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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

28
Out21

Crónicas da Quarentena

Décimo Segundo e Último Dia


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DÉCIMO SEGUNDO E ÚLTIMO DIA

Quarta-feira, 28 de Outubro de 2020

 

Regressarei esta manhã.

 

Olhando para lá da lua em quarto crescente, sinto-me perplexo perante a aparente simplicidade de todo este complexo universo cintilante, repleto de pequeníssimos grãos de mica que, em momentos de inocência, nos permitem augurar e imaginar outros universos em cada um deles.

 

Pirilampos numa noite japonesa, pétalas de cerejeira a esvoaçar, longos e ondulantes cachos de glicínias, o salto de uma rã num charco ou num poço, a singela poesia de Bashô desdobrando-se em miríades de sons e sensações.

 

Um minimalista golpe diagonal numa superfície uniformemente pintada, múltiplos salpicos espontaneamente dispostos numa tela, um quadrado negro sobre a obsessiva negrura da tinta, longilíneas e frias luzes fluorescentes, a indizível emoção das cores no testamento de Vieira da Silva.

 

A inabalável e cómica seriedade de Pamplinas competindo com o bigode e a bengala de Chaplin, um irreprimível e súbito esgar no primeiro plano de um film noir, andróides insomnes contando ovelhas eléctricas.

 

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O lento, profundo e plangente som do violoncelo de Guilhermina espraiando-se e transfigurando-se nos avermelhados tons de uma tela de Augustus John, a esquecida voz de Francisco de Andrade vibrando e rebrilhando na branca e esplendorosa figuração de um retrato de Max Slevogt.

 

Tudo isto entre um enlevado e sublime Nimrod, liberto da pomposidade de Elgar, e as hipnóticas e hieráticas composições de Pärt.

 

A magia de quem inventou a primeira escrita, ou a primeira representação dos números, ou a notação musical… Todos os mundos sonhados ou por sonhar… Toda a milagrosa desmultiplicação da senhora dos mil nomes… Todo o misterioso mistério da maternidade…

 

E a maravilhosa revelação dos avermelhados crisântemos, em esbranquiçada transfiguração, coroando a brancura da açucena que desafia o nome da rosa.

 

Talvez a visão de tudo isto me deixe regressar mais apaziguado.

 

Augusto de Sousa

 

 

23
Out21

Crónicas da Quarentena

SÉTIMO DIA


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SÉTIMO DIA

Sexta-feira, 23 de Outubro de 2020

 

A luz exterior, reflectida no pavimento, une o quadriculado da tijoleira numa alongada faixa luminosa e orienta o meu olhar para o jardim. Abandonando as memórias africanas, que não são minhas mas as obras do José Pádua ajudam a desmultiplicar, por outras partes desta casa e por outras casas da família, penso na murta que daqui não vejo e em breve irei fotografar.

 

Levanto-me recordando, isso sim, o verde e o azul dos Açores e também o vento que por vezes soprava suavemente, parecendo amansar as águas do mar e das ribeiras. Entre a escurecida rugosidade rochosa do tempo, vem-me ainda à memória aquela açoriana que, sobre o fundo anilado das hortênsias, não sabia de que eu falava quando falava de outras montanhas, de outras rochas ou das flores de giesta.

 

Recordo também a emocionada memória que então tinha destas flores, com as suas pequenas manchas amareladas ou esbranquiçadas parecendo sustentar, e fazer crescer, as finas hastes de cada arbusto. Ainda hoje sinto o que sentia na altura acerca do seu aroma, não sabendo se o devo achar agradável ou não, mas o que então importava era que tudo aquilo me fazia atravessar o Atlântico para me vir aninhar no aconchego desta terra durante breves momentos.

 

A estranheza que a imagem das flores de giesta causava àquela açoriana é a estranheza que estas bagas da murta me causam. Parecendo mirtilos, à primeira vista, só após um olhar mais atento é que percebemos não serem estas achatadas como as do mirtilo, antes mais alongadas. Depois de abertas ou esmagadas, descobrimos que são apenas um invólucro, quase sem polpa, para as sementes.

 

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Até aquilo que nos parece familiar pode guardar segredos durante muito tempo. A mim, foi a tradição judaica associada à murta que me escapou durante muitos anos. Depois de, no Canadá, reencontrar a tradição do rapa reencarnada naquele que era, afinal, o seu conceito original, o dreidel, foi preciso aguardar por Nova Iorque para chegar aos esquecidos usos rituais da murta.

 

Foi num jantar na baixa leste de Manhattan, em casa do Darius, que juntava amizades ashkenazi da parte de Judy, a mãe, e descrentes outsiders como eu, o pai, Pheroze, a Jane e outros, que ouvi pela primeira vez falar desses ramos rituais onde a planta entrava. E foi também aí que, depois de já conhecer a água de rosas, a água de flor de laranjeira, e outras águas perfumadas, ouvi pela primeira vez falar da água-de-anjo, que se obtém destilando as folhas e flores de murta.

 

Tudo isto aprendi ao longo de uma agradável refeição, preparada por mim e pelo Darius, onde acabei sendo felicitado pelo lombo marinado, recheado de ameixas secas, espargos e outras improvisações. Um sucesso gastronómico, particularmente entre os ashkenazi, que nas despedidas me felicitaram efusivamente, elogiando o sabor e suavidade da carne e pedindo-me a receita.

 

É claro que, pesem embora as minhas prováveis origens sefarditas, nem sequer tive coragem de lhes dizer que era lombo, sim, mas de porco.

 

Augusto de Sousa

 

 

22
Out21

Crónicas da Quarentena

SEXTO DIA


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SEXTO DIA

Quinta-feira, 22 de Outubro de 2020

 

O teletrabalho, enquanto alternativa ao regime presencial, pode revelar-se como um recurso perverso.

 

Tenho vindo a descobrir que, afinal, não só estou a trabalhar mais horas como, para meu desespero, trabalho a qualquer hora, interrompendo almoço ou jantar e não tendo sequer recato ou descanso depois deste último.

 

Ironicamente, muitas vezes tem acontecido ser este trabalho, desregrado e regido por redundantes e anormais horas extraordinárias, um inglório desperdício de energia, visto que as medidas legais implementadas para se ensaiar, pela enésima vez, o controle da pandemia acabam por impossibilitar a concretização prática, in loco, do trabalho desenvolvido e de muitos eventos previamente agendados.

 

Assim acontecerá a partir de hoje, com as consequências daquelas que serão as novas medidas de restrição à circulação, entre concelhos, durante uma semana.

 

É uma contrariedade do tamanho de uma calabaza, ou talvez maior, como se diria aqui ao lado, na Galiza.

 

Por vezes, é melhor fazer como o Mico e ficar regaladamente imóvel e sereno, recordando a filosofia de não intervenção do Ricardo Reis e meditando sobre a inutilidade da acção, mesmo não estando de mãos dadas com a Lídia.

 

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Certamente será essa a filosofia subjacente ao tratamento da bela vinha que fica contígua a minha casa. Cuidadosamente podada e limpa, cada uma das suas vides entra alegre e surpreendentemente pelos olhos de quem se habituou a ver tantas e tantas terras abandonadas.

 

A meio caminho entre a veiga e o sopé do Brunheiro, as suas valas longas e ordenadas, que ora se organizam de nascente para poente ora de norte para sul, consoante o suave declive do terreno e a favorável exposição solar, oferecem abundantes cachos de diferentes castas.

 

No entanto, esta acabará por ser uma ritual oferenda aos deuses e à mãe natureza, todos os anos renovada na cada vez menos surpreendente surpresa de ver muitos desses cachos a permanecerem nas vides até bem depois de as últimas parras atingirem o solo.

 

Haja quem ainda acredite em divindades e oferendas rituais, nestes tempos em que a intercessão dos sacerdotes parece ter caído no esquecimento ou no desprezo divino.

 

Augusto de Sousa

 

 

 

20
Out21

Crónicas da Quarentena

QUARTO DIA


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QUARTO DIA

Terça-feira, 20 de Outubro de 2020

 

Entre as tábuas da cerca, com a sua canina sensibilidade, o Max observa atentamente algo que me escapa e se perde no horizonte. Não sei se pressente a chuva que se anuncia com a chegada da Bárbara, se tenta pressentir e farejar, à distância, os indolentes movimentos felinos da Schnecke.

 

Por cima de nós, a deslavada palha d’aço deste céu acinzentado vai mudando de espessura e intensidade, permitindo a sul uns breves clarões luminosos que avivam ainda mais o alaranjado das telhas, dos tijolos e da chaminé da antiga telheira.

 

Nas imediações, os barreiros, nos seus desníveis, valas e lagoas, denunciam o abandono da fábrica e o declínio da própria olaria na encosta do Brunheiro, que não poupou sequer o barro negro de Vilar de Nantes.

 

Talhas, púcaros, potes, e toda a louça que Alves Cardoso registou nas suas telas transmontanas, são agora memórias de um outro modo de vida.

 

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Este tempo, comprimido entre ansiolíticos e antidepressivos, não se compadece de tal louça senão como tosca memória de outro tempo, mais rural e menos consumista, que cruza a nossa apressada vivência actual em registo português suave.

 

Símbolos, talvez, de um tempo em que a pobreza se assumia orgulhosamente na honrada essência da mera existência e se afirmava numa roupa em segunda mão, remendada mas lavada, e no interminável trabalho de sol a sol, os cacos desta olaria sobrevivem, ainda, nos fragmentos da nossa memória.

 

Talvez essa memória nos venha a servir de algo, num momento em que a vida urbana se ressente já, amargamente, de mais uma crise e o espectro da pobreza, da desesperada e miserável pobreza que se sente na pele, no quotidiano e na família, ameaça dia e noite muitas das pessoas e famílias das grandes cidades.

 

Enquanto esse espectro não se aproxima das pequenas cidades, como inevitável e indubitavelmente acabará por acontecer, dirijo-me lentamente, cabisbaixo e taciturno, para o casulo que é a minha casa e são as minhas memórias, levando comigo Raul Brandão.

 

Augusto de Sousa

 

 

 

 

17
Out21

Crónicas da Quarentena

Primeiro dia


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Quarentena

 

Eu sabia que mais dia, menos dia, o corona vírus me iria entrar em casa, transportado por mim ou, o mais provável, transportado por um membro da família que na primeira linha lidava com ele. A probabilidade passou a suspeita num elemento da família no dia 12 de outubro de 2020. Dia 13 passou-se ao teste e no final do dia 15 vinha a confirmação – positivo. Por precaução, enquanto se aguardava o resultado do meu teste, tal como recomendava a DGS, no dia 14, já tinha ficado confinado em casa, e dia 16, vinha a ordem oficial da DGS para ficar confinado até dia 28 de outubro.

 

No entretanto, um amigo, quando soube da possibilidade do meu confinamento, fez-me uma proposta de, caso passasse a confinamento obrigatório, lhe enviar duas fotografias do dia para um texto, e assim aconteceu, com início em 17 de outubro de 2020, precisamente há um ano, saíam do confinamento as duas primeiras imagens para o primeiro texto, dos quais resultaram doze crónicas de reflexões e memórias, ficcionalizadas e cruzadas, correspondentes a três diferentes pessoas... com imagens do confinado e texto de Augusto de Sousa.

 

Quanto ao confinamento, confesso que nos dois primeiros dias até lhe achei piada, mas a partir de aí o sentimento mudou, pareceu-me ser aquilo que seria o mais próximo de uma prisão domiciliária, em que a casa se transforma numa cela e, com a sorte de ter um espaço ajardinado ao ar livre, se transforma em pátio de recreio, e tão real parecia essa prisão, que até a polícia (PSP), me batia à porta para verificar se estava ou não “preso”, tudo isto, com a agravante de poder a vir contrair a doença do Covid, que felizmente acabou por não acontecer.

 

Assim, iniciamos hoje a publicação diária dessas doze crónicas, precisamente um ano após elas terem sido escritas e ilustradas com duas imagens do dia.  

Fernando DC Ribeiro

 

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PRIMEIRO DIA

Sábado, 17 de Outubro de 2020

 

Aguardo, ainda, o resultado do teste que fiz há dois dias. Como entretanto se intrometem o sábado e o domingo, apenas saberei o resultado quase uma semana depois de o ter solicitado. A lentidão de todo este processo recorda-me o absurdo da guerra de 1908, que tinha horas para abrir e fechar.

 

Será que o processo infeccioso também vai de fim-de-semana?

 

Recolho preventivamente ao domicílio. Entre o Brunheiro e a veiga, aconchego-me no casulo que é a casa, quase não saindo sequer para o jardim. Aqui descubro ainda um outro casulo, dentro de mim próprio e das minhas memórias.

 

Olho este tosco camiãozinho, que comprei nos Santos, com a desculpa que todos os pais dão, de ser para um filho, e recordo as pranchas de pinho empilhadas nas serrações, com o seu cheiro fresco a resina e madeira.

 

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São memórias que me vêm como se estivesse no interior dessas pilhas quadradas e as visse através das frinchas de cada prancha alternadamente sobreposta – agora vejo, agora não vejo.

 

Sim, agora entrevejo a Rua da Muralha, os camiões da Exportadora e a figura maciça do Pipa, que de guarda-redes do Desportivo passou a temerário e periclitante condutor de camiões.

 

E logo me ocorrem, também, histórias do Matateu em fim de carreira, na pensão da Dorinha, com cama, comida, roupa lavada e uma grade de cervejas, que ele fazia questão de consumir na esplanada do passeio fronteiro, evidenciando o cumprimento de uma das cláusulas do contrato.

 

Penso no actual contexto pandémico e sinto-me como um jogador de futebol que estivesse já em campo, preparado para iniciar um jogo nocturno, com os holofotes ligados, as câmaras televisivas a transmitir em directo, mas tão perplexo com a inusitada e longa pausa que antecedia a partida como o próprio árbitro que, sem saber muito bem o que fazer, percebia que não dependia dele, afinal, o início ou o fim daquele jogo.

 

A angústia de todo este interregno de fim-de-semana não reside tanto no tempo que o resultado do teste levará a ser-me comunicado, mas no facto de não saber quando o jogo poderá voltar a ser jogado, de não saber se as regras voltarão a ser as mesmas ou de não saber, sequer, se voltará a haver jogo.

 

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E sinto que algo me falta, que algo me foi retirado sem meu consentimento e sem que eu o pudesse evitar. Como se olhasse para todas aquelas ferramentas penduradas na parede e sentisse que nenhuma delas é a adequada. Que só aquelas que ali deixaram o seu contorno vazio seriam, agora, as imprescindíveis para enfrentar estes tempos.

 

Olhando mais atentamente, percebo a falácia e acabo por me interrogar – de que me serviria hoje uma catana? Indubitavelmente, estes tempos requerem outras ferramentas, que ainda teremos de inventar e às quais teremos de nos adaptar.

 

Não podendo sair à rua, para honrar o meu contrato de vida e beber umas cervejas em público, descubro simplesmente que, a partir de agora, a essência da nossa existência ou da nossa felicidade, e até mesmo de uma suprema afirmação da nossa liberdade individual, poderá assentar apenas na renovação e revalorização de insuspeitos e menosprezados detalhes do nosso quotidiano…

 

Augusto de Sousa

 

 

 

30
Dez20

Crónicas de assim dizer


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O desabamento

 

 

De repente, sem que se notasse, minto, a notar-se por todos os poros da minha pele, saíam coisas. Algumas que eu nem sabia que lá estavam, só as notando no seu jeito apertado e contorcido de saírem, com muita dificuldade, num esforço gigantesco, como se fossem expulsas, como se saíssem por obrigação, por imposição de alguém. Quem?! Não se sabe ao certo.

 

Provocava dor aquela saída em enxurrada. As coisas atropelavam-se umas às outras, umas por cima das outras, sem se respeitarem na saída, numa ânsia incontrolável de ver a luz do dia. Saíam por urgência, na impossibilidade de ficar. E eu assistia àquilo tudo, inerte, como se me empurrassem por trás, como se, aos encontrões, os meus pés lá se arrastassem ou deslizassem num chão escorregadio, movediço, alheio. Nem queria ir nem ficar, na verdade não queria nenhuma das duas porque a vontade foi das primeiras a sair, por isso mesmo, porque tinha vontade.

 

Percebi, nesta altura, que mesmo que ainda lá estivesse uma parte dela, nada faria. O processo, tendo-se iniciado, era imparável e não tinha fim à vista. Parecia um carro eléctrico sem condutor. Perguntava-me quem ia lá dentro e o que o movia! Ninguém respondeu. É certo que, verdadeiramente, não fiz a pergunta, mas se a fizesse era também certo que ninguém responderia. Fiquei a assistir, com o olhar sereno e de sorriso nos lábios. Às vezes o pânico dá-me para isto. Uma tranquilidade absoluta. Uns dizem que é estado de choque, outros que é controlo da mente e outros, ainda, pragmatismo. Ainda não acabámos! Há também quem diga que é experiência de vida ou uma capacidade inata de lidar com a adversidade. Outros, agora por fim, acham e vêem nisto um mecanismo interno de defesa. Nem sim nem não, nada disso simplifica ou atenua aquele rasgar da pele, posto que há coisas que são tão grandes que o tamanho dos poros, mesmo estando dilatados, não é suficiente para se esgueirarem e é necessário fazer cortes cirúrgicos -como aqueles que fazem aquando do nascimento dos bebés, nos partos normais, em mulheres que não têm dilatação suficiente para o momento que se avizinha, episiotomia, para evitar o rasgar aleatório e a dificuldade ou o atraso na cicatrização. A ocitocina pode ajudar neste caso, mas aqui não.

 

Sabemos que é impossível reverter este processo. Aquela coisa de só conseguirmos engolir sapos depois de mastigados e nunca inteiros, põe-nos a pensar no porquê daquilo. Por um lado, é bom, distrai-nos, o que é uma forma de não sentir tanto a dor física, mas depois vem a outra, sem lirismos, menor, que é a psicológica, resultante de não entendermos nada do que se está a passar e a consciência da perda de controlo sobre o nosso corpo é algo com que não lidamos muito bem. Estranho é termos, à cabeça, a certeza de que aquilo vai passar, não sabemos quando, não sabemos como, mas sabemos que vai passar! (Aqui atrevo-me a dizer que o “mas” não faz falta nenhuma, mas deixo estar! Aqui já faz!)

 

Engraçado que, à medida que o processo avança, vamos sentindo, gradualmente, menos pena e menos dor. Como se fosse havendo, no processo, uma adaptação contínua da nossa parte a este fenómeno, que de início estranhámos…E há, de facto, porque as coisas que vão saindo abrem caminho às outras e o que de início doía como tudo, passa a doer quase nada.

 

No fim, quando já não havia mais nada para sair -e apercebi-me disso quando senti o ruído da cancela a descer- alguém me pôs na balança: pesava menos 21 grama.

 

Cristina Pizarro

 

16
Dez20

Crónicas de assim dizer


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2º Acto

 

Estava ali a olhar para mim, como a espiar-me, e eu com receio de que chegasse a conclusões sem eu as ter tirado. Protegi-me, não interceptando o olhar, como a recusar dar o flanco. Pareceu-me, naquele momento, que se o olhar se cruzasse o coração ia deixar transparecer o que a alma lhe tinha dito em segredo. O coração não é assim lá muito de confiança! Quando lhe pedimos para guardar segredo ele não conta a ninguém, só conta a um de cada vez!

 

Mesmo sem perceber a intenção daquilo, protegi-me. O seguro morreu de velho, diz o ditado! Mas não estava muito convencida do meu disfarce. Tinha medo de deixar pontas soltas e, por isso, não direi que fingi, mas andei perto disso. Não é mau, disfarçar, na realidade, não é bem um fingimento, é forjar a realidade a ela própria, é fazer-lhe ter a noção do concreto, como dizer a um não-pássaro: Sem asas, vai-te ser muito difícil voar! Não lhe dizemos que é impossível, para não lhe destruir os sonhos, não lhe cortar as pernas pois que sem elas nem andar podia e nós não somos assim, genuinamente maus. A maioria de nós, pelo menos.

 

Mudar de assunto também produz o mesmo efeito, mas nota-se mais. Se a pessoa estiver atenta, quase que é uma confissão. Quando não temos assim uma forte convicção, o melhor é deixarmos as coisas em banho-Maria. Não estamos a enganar ninguém, só nos estamos a recatar. Até aqui, tudo bem. O problema, por assim dizer, vem depois. É que começamos a acreditar naquilo que a nossa cabeça está a tentar passar como sendo verdade, só que o alvo, inicialmente, não éramos nós. Isto vem de uma característica mental, narcísica, que o nosso cérebro tem de adorar que lhe batam palmas e não distingue públicos. Neste aspecto é pouco diferenciado, do estilo: venham elas de onde vierem! Age por quantidade e não por qualidade! Mede o som em decibéis… e diz que é música!

 

Não tenho assim, propriamente, uma carteira de truques para contornar isto, mas acredito, e aqui piamente, que me saem coelhos da cartola sempre que deles precisar. E sem esforço. Farto-me de rir com isto, com esta característica, que aqui já não atribuo a sua excelência o cérebro, mas ao corpo, porque se trata de sobrevivência. As necessidades básicas da pirâmide de Maslow, se bem que vejo nela algumas incongruências. Se a virasse ao contrário, também me fazia sentido!

 

Distraí-me outra vez, estávamos lá em cima não era? Voltemos. Não há problema nenhum naquela atitude, desde que haja consciência de que ela não é sustentável. Ou seja, corre bem, mas por um período curto de tempo. Quando o esgotamos, pegamos no telemóvel sem som, ninguém desconfia disto porque, hoje em dia, com as agendas preenchidas que todos temos é normal isto, e dizemos: Desculpa, mas tenho mesmo que atender esta chamada, é importante! E depois de obtermos clara permissão -estas coisas da educação nunca se pode passar por cima delas- dizemos que vamos ter de sair, nada grave, mas urgente. Está sempre a acontecer.

 

Agora lembrei-me de um exemplo prático, sim, que até aqui foi tudo teoria e representação possível, por causa da minha paixão pelo teatro. Então uma vez, e garanto que não tinha nem tenho nada disto trabalhado, aconteceu-me uma conversa que estava a ir por um caminho que não me estava nada a interessar. E não era que aquilo me estivesse a incomodar que eu lido bem com estas coisas, mas estava a desviar-se do meu objectivo e eu com isto já não lido bem e então tirei o telemóvel do bolso, coloquei-o em cima da mesa, carreguei à sorte num ponto qualquer e disse: Podes continuar, mas a partir de agora a conversa está a ser gravada. Em segundos, retomou-se o fio à meada.

 

Isto tem tudo a ver com uma coisa, lá está, que eu colocaria na base da pirâmide de Maslow e que não está lá, o respeito pelo outro. As pessoas têm, com facilidade, respeito por si mesmas e acham que o respeito pelo outro é outra coisa, que têm, as que têm, com dificuldade e é aqui que discordamos! Porque eu, quando não vejo este segundo nos outros, perco o respeito pelos outros porque isso me é necessário para manter o primeiro. Parece-me tão simples este raciocínio! E se é lógico, poderá não ser verdadeiro?

 

Cristina Pizarro

 

14
Out20

Crónicas de assim dizer


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Tu e só tu

 

Deixa. Deixa ir. Larga. Larga tudo. Coisas, pessoas, sentimentos, emoções, mágoas, ressentimentos, ofensas. Não te importes. Vê e sê! Depois começa, repara em algumas coisas, poucas, que estão ali para ti, que só estão ali para ti. Não são vistas por mais ninguém, mais ninguém pode pegar nelas, porque és só tu que as vês. Não fales delas, não partilhes, ninguém as compreende ou valoriza a não seres tu. Chamar-te-iam louco, desequilibrado, mentiroso, até parvo. Traz isso para dentro de ti, reconstrói-te em bocados, aos bocados, sem pressa nenhuma. Faz uma coisa de cada vez, em silêncio. Não anuncies, nem para ti, se falta pouco ou muito ou quanto falta. Não percas tempo nisso, embora para isso o tempo te não falte.

 

Caminha só no caminho que é feito por ti, onde tu colocaste a sinalética do excesso de velocidade, do perigo com o gelo, do derrame de óleo na estrada... Só lá está o que tu lá puseste. Não comentes se foi fácil ou difícil o percurso, se vacilaste a dada altura, se equacionaste desistir, não digas nada. Segue o teu caminho, liberta-te dos muros sem os deitares abaixo. Se lá estão, para alguma coisa devem servir, alguém os construiu, podem ser úteis a outros. Constrói tu também os teus, que hão-de ladear o teu caminho, que te hão-de proteger ao longo do percurso.

 

Depois faz pontes, constrói as tuas pontes, porque pode haver uma altura na vida em que precises de atalhos, em que um rio te surpreenda ao caminho e te pergunte o que andas tu a fazer nele, como se lhe tivesses invadido o espaço, que é só dele. Não respondas, salta para a ponte, a que tem os teus alicerces, não a outra que está ao lado e que foi construída por outro. Sabes lá tu de que essa é feita, se tem estrutura capaz de te aguentar. Bem sei, pesas pouco, mas há pontes de cartão. Podes ter sede, sim, é verdade, mas não bebas senão da água que corre debaixo da tua ponte.

 

Constrói um jardim, não é preciso que tenha muitas e variadas flores. Pouca coisa é suficiente. Que sejam verdes para te alimentarem os pulmões de oxigénio. Não, para respirar não serve qualquer ar, tens que ser tu a produzir a tua atmosfera, para que ela te seja respirável. Para além das plantas verdes, semeia outras que tenham cheiro, coisa simples, alecrim, alfazema, rosas… se achares que te vão fazer falta para ofereceres a alguém ou simplesmente para te perfumarem o dia da semana que elegeres para o teu dia especial, o de descanso disto tudo.

 

Depois encontra um sítio, não procures um sítio, encontra o sítio onde farás uma pequena casa que tenha tecto para te abrigar do frio, das tempestades, das aves de rapina e dos animais selvagens. Entra na casa, deita-te no chão, fecha os olhos, adormece sem razão e vais ver que ao acordar estás só tu dentro de ti! E é tão bom, finalmente a sós contigo, sem ninguém lá dentro, sem ninguém que te julgue, sem ninguém que te impeça.

 

Instantes depois começas a ouvir um respirar e percebes que um grande amigo, que não vias há tempo indeterminado, está ali deitado junto a ti. Com surpresa perguntas: Como é que entraste? “Eu sempre estive aqui, tu é que não me vias!” Tiras então os óculos de ver ao perto: de facto!

 

E é aí que percebes aquele estado de alma do “Quase bem!”, que para evoluir para o patamar seguinte depende mais do largar coisas -que só depende de ti fazê-lo- do que do ter coisas -que pode não depender só de ti.

 

 

Cristina Pizarro

 

 

30
Set20

Crónicas de assim dizer


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O Senhor Joaquim

 

 

O homem tinha-se habituado àquilo e não prescindia disso! Se alguém lhe perguntava porque o fazia, respondia:

- Habituei-me!

As pessoas não percebiam isso, achavam que era uma não resposta. É normal, quem não tem o hábito não o entende. 

 

Havia outros que o achavam doido, porque não encontravam lógica nenhuma para uma pessoa usar uma coisa da qual não precisa. É também normal, porque a lógica é de cada um, não se partilha.

 

E depois havia outros, persistentes, que teimavam em conseguir mudar o homem:

- Ó Senhor Joaquim, pense comigo. Se o Senhor não precisa disso para nada, porque é que anda com elas?

Mas o Senhor Joaquim que pensava bastante, mas só consigo e não com os outros, respondia a pura verdade:

- Habituei-me!

 

E as pessoas continuavam:

- Faça de conta que as perde, como é que depois vai fazer?

O Senhor Joaquim não gostava muito de fazer de conta. Achava pouco real e produtivo imaginar cenários onde, embora não pudesse determinar a probabilidade exacta de acontecerem, via neles poucas possibilidades de ocorrerem e respondia:

- Até lá, ando com elas!

- E depois, se isso acontecer, o que é que faz?

E o Senhor Joaquim, já farto daquela conversa e só em jeito de a terminar, respondeu:

- Arranjo outras!

 

Estas conversas, inquisições repetidas, deixavam-no um bocado desconfortável e começou a sentir-se melhor sozinho e a ficar mais por casa, porque se cansou de responder a questões iguais em dias diferentes.

 

Um dia os miúdos da aldeia, brincadeira de mau gosto, resolveram, num momento de distração, o que só acontecia enquanto dormia, tirar-lhas. O Senhor Joaquim passou dias sem sair da cama e as pessoas começaram a perguntar-lhe:

- Ó Senhor Joaquim, porque é que não se levanta, não há nada que o impeça!

E ele a responder de novo:

- Habituei-me!

 

Um dia os mesmos miúdos da aldeia acabaram por ir visitá-lo, porque sentiam saudades das histórias de vida que ele lhes contava ao fim da tarde, no quintal, e trouxeram-lhe as canadianas. E o Senhor Joaquim levantou-se da cama, apoiou-se nelas e foi para a rua contar histórias. Não fez comentários, perguntou apenas aos miúdos porque tinham sentido falta das histórias que ele lhes contava. Responderam:

- Habituámo-nos!

E o Senhor Joaquim:

- Eu já não vou para novo, se um dia vos falto como é que fazem?

Este cenário, embora o Senhor Joaquim não pudesse determinar com probabilidade exacta quando aconteceria, via nele muitas possibilidades de ocorrer e achava, por isso, muito real e produtivo imaginá-lo com alguma antecedência!

- Até lá, conta-nos histórias.

- E depois, quando isso acontecer, o que é que fazem?

- Arranjamos outro! 

 

Nesse dia o Senhor Joaquim esqueceu-se das canadianas no quintal, voltou para casa pensativo, um pouco triste, mas, encolhendo os ombros, verbalizou, em jeito de conclusão:

- Coisas de miúdos. 

 

Na manhã seguinte, não acordou.

 

 

Cristina Pizarro

 

 

 

17
Set20

Crónicas de assim dizer


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São uns atrás dos outros

 

Sempre tive uma sensação estranha, e por isso difícil de descrever, que é a de não pertença! A nenhum lugar, a nenhuma pessoa. Estou num sítio e vem-me à cabeça: eu não sou daqui! Ou porque cheguei tarde demais e já tinha acontecido o processo de inserção, a que não assisti, ou porque cheguei cedo demais e ainda não havia ninguém com quem interagir. Esta segunda hipótese é mais compatível com o desajuste. Mesmo que a partir daí começasse a chegar gente, não tinham assistido, da mesma forma que eu, ao fenómeno que é chegar a um planeta vazio e do nada começar a fazer coisas. Os que chegam depois começam logo a questionar tudo: o porquê dessas coisas e não outras, a razão do porque assim é quando podia ser de outra forma, … não lhes importa saber se melhor ou pior, querem diferente.

 

Começa o desconforto, começa a instalar-se uma sensação de estar a mais, de não ser dali, de não estar no sítio certo, embora não saibamos se ele existe ou que caminho percorrer para o encontrar ou até, porque não dizê-lo, se isso nos faz algum sentido. Normalmente não faz. Temos as nossas convicções, os nossos propósitos, a nossa lógica de raciocínio, a nossa conformidade com as coisas, a nossa razão da percepção delas, a nossa perspectiva, o nosso entendimento. Fazer o quê?

 

Como seres sociais, que dizem que somos, começamos a estabelecer laços com uma dificuldade gigantesca em desfazer primeiro os nós e aos bocadinhos, com muito cuidado e com muita atenção, vamos entrando devagarinho. Mas chega um ponto, porque não somos de perder tempo, que percebemos que o motor chega dos zero aos cem em poucos segundos e se a potência está lá, para quê andar a 60 na auto-estrada?!

 

Reagimos, perdemos a calma inicial, a que também se pode chamar paciência, e aceleramos o processo. Começam então a olhar para nós de lado e a fazer comentários do tipo: “Mas o que é que lhe deu?”

 

E, verdadeiramente, não nos deu nada! Nem sequer podemos dizer que acordámos, porque se há coisa que nunca fizemos foi dormir ou brincar em serviço, embora às vezes brinquemos no serviço. É saudável!

 

Começamos aqui a cometer um erro, que é o de dar explicações dos nossos actos porque, enfim, há pessoas que o merecem e de quem gostamos e incluímos nessas explicações, justificações para os nossos comportamentos e atitudes, porque nos parece que assim nos vão compreender e aceitar melhor. Segundo erro, porque funciona ao contrário. As pessoas entendem que se nos justificamos é porque não estamos convencidos de estar a fazer o melhor possível! Instala-se aqui, e já é a segunda vez, sim, um sentimento de desconforto que advém de acharmos uma injustiça que alguém nos julgue mal quando a intenção, a nossa, foi boa. Terceiro erro, incomodamo-nos com isso. Ao tomar consciência que provocámos nos que nos rodeiam uma certa desilusão, cuja responsabilidade não é minimamente nossa, mas só do cérebro onde essa expectativa nasceu, que a alimentou, que a fez crescer, que a levou a andar de baloiço, à pista dos carrinhos de choque, ao parque aquático, à praia, ao safari e por aí fora. Estávamos lá? Não. Então, que culpa pode haver?! 

 

No meio de tudo isto ainda há quem nos diga: “Percebeste mal os sinais!” Os óbvios, aqueles de quem bate à porta, mas não quer entrar ou de quem pergunta se temos um cigarro só para saber se temos. Claro que o sentido de humor é uma coisa belíssima, diria até imprescindível, mas no contexto adequado, com peso, conta e medida! É aqui que começamos a fazer alergia a coisas inespecíficas. Fazemos o teste. Alimentos, nada. Químicos, nada. Pólen, nada. Qual gramíneas, qual quê?! Ácaros, nada. Pó, nada. Mas a comichão não passa, os anti-histamínicos não fazem efeito, o banho de aveia ou lá o que é, acalma, mas passa logo.

 

Está na altura de iniciarmos a retirada. Dar lentamente, sem que se note, e isto é crucial no processo, um passo a trás, gradualmente, muito gradualmente. Descalçar antes os sapatos, se forem italianos e nos derem bom andar até podemos transportá-los na mão, mas se o caso não for esse é atirá-los fora, ao rio ou ao caixote do lixo. Não valem aqui as preocupações saudáveis do reciclar ou dar a quem precisa, ninguém calça os nossos sapatos! Nunca os deixar em sítio que se vejam, estas coisas feitas assim à toa dão sempre um aspecto de abandono ou desprezo, não nos fica nada bem. É aos bocadinhos que estas coisas se fazem, vamos saindo dali até estarmos tão distantes que mesmo com as coisas à nossa frente e coladas a nós, não as conseguimos ver.

 

Só para que não desanimem nem pensem que isto não é possível, eu já consegui. No outro dia fui ao psicólogo, assim para experimentar, e a despedida, já na porta, foi esta: “A Cristina tem as coisas à sua frente e não as vê!” Se ele não tivesse dito há dez minutos: "O nosso tempo acabou", eu tinha-lhe contado como me sentia bem por essa grande vitória!

 

Cristina Pizarro

 

 

 

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