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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

26
Jul19

Discursos Sobre a Cidade - Por Gil Santos


GIL

 

MARIA CARABUNHAS

 

A primavera daquele ano esmo verteu-se quente e seca como não havia memória. O renovo mirrava castigado pela inclemência do astro rei. A água, que nunca abundou no Planalto, era, nesta ocasião, tão escassa, que nem o rego mais prolífero da melhor lameira a deixava luzir. As poulas pejadas de gafanhotos cinzentos, qual praga bíblica, mirravam de sede com as fronças devoradas numa voracidade ciclónica. Mas, apesar de tudo, o Planalto, historicamente pródigo na produção de fruta, exibia neste ano as raras cerdeiras carregadinhas de frutos que haveriam de reluzir lá para finais de junho.

 

− Que se me dá! O que o dianho tira numa banda dá-o Deus na outra – dizia a Maria Carabunhas pelos soalheiros do lugar!

 

A tal Maria era uma cabaneira pobre que sem leira que a alimentasse vivia do expediente e da misericórdia dos vizinhos. Mulher robusta, contrariando a destino que o berço lhe traçou, estava sempre pronta para ajudar quem dos seus braços precisasse. Em contrapartida raramente lhe faltava o cibo na mesa. Os meses de inverno passava-os a tenir, mas logo que a primavera trouxesse a luz do sol e o a terra começasse a dar de si, acabava-se a penúria.

 

A Maria nasceu de outra mulher mísera, solteira e que nunca conhecera o eido de quem lhe fez a zorra. Sem pai para a proteger, cresceu aos emboleques da vida e no tempo casadoiro ninguém a quis, porque todos a tinham quando muito bem queriam. Por isso, envelhecia solteira e sem companhia certa. Por Deus querer ausente de prole. O Criador, por vezes, escreve direito por linhas tortas e fez a Maria matchorra, como lhe convinha e a quem dela dependesse.

 

Por vezes passava muito mal com a fome, o frio e as mazelas várias, porém, nada parecia derrubá-la porque a experiência lhe dizia que a um tempo de chuva se segue outro de sol! Era essa esperança que lhe alimentava os dias mais negros. A pobreza era extrema, mas não a sentia como uma fatalidade porque nunca tinha experimentado coisa diferente. Por isso, não tinha termos de comparação e vivia feliz à sua maneira.

 

Ora, um dia daquele início de verão a Maria foi à ajuda para o corte do feno do Ti Antoninho Moreiras no lameiro grande do Belão. Um trabalho duro e penoso. A Maria pegava na gadanha, como qualquer homem, e sem que ficasse a dever nada ao mais pintado, pendulava-a com entusiasmo de um lado para o outro. A cada movimento, certo e ritmado, juntava no seu carreirão uma boa mão cheia de feno. Era um regalo vê-la balançar os seios roliços ao ritmo de cada corte! Graciosa, fazia ver aos homens como se segava o feno!

 

O almoço, um guisado de cordeiro, chegou pelo meio-dia, numa giga, sobre a rodilha, à cabeça da cozinheira. Foi degustado na fresca da touça de carvalhos contígua ao lameiro. Quando eram quatro da tarde o trabalho de corte estava acabado e faltava apenas espargir o dito cujo para que secasse ao sol de junho.

 

Pelas cinco estava dispensada.

 

1600-cerejas.jpg

 

Não houve merenda porque o trabalho acabou cedo e a Maria foi para casa de barriga a dar horas. No caminho de regresso passou por uma cerdeira que o Patalão tinha no Linhar do Eiteiro e que reluzia de cerejas maduras.

 

Claro está, não resistiu!

 

Bem sabia que se fosse apanhada na ratada, levaria com o cabo do satcho pelo lombo abaixo, mas sabia, igualmente, que o Patalão se ocupava na sacha das batatas da leira do Corgo que não medravam por mor dos sintchos que as tolhiam. Por isso arriscou e guindou-se à cerdeira.

 

Encheu o fole quanto pôde e para a ceia ainda proveu uma farta abada.

 

Não estou bem certo, mas pelo desfecho do episódio a Maria teria enfardado para mais de cinco quilos de cereja francesa, não contando, evidentemente, com a potencial “carne” que pudessem ter!

 

O pior foi o que se seguiu!...

 

No dia seguinte, derreada às exigências da natureza, foi para o pátio. De cócoras, como sempre, tentou aliviar-se daquele pedido urgente que o seu intestino grosso lhe fazia. Contudo, não conseguia obter qualquer resultado e nem tão pouco conseguia perceber qualquer indício de se poder ver livre daquele desejo.

 

A barriga inchava cada vez mais, os suores frios davam lugar a torpores insuportáveis.

 

A Maria cuidava em rebentar!

 

A tripa grossa roncava quanto podia e a desgraçada não a conseguia sossegar!

 

A explicação residia no facto da Maria, esfaimada, ter engolido as carabunhas das cerejas que se amontoaram no reto e o obstruíram de tal forma que a canalização nem o “bento” deixavam passar!

 

E agora?

 

Médico não havia e que houvesse, não havia pilim para lhe pagar!...

 

Por isso, recorreu aos serviços da Tia Cândida, a médica da aldeia, que tudo curava com rezas e mezinhas. Todavia, esta doença, parecia não ir lá com estas prescrições e por isso era preciso encontrar outra solução, mesmo que radical.

 

Levaram a Maria para o pátio da Tia Cândida onde tinha sido espalhado um molho de colmo centeio para lhe servir de mesa de operações. Puseram-na de rabo para o ar e com as vergonhas ao léu. A aldeia em peso assistia ao inédito da operação.

 

A Tia Cândida tirou um gancho do carrapito e com a parte redonda foi tirando do bueiro carabunha por carabunha com paciência de Jó. Às tantas, com a pressão aliviada, o intestino deu de si e explodiu como um vulcão. A Maria urrou de alívio e os curiosos que tinham o focinho mais perto para não perderem cibo, foram prendados com a lava generosa da cratera!

 

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Fotografia de Emanuel Rocha

 

Correram para o tanque do prado apavorados para lavar os focinhos. Contudo, iam felizes não só pelo espetáculo inédito da operação, mas sobretudo pela felicidade da Maria Carabunhas que se viu aliviada de tanto sofrimento!

 

Admirável solidariedade!

 

Benditas fossem as mãos da Tia Cândida e o seu engenho!

 

Valia mais o gancho do cabelo daquela santa mulher do que o bisturi afiado do melhor médico-cirurgião da cidade.

 

Coisas do Planalto!

 

Gil Santos

 

27
Abr18

Discursos Sobre a Cidade


GIL

 

Serafina Bajouca

 

O padre Zé estava gasto como puída estava a batina que não trocava há tantos anos. As pedras dos caminhos ermos que calcorreava para pastorear o seu rebanho, tinham-lhe moído o corpo e a alma. Poucos mais anos lhe emprestaria a vida, apesar de a ter vivido derrengando polaina, como era de esperar, neste tempo, para os sotainas.

 

Mas não havia forma de escapar à lei da vida e só lhe restava acautelar a sua herança.

 

Dono de um casal de lavoura muito forte, metade da povoação pertencia-lhe, preparava o terreno para deixar tudo à sobrinha Sanfrósia que lhe aturava as teimosias e lhe enchia a mesa de iguarias há largos anos.

 

Solteirona, com uma vida também já muito gasta pela dedicação extrema à causa e à casa, Sanfrósia ainda nutria uma ténue esperança de topar quem lhe aquecesse a cama. E não havia de faltar, certamente. O catano é que ou o fazia depois do velhote fazer as contas com o S. Pedro e aí não dependia da sua vontade, ou teria de contar com o seu assentimento, o que não se adivinhava tarefa fácil!

 

Vindo de Loivos, o abade tinha em casa um criado de nomeada Ceboleiro, que não sendo mal parecido, era sério e muito dedicado ao trabalho. Não deixava, no entanto, de ser um reles criado de servir. O melro há muito se andava a atirar à Sanfrósia, mas esta, mais por decoro do que por falta de vontade, negava-se aos adiantos. A bem dizer não o rejeitava, todavia, travada pela condição do amante e pela certeza de que o padrinho lhe negaria os ensejos, limitava-se a admirá-lo desde a janela de perpianho enquanto assucava a cortinha para batatas.

 

E que bem assoviava o marlante!

 

Aqueles silvos de rouxinol enchiam-lhe o coração de esperança.

 

Um dia ganhou coragem e declarou o seu amor ao padrinho/tio que, contrariamente ao que supunha, não ofereceu grande resistência. Porém, não lhe parecendo nada bem que um criado de servir lhe partilhasse a herança, e por causa do falatório, combinou com ela que o mandariam para o Brasil de onde regressaria de fraque e cartola. Depois sim, seria prestigiante casar com um brasileiro que de ceboleiro já pouco teria. Não obstante, exigiu-lhe que se mantivesse virgem, como supunha que ainda fosse, e guardasse voto de castidade até à morte.

 

Esta exigência é que foi o catancho!...

 

Mas, logo que o padre fechasse os olhos logo se haveria de ver!...

 

O Ceboleiro foi então recomendado a um irmão que o padre Zé tinha no Rio Grande do Sul e lá foi de vapor até às terras de Porto Alegre para se lapidar.

 

Entretanto o padre finou-se e a sobrinha não demorou a mandar vir o seu futuro marido.

 

Regressou que parecia um lorde, apesar de ter passado pouco mais de um ano.

 

Combinou-se o casório na matriz de Santa Leocádia e de reles criado de servir o Ceboleiro passou a grande e respeitável proprietário de uma imensidão de leiras, carvalhais, soutos e lameiros.

 

A Sanfrósia depressa olvidou o voto que tinha feito e ia recuperando o tempo perdido como podia. Contudo, apesar do labor, nunca foi capaz de alcançar, certamente por castigo do padrinho desde o além!...

 

Os anos foram passando e os cabelos branqueando. Com os mesmos problemas com que se havia confrontado o padre se confrontavam eles gora.

 

Quem herdaria casal tão farto?

 

O Ceboleiro, tinha uma catrefada de irmãos que a extrema pobreza tinha espargido por esse mundo afora. Um deles foi parar à cidade Invicta onde arranjou emprego como guarda-freios na Carris. Casado com uma vendedeira de fruta, oriunda de Sernancelhe, tinha já duas meninas na descendência, a Isaura de 3 anos e a Serafina Bajouca de cinco.

 

Perante a incapacidade de procriarem, os lavradores lembraram-se de pedir ao irmão do Porto uma das filhas que os ampararia na velhice. Como contrapartida teria o casal de mão beijada. Os do Porto não hesitaram, escolheram a Serafina e disso deram conta numa missiva enviada para o Planalto. Logo que vieram ao Porto de comboio trataram de levar a menina com eles até Fornelos.

 

A moça foi crescendo e enrijecendo com os ares e o presunto da serra. Com o futuro garantido e a velhice dos tios acautelada, estes pensaram que seria bom que ela aprendesse a ler para lhes amainar os serões de inverno.

 

Na altura não havia escolas nas redondezas, de forma que quem quisesse aprender as letras teria de se valer de algum curioso que as soubesse juntar. Assim, contrataram os serviços da governanta do padre António que vivia em S. Cibrão. O padre António veio pastorear Santa Leocádia à morte do padre Zé. Sem embargo, foi imposta uma condição muito severa: a menina só poderia aprender a ler e a contar, estava proibida de aprender a escrever. O objetivo era claro, prevenir a possibilidade de ela se vir a corresponder com alguém que não chaldrasse a seus tios

 

E assim foi.

 

A menina casou por três vezes e em todas elas conheceu o noivo somente no altar! Do primeiro casamento teve dois filhos e do segundo quatro.

 

Morreu velhinha com o casal dividido em mil cibos, como nunca o padre Zé achava que seria possível!

 

Coisas da vida!

 

Gil Santos

 

 

 

26
Fev16

Discursos Sobre a Cidade - Por Gil Santos


GIL

 

A SEMENTEIRA DO BERBIGÃO

 

O Jacolino Farragatcho nunca tinha visto o mar. Ouvira falar dessa imensidão de água salgada ao mestre Matos na escola de Adães, mas nada mais do que isso. As únicas águas salgadas que conhecia eram as do alguidar onde a mãe demolhava o bacalhau e as do pote de três pés onde faziam o caldo. De resto, imagens do oceano, só as que vinham no livro da 3ª, contudo, eram tão fracas que pareciam da poça do Pado que o povo do Carregal usava para regar as hortas. Muita água junta só mesmo a da tal Poça, ou a do tanque do Frederico onde a canalha no verão lavava as catotas do inverno.

 

O Jacolino bem ouvira o Nano da 4ª a declamar este poema de Pessoa:

 

Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso, ó mar!

 

Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena.

Quem quer passar além do Bojador

Tem que passar além da dor.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu,

Mas nele é que espelhou o céu.

 

mas, também não o entendeu, nem ninguém, nunca, lho explicou.

 

A bem dizer, o mundo do Farragatcho reduzia-se ao termo do Carregal e aos horizontes que vislumbrava desde o Brunheiro, para os lados do Larouco, do Alvão e da Padrela. O Larouco tinha-o como sendo a burra preta do Gripino deitada num lameiro, o Alvão como a cabeça do touro do Farruco, falho da cornadura, a Padrela, ali em frente, como uma bruxa douda que lhe tolhia os raros dias de sol nas invernias.

 

1600-brunheiro (352)

 

E se do mar apenas tinha a imaginação, pouco fértil, diga-se de passagem, então daquilo que lhe podia pôr na mesa, é que nem pela cabeça lhe passava. Mesmo as arganas do bacalhau, que ralas vezes avezava, eram para o Jacolino apenas ossos, finos, de algum animal mítico que teria caído numa salgadeira, como as pás e os presuntos do reco que matavam pelo Natal. Sabia ele lá bem que o bacalhau nascia para lá do Larouco, era um animal de sangue frio que respirava por guelras e pastava nos lameiros de água gelada da Terra Nova!

 

Boa te vai!

 

Para ele o que interessava, verdadeiramente, era o que lhe enchia a pança: pão, batatas e caldo. Não é que desprezasse um ou outro doce que alguém lhe trouxesse da festa do Fernandinho. Aliás, pelava-se por eles, mas rilhava-os poucas vezes. E também gostava da meia sardinha que lhe tocava uma vezita por ano! Mas afinal não tinha tempo para se habituar a estes mimos, por tão raras serem as vezes que lhes tocava.

 

Jacolino, como quase todos os do seu tempo, deitava-se com as galinhas, pois a candeia não podia estar acesa muito tempo que o petróleo não se colhia nas corgas do Belão! Tinha de se comprar ao azeiteiro que vinha ao Carregal uma vez por mês. E era caro!

 

De resto era trabalho, fome e porrada!

 

Vida dura a de Farragatcho!

 

Em casa enfardava quase todos os dias de um pai tirano. Na escola, quando ia, de um professor velhaco como as cobras. Pelo caminho, dos amigos, pois era o bombo da festa. Mas, verdade seja dita, o moço tinha catchaceira. Quando apanhava, oupava como o sapo e não se ouvia daquela boca um único lamento ou dos olhos vertia uma lágrima que fosse! Contudo, dentro de si mesmo jurava vingança.

 

- Um dia - pensava - habeides de as pagar todas, filhos dum cão!...

 

O pai? Deixassem-no mijar na biqueira dos socos!...

 

O professor Matos? Deixassem pintar as cerejas na cerdeira da Sainça!...

 

Os amigos? Deixassem-nos pousar! Um de cada vez haviam de cair como os melros na esparrela!...

 

Era costume aparecer pelo Carregal, de mês a mês, a Gertrudes Mafarrica com a mula carregada de caixas de peixe que ia buscar à estação do Vidago e que vendia pelas aldeias, desde a ribeira ao planalto. Normalmente o Carregal era a última povoação da ronda e por isso sobravam as sardinhas mais ordinárias e moídas.

 

berbigao.jpg

 

Ora, uma ocasião, na sua ronda, esgotou-se-lhe o stock de peixe e para o Carregal sobrou apenas meia caixa de berbigão em saldo. Quem quisesse fazer gosto ao dente, com aquela fruta do mar, tinha uma oportunidade única de aproveitar o preço baixo e comprar umas conchinhas para a caldeirada.

 

Vinha mesmo a calhar porque a mãe do Jacolino andava de desejos e há muito tempo tinha pedido ao marido umas ameijoas para cozinhar à Bolhão Pato. Nunca as comera, mas ouvira a comadre dizer que eram de trás da orelha. Já que não podiam ser ameijoas, que fossem as primas berbigonas! Importante era que o rebento não nascesse com o céu-da-boca aberto por insatisfação daquele desejo. Faltasse o pão para a ceia, esta oportunidade, o extremoso marido, não podia perder.

 

Mal ouviu a gaita rouca da peixeira a anunciar a sua chegada à eira, foi-se à mesinha de cabeceira e botou a mão a cinco marréis.

 

Comprou dois quilos.

 

Nem ele nem o filho andavam de menino, mas, que se cosesse, também eram filhos de Deus!...

 

Foi todo contente para casa com a encomenda. A mulher ficou feliz e mandou-o à horta colher umas cebolas novas, uns pimentos e umas malaguetas para o guisado. Foi num pé e veio noutro. A Luísa Boubela não sabia como cozinhar o berbigão mas o que interessava? Guiava-o como quem faz carne guisada! Fez então um estrugido com muita cebola e pimento, botou-lhe cinco malaguetas e quando lhe pareceu apurado, juntou-lhe quatro tiras de presunto. De seguida espetou no pote os dois quilos de berbigão que ia mexendo com uma colher de pau.

 

1600-Travancas (98)

 

O cozinhado exalava um cheiro divinal! Um odor que desconheciam de todo. Salivavam como cães! E a sorte da mãe é que o raparigo não estava para nascer. Se estivesse, viria mais depressa só para apreciar o cozinhado da mãe!

 

Quando o achou pronto, vazou-o num alguidar de barro. As conchas, mais fechadas do que abertas, nadavam num caldo saboroso de cebola e pimento. Cada um por si lambia, chupava o molho sonoramente, molhava cibos de pão na calda, enfim, um forrobodó!

 

O Jacolino, primeiro, achou que também as conchas eram de comer, mas depressa se deu conta que de comer era só o miolo, as cascas eram só de lember.

 

Consolaram-se!...

 

No fim do lauto repasto cada um tinha à sua frente um merouço de conchas. O Jacolino pensava:

 

- Que desperdício, carne tão boa e tanta carapaça inútil!...

 

Entretanto, o Adelino Beiças, que na aldeia era pior do que as coscuvilheiras, passando na rua e cheirando-lhe a coisa estranha, para não jurar falso, foi-se inteirar da novidade. Entrou na cozinha e deparou-se com o espetáculo das conchas vazias sobre a mesa. Se fosse servido que bebesse sequer ao menos um copo e comesse um cibo de pão, berbigão já não havia. Aceitou o copo e molhou um miolato de centeio fresco no alguidar para, pelo menos, sentir o gosto da coisa!

 

Gostou!

 

Raivoso, por não ter tido direito a quase nada, quis vingar-se contando uma história, rebuscada, sobre a origem do berbigão! Uma história do arco-da-velha que acabava com a sementeira das cascas e com uma colheita prolífera no ano seguinte.

 

O Jacolino que experimentasse num cantito da cortinha, que ele ia ver!

 

1600-carregal (140)

 

No dia seguinte não perdeu tempo, foi-se à leira e fez uma lavoura que se podia ver! Semeou as cascas do berbigão em sulcos que abriu com uma sachola de ganchos como se fossem para semear batatas. Regava a cultura todos os dias como devia ser, sachava-lhe as ervas daninhas logo que elas deitassem orelhas e apreciava as beiças do Adelino a arreganharem-se cada vez que passava pelo caminho da capela e lhe perguntava pelo renovo!

 

Passaram muitos anos e o Jacolino, ainda hoje, tem esperança que aquelas plantas nasçam e frutifiquem em berbigões para satisfazer os desejos da mulher que anda prenhe.

 

Porém, não há maneira!

 

- Deve ser da puta da terra que só sabe dar batata, centeio e castanha neste bendito Planalto do Brunheiro!

 

Gil Santos

 

 

13
Fev15

Discursos Sobre a Cidade - Por Gil Santos


GIL

 

O CARABUNHAS

 

O Carabunhas, nomeada pela qual era conhecido o prior do Planalto, foi dizer a missa de domingo de Lázaro manco de uma pata, como dizia o Nano da Carregal!

 

─ O que lhe teria assucedido? ─ Inquietavam-se os fiéis que há muito se intrigavam, alguns invejosos, com as noites atribuladas do clérigo…

 

Mas comecemos tresontonte!

 

O Carabunhas, de nome próprio Babiano Zebedeu, nasceu, pelos anos trinta, algures no Brunheiro. Pobre como Jó, era filho da crujidade! Sua progenitora, cabaneira, foi mãe solteira, sabe ela e Deus de que semente! Diz-se, à boca pequena, que só conhecera um homem na vida e que lhe guardara fidelidade eterna nas touças do Belão! A verdade é que nunca mais emprenhou, nem daquele, nem de qualquer outro. O segredo, guardou-o tão bem, que nem o Zebedeu, algum dia, soube quem lhe dera vida. E também pouco se importava com isso. Eu acho que ele desconfiava, mas preferiu ignorar. Na sua filiação constava paternidade incógnita. Contudo, se os registos se dessem a outras nomenclaturas e, em vez do pai, perguntassem pelo padrinho, já constaria um nome próprio, o de Adalsindo Bota e Meia, pároco da freguesia!

 

O Adalsindo acarinhava o raparigo como se fosse filho legítimo. Logo que o achou capaz de pegar na galheta, botou-o a sacristão. O Babiano dava tanto jeito ao ofício que depressa convenceu o padrinho a fazê-lo, igualmente, padre. O velhote anuiu, pensando na sua substituição.

 

Assim, mal concluiu a 4ª classe, em Adães, na escola do mestre Matos, o vigário, a suas expensas, espetou com ele no seminário de Vila Real, às ordens do Reitor Libânio.

 

Durante os anos que levou para ser padre, não caçou uma única raposa. Já marmanjote, durante as férias grandes, substituía o prior, seu padrinho, nas lides da igreja.

 

A sua mãe andava toda croncha com o rapaz. E com razão. Haveria de ser o amparo na sua velhice, do corpo, mas sobretudo da alma. Em nada se arrependera de provar a fragância da maia piorneira pelos giestais do lugar! Bendito o pólen que lhe inchou o ventre! E bendita a ajuda do Criador na geração daquele rapaz, que era a menina dos seus olhos!

 

O gaiato teve uma infância livre e farta. Cresceu escorreito, sem fome e sem frio. Abençoado pelo padrinho, fez-se homem em três tempos. Ainda havia de dar muito que falar o sacripanta! Foi o único a estudar em toda a freguesia, para inveja dos filhos dos lavradores mais abastados que se agarraram à rabiça do arado, mal concluíram os estudos primários.

 

O Babiano era conhecido pela alcunha de Carabunhas porque quando frequentava a escola do professor Matos, levava os bolsos atulhados de carabunhas de azeitona para fustigar as orelhas dos parceiros com uma fisga de elásticos, quando apanhasse o mestre distraído. Era um vício excomungado que lhe valeu muita porradinha. Mas valia a pena só para ver os pavilhões dos companheiros como cerejas. Ficou-lhe a nomeada. E até nem o desgostava!

 

Rezou missa nova na vetusta românica de Santa Leocádia, num verão de meados dos anos cinquenta. À cerimónia ajudaram quantos padres havia nas redondezas e eram muitos! O repasto foi no Lameiro Grande e para toda a freguesia. Meteu três recos no espeto e uma vitela no forno. Foi até lhe chegar com um dedo! Bem, só para os doces, não chegou meia camioneta do Semeão de Carrazedo para transporte do açúcar amarelo!

 

Poucos anos mais durou o velho Bota e Meia. Bateu a caçoleta feliz por se saber bem continuado. E, de facto, o afilhado saiu-lhe melhor do que a encomenda! Diz-se que “quem sai aos seus não degenera” e este galho não renegou o tronco que o fez!

 

Mulher que se lhe arreganhasse cheirava o fanenco! Era certinho! Tanto se lhe dava que fosse solteira, casada ou viúva, era tudo a eito! E mais não digo que me envergonho!..

 

O seu carocha conhecia de cor o recôndito de todos os lugares do Planalto e tanto dormia num palheiro de Vale do Galo, como no Prado do Carregal. E, à medida que o tempo passava, mais desavergonhado ficava o presbítero. O cuidado que a alma penada das suas ovelhas merecia justificava a azáfama das diferentes pernoitas. Dizia-se à boca cheia, sobretudo no mundo insondável do mulherio, que eido onde poisasse não havia diabo que entrasse! E com alguma razão, pois “dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço, ao mesmo tempo, como dizia Newton! As viúvas, por exemplo, eram as que acreditavam mais piamente nas capacidades curativas do prior, sobretudo as que, em casadas, não tiveram vida que se recomendasse!

 

O padre era levado do catano! Só quem o conheceu!..

 

Claro está que, nos primeiros anos, o povo ainda lhe foi topando graça, mas, à medida que lhe foi medrando o território, os homens começaram a passar, progressivamente, do estado de inveja ao de inquietação.

 

─ Lá que exorcize os diabos das outras, ainda vá que não vá, mas os da minha toco-os eu a bober! ─ Dizia o Beiças, e com razão!..

 

Não demorou muito que a porca torcesse o rabo! Dois dos mais afoitos de Adães prepararam-lhe a estrangeirinha! Apanhassem-no na casa da viúva Cremilda que o haviam de cozer!

 

A casa da Cremilda estava construída numa ladeira. Tinha uma porta única, carral, que dava para um grande pátio. Do lado mais fundo, uma varanda alta que dava para umas hortas nas traseiras. Quem entrasse e não quisesse sair pelo pátio só poderia fazê-lo pela janela da cozinha para a rua ou botando-se abaixo da varanda para a horta.

 

Estava uma noite excomungada no Brunheiro! Céu estrelado em janeiro, era geada certa. E começava a esgalhar logo que o sol vencesse o Alvão. Pelas oito, já noite escura, o Carabunhas estacionou o seu Volkswagen azul no largo da escola. Os tais, micaram-no e seguiram-lhe o rasto! O salafrário fora expurgar os diabos à Cremilda. Deixaram-no paramentar e deram-lhe tempo suficiente para que conferisse a penitência que prescrevera à paciente! Seriam umas onze, quando o Estanislau e o Geraldinho embeberam umas sacas velhas de sarapilheira em óleo queimado, para fingirem um incêndio sob a janela da cozinha da viúva, iluminada por uma ténue luz de candeia a petróleo. Um tocaria fogo às sacas e saltando aos gritos de fogo, bateria, em algazarra, na folha da porta carral do pátio, o outro tocaria o sino a rebate para juntar o povo. Com esta manobra esperavam pregar com o padre, de calças na mão, no meio do povo! Porém, o Carabunhas sabia mais com um olho aberto do que os marlantes com os seus quatro! Não deu parte de fraco, com a calma de um marialva, compôs-se, dirigiu-se à varanda e pulou para a horta. Contava que no final dos quatro metros encontrasse a terra fofa das pencas, contudo esperava-o um seixo que lhe ia quebrando o tornozelo. Foi Deus que lho salvou! Enquanto o povéu acudia ao fogo, o padre cozido às sombras das paredes e entre suores frios e dores horríveis, arrastou-se até ao carro e pôs-se a milhas sem que ninguém o topasse.

 

No dia seguinte, era o domingo de Lázaro, penúltimo antes da Páscoa. O Carabunhas, não querendo dar o flanco aos seus paroquianos, foi dizer a missa, sabe Deus como!

 

Que tinha escorregado nas putas das escaleiras com a geada!

 

Foi a melhor desculpa que encontrou para sossegar a passarinha das beatas mais curiosas. Olha que nenhum homem foi capaz de lhe perguntar pelo sucedido!

 

Cala mureta!

 

Quiseram-no cozer mas quem se cozeu foram eles!

 

Pastor que é pastor, leva vantagem sobre o rebanho. Pudera!

 

Sarado o tornozelo, repetiu-se a festa!

 

─ Ai quem me dera ser padre! ─ Rezava o Beiças, na desobriga dos domingos, encostado ao cipreste secular do adro da igreja de Santa Leocádia!..

 

Pois isso, é que naquele tempo valia mais ser padre do que ser doutor!...

Gil Santos

 

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