Discursos Sobre a Cidade - Por Gil Santos
CONTRABANDISTAS
A Rosa Doninha, Rosa por casmurrice do padrinho, Doninha pela argúcia na fuga aos carabineiros, nas veredas da raia, era contrabandista afamada. Nasceu da crujidade. Era filha de mãe solteira e zorra de um figurão flaviense de família, que lhe negou o sobrenome.
Levava a vida pelas touças e pelos carreirões, entre Chaves e Feces de Abaixo. O mais das vezes a coberto da noite, colada às sombras, de coração nas mãos, mas sempre de olho arregalado e pé ligeiro. Inimigos, que se lhe conhecessem, só mesmo os guardas. Do lado de cá, os Fiscais, de farda de cotim e chapéu meio azul de pala preta. Do de lá, os carabineiros de uniforme verde e chapéu de verniz à Bonaparte. Da Galiza carregava azeite, bacalhau, peças de pana, tabaco e caramelos, de Chaves atoalhados e café.
Pese embora andar sempre no fio da (sua) navalha de ponta e mola, vivia derringando polaina com os proventos da atividade. Ao longo dos muitos anos da profissão, construiu uma teia de relações que, do lado pátrio, permitiam um controlo quase perfeito do risco. Plantava boas relações e delas colhia segurança. Agia em função das informações que pagavam os favores aos Guardas-fiscais. Ela conhecia, quase sempre, o lugar, a hora e quem fazia as patrulhas na raia e nos seus caminhos. Chegava mesmo a identificar, à légua, o ronco do jipe da Guarda de Chaves. Portanto, da nossa banda, tinha a coisa controlada. Raramente havia novidade. Mesmo quando no quartel havia gado novo, depressa o capava, acabando-lhe com o cio. Apanhasse-o a jeito, a certas horinhas, atrás de qualquer giesta e depressa o punha a pastar no fanenco da poula. Guarda que provasse a fronça da pioneira, ficava manso como um reco de ceba. E como a Rosa sabia tirar fruto da sua figura trigueira, à qual, raramente, resistia a gula dos marmanjos!..
Do lado galego era o catano! Não sei se por mor da língua, da cultura, da nacionalidade ou da frequência do roulement. Sei é que abominava os carabineiros, não se lhes dando por nada! Não podia com eles, nem à lei da bala e, se pudesse, afogava-os a todos no Tâmega. Apelidava-os de lafraus, de bardinas e de gandulos, uns sacripantas papantes, excomungados, uns filhos da puta! Mastins que nem do purgatório eram credores!..
Em Feces, traficava com o Gumesindo que tinha comércio no miolo do pueblo raiano. Fazia-o a qualquer hora, de preferência após o expediente. E entendiam-se às mil maravilhas. As contas eram saldadas à semana, com manhuços de notas de peseta ou escudo.
Pelo mês dos primeiros cantos do cuco, o galego precatou-a de que habia carabinero nuevo en el cuartel de la frontera. Parece que era das felpas do diabo! Chamavam-lhe Manolo Rúbio, de nomeada, El Cabrón. Ainda por cima era birolho, olhava, portanto, escontra o governo!
– Y si Dios lo à marcado, algun defecto le à encontrado! – afirmava Gumesindo!
O salafrário vinha escorraçado de S. Gregório, onde, diziam, ter feito das boas e das bonitas! Tinha fama de ser inexorável nas rondas e não perdoava à própria mãe, por sinal também contrabandista. Que fosse profissional, ainda vá que não vá, o pior é que tinha manhas lebadas do arco da belha. Diz que matava e escochava por dá cá aquela palha. Tinha, ainda, o hábito de surripiar o contrabando aprendido e ainda tudo o mais que pudesse. Desditoso do que lhe caísse na gadanha! Sendo macho, era carga de coronha pela certa, ou mesmo um tiro à falsa fé. Em sendo fêmea, a pássara, no mínimo, teria que voar para o ninho do lapardana! Havia quem dissesse que não chegavam os dedos de cinco mãos, para contar os que já tinha passado a fuzil e as que violara. Daí a nomeada de Cabrón com que nuestros irmanos o batizaram.
O Tâmega corria de monte-a-monte pelas grossas zerbadas da primavera. Mesmo a ribeira de Arcossó, vinda de Lama de Arcos e que era linha de fronteira e a mais usada pelos contrabandistas, ia grossinha. Portanto, dois obstáculos duros de roer, mesmo para os mais afoitos. Além do mais, os carabineiros conheciam os portelos da ribeira como o pastor o seu rebanho! E, se ao produto vindo de Espanha, até fechassem os olhos, de vez em quando, o português, muito apetecível, era derriçado como o rafeiro faz à carniça. Problema sério para o negócio da Rosa Doninha. Andava tralhada, não só pelo risco de se cruzar com o Rúbio, como pelas inusitadas cheias. Contudo, com estas podia ela bem, agora com o Manolo, poderia ou não! O velhaco provocava-lhe a mesma angústia que o Adamastor teria provocado aos pobres marinheiros portugueses dos descobrimentos. Urgia, portanto, um plano que o neutralizasse. A Rosa era mulher de armas e não deixava os seus créditos por mãos alheias. Que esperasse pela pancada!
Por aquela altura, o que dava era o contrabando de tabaco. Rosa não parava de carrejar volumes e volumes de Lola, para um palheiro que tomou emprestado na saída de Vila Verde para Outeiro Seco. Então, pela tardinha de um sábado, quando se preparava para o derradeiro carrego da semana, Gumesindo preveniu-a que soubera, por portas travessas, que na noite do próximo domingo, o Manolo estaria escalado para a vigia da ribeira de Arcossó. O serviço seria partilhado com o camarada Mourillo, um copofónico inveterado. Informou-a, ainda, que o meliante, conhecedor da fraqueza do parceiro, costumava encafuar uma botelha de Fundador Domecq no bornal para o anestesiar, deixando-o debaixo de um amieiro a curtir a cardiela. Desta forma, não seria estorvado na ação predadora.
A Rosa, vendo a sua boa, nesse mesmo domingo, pela manhãzinha, foi a Outeiro Seco à procura dos favores do seu amigo Chico Milheiro. Tratava-se de um reputado apicultor que dominava, como ninguém, a arte de tratar as abelhas e mesmo até de lidar com as vespas suas primas. Além do mais, ela conhecia-lhe um ódio antigo aos carabineiros. Contas velhas por ajustar. Deu-lhe conta da intenção e pediu que lhe metesse, numa caixa de papelão, o mais bravo vespeiro que lhe pudesse topar. O Milheiro, entusiasmado, providenciou a encomenda num ápice. Pouco depois do almoço, estava a txirga armada. A Rosa agradeceu e seguiu com o precioso embrulho por Vila Meã para Feces de Abaixo. Dirigiu-se à tienda do Gumesindo onde lhe explicou o propósito. Juntos, trataram de rebuçar o vespeiro numa caixa de tabaco, devidamente identificada. Fizeram-no de modo a que, quando se abrisse o caixote do tabaco, se escancarasse também a do vespeiro.
Aquela noite de domingo caiu límpida e seca, dominada por uma lua cheia da mais pura prata. Parecia dia! Quando lhe pareceu boa hora, alombou com o caixote e tomou uma das veredas mais descobertas para a ribeira de Arcossó. O coração rebentava-lhe no peito e a emoção secava-lhe a goela como o sol a palha centeia no restolho. Não tinha ainda vencida meia jornada quando lhe salta ao caminho, sozinho, o carabineiro Manolo:
- Alto niña, que estás llevando?
- Tabaco mou senhor, apenas tabaco!
- Cigarrillos? Hombre, entonces tenemos una chica de fumar?! Non quieres tu fumar outra cosita?
Ladina, com a manha da raposa, Rosa fingiu-se em pânico e implorou clemência. O carabineiro convenceu-se da sua pouquidade. Ela pintou-lhe um quadro negro de desgraçadinha com uma catrefada de filhos cujo pai abandonara e ela tinha de nutrir. O carabineiro, à medida que a ouvia, ia deixando murchar a espingarda que lhe apontava ao peito.
- Hombre, si quieres que te perdone, tienes buena medicina: Viene!
Pegando-lhe num braço, arrastou-a para um giestal contíguo ao caminho. Ela percebeu a intento do lafrau, mas, guicha como era, deu-lhe a corda que lhe convinha! Mal saltaram a parede de pedra solta, já o Cabrón grunhia como um reco no cio. Logo que sentiu o fanenco, fofo, sob os cascos, atirou-se a ela para a debulhar. Rosa resistiu, alegando que ela própria o faria e mais ligeira. Entrementes, o salafrário, desapertava a cilha e, espumando, arreava as pantalonas deixando ao léu umas ceroulas surradas que tresandavam a mijo já recesso. Nestes proparos, e sob um smile trocista da lua cheia, apressou-se a atirar o jaleco para cima de uma giesta-pioneira. A Rosa, ainda composta, para o ocupar, insistia que o queria descalcinho até ao pescoço para proveito de ambos!
Estava em brasa, o biltre!..
Sacou as botas, despiu as ceroulas e mostrou as vergonhas ao luar de maio. A lua abriu a boca de pasmo! A Rosa também! Fosca-se, nunca tinham visto farramenta tamanha! Como aquela bisarma só mesmo a do burro do moleiro da presa de Curalha! E o birolho estarrincava os dentes, adivinhando-se atolado naquelas carnes de mulher roliça. Não via a hora de afagar a lascívia no cidouro quente da contrabandista. A Rosa tinha-o como o queria, muito para lá de calças na mão! Aproximou-se d’amodinho e fingindo preliminares, acertou-lhe tamanha joelhada no beringalho e respetivos guizos que o pregou de cangalhas. Dobrado sobre si mesmo, espojava-se no fanenco a gemer, qual burro sarnento! A Doninha aproveitou e deu-lhe uma trepa das antigas. Deixou-o estrumado no chão do giestal e pôs-se ao fresco. Na fuga, ainda teve oportunidade de topar o Mourillo a ressonar como um reco, debaixo de um carvalho, exalando os vapores do brandy que o adormecera.
El cabrón só recuperou do trompasso e o Mourillo da camoeca pela madrugada. Caladinhos, levaram a colheita ao posto fronteiriço, onde teriam de a apresentar ao superior de serviço. Não deram parte de fracos. Era como se nada se tivesse passado! O pessoal de serviço reuniu-se, numa pequena sala, para escrutínio da apreensão. Manolo, meio engranhado, não certamente pelo sereno da noite, preparou-se para abrir o caixote de papelão. Escacholou as badanas e ainda não tinha acabado, quando se evadiu a fúria do vespeiro. Os insetos, danados pelo stress da prisão, filavam-se em tudo o que era carne ao léu. Pela manhã, os focinhos dos seis carabineiros pareciam bombos! Claro que a notícia correu célere e a semana que se seguiu foi um paraíso para os contrabandistas!
Soubemos mais tarde que El Cabrón requereu outra freguesia para pregar! Foi destacado para o Caia. Nunca mais dele se ouviu falar.
Um dos filhos mais novos da Rosa Doninha, Adolfo, foi meu amigo e colega de liceu. Ora, naquele tempo, o dinheiro era coisa que poucos avezavam. Portanto, qualquer oportunidade para ganhar algum, era avidamente aproveitada. O Adolfo tinha uma mota Famel Zundapp, para o tempo uma verdadeira preciosidade. Um dia, convidou-me para uma aventura contrabandista em que podíamos ganhar uns patacos. Tratava-se de passar, por conta de sua mãe, uns fardos de bacalhau de 25 Kg, desde Feces até Lama de Arcos. Por cada um choveria uma notinha de quinhentos. Um dinheirão! Aceitei!
No final de uma tarde quente do mês de maio, montámos na Zundapp e ala, na prise, para a fronteira. Arrumámos a motorizada numa touça, no termo de Lama de Arcos, e fomos até ao Gumesindo. Botamos duas sandes de chorizo revilla e duas Coca-Colas, regalo del amigo gallego. Carregámos cada um seu fardo e toca a atravessar a ribeira para Lama de Arcos, onde o fiel amigo ficaria a aguardar melhor destino. Burrinhos, depois de atravessada a ribeira, tomámos a estrada por ser mais cómoda a jornada. Na primeira curva, esbarrámos com um Volkswagen carocha aparcado na berma! Apeou-se um paisano, bem-parecido, que nos mandou parar. Perguntou-nos de onde vínhamos e o que trazíamos. Respondemos com a verdade. Deu-nos ordem de prisão. Era, só, o comandante do posto da Guarda-fiscal de Chaves. O Adolfo ria-se. Eu fiquei apavorado! Como haveria de explicar a meus pais uma noite na pildra?!.. Os fardos do bacalhau foram parar à mala do carro e nós ao seu banco traseiro.
Da fronteira à cidade, fomos interrogados até ao tutano. Não ficara qualquer dúvida sobre quem eramos e o que fazíamos. O comandante seguiu pelo Lameirão até à Casa Azul e tomou a direção da velha ponte de Trajano. Atravessou-a e virou à direita para as Longras. Passou pelo Mercado Municipal e à frente encostou. Passou-nos um sermão e concluiu:
– Ponham-se ao fresco! Desta vez escapam, porém, se vos torno a apanhar, espeto convosco numa casa de correção que nunca mais de lá saem! Não quero voltar as ver-vos as fuças!..
Quando ouvi estas palavras, senti-me aliviado do peso do mundo que me tinha caído em cima! Ganhei vida nova. Era como se tivesse renascido!
– Abençoado fosse, para sempre, o comandante da Guarda-fiscal de Chaves. Deus o deixasse viver por muitos anos para continuar a fazer o bem – pensava eu, feliz da vida!
Este homem, que à coisa pública sobrepôs a humanidade e a compreensão pela irreverência dos jovens, valia o seu peso em oiro!
Deus o protegesse!
Gil Santos