libertino! – e foram também necessárias muitas idas e vindas do Eulálio, nas funções de casamenteiro, em visitas anunciadas com cerimónia à casa do Lourenção, até que este, afinal, mandasse abrir para os noivos as portas de madeira ricamente trabalhadas da Igreja de Santo Alexandre.

 

A um belo entardecer em Belém, com brisas que vinham da baía e ajoelhados diante de outra obra-prima, o altar-mor do referido templo, Florinda e João uniram para sempre suas mãos, seus corpos, suas almas.

 

Seus anseios.

 

  1. FEIRA DOS SANTOS.

 

Era em todo esse amor romântico de Flor e João Reis, que Aurora, agora, punha-se a pensar, enquanto o pai falava sobre o Álvares e a necessidade viril de este senhor ter uma companheira oficial, para lhe preencher as carências da viuvez. Reportando-se à migração do casal para Trás-os-Montes, ao tempo em que ela, Afonso e Aldenora ainda eram pirralhos, Aurita lembrou certas palavras que o Papá dissera a Mamã e esta sempre costumava contar às filhas. Foi certa vez quando, um pouco depois de chegarem a Chaves, Papá levou sua Flor com os outros brasileirinhos até à Feira dos Santos, junto ao Forte de São Neutel, onde iriam conhecer uma grande novidade: o Cinematógrapho.

 

Na Feira dos Santos, o carrossel de cavalinhos era a alegria dos miúdos, juntamente com os ursos, a mulher gorda com barba, os fantoches e outras diversões anunciadas pelos berrantes cornetins. Vendia-se de tudo nas barracas, onde muitos idílios começavam e eram os pontos de encontro dos namorados. Também o eram para os muitos transeuntes que, por ali, apenas vadiavam. Por entre cidadãos de Chaves e os que vinham das aldeias, desfilavam cegos, coxos, aleijados, chaguentos, a maior parte vinda de outros concelhos, todos em sua condição de inoportunos e importunos mendicantes. Nos sítios periféricos da feira, proliferavam, aos termos de um cronista da época, “as tendas de pano verde, batotas por toda parte, com as roletas pataqueiras de diferentes feitios a girar sem parança, todas mais ou menos ajustadas para a ladroagem dos jogos de azar”.

 

A maior atração da feira era o Cinematógrapho ao ar livre, em um vasto recinto do Grupo Desportivo Flaviense, convenientemente preparado para tal. Já em um jornal da própria Vila de Chaves, o anúncio da empresa dizia: “Hoje, às 20 horas, os mais interessantes e atraentes films. Aos intervalos de cada parte, irão apresentar-se o distinto concertista e de bandurra espanhola Señor Don Manuel Lopez e a troupe de Os Característicos, com a actriz Evangelina Correia e o actor Manuel Correia, em apreciáveis números de cançonetas, monólogos, cenas cómicas, pequenas comédias, operetas e trechos de revistas, do repertório dos dois artistas.”

 

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05
Set17

Chaves D'Aurora


1600-chavesdaurora

 

  1. PRETENDENTES.

 

Por quatro anos, Aurora não quis namoricar ninguém, por linda que fosse e, sempre, na Missa ou à saída da igreja, os rapazolas estivessem a lhe dirigir tímidos olhares. De logo se retraíam, no entanto, ao perceberem que a válvula mitral da rapariga parecia ou já estava a pertencer a alguém. Um desses admiradores, maldoso, chegou a comentar com os amigos que, de tão secreto, tal felizardo deveria ser algum primo Basílio ou qualquer outra figura proibida da literatura universal.

 

Às raras ocasiões em que as meninas Bernardes expunham seus vestidos novos, a um baile na casa de algum conhecido, parente ou aderente, Aldenora levantava-se muitas vezes da cadeira para valsar no salão. Era apenas uma ou outra vez, porém, que um tipo mais corajoso vinha convidar a menina Aurora, para consigo bailar. Talvez porque o ar de ausente e os eternos silêncios da rapariga parecessem que ela não estava a gostar da festa, ou, simplesmente, preferisse ficar apenas a observar tudo e todos à sua volta.

 

Seu ar de severidade ora atraía, ora afastava os príncipes, ao mesmo tempo que deixava todos com uma sensação de sapos que, por ela, jamais seriam beijados. Não sabiam, porém, tudo aquilo, na verdade, era só um biombo facial, como essas máscaras do carnaval de Veneza, caras postiças, que só revelam aquilo que não se esconde nas verdadeiras faces.

 

À jovem Aurita, na verdade, não lhe fugia o sabor das danças. Portanto, quando lhe davam oportunidade, contradançava com muita graça e alegria.  Em tais ocasiões especiais, fossem nunos, joaquins ou xavieres, acendiam-se fagulhas de esperança aos rapazes, mas estas logo se esvaneciam. Quando eles começavam a ensaiar juras de amor à rapariga, esta, que não era dada a mentir, mas bem lhe comprazia fantasiar, costumava dizer, entre sorrisos contraditórios, que já era noiva de Jesus e, no próximo inverno, iria fazer-se noviça em algum convento das Carmelitas Descalças.

 

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22
Ago17

Chaves D'Aurora


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  1. AMPULHETAS.

 

A descida de areia, na ampulheta dos Bernardes, podia ser vista a se refletir em cada um dos membros da família.

 

Aldenora apegava-se aos livros de contos açucarados (e alguns mais realistas, mas só quando os podia ter à mão, em segredo). Aurélia já estava a vivenciar os seus “dias de his­tórias”, como toda mulher. Mindinha, esta se afastava cada vez mais das bonecas. Quanto à menina Aurita, agora sem contar nem mesmo com os explicadores em domicílio, para diminuir o tédio que a vida reclusa de Papá impunha às fi­lhas, entregava-se cada vez mais a cuidar do jardim e dos seus amores-perfeitos.

 

Acastanhados.

 

Ao contrário de seu irmão, o caladão e ajuizado Afonso, sempre dedicado aos estudos, ao púbere Alfredo apetecia bem mais aproveitar todos os momentos dessa fase única da vida, a adolescência. O que o puto mais apreciava era se entregar aos sagrados princípios do Hedonismo, que não co­nhecia dos livros, mas da prática. Tinha vários amigos, entre as maltinhas de Chaves, principalmente o Zeca Sarmento, o Vitinho Mendes e o Lucas Bó. A todos esses, o que mais agradava era nadar no Tâmega. Nos bons e quentes dias de verão, Alfredinho chegava a casa com os cabelos ainda mo­lhados e Afonso perguntava – Onde nadaste? – e ele, muito orgulhoso de si, respondia – Na Pedra da Bicuda!

 

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 Poldras - Rio Tâmega - Chaves

 

Àquele tempo, os rapazes recebiam suas primeiras lições aquáticas com um colega que já soubesse nadar bem e o aprendizado se fazia em várias etapas, de acordo com a profundidade dos vários sítios do rio. Com Alfredo, não foi diverso (e não o fora também, com Afonso, ao seu tempo). Suas primeiras braçadas e pernas foram rio acima, a um sí­tio mais raso, na Galinheira. Já menos afoito e mais afeito às águas, seus amigos experientes o levaram para a Ola, junto à Ponte Romana.

 

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Os primeiros exercícios de verdade foram no Cachão, junto às Poldras, um belo caminho de pedras, até hoje exis­tente, que era a única alternativa da Ponte Romana, àquela época, para a travessia do Tâmega pelos peões.

 

Lá no Cachão, a malta de putos mergulhava alegremen­te. Quando Alfredo já estava a nadar melhor, o Vitinho e o Lucas Bó o levaram até ao Poço do Leite, junto à presa do Moinho dos Agapito, onde todos já podiam fazer, sem medo e com arte, a travessia do rio.

 

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Tâmega, próximo ao Moinho dos Agapito. Foto de Raimundo Alberto (2010).

 

Os rapazes partiam das margens do Tâmega aos mago­tes, entre chistes, desafios e exibições próprias da idade. Já nadavam de costas, faziam prolongados mergulhos e se ar­remessavam às águas em saltos de anjo, de peixe, de nava­lha. No entanto, aquele que afirmasse, categoricamente, já dar suas braçadas na Pedra da Bicuda, uma parte do rio mais abaixo e mais funda, esse era digno de admiração entre os mais. É que isso significava que o puto já podia considerar­-se um exímio nadador.

 

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08
Ago17

Chaves D'Aurora


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  1. FOLAR DA FESTA.

João Reis levou toda a família aos festejos, com fitas ver­des e encarnadas nos chapéus dos putos e no seu próprio, assim que tal nos xailes de Flor, das meninas e das criadas. Todos estavam a empunhar bandeirinhas pátrias. Os miúdos logo pediram que o Papá lhes pagasse uma bebida fresca, mais precisamente a “Gazoza Transmontana” que, segundo os reclamos em um jornal (no qual era ela apresentada assim mesmo, com essa grafia de dois zês) era “de facto a melhor”.

 

Mercê de uma pequena distração, Aurora acabou por se perder dos seus. Talvez a célebre e folhetinesca Mão do Destino já estivesse a traçar suas linhas em prol do ciga­no, pois logo uma luva de couro, cor de morcela, tocou no ombro direito da rapariga. Esta, ao se virar, tremeu dos pés à cabeça. Diante dela, mais guapo do que nunca, Hernan­do entreabria os lábios com os dentes ainda não manchados pelo vício do fumo, a lhe oferecer um sorriso que combinava muito bem com o seu maroto olhar. O de sempre.

 

O sorriso de Aurita não tardou a se esboçar, em agradável permuta. Ainda mais que o moço tomou-lhe um lenço que ornava os ombros e, a um zás trás, transformou-o em uma bela flor. Quando ela teve de volta o seu pequeno xaile, ad­mirou-se em ver o flóreo botão se abrir e lhe revelar uma fatia de folar bem flaviense. A menina, então, achou-se até ousada para iniciar alguns momentos de cavaqueio – Como sabeis fazer isso, senhor Camacho? – e ele sorriu de novo, desta vez com malícia – Sei fazer muito mais – mas logo res­pondeu à pergunta de Aurora – Ora, brasilita, é fácil, muito fácil. É apenas um passe de mágica que aprendi por aí, pelo mundo.

 

Foram os dois então para os lados da Torre e, sentados em uma das amuradas em volta, Hernando se pôs a expli­car como tudo era feito. Daí passaram a falar sobre vários assuntos triviais, mas que os faziam tão alegres como par­dais ao milho. Chegaram depois aos relatos das poucas, mas bem vividas aventuras do jovem cigano, algumas com certo exagero por parte do narrador, durante suas viagens por es­panhas, franças e itálias.

 

Dessas vivências de andarilho, que lhe serviam para não esquecer as nómadas origens, havia certas passagens, as mais picantes e mulherengas, que ele certamente omitia. Ou então, como sói acontecer aos contumazes contadores de lérias, como ele, Hernando sempre dizia, a fim de preser­var sua identidade, que tais e mais teriam ocorrido a algum moço da aldeia xis ou ípsilon.

 

Envoltos nesse início de namorico, mal perceberam quando o pai de Aurora chegou, segurou-a firme pelo bra­ço, cumprimentou secamente o rapaz com um – Boa tarde, senhor Camacho, esteja a passar bem; com licença – e mui de pronto afastou-se com a filha, a ralhar entre os dentes – Vamos, menina, andemos de volta a casa, onde lá é que me­lhor estás, pois “quem à boa árvore se abriga, boa sombra o cobre”. E lá também é que te vou explicar porque o povo diz “O lume ao pé da estopa, vem o diabo e assopra.”

 

Logo se juntaram ao resto da família e, com os protestos de Aldenora e a chorosa revolta dos menores, tomaram o caminho de volta à Quinta. O que mais pesava aos miúdos era deixarem de provar, conforme o Papá tinha prometido, as castanhas assadas, os gelados, as tortas de Viana ou os especiais pastéis de Chaves, que se ofereciam em uma con­feitaria recém-inaugurada ao Largo das Freiras.

 

  1. ANOS 20.

 

Então se passaram alguns anos, marcados apenas pelas notícias dos jornais locais ou dos que vinham de Lisboa ou do Porto, sempre lidas por Papá em voz alta ao pequeno-al­moço. Entre as novidades, os costumes dos anos 20, “inde­centes, obscenos, pornográficos”, como a eles se referiam os comentários de João Reis – Ai, Menina Flor, essas coisas que estamos a conhecer... esses países que se perderam nas teias da depravação, tudo isso me deixa preocupado.

 

Sussurrava à esposa – A Lisboa, já andam por lá algumas dessas raparigas do tipo maria-vai-com-as-outras, a se exi­birem com esses vestidos que lhe sobem às pernas, quase a mostrar os joelhos... percebes o decoro, Menina Flor? Pior ainda é o corte de cabelos, mais curto que o dos rapazes, esse tal de “à la garçonne”. Só espero que essa vergonheira toda não nos chegue por cá! – ao que Mamã concordava – Pois estou a pressentir que isso há de ser, como nos alertou a Virgem de Fátima... o fim do mundo!

 

É que aos olhos de muitos flavienses, Paris tornara-se um imenso bordel, onde artistas, intelectuais e outros cidadãos marginais, nativos ou imigrados, exibiam em público sua libertinagem explícita, desde o Louvre aos cabarés de Pigalle, desde Montmartre aos cafés de Sain-Germain-des- Prés. Ao Porto e Lisboa, no entanto, já lá se podiam ver passar pelas ruas algumas raras pessoas de grande ousadia, veementemente execradas por todos aqueles que se abriga­vam sob o manto da grande mãe eclesial, católica, apostólica e romana. As melindrosas, os charletons e os cabelos “à la garçonne” eram ecos de um universo distante, nessa peque­na vila trasmontana, onde as jovens solteiras e as senhoras de bem (pois que, de mal, só as marafonas...) cobriam-se da cabeça aos pés. Certamente que haveriam de existir, toda­via, algumas raparigas que ficassem a suspirar por Lisboa, à moda de “As Três Irmãs”, de Checov, finas e sensíveis mo­ças da Rússia campesina que sonhavam, algum dia, partir para Moscovo.

 

De Moscovo, aliás, quem sempre trazia notícias era o pri­mo Rodrigo, malgrado algumas carrancas de Papá quando o via penetrar na sala de estar da Quinta, agora a medo de que ele, com suas ideias estapafúrdias, acabasse por corromper as cabecinhas de seus miúdos e nelas introduzisse os novos costumes dos anos 20. O rapaz abraçara de corpo e alma as ideias bolchevistas da Revolução Russa de 17 e era conheci­do por suas polémicas nos cafés do Largo das Freiras. Vivia agora a falar de um futuro em que os operários seriam donos das fábricas e dos seus instrumentos de trabalho, não have­ria mais patrões e empregados, todos seriam iguais de facto e com todos os seus direitos perante a Lei.

 

Rodrigo era denunciado várias vezes ao senhor Chefe de Polícia, pelos seus inadequados comportamentos políticos e sociais. Como ele fosse, no entanto, muito querido na cidade e o poder ainda estivesse com os republicanos, anticlericais, bem como o rapaz limitasse as suas ações apenas a palavras e, o melhor atenuante, qualquer deslize seu pudesse atribuir­-se a excessos com a ginja ou com o bom vinho, acabavam por não lhe dar qualquer seriedade.

 

Já esquecidas do incidente sobre as aparições de Nossa Senhora em Fátima, Aldenora e Florinda atiçavam o facho discursista do jovem e, de ambas as partes, as contendas ver­bais se animavam. Ele, a louvar os princípios coletivistas e as igualdades sociais. Elas, a defenderem a Santa Madre Igreja das “ideologias esdrúxulas” e ateias do rapaz. A se valerem da pronta acolhida nas mentes simples como a de Flor, os capitalistas se uniam aos curas das aldeias, para espalhar os boatos de que doutrinas como essas, que do­minavam a cabeça do jovem primo, foram implantadas por “comunistas perversos, que matam os padres, fazem mal às freiras e comem criancinhas”.

 

Às meninas Aurita e Aldenora, no entanto, encantava o facto de, algum dia, as mulheres no mundo inteiro poderem ser mais livres, independentes, trabalhar fora de casa como os homens e, até mesmo – ai que esperança, ainda, àquela altura! – eleger os governantes da pátria. Quando atiçado, porém, em suas posições anticlericais, o rapaz, que também gostava de cometer alguns versos e escrever contos, a partir das lendas colhidas na região, saía-se sempre com algumas histórias de padres e freiras. Não tão picantes, por certo, quanto as que Adelaide fazia Florinda corar de pejo, mas igualmente interessantes, como a Lenda das Almas dos Fra­des Santos.

 

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13
Jun17

Chaves D'Aurora


1600-chavesdaurora

 

  1. ARMISTÍCIO.

 

Ao frio novembro de 1918, uma nova alegria veio a todos aquecer. Embora com alguns dias de atraso, chegou a Sant’Aninha de Monforte uma auspiciosa notícia: a Guerra acabou! Os alemães reconheceram-se derrotados e assinaram o armistício no dia 11 daquele mês, pondo termo, assim, à chamada Grande Guerra.

 

Alfredo, que andava lá pela pracinha, correu a dar a notíciaaos seus. Logo Aldenora, estripando alguns xailes, improvisou fitas verdes e encarnadas. Foram todos ao centro da aldeia, com as cores da bandeira pátria, a gritarem vivas e loas ao querido Portugal. Todos os aldeães estavam a correr alegremente ao Largo da Igreja, a levar farnéis de pães, queijos e vinho, muito vinho. Acendiam-se fogueiras para assar castanhas. O rancho de danças e cantorias da aldeia já estava a se formar, com suas roupas típicas de domingo e os músicos a preparar suas gaitas, harmónios, guitarras e violas braguesas, para a gentinha dançar.

 

Festejava-se o fim da grande asneira político-económica das grandes potências da época, na qual, só na Batalha de La Lys, em abril desse mesmo ano, foi-se quase a metade dos cerca de 9.000 soldados portugueses que, em África e na França, perderam suas vidas, nas mais indignas condições. A própria Sant’Aninha enviara à morte, na África, dois de seus mais robustos rapazes.

 

A verdade da História é que vários países e milhares de vidas se envolveram, durante quatro anos, em uma lastimável carnificina, sem justificativa alguma que a validasse, realmente. Seus mais dolorosos registos eram as cartas em que os soldados contavam, aos seus entes queridos, os horrores e a tortura mental que era viver ou morrer em uma trincheira. Mais morrer do que viver, a julgar pelas estatísticas dos milhares de civis e militares que perderam a vida em vão, por uma guerra vã, como em tantas outras contendas vãs e inúteis que soem ser, afinal, todas as guerras.

 

Em suma: tudo vão.

 

A Alemanha, diante da Tríplice Entente, rendera-se afinal à França, à Inglaterra e aos Estados Unidos (a Rússia, após a Revolução Bolchevique de 1917, já havia saído de cena do trágico teatro bélico) e também, certamente, a outros aliados de menor participação, mas de grande mérito e valor. Antes do conflito, Portugal já estivera a lutar contra os alemães, em uma guerra não declarada, na defesa de suas colónias. Acabara por aderir, formalmente, a essa luta. O povo português sentia-se, agora, também um vencedor.

 

Enfim, terminara. Era tempo de festejar a paz e glorificar, tanto os valorosos mortos, quanto os heroicos sobreviventes. De ambos os tipos de bravos, havia soldados de Chaves e de várias aldeias trasmontanas, a serem glorificados no panteão dos heróis. Não fossem por seus dois eméritos rapazes, as agruras bélicas nunca teriam chegado inteiramente a Sant’Aninha de Monforte, uma aldeia esquecida por trás dos montes, mas todos agora celebravam o fim daquela insensata peleja mundial que, ingenuamente, declarava-se “uma guerra para acabar com todas as guerras”.

 

Não apenas falhou em ser a última de todas, como veio a se tornar o tubo de ensaio para outra, mais global e tão ou mais terrível e genocida, a segunda grande guerra do século XX. Esta seria fruto dos delírios de um anticristo, de estranhos bigodinhos à la Charlot (Charles Chaplin, até então, era a mais proeminente estrela de cinema, em Hollywood). Essa besta-fera germânica já estava a entronizar, na derrotada e combalida Alemanha pós “Grande Guerra”, suas garras de Leviatã. Com o seu famoso livro “Mein Kampf” (1924) e o carisma de excelente orador, iria influenciar e obter o apoio crescente da maioria de cidadãos da Alemanha, cegos, surdos e emudecidos pelo fascismo, putrefaciente mancha moral e desumana, que começava a se estender sobre uma considerável fração do mapa da Europa.

 

Seu fanatismo exacerbado iria aprofundar as bases da ideologia Nazi. Eivada de intolerância e fobias, como a eugenia, o racismo, a supremacia ariana e o antissemitismo, culminaria com a perseguição e condução em massa a campos de concentração, onde iriam consumar-se a tortura e morte de cerca de onze milhões de pessoas, no chamado Holocausto, dentre judeus (as vítimas mais numerosas), ciganos, comunistas, Testemunhas de Jeová, homossexuais e deficientes físicos e mentais. Além desses massacres, iriam fazer-se experiências científicas dolorosas e fatais com seres vivos, que tinham prisioneiros como cobaias humanas.

 

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02
Mai17

Chaves D'Aurora


1600-chavesdaurora

 

  1. GRIPE ESPANHOLA.

 

Milhões de europeus e, logo então, povos do mundo in­teiro, falidos, esfomeados, enfraquecidos, sem carvão ou eletricidade para aquecer os cómodos das habitações, torna­ram-se cobaias para a grande experiência dos deuses, eter­namente insatisfeitos com a Humanidade que os criou.

 

Depois da guerra e da fome, mais um cavaleiro do Ómega se pôs a cavalgar, do Báltico ao Mediterrâneo, a espalhar uma peste que chamavam erroneamente de “espanhola”, mas era mais apropriado nomear de Pneumónica. O germe terrível, de grande poder patogénico, como um general de grandes táticas e espertíssimas estratégias, multiplicou-se pelos infelizes hospedeiros e disseminou sua influenza por todo o continente, como lavas de um vulcão a cuspir febre, tosse e catarro. A se aproveitar dos fracassos e impotências de grande parte da comunidade europeia, recém-saída do sanguinolento fratricídio, pôs-se a acabar o serviço que as contendas bélicas começaram e entregou à Grande Ceifeira mais alguns milhões de vidas. Sedenta de cadáveres, não se contentou em gerar uma simples onda epidémica. O mal acabou por se espraiar, como a mais destrutiva pandemia da História, pelos mares – já agora bastante navegados – da América, África, Ásia e Oceânia.

 

Não se conhece, com exatidão, a origem dessa pande­mia (1918-1919). Na verdade, os primeiros casos notificados ocorreram em abril de 1918, entre as tropas francesas, britâ­nicas e americanas estacionadas em portos de embarque da França. Em maio chegou à Espanha. Foi designada de “gripe espanhola”, porque as primeiras notícias mundiais, sobre os acometidos por esse tipo de peste, vieram do país ibérico, o qual não participara da Guerra, mas estava a contabili­zar um número alarmante de civis que adoeciam e morriam com os sintomas da Pneumónica.

 

As dores de cabeça, a febre e a falta de ar eram muito gra­ves e, em poucos dias, o doente morria incapaz de respirar, com os pulmões cheios de líquido, como assim descreveu um médico norte-americano: A doença começa como o tipo comum de gripe, mas os doentes desenvolvem rapidamente o tipo mais viscoso de pneumonia jamais visto. Duas horas após darem entrada no hospital, têm manchas castanho­-avermelhadas nas maçãs do rosto e, algumas horas mais tarde, pode-se perceber a cianose a se estender por toda a face, a partir das orelhas, até que se torna difícil distinguir o homem negro do branco. A morte chega em poucas horas e acontece simplesmente como uma falta de ar, até que mor­rem sufocados. (…) Ver esses pobres diabos sendo abatidos como moscas, deixa qualquer um exasperado”.

 

Causada por uma virulência incomum e frequentemente mortal de uma estirpe do vírus Influenza A, subtipo H1N1, tornou enfermos cerca de um bilhão de pessoas, metade da população do mundo na época. Cerca de vinte a quarenta milhões não resistiram, tornando-se uma das mais impres­sionantes estatísticas de óbito da História. Tão somente na Índia, em apenas alguns meses, ao último trimestre do ano de 1918, foram mais de doze milhões de mortes.

 

Tinha-se medo de sair às ruas. Estabelecimentos como bancos, casas comerciais, repartições públicas, teatros, ba­res, cinematógrafos e tantos outros fechavam as portas, por falta de clientes e de funcionários. As pessoas do povo fica­vam a recomendar pitadas de tabaco e queima de alfazema ou incenso, para evitar a contaminação e desinfetar o ar. Até o sal de quinino, remédio usado no tratamento da maleita, passou a ter uso generalizado, mesmo sem qualquer com­provação científica de sua eficácia contra o vírus letal.

 

Nenhuma das calamidades recentes chegara aos pés da moléstia reinante e, quanto mais avançava a pandemia, insta­lava-se um pânico geral, pois, como disse à época, no Brasil, o historiador Pedro Nava: “Aterrava a velocidade do contá­gio e o número de pessoas que estavam sendo acometidas”. (...) “O terrível não era o número de casualidades, mas não haver quem fabricasse caixões, quem os levasse ao cemité­rio, quem abrisse covas e enterrasse os mortos. O espantoso já não era a quantidade de doentes, mas o facto de estarem quase todos doentes, a impossibilidade de ajudar, tratar, transportar comida, vender gêneros, aviar receitas, exer­cer, em suma, os misteres indispensáveis à vida coletiva”.

 

As pessoas imunes eram vistas como se fossem um mi­lagre divino. Ao mesmo tempo, a todos os dominados pela fé inabalável na Virgem Maria (e que eram, então, a maio­ria em Portugal), mas desprovidos de certos conhecimentos científicos, já existentes àquela altura, parecia que vinham a se cumprir as profecias de Fátima e, portanto, já estar a chegar o Apocalipse...

 

 

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