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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

29
Jan11

Contos


 

 

Texto de João Madureira

Blog terçOLHO

 

 

Céu muito nublado


 

– Não vás com tanta velocidade.
– Achas que sou oligofrénico?
– Não. Nem por isso. Mas o que é que tem isso a ver com a velocidade?
– Tudo tem a ver com tudo.
– Não sei se és oligofrénico ou não. Tenho a certeza é que aceleras muito dentro das cidades.
– Só dentro das cidades?
– E fora delas. Tu aceleras em qualquer lado.
– Mas achas mesmo que sou oligofrénico?
– O que tu és é maluco.

– Então achas que sou mesmo oligofrénico.
– O que tu és é um chato.
– Modera-te. Oligofrénico sim, chato nunca.
– Que nuvens tão escuras.
– Não disfarces.
– Vem aí uma trovoada das grandes.
– Não desvies a conversa.

– Deixei a roupa a secar na varanda e vai molhar-se toda.
– Eu preocupado com a minha oligofrenia e tu pensas só na tua roupa! És uma ingrata.
– A roupa também é tua e dos garotos. E a ingratidão tem as costas largas.
– Tens razão, as nuvens são mesmo ameaçadoras.
– Eu não te disse?
– Achas que sou mesmo oligofrénico?

– Não, não acho. O Mundo é que não te compreende.
– Assim está melhor. Mas não dizes isso só para me agradar, pois não?
– Não.

– Não?
– Não.
– Escusas de ser tão evasiva.
– Eu não sou evasiva, sou sincera e curta de palavras.
– Então achas que não sou oligofrénico? Não dizes nada?
– Vai mais devagar que isso passa. Temos muito tempo para chegar.
– Mas não disseste que querias chegar a casa rapidamente para apanhares a roupa que se pode molhar?
– Que se lixe a roupa. Eu quero é chegar a casa tranquila e inteira.
– Achas que sou oligofrénico? Achas ou não? Diz a verdade.

– …

 

 


 

 

– Está bem, eu vou reduzir a velocidade. Começou a chover. Eu gosto da chuva. E tu?
– Olha, liga o rádio.
– O teu basta.

 

 

 

09
Jan11

Diálogo entre manequins de montra


 

 

Texto de João Madureira

 

 

Diálogo entre manequins de montra

 


 

– Que boneca estás!
– Tu também estás muito jeitosa.
– E ela também.
– Uma mulher bem aperaltada até dá gosto.
– Dá gosto aos outros!
– Eu visto-me assim para me sentir bem comigo própria.
– Mentirosa!
– Tenho um corpo perfeito, até pareço um manequim de montra.
– Pareces ou és?
– És ou pareces?
– Eu pareço aquilo que sou e sou aquilo que pareço, que mesmo não parecendo sou e não sou.
– Está bem. Não te amofines que te faz rugas.
– O teu penteado é muito catita.
– O teu também. E o dela.
– O cabelo curtinho e penteadinho faz-nos parecer mais leves e esbeltas.
– Com um pouco de gel parecemos mesmo seres andróginos.
– Também acho.
– Estais muito instruídas.
– O que nós estamos é na moda.
– Achas que nos podemos excitar?
– Deixa-te de sonhos húmidos.
– Porquê?
– Ó santa ingenuidade.
– Vá lá, então. Portem-se com dignidade.
– Olha, façam a vossa melhor pose pois está ali um fotógrafo a apontar-nos a sua objectiva.

 


 

 

 

 

 

 

29
Dez10

Mudar de Passeio


 

 

 

Mudar de passeio


 

 

O José não gosta nada de mudar de passeio. Diz que tem medo de atravessar a rua. Que lhe desestabiliza o sistema nervoso e lhe mexe com a libido. Ele tem a libido um pouco estragada. Coisas da juventude. O José foi à guerra e quem vai à guerra dá e leva. E ele levou mais do que deu. Por vezes fica com os olhos turvos e começa a chorar. Nesses dias não sai de casa. Nem do quarto. Nem da cama. Desenha fios de metal e aranhas muito coloridas. Pode passar assim dias e dias alimentando-se apenas de iogurtes naturais e fruta cristalizada. Também lê revistas científicas, mas lê os artigos do fim para o princípio. Depois traduz alguns para o árabe e no fim rasga-os. Sabe tocar piano, andar de bicicleta e assobiar com os dedos. Toca piano só a partir das cinco da manhã e apenas até ao amanhecer. Nunca o faz fora deste intervalo de tempo. Tira muitas fotografias às suas mãos e depois amplia-as muitíssimo para observar os poros e os pêlos da epiderme. Nos dias de chuva mia muito. Nos dias de sol muge como os bois do barroso. Na sua quinta da aldeia tem uma zebra manca que comprou a um circo. Escova-a todas as semanas e passeia-a pela aldeia. Também toca muito bem cítara. Mas os amigos não gostam deste tipo de música. Coisa que o irrita muitíssimo e o faz estalar os dedos. Costuma sair nas noites de geada e passear um galo de briga cego que comprou a um mexicano de férias em Espanha. Costuma dar-lhe pipocas picantes e levá-lo ao Miradouro de S. Lourenço para lhe mostrar a cidade de C. Nesses dias o galo canta que se farta e ele acompanha-o à guitarra. O José é muito habilidoso com as mãos.

 

 

 

 

 

Aprendeu a fazer croché e confecciona lindos carapuços para árabes e judeus. Escreve-me cartas enormes com letras desenhadas a rigor e isto vivendo nós apenas a cem metros um do outro. E envia-mas sempre em correio azul. São cartas que falam do seu amor pelos passeios, pelos candeeiros, pelos bancos de granito, pela poesia chinesa antiga, pelas flores da urze e da carqueja, pelo musgo dos muros e pelos reflexos do céu nas águas do T. Ontem compôs uma música muito bonita para o seu galo cego.Hoje tocou-a para mim. Eu até chorei. Depois fomos os dois, sempre pelo mesmo passeio, até ao rio, descalçámo-nos e molhámos os pés nas suas águas tranquilas. Então ele tirou um grilo do bolso e pediu-lhe que cantasse uma ária de Mozart. O grilo não se fez rogado e deslumbrou todos os presentes. O mundo é, por vezes, um lugar estranho, mas encantador.

 

João Madureira

Blog terçOLHO

 

19
Dez10

Contos


 

 

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Mesmo assim

 

 

 

Lá no alto do céu escuro brilha uma luz acetinada que me faz recordar alguma coisa que agora não consigo bem fixar. Por vezes tenho dificuldade em lembrar-me das coisas.

 

.

 


 

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Estou a ficar velho. Todo o processo humano é muito complexo. Nalgumas ocasiões tento relativizar os factos, mas já poucas vezes consigo atinar com o sentido dos acontecimentos. Estou a ficar um pouco gasto. Outro dia tentei cantar uma canção da minha infância e só me saiu uma cançoneta brejeira que nem sei bem como é que a decorei. De certeza que só pode ter sido por um reflexo condicionado ou por outro factor relacionado com o subconsciente. Até a família se espantou com tamanha vulgaridade. Não é que a vulgaridade seja algo que só por si seja vulgar. Por vezes ser vulgar até dá muito trabalho. Mas a vulgaridade sempre me assustou. Não é que me assuste com qualquer coisa. Posso dizer-vos que sou uma pessoa destemida e desassombrada. Mas ser vulgar é muito vulgar e tudo o que é vulgar aflige-me. Não é uma aflição por aí além. É apenas uma aflição pequenina. Mas, mesmo assim, atrapalha-me no momento de falar em público. Falar em público também é muito vulgar. Falar também é muito vulgar. O público também é muito vulgar. Quase tudo é muito vulgar. Eu não sou vulgar. Eu sou mais a modos que especial. Especialmente quando me atrapalho a comer. Já viram alguém que se atrapalhe a comer? Eu começo a comer pelo fim. As pessoas ficam muito aflitas quando me vêm a comer. Não percebem bem o meu método. Aquilo não é método nenhum. É mais uma maneira atrapalhada de introduzir os alimentos na boca. E é aí quando mais me embaralho. Engasgo-me muito. E sem querer. Por vezes acusam-me de me atrapalhar a comer para não parecer vulgar. Mas não é por aí que eu gosto de ser invulgar. É pela forma de beber. Especialmente a água. O vinho bebo-o como uma pessoa qualquer, a água não. A água bebo-a sempre com a ajuda das mãos. E sempre da torneira. Nunca da garrafa, nunca do copo, sempre da torneira e com as mãos em concha. Consigo fazer isso de olhos fechados. E também consigo assobiar de olhos fechados e até respirar. Também consigo sorrir quando me falam de economia. É um pouco difícil, mas com o treino consigo sorrir logo que vejo um economista ao longe. Tenho um sexto sentido para descobrir economistas e também para distinguir médicos e ilusionistas. E olhem que distinguir à primeira vista um ilusionista não é nada fácil. É a coisa mais parecida com um político, mas distingue-se dele por ser mais sincero e menos astuto. O que eu não sou é astuto. E isso deprime-me muito. A depressão fica para amanhã. Eu sei que podia deprimir-me hoje. Mas não. Só vou deprimir-me amanhã. É menos vulgar. Bem sei que não é invulgar, mas…

 

João Madureira

 

 

 

15
Dez10

Contos


 

 

 

Do destino dos papagaios pornográficos

 

 

Junto ao canto estava um papagaio. Junto ao papagaio estava um vaso. Junto ao vaso estava outro. O papagaio estava numa gaiola a rasgar folhas de jornal com o bico. Estava triste o papagaio. Noutro local também lá estava um papagaio dentro duma gaiola. Este não rasgava folhas de jornal, limitava-se a olhar para quem passava como quem esbulha sementes com o bico. Estava triste o segundo papagaio. Numa praça estavam vários marroquinos a vender ventoinhas, cintos, perfumes e, também, filmes pornográficos piratas a homens de meia-idade. Estavam tristes os marroquinos e tristes também estavam os homens de meia-idade que compravam filmes pornográficos piratas aos marroquinos. Mais a sul vários emigrantes apanhavam sombra junto ao rio sentados em cadeiras de plástico, comendo tremoços, amendoins e bebendo cerveja fresca. Estavam também tristes os emigrantes, estavam tristes os tremoços, estava triste a cerveja e as cadeiras de plástico e os amendoins. Estava triste a relva e os pássaros e, até, o verde das árvores das margens. Estavam tristes as margens. As duas. No rio pedalavam turistas nas gaivotas, enquanto deslizavam nas águas turvas do T. Estavam tristes os turistas, estavam tristes as gaivotas, estava triste o rio, estava triste a tarde. Na varanda duma rua estreita uma mulher gritou que já não conseguia aguentar mais a monotonia semântica das molas da roupa. Estava triste a mulher. Estava triste a varanda. Estavam tristes as molas e a roupa e a monotonia também estava triste, de uma tristeza redundante, rígida, hiperbólica. Triste também ficou o grito da mulher. Mas de nada lhe valeu. O grito extinguiu-se sem destino. Os gritos não têm destino.

 

João Madureira

 

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