Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

16
Fev21

Crónicas Estrambólicas

CRÓNICAS DE UM PRIMEIRO-MINISTRO SOBRE O BARROSO - 15


1600-1-15-granjo-misarela (290)

estrambolicas

 

Crónica de um Primeiro-Ministro sobre Barroso 15

(última crónica)

 

Mais uma crónica do antigo Primeiro-Ministro António Granjo, um ilustre flaviense. É a última das 15 crónicas sobre Barroso publicadas no jornal A Capital em 1915. A crónica está escrita como foi publicada, no português da altura, incluindo gralhas tipográficas.

 

Gostei bastante de ler esta série de crónicas, escritas por um homem culto e com grande sensibilidade para a natureza e as pessoas, entre outras. Achei a pontuação um bocado estranha mas não sei se isso terá a ver com algum revisor do jornal que terá alterado vírgulas e assim. Tem piada que o autor entrou como um leão, a gabar Barroso ao máximo, mas no final já diz que os pulmões estão cansados do ar puro… Já estaria com saudades da vida na cidade, é compreensível, há mais mundo pra lá de Barroso. Também há quem nasça em Barroso com vocação de marinheiro e não se pode travar essa gente de ir por aí afora. Isso de resistentes e que se negam a sair, é utópico, são lérias do dono deste blogue e mais alguns, mas não é bem assim como as coisas são. O inverso também é verdade para quem vem de fora fazer cá a vida, que são menos do que os que saem mas sempre existiram. Em Barroso não somos melhores que ninguém, como quase quis fazer crer o cronista ao dizer que os barrosões são o máximo e sempre ao máximo, a tal gente boa e pura e valente. Temos uma cultura muito própria mas mais nada, cá também há depressivos, alcoólicos, assassinos, ladrões, pedófilos, invejosos apenas, etc. Aliás, algumas das características que reconheço nas gentes de Barroso são a matreirice e a artimanha, ora vão ler os relatos do Bento da Cruz sobre os barrosões que, na altura do ano em que a agricultura não dava trabalho, iam por aí afora pedir para a casa “ardida”. Estórias como a seguinte não faltam. Há uns 30 anos houve um emigrante que apareceu numa oficina em Boticas para colar o quadro da bicicleta, que tinha partido. Na oficina disseram-lhe que faziam o serviço mas de momento não tinham a cola necessária, a super 18, e que ele devia tentar compra-la na farmácia. Na farmácia disseram-lhe que estava esgotada e mandaram o homem para outra loja e daí foi recambiado para mais uma ou duas, cada vez mais distantes, até que na cooperativa lhe puseram um saco de 50 quilos de adubo super 18 às costas para ele o carregar até à oficina. Isto tudo sem nenhum lojista estar combinado ou saber de nada, os manhosos de Barroso funcionam por telepatia. A arte de representação e de iludir os outros são coisas que cá passam de pais para filhos, é uma cultura enraizada, e os executantes são tão bons que normalmente os turistas nunca percebem essas qualidades, mesmo depois de carregar um saco de 50 quilos de cola às costas. Alguns são tão maus alunos que até têm que repetir a lição, o que dá direito a medalha de ouro aos artistas principais. Fiquem agora com a crónica do Granjo.

Luís de Boticas

 

47726035031_cde86d4381_o.jpg

 

QUADROS MARAVILHOSOS

Offerece-os a regido de Barroso aos pintores, aos romancistas, aos cultores do «camping»

 

Preciso acabar. A capital deve estar fana de aturar este impenitente o irresgatável bairrista; e as cinco ou seis pessoas que porventura hajam seguido estes artiguelhos devem começar a enfastiar-se.

 

Depois, a política anima-se. E concordemos, entre o que pensa o nosso amigo e senador da República, sua ex.a. Qualquer coisa, sobre o momento psicológico em que a nação corra perigo de perder-se e seja assim justificável perante a História um ministério de concentração, e o que se passa em Barroso, onde uma companhia estrangeira explora já uma das mais ricas minas de volfrâmio do mundo e pensa utilizar o Cávado e a Fecha de sahida (cascata do Outeiro) para a electricisação dos meios de transporte e illuminação entre Douro e Minho, não temos mesmo que hesitar. Como nos cumpre, temos de ficar suspensos da palavra preciosa de s. ex.a, e conceder por favor um encolher de hombros a esses doidos que vem da estranja desventrar as nossas montanhas à procura de ignorados thesouros ou com a intenção de transformarem o fio de água em torrente de força e onda de luz.

 

E, sendo assim, como é, finalizamos.

 

50130086541_25c6b4c925_o.jpg

 

São um pouco adeante da Venda Nova as Minas da Borralha. Sobe-se por um corrego, pelo leito secco d’um ribeiro, um atalho que evita 2 km de estrada. A manhã beija a montanha.

 

A meio da encosta pára-se, e deixa-se correr a vista. Para o nascente, segue a estrada que se principiou há 60 annos e para cujo acabamento será talvez necessário que se faça uma revolução. É para esses lados, atraz das serras, que lá muito longe fica a minha terra, debruçada sobre um rio manso, no goso perene de um valle risonho, assentada sobre uma colina ainda cercada de muralhas. É pouco mais ou menos por esta hora que eu costumo chegar à minha varanda, onde cultivo mangerico, a dar bons dias ao sol. Sinto que me vae fazendo falta a minha cadeira de verga, sentado na qual, depois de jantar, conforme o velho preceito conventual acho excellente philosophar sobre as unhas e menos partes dos homens e sobre os cabellos e mais partes da mulher.

 

À vista segue um raio de sol que brinca sobre o Cávado. Ao fundo adivinha-se a ponte da Misarela ou do inferno.

 

1600-granjo-15-misarela (221)

Ponte da Misarela

É a essa ponte que vão as mulheres gravidas, e que já abortaram, pela meia noite, pedir ao espírito das águas que lhe dá um bom parto. Parece uma lenda medieval. Eu conto-a. Quando uma mulher tem um parto infeliz, e concebe novamente, uma noite, sem que ninguém a presinta, sae de casa acompanhada do marido. À meia noite em ponto está no meio da ponte da Misarela. O marido fica à entrada da ponte para afugentar todo o animal vivente. Porque é preciso que não passe sobre a ponte nem pássaro nem cão, nem besta alguma, antes que appareça algum transeunte. Por fim apparece ou um almocreve ou um bezerreiro ou um mendigo ou um lavrador ou um pequeno pastor. Será o padrinho. E logo que appareça uma pessoa do sexo feminino quer seja uma velha remelosa que venha dedilhando as contas do rosário, quer seja uma creança que venha com a fazenda e traga entre os dentes a côdea negra do centeio, tem lugar a cerimónia. O padrinho desce ao rio, traz na concha da mão um pouco de água aparada de uma rocha cavada no meio, e a que o povo chama o caldeirão, e sob o alvor das estrellas pronunciam-se as palavras sacramentaes do batismo. Se a mãe tiver um rapaz há-de chamar-se Gervásio; se tiver uma rapariga há-de chamar-se Senhorinha.

 

Não merecia uma scena d’estas apanhada em flagrante, uma página immortal de Camillo?

 

1600-misarela (6).jpg

Ponte da Misarela

As casas brancas da Venda Nova e as águas brancas do Cávado dão à paisagem apocaliptica, feita para as tempestades, para os cenobitas, e para as aves presas, numa cena nota de suavidade. As bestas pararam também na contemplação estática da manhã doirada, e os seus perfis, projectando-se contra o azul lavado, parecem linhas de animaes estetizados ornamentando o horizonte.

 

A caminho, caminheiros!

 

Os carros, os fios telegraphicos e telephonicos, cruzam-se sobre a montanha, que uma estrada rasga, deixando a descoberto manchas de volfrâmio. As águas amarelladas do ribeiro, a 50 metros de profundidade, rugem de penedo em penedo, arrastando os detrictos.

 

Conta-se que na Suissa andam dias e dias os americanos e ingleses percorrendo os leitos pedregosos das ribeiras em busca dos moinhos de água. Uma pena de água, sobre uma rocha foi descrevendo um movimento circulatório; no meio a rocha ficou, arredondando-se; a água foi roendo a rocha, até chegar à areia; o pedaço de rocha que ficou no meio, entre o redemoinhar da água, despegou-se por fim e recebeu um movimento giratório. É o moinho d’água. Pois é pena que um archimilionario americano ou um armador inglez não venham fazer turismo por estas ribeiras barrozãs, porque escusava de gastar muito tempo para dar com o seu moinho d'água.

 

1600-15-granjo-borralha (126)

Minas da Borralha

Estamos nas instalações da mina — barracões enormes, cobertos de zinco, onde arfam as machinas potentes; carretas rolando continuamente nos railhes; pequenos grupos de casas operárias, com as chaminés furando para a rua; a enorme lavandaria, baixando em 7 ou 8 andares, desde o cimo da montanha até ao ribeiro; as boccas das minas abrindo-se convidativas e misteriosas; os elevadores surgindo do seio da terra e descarregando o minério; e o vae-vem, os movimentos apressados, a agitação ordenada, de uma grande mina em actividade. Alguém saberá que há em Barroso uma exploração mineira que occupa 500 operários e na qual está estabelecido o regimen das 8 horas do trabalho?

 

mineiros-1600-borralha (40).jpg

Trabalhadores das minas da Borralha em 1918

Fez-se ultimamente um certo barulho à volta do mr. Marijou, director d’estas minas, por virtude do projecto de lei, pendente do Senado, para a anexação da freguesia de Salto, a que as minas pertencem, ao concelho de Cabeceiras de Basto. A discussão na imprensa diária apenas arranhou um minuto o ouvido popular. De tudo isso não há já certamente a memória que deixaram as palavras transcendentaes de sua ex.a. Qualquer Coisa sobre as homorroidas do respectivo chefe. Apenas em Barroso subsiste ainda a justa revolta contra a tentativa de extorsão.

 

A caminhos, caminheiros!

 

1600-borralha (174).jpg

Minas da Borralha

1600-15-granjo-pedreira.jpg

 

São 11 horas. A raçada do sol racha as fragas, no pittoresco dizer da região. O solo arde. As pedras queimam. O sol está no zenith. Caminhamos há uma hora com a cabeça bamboando entre os hombros, à procura, de uma sombra. O cavallo tropeça a cada passo: parece estar cego dos dois olhos.

 

Damos um cavallo por uma sombra, como o outro dava o seu reino por um cavallo.

 

Apparecem fetos, e logo se ouve cantar um pequeno fio de água por uma ravina. Acampamos atraz de uma parede, a um de fundo, para todos podermos aproveitar a sombra magra das galhas nodosas de uma giesta. Serve-se o sóbrio repasto, como comporia um clássico, e, classicamente, dispomo-nos a vencer a nova montanha, dessedentadas as gargantas no doce fio de água, que bem merecia um genial soneto do Sr. António Correia d’Oliveira.

 

1600--granjo-15 d-noguiro (1)

 

Será o último dia da jornada. Os olhos vão cançados de ver, os pulmões recebem já enfastiadamente o bom ar azotado; o coração aborrece-se já do seu rithmo perfeitamente e inalteravelmente normal; e as pernas, as pobres pernas, vão cançadissimas, juro-o de uniformemente, uniformemente, uniformemente, galgarem despenhadeiros, treparem alturas, saltarem corregos, esmagarem urzes, dentarem com as brochas cardadas das botas este imenso pavimento de rochedos em que há uns poucos de dias vimos patinando.

 

1600-grano(68).jpg

 

De todo o resto da jornada, pouco vale a pena contar. Aldeias de nomes bárbaros que se viam dependuradas nas encostadas, vezeiras de gado meúdo mosqueando as serras, vaccas fazendo tilintar as suas campainhas pelos lameiros dos vales, algumas cruzes nos caminhos recommendando aos viajantes que rezem por alma do que ali morreu assassinado. Viva, tenho ainda a lembrança das mãos femininas e delicadas que à entrada de uma povoação me estenderam uma grande pota de água, vinho e mel e que constitue certamente a delícia das delícias.

 

1600-granjo-vila pequena (68)

Vila Pequena - Boticas

Apeámo-nos, sobre a tarde, na Villa Pequena, já nas faldas das Alturas. É um bonito logarejo com as ruas cheias de latadas, os campos cheios de milhos, onde já parece ter chegado «a bênção de Deus». Ao longe, vê-se o Lasenho, donde foram levadas as duas estátuas de guerreiros que se ostentam no Museu Etnographico, nos Jerónimos.

 

O Sr. Dr. Leite de Vasconceilos anda há bastantes annos empenhado na descoberta do Lasenho. Pois informo-o que fica junto à povoação de Campos, no sopé da serra das Alturas e tem a forma de uma pirâmide cónica. E não quero nada pela descoberta — nem mesmo as palavras da Academia.

 

Sahimos de Villa Pequena já noite escura. Um guia, com um lampião de azeite, vae ensinando o caminho e tagarelando sobre moiras encantadas, lobos e salteadores. E pelas 2 horas da madrugada, com as nossas 8 léguas (1) andadas, os bigodes ensopados da geada, e as pernas mechendo-se por hábito, chegamos enfim a Boticas.

 

1600-granjo-15-composicao

A caminho de Boticas - Composição

Enfim!

 

Enfim, dirão também os leitores.

 

Fomos compondo, intervallada e arrepolladamente, conformo nos deixaram, estes artiguelhos a fim de chamar a atenção dos portuguezes e dos turistas para este canto de Portugal. Certamente, não encontrarão por cá funiculares, nem magníficos hotéis, e muito menos poderão dispor a cada canto d’urna cabina telephonica para chamar um automóvel de socorro quando se fure um pneumático. Mas quem quizer um pouco de imprevisto e for capaz de um pouco de esforço, deve visitar esta admirável região, sufficientemente grande para se fazer o camping uma estação inteira e sufficientemente ignorada para se tomarem duas notas inéditas e se tirarem algumas bellas photographias. Se há no paiz romancistas de costumes, têem matéria à farta para compor alguns volumes; se há pintores, têem os mais lindos motivos e as mais graciosas linhas de Portugal para fazerem alguns quadros maravilhosos.

 

Posto isto, como era de uso acabar antes, quando em Portugal uma mezura valia um pouco mais que um pontapé, receba a Capital, os meus agradecimentos, e a meia dúzia de leitores que se interessou pelos artiguelhos as minhas sinceras desculpas pelo tempo que lhes roubei.

 

António Granjo

30 de Setembro de 1915

 

 

 

(1) Talvez devido ao cansaço o autor duplicou a distância

08
Jan21

Crónicas Estrambólicas

Crónicas de um Primeiro-Ministro sobre o Barroso – 14


alturas (273)-GRANJO.jpg

estrambolicas

 

Crónica de um Primeiro-Ministro sobre Barroso 14

 

Mais uma crónica do antigo Primeiro-Ministro António Granjo, um ilustre flaviense. É a penúltima das 15 crónicas sobre Barroso publicadas no jornal A Capital em 1915. A crónica está escrita como foi publicada, no português da altura, incluindo gralhas tipográficas.

 

Podia pegar nalgumas coisas da crónica para dizer algo mas vou deixar para uma crónica mais longa e que inclui outras coisas não relacionadas com esta crónica. De resto, Impressionou-me a leveza com que o autor relata um assassínio numa zaragata, embora ele tenha alguma desculpa por ter sido um homem de armas. Mais nada. Agora fica apenas a faltar a última crónica desta série.

Luís de Boticas

 

tumblr_ozqnljodFH1tcav4fo1_1280.jpg

Fotografia de Artur Pastor

 

 

A RELIGIÃO DE BARROSO

 

Era domingo e o guia quis ouvir a sua missa, como bom catholico. Essa pequena circunstância permittiu-nos fazer uma idéa do que é o culto catholico em Barroso e vale a pena talvez falar d’isso, se dão licença aquelles livres-pensadores que todos nós temos conhecido envergando as opas do santíssimo de Mafra, assoprando os incensários da patriarchal ou cantando pela encosta do Sameiro o hymno à lmmaculada.

 

A egreja está sempre no melhor sítio. D’entre as casas, cujos colmos têm reflexos fulvos de pelles de animaes selvagens e cujas paredes parecem os abrigos duma caverna dos contemporaneos do período terciário, a egreja, com o seu pretencioso telhado de telha vã e a sua gentil torrela em que se abre a bocca amiga e sonora do sino e d’onde uma cruz deixa cahir a sua bênçao —a egreja escortina-se sempre da última volta do caminho, como um sorriso branco ou como um convidativo acenar de lenço. A casa de Deus nao tem pórticos, nem naves, nem azulejos, nem talhas, e nas sachristias nem ha thesouros nem paramentos ricos. Mas, ao menos, que o Todo Poderoso, lá do céo, não diga que aquela gente nem o cuidado teve de carregar de Chaves alguns milheiros de telha e uma pipa de cal. Não há uma archivolta, um nicho, uma lanterna de prata, um manípulo de seda, uma folha d’acanto que o cinzel ou a escoda hajam recortado.

 

Mas que importa? Que mais quererá Deus? A egreja tem a cal, que ninguém mais possue e tem a telha que só a Deus é dada.

 

12077964773_9aa72952ce_o.jpg

 

Em volta da egreja, no pequeno adro, algumas Iamagueiras, enristam os seus ramos aggressivos. Os cachos vermelhos destacam-se do verde-negro das folhas como pingos de sangue. É a árvore ornamental barrozã. Encontra-se à volta das egrejas e dos cemitérios, estendendo para o alto os seus braços súplices; encontra-se junto das eiras, offerecendo à gula da passarada as suas florescências vermelhas; e uma ou outra vez lá se encontra n’um cruzamento de caminhos, n’um alto, à entrada das povoações, como um ponto de referência para o caminhante.

 

Antes da missa, o parocho, de sobrepeliz, dá a volta à egreja, com a Custódia. É a procissão. Os cânticos elevam-se nos ares como bateres d’azas; as mãos postas parecem fazer parte dos próprios peitos.

 

1600-s-sebastiao-13 (428)-GRANJO-14.jpg

 

Logo começa a missa. As mulheres, com os rostos, emoldurados nas capuchas, têm um certo aspecto de freiras. Os homens, apertados junto da teia do altar-mór, com as gorras debaixo dos braços ou os chapéus enfeitados de penas de pavão depostos no pêto do orago, espreguiçam-se familiarmente. Ao crédo um grande rumor enche a pequena egreja. Os homens levantam-se, tossem, espreitam as raparigas, raspam os socos sobre as campas dos antepassados. Alguns olhos encontram-se e brilham na penúmbra propícia com mais fulgor do que as velinhas dos altares. Ao Evangelho, o parocho avisa o povo de alguma rez perdida, do conteúdo de algum edital, lê as proclamas de algum casamento, faz a sua praticasinha contra a impiedade dos republicanos.

 

 

A hóstia ergue-se nas mãos alvas do parocho como uma pequena lua de marfim. Os peitos curvam-se. Passa um sopro de contrição. O calice sóbe, levemente inclinado, refulgindo contra o fundo escuro do altar. O sachristão pega das galhetas, e os beiços esbarbados dos homens distendem-se em longos bocejos. Por fim, o parocho volta-se, desenha uma cruz, ajoelha e enquanto atropela as trez avé-marias e o murmúrio das rezas esvoaça sobre as cabeças como uma arcada leve, de violinos, as boccas riem. Já cá fora, no adro, os moços dilatam orgulhosamente os troncos, mettendo os pollegares nas cavas dos colletes de carapinha ou de pelle de lebre. Algumas velhas ficam-se à porta, falando das vidas alheias, e o regedor convoca o «conto» ou «chamado». Apparece um vizinho a queixar-se que a «fazenda» (gado) de outro lhe comeu umas perneiras de milho e pede à assembleia que applique a respectiva multa. O accusado defende-se, nega, brama, blasphema. Formam-se partidos, a discussão accende-se. O regedor apresenta uma proposta conciliatória. D’esta vez não se applicará a multa; mas o culpado que não alarde da acção e que não repita o feito, ficando elle regedor, no caso de nova queixa, auctorisado a applicar logo a multa. Approva-se a proposta, desfaz-se o adjunto e cada qual vae para a sua cabana comer a sopa de leite desnatado.

 

FOGO.JPG

 

O parocho desparamentou-se à pressa, metteu a sobrepeliz e o manípulo n’um pequeno sacco, enguliu duas trutas, folheou nervosamente um semanário, e assim preparado em carne e em espírito montou na égua e foi pregar a uma freguesia vizinha sobre os milagres do seu padroeiro.

 

Esta é a vida religiosa de todos os domingos. Mas, ao menos uma vez no anno, há a festa da aldeia. Chama-se o gaiteiro, arma-se um andor, compram-se na villa os foguetes e as rodinhas de fogo e todo o dia e toda a noite a mocidade, com os seus harmónios e os seus ferrinhos, enche a aldeia de alegria e de tumulto. Como me dizia um velhote, os corações saltam para as palmas das mãos e as pernas fazem-se azas. Canta-se ao desafio. Às vezes, no calor da improvização, o cantador joga a sua piada a uma moça que o repelliu ou a um rival feliz, e então os lodos cantam alto, o sangue espirra das cabeças e não raras vezes a fouce ou a espingarda fazem o seu apparecimento, ficando no terreiro algum dos da mocidade, a empastar com o seu sangue a poeira e a abrir para o céu os olhos parados.

 

37549648472_9ec726c95c_o.jpg

 

Toda a aldeia tem a sua festa de anno. Há porém, terras desgraçadas, perdidas entre os fraguendos, nos quaes apenas uma dúzia de vizinhos vegeta e não é possível arranjar dinheiro para armar um andor, comprar as rodas de fogo ou pagar ao pregador. Em taes casos, o mordomo péga no santo ao colo, e abre a procissão, atraz vão os vizinhos, com as suas caras compostas e as suas opas emprestadas; e no couce guisalha e espinoteia o cortejo das vaccas, com ramos de carvalho presos das hastes, prestando também a sua homenagem à divindade.

 

De quando em quando, a festa redunda em enorme tragédia. A lágrima d’um foguete cahe sobre um colmado. Levanta-se um pé de vento. Uma chama lambe, como uma grande língua, a primeira casa. O sino toca a rebate. Uma fogueira immensa se ergue logo até ao céu. É a aldeia que arde em meia hora. As outras povoações acodem, mas quando chegam apenas vêem as paredes denegridas e apenas ouvem as mulheres gritando a sua afflição, enquanto os homens consultam angustiosamente o horizonte.

 

Entregues à sua sorte, sem o socorro mútuo e sem o socorro do estado, o pobre barrosão vira-se para Deus.

 

Antonio Granjo

 

 

13
Nov20

Crónicas Estrambólicas

Crónicas de um Primeiro-Ministro sobre o Barroso – 13


1-1600-volta-larouco-15 (22)-cop-granjo

Composição vista desde a Serra do Larouco

estrambolicas

 

Crónica de um Primeiro-Ministro sobre Barroso 13

 

Mais uma crónica do antigo Primeiro-Ministro António Granjo, um ilustre flaviense. É a uma das 15 crónicas sobre Barroso publicadas no jornal A Capital em 1915. A crónica está escrita como foi publicada, no português da altura, incluindo gralhas tipográficas.

 

Não tenho grandes comentários a fazer a esta crónica, que é quase uma continuação da última onde é descrita a subida ao Larouco. Nesta, o Granjo começa na descida do Larouco e vai até Pitões. Tem piada ver que alguns dos desejos do Granjo para a região foram realizados apesar dos resultados não serem bem os previstos. Notei aqui e ali uma outra coisa que me parecem incongruências, mas deixo para os leitores as apreciações sem eu meter o bedelho.

Luís de Boticas

 

2-1600-volta-larouco-15 (160)-granjo

Serra do Larouco

 

BARROSO, FONTE DE SAÚDE

 

A descida quasi a pique, sob uma chuva diluviana, entre touças queimadas, ó coisa de que o leitor nunca fazia bem ideia. Os ramos carbonizados batendo o ensarrafuscando as cargas, as bestas deixando-se escorregar, nós segurando-nos aos cabrestos das ditas, e a água entrando-nos pelo já minguado pescoço sahindo-nos pelas já desfeitas plantas, é qualquer coisa que escapou ao Dante do Inferno. Verdade seja que chegar ao posto da guarda fiscal de Padornelos, accender uma fogueira para enxugar a roupa no corpo, beber dois golos da borracha e comer um bocado de atum de conserva com cebola e um dedal d’azeite, é qualquer coisa que escapou ao Milton no Paraizo.

 

3-1600-montalegre (1117) -granjo

Padornelos

Pelo cahir da tarde estavamos em Montalegre. Certamente o leitor acredita que comemos e dormimos bem, e como isto de comer e dormir bem, sobretudo de dormir bem, vae sendo, com a crise de subsistências e a crise de revoluções, coisa por deveras apetecida, o leitor acredita que démos por bem empregada a enorme jornada e por bem ganho o nosso dia.

 

Espera-se pelo correio. O que se teria passado pelo mundo? Ter-se-hia feito a paz?  O Sr. Leotte do Rego não seria já commandante da divisão naval? O Sr. Dr. José de Castro teria deixado de ser o estadista «empalhado»? O que teria acontecido?

 

4-1600-barroso XXI (531)-granjo

Montalegre

Veem os jornaes. Na frente occidental, os mesmos duelos d’artilharia na oriental, a tomada da decimamilionesima fortaleza russa pelos austro-allemães; nos Dardanelos, algumas cargas de baioneta. A divisão naval continua a fazer exercícios em Cascaes; e o Sr. Dr. José de Castro continua a convencer-se que o não fadaram os destinos para cavallarias altas e se deveria ter deixado ficar pela presidência da Associação da Árvore.

 

Sacudo os jornaes, como um lobo sacode a presa. Levanto o olhar para as montanhas, para o céu. Mando apromptar a caravana: e fujo para o Alto Barroso.

 

O Cávado decorre serenamente. Uma parpalhaça canta. Por cima das restolhas plana um milhafre. Cae uma chuva miudinha. Por entre as silvas, as amoras espreitam como grandes olhos de insectos.

 

5-1600-frades (145)-video-granjo

Ponte de Frades

Passa-se o Cávado em Frades, alcança-se Covellães, e eis-nos em Paredes. Despenhamo-nos nos braços robustos do Accacio de Barros, o mais perfeito barrosão que Barroso gerou e em cuja casa o viajante encontra sempre ancoradouro seguro.

 

Já o sol declina, quando nos pomos a caminho para Fecha Velha. Não me demoro a fazer a discripção da caminhada desde Parada do Outeiro até Pitões, pelo sopé do Gerez. É qualquer coisa que vale um tomo; e é qualquer coisa que não é lícito tentar aos meus recursos descriptivos. Imagine-se um encapellado oceano de pedras, que de repente se immobilizou.

 

6-1600-barroso XXI (205)-granjo

 

As vagas ameaçam ainda o céu, suspendem-se ainda sobre o pequeno vale. É chapinhando na espuma verde desse oceano petrificado, que vamos trotando. Nada que nos revelle o homem. Aqui e ali, um ou outro muro de pedra solta que serviram para levar os lobos até aos fojos. Atravessam-se moitas de carvalhos. O sol desapparece; e na densidade da floresta o crepúsculo toma uns tons violaceos.

 

7-1600-barroso XXI (308)granjo

 

Prendem-se os cavallos a meia encosta, e é derrubando árvores, deslocando penedos. seguindo um corrego por onde suspira um fio de água, que chegamos à formosíssima cascata. Hei-de deixar à photograpfia o encargo de dar uma ideia da beleza selvagem d’este canto de Barroso. Não há-de haver no mundo muitas coisas semelhantes.

 

O ribeiro perfura o enorme rochedo, precipita-se por um canal que a água cavou, e vem tombar entre os fraguedos, dentre os quaes irrompe uma vegetação equatorial. Por cima da Fecha, pairam algumas aves de presa; no fundo, recorta-se o Gerez; a água ruge sob as penedias em que mal equilibramos os corpos cançados; as vozes repercutem-se ao longe.

 

8-1600-barroso XXI (544)-granjo

Cascatas de Pitões das Júnias

Passam há séculos embasbacadas as gerações perante os rochedos, os vales, os lagos da Suissa, e eu morto ando por lá ir também embasbacar-me. Mas se alguns archimilionarios americanos presentissem estas maravilhas, viriam certamente das fontes do Mississipi e das Montanhas Rochosas passar alguns dias na contemplação destas bellas coisas.

 

Um outro paiz...

 

Sim, um outro paiz, uma estrada pelo vale do Cávado até Parada do Outeiro, à vista do Gerez, junto dos derradeiros refúgios do corço e do javardo, e um caminho acessível até à Fecha, além de trazerem ao Alto Barroso os aquistas das Pedras, Vidago, Chaves e Verim, chamariam essas creaturas tomadas do delírio deambulatório, enfastiadas dos museus, fartas das praias, resaibiadas da cidade, e sedentas da natureza e do movimento.

 

9-1600-paredes (177)-granjo

 

Nenhuma estação do verão existiria em Portugal como Montalegre, desde que uma alma piedosa, ou um negociante arrojado, construisse nas proximidades um bom hotel, e desde que a estrada do Cávado, um bom caminho vicinal até ao Larouco, e a estrada já em construção, que liga a capital barrosã directamente com Braga, facilitassem alguns bons passeios.

 

Barroso seria para o paiz uma fonte de saúde, a grande estação de cura e de repouso. E essa pobre gente, cujo alimento principal é a sopa de leite desnatado, e precisa de emigrar, em camaradas, para as terras do vinho e do azeite, á busca d’uns patacos com que indireite a vida, conheceriam a prosperidade.

 

Era preciso para isso, no entanto, que os governantes pensassem n’outra coisa que não fosse nas intenções dos chefes dos grupos revolucionários e que o paiz deixasse de tremer perante o carbonário, como uma criança deante do papão. E era preciso que todos nos descemos ao trabalho de sabermos valorizar as nossas coisas.

 

N'um outro paiz...

 

Antonio Granjo

 

 

08
Out20

Crónicas Estrambólicas

Crónicas de um Primeiro-Ministro sobre o Barroso - 12


1600-larouco (155)

estrambolicas

 

Crónica de um Primeiro-Ministro sobre Barroso 12

 

Mais uma crónica do antigo Primeiro-Ministro António Granjo, um ilustre flaviense. É a uma das 15 crónicas sobre Barroso publicadas no jornal A Capital em 1915. A crónica está escrita como foi publicada, no português da altura, incluindo gralhas tipográficas.

 

Mais uma vez o Granjo a mostrar grande sensibilidade pela natureza, coisa que não vejo por aí nos dias que correm. Das coisas que mais me chateiam em Barroso é a quantidade exagerada da marca dos homens na natureza, sendo a maioria completamente desnecessárias. Mas como me parece que quase ninguém pensa assim, nem vou adiantar muito mais porque não adianta. Acho que há um grande exagero de poluição visual, sonora, luminosa, e outras, em Barroso. Parece-me que os rurais perderam as suas referências e guiam-se apenas pelo que a cidade e os camones vão ditando. Se eu vier para aqui queixar-me que já não consigo ver a Via Láctea em Boticas ou que detesto ser acordado todos os dias por um muito barulhento soprador a gasolina que é usado para “varrer” as ruas, ainda me chamam excêntrico, por isso mais vale estar calado. Também parece que caíram umas 3 árvores na minha rua porque agora as raízes são aparadas para não estragarem os passeios! Que é que interessam umas árvores quando comparadas com umas rachadelas nuns urbanos passeios em cimento?! A mentalidade de coca-cola em centro-comercial chegou a Barroso para ficar e não vejo maneira de mudar isso. Como é que se pode gozar a melhor esplanada de Boticas se mesmo ao lado há um ruidoso e citadino repuxo a estragar uma das melhores coisas da vida no campo que é o silencio? Há uns tempos também tive que fugir da esplanada do Aurora porque aquele ruído do repuxo das Freiras é insuportável. Se as pessoas gastam muitos milhares de euros a fazer merdas dessas e ficam todas orgulhosas do resultado, quem sou eu para dizer que está mal?

 

Luís de Boticas

 

 

1600-p-fontes-mouri (74)

 

A SUBIDA À SERRA DO LAROUCO

Um espectáculo indescriptivel, a 1.500 metros de altitude

 

O céu era uniformemente cinzento. Só para os lados de Chaves, onde a trovoada grunhia, tomava uns tons plumbeos ou acobreados. Pela encosta do Larouquinho descia lentamente a vezeira. O Larouco, inteiramente descoberto, parecia prolongar-se indefinidamente.

 

Acima!

 

As bestas chapinham na lamaceira do Campo do Padrão, e, logo adeante, no Campo da Roda, a paisagem se alarga como n'uma mutação cenographica.

 

O trovão já vem de cima: parece rolar à superfície da terra. As nuvens envolvem novamente toda a serra, e enquanto para a direita os relâmpagos como que derretem a athmosfera de chumbo, na frente faz-se uma immensa clareira até se verem as cumiadas longinquas das serras da Padrela e de Nogueira, e à esquerda o sol aloira as agulhas e coruchéos do Gerez.

No Campo da Roda, entre uns penedos que têem a forma vaga de uma casa, há uma escavação recente. O guia explica: É ali — a Casa dos Moiros. Uma velha sonhara trez noites seguidas com riquezas fabulosas lá escondidas e alguns pobres diabos tinham vindo lá cavar toda a noite, ao clarão do luar, à procura dos maravilhosos thesouros.

 

O guia aponta com o lodão outros penedos, à esquerda. São as Fenteiras.

 

Há ali uma fonte d'água claríssima, que empoça em rocha. Era nessa fonte que os moiros se vinham lavar. Conta-se que já do seio da rocha uma vez sahiram dois feadouros d’oiro e acredita-se que dentro esteja encantada uma princeza moira, havendo à entrada do palácio que está dentro da montanha um cavallo todo d’oiro. Ha-de ser n’esse cavallo que um dia o cavalleiro que lhe quebrar o encanto ha de fugir com a linda moira encantada.

 

1600-volta-larouco-15 (119)

 

Acima!

 

Quem sabe se será o bafo do meu cavallo cego que ha de ir quebrar o encanto da linda moira, e se dentro de alguns instantes a triste besta tropega se não transformará n'um cavallo alado, de ventas fumegantes e olhos resplandecentes, atravessando os ares em direcção às praias da Felicidade Perfeita e carregando no dorso os meus 100 kilos e a princezinha moira, de olhos de diamantes e lábios de rubis...

 

Acima! Acima!

 

Atravessamos o campo d'Arrestre, onde uma larga queimada parece uma enorme mancha de lepra, e estamos na Facha. A Facha é uma fortaleza completa. Tem as suas muralhas, a sua torre de muragem com ameias e esculcas, os seus fossos, a sua ponte levadiça, a sua poterna. Os caprichos da erupção vulcânica anteciparam-se à engenharia militar. É na Facha que os pastores dormem, nas noites de estio, emquanto a rez pasta pela serra.

 

A trovoada ronca abaixo de nós. O trovão já não rola à superfície da terra: parece vir de dentro da montanha. São duas horas da tarde. Da Facha, durante alguns minutos, goso o mais admirável espectáculo que os olhos ávidos e exigentes do espectador moderno pode contemplar.

 

Sobre o valle, em baixo, forma-se a névoa branca, rolando como vagas de algodão em ramas, e à qual os franceses chamam la mère blanche. Para nascente, além de Soutelinho da Raia, cujos castanheiros se distinguem, nitidamente, vêem-se os relâmpagos descrever os seus ângulos de fogo sobre Chaves. O Brunheiro, a Cota de Mairos afogam-se sobre uma espécie de crepúsculo de chumbo. De repente, a névoa sobe, envolve n'um minuto toda a montanha. Deixamos de ver os objectos mais próximos e precisamos de gritar uns pelos outros para adquirirmos a certeza de que alguma força desconhecida se não apoderou de nós e nos não arrastou para algum precipício misterioso.

 

A tempestade estala agora para o norte, para os lados da Gironda, e parece que toda a natureza esperava esse sinal para as côres, as linhas e os planos tomarem os seus novos lugares. A névoa desfaz-se. Um enorme resplendor de oiro desce do céu e vem poisar sobre a cabeça do Larouco. Até perder de vista, para o sul, as serras succedem-se, como que apertando-se umas contra as outras n'um gesto instintivo de defesa. Sobre as terras centeeiras, as nuvens roçam os ventres enormes. E o trovão, mais próximo, deixou de ser um presago ruido subterraneo, e tomou-se como a própria voz da montanha, dominando o immenso espaço, fazendo tremer as coisas e os seres, reduzindo a natureza e a vida a uma especie de infinito lago silencioso, sobre o qual se agitam as sombras.

 

1600-larouco (22)

 

Acima!

 

Estamos no planalto. 1.500 metros acima do nível do mar. Acima de nós só a ventania solta e o seu rugido. Tudo, o próprio céu está abaixo dos nossos pés. Para o norte e nascente a athmosfera crepuscular em que a tempestade se debate tapa o horizonte; mas desde a Padreia ao Maráo e ao Gerez, a amplidão está livre. Sentamo-nos nas Barreiras Brancas. As palavras cessam.

 

É fácil encher um volume com a descrição d'um jardinzito japonez, e alguns espíritos se têem deleitado em semelhantes tarefas. Mas há-de ser difícil que se encontrem as duas dúzias de palavras precisas para definir a impressão que nos produz todo um mundo visto do meio das nuvens. O vocabulário humano foi feito para as coisas mínimas. É perante o insignificante que nos sentimos grandes, e por isso temos sempre para cada ideia que as coisas insignificantes nos surgiram como um lexicon. Quando defrontamos com a verdadeira grandeza, com a montanha ou com o mar, a língua fica-nos preza, como o braço nos fica desarmado.

 

Desisto de dizer banalidades. Seria um sacrilégio. Quando voltasse encostado ao meu lodão, como um peregrino, a subir a montanha, a tempestade já não teria razão para nos fazer gentilmente as honras da visita, acompanhando-nos de longe com a sua voz prophetica, antes teria justo motivo para fazer cahir às centenas, sobre a minha cabeça inerme, os raios vingadores.

 

1600-volta-larouco-15 (160)

 

Nada que dê tanto a impressão da magestade do Larouco do que a inscripção romana que lá foi encontrada. Chamavam os romanos ao Larouco Ladikus. Resolveram erguer um templo a Júpiter no cimo da montanha e no frontão do pequeno templo lavraram esta inscripção:

 

IOVI LADICO

 

Esses homens, que conquistaram o mundo e deram à sociedade humana a base eterna do direito, sentiam-se pequenos perante a grande serra, e entenderam que seria uma prova de vaidade fazerem elles, míseros transeuntes, a offerta do templo ao pae dos deuses. E assim resolveram que fosse a própria serra que offerecesse o templo a Júpiter.

 

A Júpiter offerece este templo o monte Ladico

 

Como somos effectivamente pequeninos, em face d'esses legionários, que, ao nascer do sol, quando marchavam pela via militar, de Caladunum a Pinctum, saudavam a montanha, como se fosse uma divindade!     

 

Antonio Granjo

 

 

23
Jul20

Crónicas Estrambólicas

Crónicas de um Primeiro-Ministro sobre o Barroso - 11


1600-larouco (47)granjo XI

estrambolicas

 

 

Crónica de um Primeiro-Ministro sobre Barroso 11

 

 

Mais uma crónica do antigo Primeiro-Ministro António Granjo, um ilustre flaviense. É a uma das 15 crónicas sobre Barroso publicadas no jornal A Capital em 1915. A crónica está escrita como foi publicada, no português da altura, incluindo gralhas tipográficas.

 

Podia fazer alguns comentários à crónica mas prefiro que os leitores tirem as suas conclusões. Reparem só na descrição da interacção do autor com as personagens do povo mais simples. Só uma pessoa com tanta classe age daquela maneira.

 

Luís de Boticas

 

 

UMA TROVOADA EM BARROSO

 

A previsão do burro – A solução d'unz enigma – A subida ao Larouco

 

 

Passa debaixo da varanda um velhote montado n'um burro. A caravana está prestes. A mula carrega as provisões, o cavallo está devidamente albardado, e o guia prescuta o céu, onde as derradeiras estrelas fecham as pupilas azues.

 

E o velhote vê-nos preparados para a marcha, tira o lenço da cabeça, cumprimentador e humilde, e lança prophecia:

 

— Não se mettam ao caminho. Temos ahi a trovoada!

 

No céu não havia uma núvem. Corria uma brisa fresca. Nada fazia pressentir a approximação da trovoada.

 

— Homem, você não acordou bem da cabeça... — returque o guia.

 

E o velhote observa:

 

— Repare para as orelhas do meu burro.

 

E o burro arrebitava as orelhas, voltando os pavilhões para o norte, encolhia a cauda entre as pernas e dilatava ruidosamente as ventas.

 

1600-seara (27)granjo XI

 

Olhamos uns para os outros, e enquanto o velhote ageitava o lenço de Alcobaça, atado na forma de turbante, às fontes encanecidas, as gargalhadas estugiram, fazendo vir às janellas das casas vizinhos alguns rostos estremunhados.

 

Lá de longe, o velhote ainda gritou:

 

— Tenham cautela!

 

À esquerda ficam as touças de Meixide. A luz como que se esfarpa entre as galhas. Uma andorinha voa alto. Em frente o Larouco. Uma grande columna de fumo se ergue, em espiral, da base da montanha até ao anil desmaiado da madrugada. De vez em quando a brisa faz oscilar a columna e vêem-se duas linhas de fogo, uma recta, outra convexa, caminhando em sentido contrário. A serra arde. Uma torga que os carvoeiros deixaram em brasa e que ao sopro do vento se converteu em chamma, uma faúlha que se escapou d'um lume de pastores e que cahiu n’uma moita secca, a ponta de cigarro d'um viajeiro, incendiaram a montanha. Soube, adeante, em Solveira, que o incêndio tomara durante a noite proporções phantasticas. Nas povoações vizinhas da serra, portuguezas e gallegas, tocou-se a rebate e para apagar o fogo chegaram a desviar-se inutilmente regatos e levadas, e a fazer-se debalde profundos valados. O incêndio lavrava sempre, queimando carvalhos e urzeiras e torturando os pastos. O reverbero das chamas chegava a Solveira e em Santo André e Villar de Perdizes andava-se nas ruas como de dia.

 

incendio avel.jpg

 

Os olhos vão-nos presos na columna de fumo e só damos fé de que as nuvens comem já o valle quando em volta de nós cahem as primeiras pingas grossas, levando o pó e trazendo-nos às narinas o cheiro terra.

 

Sempre tivemos a impressão de que o burro é um animal calumniado. Não só o burro é um animal elegante e inteligente, em contrário do que se affirma commumente, como é em regra dotado de aptidões que falham à maioria das creaturas humanas. As orelhas do burro do bom velhote valem bem todas as prendas de certos homens, que por bem conhecidos se não individuam, e que por andarem com as mãos pelo ar imaginam que têm direito a desfazer nos burros.

 

1600-sanabria (67)grnjo-XI

 

Apressamos o passo. O guia encadeando os rr, ou fazendo estoirar o lodão nas retrancas da mula, faz ir tudo de escantilhão. A plaina continua, intermina e monótona. Alguns lavradores fazem as sementeiras. Aqui e além, uma mulher de capucha, um homem de polainas de junco e de crossa, espargem os montículos de estrume.

 

A chuva cae em cordas grossas. Alcançamos Solveira e respiramos.

 

Acolhemo-nos a uma taberna, onde faz de banco um cortiço de abelhas.

 

O torvão ronca. Passam carvoeiros, com as caras escondidas nas capuchas de saragoça e os socos ferrados batendo as pedras.

 

A mula e o cavallo abrigados n'um pateo contemplando melancholicamente a rua, onde cae agua dos colmos. O cavallo é cego d'um olho.

 

O guia propõe-nos o seguinte enygma:

 

— Qual dos dois vê mais, a mula ou o cavallo?

 

E mordiscando a porta do cigarro, o guia assume um ar importante.

 

É o taberneiro quem decifra o enygma, depois de eu ter demonstrado mais uma vez à minha absoluta incapacidade.

 

— Vê mais o cavallo, porque tendo um só olho vê dois olhos à mula, e esta, com os seus dois olhos, vê só um olho ao cavallo.

 

A chuva começa a levantar. O sol deixa-se quasi ver por cima da egreja, em cuja torrela branca poisam duas pombas. Debaixo d'um alpendre, um serralheiro ambulante concerta um objecto de cozinha.

 

Sobre o Larouco as nuvens galopam. São as Walkirias que passam.

 

granjo XI larouco

 

Aproveita-se a aberta e giramos até Gralhas.

 

Segundo o «ltinerário» de António, o Pio, e segundo as «Memórias para a história eclesiástica do arcebispado de Braga, primaz das Hespanhas», pelo padre D. Jeronymo Contador d'Argote, seria aqui Caladunum, a primeira «mantion» que as legiões romanas encontravam na via militar de Aqua Flaviae a Bracara Augusta. Há, effectivamente, perto da povoação um sítio, a «Ciada», onde têem apparecido columnas, moedas, objectos de uso comum, aras, inscripções, materiaes de construção romanos, restos de um aglomerado urbano ou de uma estação militar.

 

Alguns vizinhos ficam abismados quando tropeçam com a «tegula» romana, o que acontece a cada passo, quando abrem um sulco ou escavam um poço. Põem-se a magicar, os pobres diabos, no facto de serem actualmente todas as casas cobertas de colmo e há tantos annos ter havido ali casas cobertas de boa telha, e ficam-se scismando se o mundo não terá andado par traz e não estará perto do dia do Juizo Final.

 

Uma escavação quasi à superfície desenterraria alguns trechos de muralhas e permittiria a reconstituição da «mantio». Mas não vale a pena preocuparem-se com isso nem os governos, nem os municípios, nem os sábios das tantíssimas academias que pululam em Portugal e cujos diplomas podiam muito bem substituir as antigas cartas de conselho.

 

A trovoada ronda em volta do Larouco. Dir-se-hia que as penedias veem aos rebelourões pela serra abaixo.

 

1600-sanabria (107)-grajo XI

 

Uma moça loira, os olhos verdes refletindo, como pequeninos vitraes, as imagens, e que a chegada da caravana attrahiu à tabemoria, fia na roca, inclinando de vez em quando o pescoço branco para molhar com os lábios carnudos e frescos o fio de lã.

 

O guia deita a cabeça de fora, espreitando inquieto o horizonte.

 

A moça sorri e adverte:

 

— A trovoada é como o lobo: morde e passa.

 

A sentença agrada-me,

 

— Menina podemos ir ao Larouco?

 

As pupilas verdes fixam-me. O fuso pára um momento.

 

— Quando o trovão ronca no vale O sol canta na serra.

 

E o fuso começa novamente a girar entre os dedos brancos como a lã.

 

Não hesito um momento. A pitonisa falou.

 

— Rapazes acima.

 

O guia torce o nariz. O photographo, olhando a machina, medita sobre as consequências da aventura. A moça continua a sorrir. No seu sorriso parece-me ver um fundo de ironia.

 

— Acima!

 

 

Antonio Granjo

 

 

 

08
Jul20

Crónicas Estrambólicas

Crónicas de um Primeiro-Ministro sobre o Barroso - 10


1600-cornos-barroso (30)-granjo

Cornos do Barroso

estrambolicas

 

Crónica de um Primeiro-Ministro sobre Barroso 10

 

Mais uma crónica do antigo Primeiro-Ministro António Granjo, um ilustre flaviense. É a uma das 15 crónicas sobre Barroso publicadas no jornal A Capital em 1915. A crónica está escrita como foi publicada, no português da altura, incluindo gralhas tipográficas.

 

Como esta crónica é quase toda sobre o ataque do Paiva Couveiro a Chaves e tem pouco sobre Barroso, vou pedir ao Fernando que faça uma introdução sobre este tema[i]. Só faço o reparo seguinte. Esta batalha em Chaves foi ganha pelos de Chaves, sabendo-se que um dos cabecilhas era o Granjo. Reparem como o Granjo descreve a batalha mas nunca diz que esteve lá ou faz referência ao general do comando de Chaves. Não se vangloria de nada, deixa para os outros esse trabalho, como deve ser. É este tipo de pormenores que mostram a grande classe deste ilustre flaviense.

Luís de Boticas

 

1600-paradela (627)-granjo

Serra do Gerês

 

AS LÁGRIMAS DE COUCEIRO

Onde chorou o paladino quando da incursão de 1912

 

Depois de ter desvendado as Alturas, face granítica que se offerecia sob o sol oleoso e para beijar a qual parecia que todas as grandes serras se comprimiam n'um circulo de grandes vagas immoveis, tinha de fazer o circuito de Barroso — transpor o Larouco, internar-me no chamado Alto Barroso, estabelecer contacto com o Gerez, admirar as fechas (cascatas) de Pitões e do Outeiro, passar pela Borralha, tocar na Roca da Ponteira e encher os olhos, cançar os olhos, da visão apocalíptica do Regabão visto da Lomba de S. Bento, quando o sol descambava e tudo se desfazia em luz.

 

1600-barroso XXI (290)-granjo

Cascata de Pitões das Júnias

 

O que vou contar vae porventura ser tido como o producto de uma  exhuberante phantasia de meridional ou d'uma paixão regionalista exagerada até à obsecação c à mentira. No entanto, a phantasia mais exaltada era incapaz de crear e dar forma a tanta coisa admirável.

 

Às cinco horas, n'este mez de Setembro, é noite. É pouco mais ou menos, eu sei, ahora de o lisboeta se deitar, perdidas as suas últimas ilusões; mas é a hora em que por cá se levanta quem tem alguma coisa que fazer. Pois às cinco horas estava organizada a caravana, e sob luz palpitante das estrelas, marchavamos pela ponte romana das Caldas, seguindo a antiga via militar de Aquae Flaviae a Bracara Augusta.

 

Nas Casas dos Montes começos a alvorecer, O castello de Monforte projectava-se no fundo purpura do nascente como uma espécie de viseira calada. A casaria do velho burgo flaviense emergia da sombra. Um clarim tocava à alvorada.

 

Em Valdanta, o sol abria já a sua corola d'oiro. Uma ténue neblina alongava-se por sobre o cio Tamega, esgarçando-se nos amieiros. As videiras, as hortas reverberavam.

 

1600-alto-soutelo (5).jpg

Amanhecer no alto de Soutelo com a veiga de Chaves de fundo

 

Paramos para comer o almoço frio, acima de Soutelo, no meio d'um lanço vial milagrosamente conservado das iras do tempo e das unhas dos homens. Os carvalhos ladeiam a via; a vinha cobre as encostadas; é na veiga, desde Soutelo de Valdanta, entre as batatas do tarde e os milhos, lavradores gritam aos bois, premindo o arado celta ou guiando pelos corregos o carro Romano.

 

Passa-sa a hora da sesta em Calvão, photographa-se um dolmen à entrada de Castellãos e avista-se Soutelinho da Raia, fim da primeira étape, ainda com sol.

 

O Larouco, para o norte, parece um phantastico saurio com a cauda rastejando pelas Limias e a enorme cabeça, o Larouquinho, solevantada, como uma ameaça, para Montalegre.

 

soutelinho (608)-granjo.jpg

Serra do Larouco vista desde Soutelinho da Raia

Foi à entrada de Soutelinho, à sombra prásaga dos castanheiros que rodeiam o cemitério, que Paiva Couceiro acampou no dia 7 de Julho de 1912 quando marcava, certo do triumpho, sobre Chaves, e foi onde, logo no dia seguinte, outra vez acampou, esmagado sob o peso da irremediável derrota. Um pouco à direita, fora das tapadas e do baldio onde os seus soldados rouquejavam as raivas dos vencidos ou curavam as feridas, fica o castanheiro debaixo do qual se diz que Paiva Couceiro se sentou depois da derrota e, com a cabeça escondida nas mãos, chorou o seu sonho perdido.

 

1600-avd-soutelinho (1)-granjo

Soutelinho da Raia

 

Reconstituo esses momentos. Paiva Couceiro tinha entrado por Sendim e seguido a estrada velha, por Gralhas e Solveira acampára depois do meio dia em Soutelinho. O sol ostentava pelos outeiros o seu manto de glória; do céu cahiam bençãos; as cotovias elevavam-se no ar translúcido entoando os seus himnos triumphaes; os carvalhos pendiam para as bordas dos caminhos, offerecendo-se os combatentes. Pouco depois de ter acampado, Couceiro recebia a notícia de que se organisára em Chaves a columna mixta, composta das melhores forças da guarnição, de quasi todos os cavallos e toda a artilharia, a fim de marchar sobre Sapiães com o objectivo de impedir a junção das suas forças com as duas centenas de labregos que se haviam levantado em Cabeceiras às ordens do Padre Domingos. Couceiro devia ter sorrido, os seus olhos deviam-se ter iluminado da fé viva no Triumpho: O seu como esguio devia já sentir-se levado nas azas da victória.

 

1600-sendim-00.jpg

Ao fundo, Sendim por onde Paiva Couceiro entrou com as suas tropas, vindos da Galiza

1600-larouco (85)-granjo

Planalto da Serra do Larouco que Paiva Couceiro teve de percorrer para chegar a Chaves com as suas tropas, passando por Gralhas, Solveira e Soutelinho. Ao fundo, lado esquerdo, avista-se a Serra do Brunheiro.

 

O acampamento Ievantou-se e a marcha começou, sem o regular serviço de segurança. Para quê? Chaves ia cahir de madura. Era um fructo delicioso que estava apenas à espera dos seus dentes. Pelo caminho, os soldados cantavam. As grevas de panno, as amas em bandoleira, davam-lhes um cento aspecto de salteadores. Alguns antegosavam a entrada triumphal na antiga praça forte, maquinavam a sua vingançasinha, delíciavam-se porventura na ideia do saque.

 

De madrugada chegaram ao alcance de Chaves sem encontrarem uma patrulha. Os primeiros soldados da República que os monarchistas encontram são os da carreira de tiro que o commando havia esquecido e deixado entregues à sua sorte. O cabo que commanda esses soldados, surpreendido, arma-se e apparece no cimo do Espaldão. Na guarda avançada vinham alguns desertores da infantaria 19. Estes chamam-n'o pelo nome, cumprimentam-n'o riem-se. E é esse cabo, sósinho, que do Espaldão começa o fogo.

 

1600-(41463)-granjo

Espaldão  - Chaves, onde começou o combate do 8 de julho de 1912 entre os republicanos de Chaves e os realistas de Couceiro.

antonio-granjo.JPG

António Granjo, ao centro na imagem (Clicar na imagem para ver post do Blog  Chaves Antiga relacionado com a mesma)

 

Fazem-se os preparativos do assalto, as flechas couceiristas chegam quase às muralhas. A companhia do capitão Tito Barreira faz refluir a onda, o combate trava-se.

 

Paiva Couceiro olha fixamente um ponto. Os solados perguntam uns aos outros, inquietos, porque não apparece a bandeira branca. A resistência prolonga-se e sobre o ponto fixo que Couceiro olha cruzam-se as balas. Mas então Chaves não se rende'? Então vieram mette-los n'um matadouro? No hospital de sangue os feridos accumulam-se; os moribundos contorcem-se pelas terras centeeiras; os mortos levantam para o ceu os olhos parados n’uma supplica derradeira e suprema.

 

A tropa fandanga encolhe-se atraz dos pinheiraes das paredes, das penedias. Paiva Couceiro olha ainda o ponto fixo, mas o seu rosto contrahido, os seus olhos apagados, denunciam a sua agonia.

 

O official de antilharia, que dirige o fogo das duas peças, e a quem a derrota já certa enlouquece, manifesta o propósito de despejar sobre a villa um montão de granadas incendiárias. Couceiro oppõe-se. Conta-se, mesmo, que para pedir a realização de tal propósito, atirou com o cavalo para frente das peças.

 

Estava tudo perdido. Paiva Couceiro ordena a retirada.

 

1600-couceiro.jpg

Gravura/Postal retratando a retirada de Couceiro

A retirada faz-se tranquilamente. Couceiro não se pode queixar da perseguição das tropas republicanas. E à noite, sob as mesmas árvores presagas, ouvindo o gemer dos feridos, as coleras da turba-multa vencida, Paiva Couceiro procura aquele sítio ermo, em que possa chorar todas as suas illusões desfeitas em poeira e sangue. Ali, se terá revoltado silenciosamente contra os cúmplices que faltaram, contra a cobardia d'aquelles que o cercaram de incitações e de promessas e que ficaram detraz das janellas a verem deslizar o curso dos acontecimentos.

 

Acaso, n'esse instante, Couceiro perguntaria a si próprio se, em vez do paladino nun'alvaresco que queria ser, não estaria apenas desempenhando papel de cavalleiro da triste figura; e acaso, vendo passar junto dos seus pés a fronteira hespanhola, perguntaria a si próprio se não estava sendo instrumento da ambição castelhana e se promovendo a desordem na sua Pátria a História lhe não applicaria na face o ferrete de traidor...

 

Antonio Granjo

 

 

 

[i] - Nota do Blog Chaves: O post anterior, "Cidade de Chaves - Feriado Municipal - O 8 de Julho e António Granjo", serve para a  introdução solicitada pelo Luís.

 

 

 

 

02
Jul20

Crónicas Estrambólicas

Crónicas de um Primeiro-Ministro sobre o Barroso - 9


1600-entre-c-lebre-canedo (4)-granjo-9.jpg

estrambolicas

 

Crónica de um Primeiro-Ministro sobre Barroso 9

 

Mais uma crónica do antigo Primeiro-Ministro António Granjo, um ilustre flaviense. É a uma das 15 crónicas sobre Barroso publicadas no jornal A Capital em 1915. A crónica está escrita como foi publicada, no português de 1915, incluindo gralhas tipográficas.

 

Não tenho grandes comentários a fazer sobre esta crónica. Acho que há um excesso de preconceitos do Granjo contra os emigrantes no Brasil, que hoje em dia seriam politicamente incorrectos. Sobre o comunismo barrosão: sei que há cada vez menos comunismo embora ainda haja alguma entreajuda à moda antiga num arranque de batatas, numa vindima, ou coisa assim. Infelizmente, deixei os comentários a esta crónica para a última da hora e agora já não estou em condições de dizer nada. É que estive em comunismo copofónico com um amigo de Montalegre, um autêntico convívio barrosão, e agora estou bom mas é para ir dormir. Cronismo amador dá nisto. Um dia destes escrevo algo relacionado sobre isto, para compensar os leitores.

 

Luís de Boticas

 

1600-currais (60).jpg

 

 

AINDA O COMMUNISMO BARROZÃO

Os que emigram e a influência que exercem quando regressam

 

Assim, os barrozões vão buscar à Terra Quente, ao Douro, em camaradas, os meios de subsistência que lhes nega à terra avara onde nasceram.

 

Isoladamente, vão para o Alentejo onde dão excelentes lagareiros; vão para Lisboa, onde uma pequena colónia barrozã moireja obscuramente; vão para o Brazil, para a América do Norte.

 

1600-fervidelas (7)-granjo9.jpg

 

Mas onde quer que o barrozão se aninhe, nos montes alentejanos, nos pateos de Lisboa, nas «praias d’além do mar», sempre dentro dos seus olhos e da sua alma vivem e cantam os colmados e os canastros das suas aldeias, os campos de milho das suas veigas, os lameiros das suas ribeiras. A saudade é para eles, homens da montanha, verdadeiramente um sexto sentido. Fóra das horas de trabalho, a que se entrega com todas as forças, com toda a brutalidade do seu ser, os momentos mais deliciosos do barrozão são aquelles em que revive a sua mocidade, alembrando os primeiros olhos dos quaes o coração «se ficou dependurado», como diz a cantiga, sobredoirando o altarsinho humilde em que commungou a primeira vez e em que os dedos maternaes espalharam papeisinhos de côr a fingir de petalas, sorrindo à ideia de que, todas as noites, ao levantar da mesa, os velhotes, lá muito longe, emquanto o vento uiva e os lobos fazem a bocca em roda das povoações, rezam o seu padre nosso para que Deus o affaste dos perigos e o livre de más companhias...

 

artur pastor - barroso.jpg

Barroso - Fotografia de Artur Pastor

 

Vão para o Brazil, para a América do Norte, «para além d'água». Uns lá ficam; outros, judeus errantes à busca da imagem da fortuna, andam, andam, para afinal nem sequer se saber onde cahiram para sempre; alguns voltam. Os que voltam, um bello dia entram na povoação escarranchados n’uma boa besta, de grossa cadeia de oiro, bota fina, bem apessoados; atraz, um carro de bois, chiando que o leva o diabo, carreja as malas enormes, a cadeira de bordo e o papagaio.

 

As geiras das camaradas, o dinheiro do Brazil explicam o inexplicável. Desgraçado pássaro o que nasceu em ruim ninho, costuma dizer philosophicamente o barrozão. Como os pássaros, essas creaturas emigram para os paizes do sol, mas voltam sempre ao seu ruim ninho. Gostam de morrer sentados nos seus penedos, vendo desapparecer o sol lentamente. Parece-lhes que o corpo lhes descerá à campa um pouco mais quente e que a alma lhes levará menos tempo à subir ao céu.

 

1600-ponteira (105)-granjo-9.jpg

 

O papel social do brazileiro é por via de regra deletério e dissolvente. Eivado dos hábitos individualistas da cidade, pouco se lhes dando dos meios e olhando exclusivamente aos fins, não é raro que o brasileiro pretenda apropriar-se dos pastos comuns, tapar as servidões do povo, insurgir-se contra os usos e costumes, rebelar-se mesmo contra a auctoridade paterna. Também não é raro que o brazileiro se converta no usurario, levando juros exhorbitames, fazendo contractos leoninos, promovendo execuções. A usura tem frequentemente a forma do «pão aquartelado». O usuário empresta ao lavrador, para a semente um alqueire de pão, e o lavrador restitue ao usurário o alqueire e mais um quarto. Mesmo descontando à circunstância de estar sempre o pão mais caro na sementeira do que na colheita, é qualquer coisa como 15 a 18%. Nos annos em que a uma colheita abundate se segue um anno de seca e de fome, atinge as proporções phantasticas de 25%.

 

Já o soldado, depois de acabar o tempo, sahia do quartel e vinha para aldeia espalhar, com a siphilis, o desrespeito pelos velhos usos e pelos bons costumes. O brazileiro espalha a confusão e a indisciplina.

 

Ainda há poucos annos a moeda tinha em Barroso apenas o préstimo de por meio d'ella se comprarem na vila as coisas de mercearia. Seguia-se nas fainas agrícolas o sistema da mutualidade de serviços e pagava-se aos artificies (artistas) em géneros.

 

A carreja (transporte da messe aos domicílios) era determinada para todos e em dia fixado no chamado. Antes da carreja dois vizinhos faziam a contagem das pousadas (cada pousada tem cinco molhos) deante do guardador que arrematára a guardada pelo menor número de alqueires. O preço do guardador era repartido pelos vizinhos na proporção do que cada um colhera; e a carreja era feita em massa por todos os vizinhos. Ainda uma forma de communismo.

 

barroso - artur pastor.jpg

Barroso - Fotografia de Artur Pastor

 

Levantadas as mêdas ou medouchas, conforme o tamanho, esperava-se a hora da malhada. Chamava-se à eira e cada qual acorria, não tendo o dono da messe outra obrigação além de dar de comer aos que trabalhassem. Era o serviço mútuo.

 

Nas espadelas do linho, o processo era o mesmo. Ajudavam-se uns aos outros, sem que houvesse a necessidade de intervenção da moeda para o pagamento de serviços, que se davam, mas que se não vendiam.

 

Ainda por muitos sítios se obedece aos antigos costumes, mas os institutos da mutualidade de serviços e da troca de géneros vão diminuindo de importância. A compra e venda, e consequentemente a moeda, vão entrando definitivamente nos hábitos.

 

Em grande parte esta evolução é devida ao brazileiro.

 

Em todo o caso, se o brazileiro, com os vicios que traz da cidade, é dentro da família communalista barrozã um elemento crítico, certo é que de vez em quando a sua bolsa e a sua vaidade erigem bons edifícios por aldeias reconditas, semeando a abundância, e que o exemplo da sua prosperidade e fortuna dão ouzio e força aos outros.

 

1600-r-311 (103)-granjo-9.jpg

 

N’esta região pauperrima, a arte é nula. A’ parte a canção popular, que brota espontânea como a agua das levadas, tudo se reduz a uns desenhos lineares nas espadelas, nos córnos de chamar as vezeiras. Não há em todo o Barroso uma única egreja em que appareça uma talha nobre, um azulejo, uma grinalda, uma rosacea, uma custodia. Pequenas capelas, com altares de ordinaríssima talha, muitas vezes caiada. É em volta d'estas capelas, alvejando entre os soutos dos castanheiros, ou apoiando-se no dorso das cumiadas que ainda se expõem os amortalhados e que as vaccas, com ramos de giesta floridos nas hastes em forma de lira, veem offerecer-se aos oragos e padroeiros.

 

Antonio Granjo

 

 

25
Jun20

Crónicas Estrambólicas

Crónica de um Primeiro - Ministro sobre Barroso - 8


1600-cerdedo (3)-granjo8.jpg

estrambolicas

 

Crónica de um Primeiro-Ministro sobre Barroso 8

 

Mais uma crónica do antigo Primeiro-Ministro António Granjo, um ilustre flaviense. É a uma das 15 crónicas sobre Barroso publicadas no jornal A Capital em 1915. A crónica está escrita como foi publicada, no português de 1915, incluindo gralhas tipográficas.

 

A lavoura de Barroso está muito descurada e os lavradores ainda são olhados como gente ignorante e sem estatuto. A prova: até há uns 5 anos, não havia em Boticas um vereador com o pelouro da agricultura. Não era o único concelho do Norte sem esse pelouro, Boticas não é muito diferente do resto. No entanto, todos os concelhos têm vereador da cultura porque é muito chique, mesmo que não haja um cinema, um teatro, ou uma livraria no concelho. Da agricultura nem se lembram! É uma burrice porque a agricultura foi durante séculos o sector principal da economia local. Julgo que este abandono é um dos principais motivos da desertificação do interior. Diz-se que a agricultura não dá nada, mas depois vemos partir emigrantes para ir ganhar 4 ou 5 mil euros a trabalhar na agricultura em países como a Suíça ou a Holanda, com condições climatéricas muito piores, e os nossos terrenos ficam ao abandono. Na Holanda (um país pouco maior do que o Alentejo), o sector que faz mais milionários não é a indústria, nem a finança, nem a banca, nem nada, é a agricultura. Um país tão pequeno mas que é o segundo maior exportador mundial de tomates, por exemplo. Será assim tão difícil copiar alguma coisa do que se faz na Holanda? Além da agricultura, a floresta poderia ser outra fonte de riqueza. Mas não, é desprezada, a cada 15 anos ardem as mesmas áreas florestais, que nos últimos 50 anos só se tirou fraca madeira queimada. No concelho de Boticas, facilmente se empregavam cem ou duzentas pessoas a limpar e tratar da floresta. A madeira e a resina pagariam isso. Em vez disso, brevemente teremos um grande incêndio na zona entre Boticas e Vidago. E o gado? Não se poderia cercar um destes montes sem uso e meter lá uma vezeira de 20 mil cabras? Uma cerca ficaria mais barata do que uma dessas corridas de carros onde não vai ninguém. Os pastores agradeciam e a economia local também.

Luís de Boticas

 

1600-incen-boticas (1).jpg

 

A LAVOURA DE BARROSO

Uma bella lição de trabalho obstinado e de amor à terra e ao lar

 

Em Barroso, como em regra no norte, a propriedade está pulverizada. A abolição dos morgadios trouxe como consequencia a divisão e subdivisão das antigas casas; os bens de mão morta foram egualmente divididos e sub-divididos, depois do regabofe constitucional, em virtude do codigo civil.

 

Por outro lado, a população augmentou, e a terra aravel ficou quasi estacionária. Sendo a riqueza constituida pelo armentio, os melhores bocados são os lameiros espontaneos ou artificiais, nas margens dos ribeiros.

 

1600-sacoselo (5).jpg

 

Existiam em Barroso, grosso modo, 12.000 vacas em 1859, segundo o testemunho de Silvestre Bernardo de Lima, que n’esse anno e fins do anterior publicou no Archivo Rural uns excellentes Estudos pecuários sobre a província de Traz-oz-Montes. E já dizia este erudito e portuguezíssimo escriptor, que pedia sempre desculpa ao leitor quando empregava — e raro o fazia — um gallicismo:

 

«Para a tão pequena e limitada área que constitue a região de Barroso, é esta quantidade de vaccas uma quantidade admirável, extraordinária até, comparando-a com a existência de semelhante armentio em egual area, não direi de outros paizes, mas do nosso nos pontos mesmo mais ajustados e consentaneos a esta espécie de ganadaria».

 

criande (21).jpg

 

Não está feito ainda o recenseamento, que Silvestre Bernardo Lima substituiu por informações dos parochos e pessoas gradas.

 

O computo, porém, é muito superior, e, se já em 1859 causava admiração o facto de a região ser tão armentosa, actualmente em que as terras limadas e os lameiros espontâneos são quasi os mesmos, o esforço que este povo faz, augmentando a sua fazenda em enorme desproporção dos bens de raiz, inteiramente desprovido de meios de comunicação, sem o mais ligeiro bafo do poder, ignorado e ignorante, é certamente uma bella lição de trabalho obstinado e de amor à terra e ao lar, sobretudo n'este paiz em que a perguiça, a indolencia, a tristeza são os principais motivos dos poetas e em que pobres creaturas derrancadas imaginaram dar à gente portugueza um ideal com essa limonada fresca do saudosismo.

 

1600-reigoso (11).jpg

 

Como se explica o desenvolvimento do armentio (em quantidade, que em qualidade vae degenerando) em Barroso? O barrosão compra a fazenda com o que ganha fora da terra.

 

As sementeiras fazem-se em fins de agosto e setembro. Ainda o pão não está na arca, ainda muitas vezes o malho não canta na eira, e já o barrosão com o seu arado celta, levanta a terra para receber o grão, que no inverno germinará sob as camadas de neve e de geada. As mulheres espadelam o linho, sacham o milho, guardam o gado. E entretanto os barrosões vão em camaradas fazer as ceifas à Terra Quente, as vindimas do Douro. Um dia, de Mirandela, de Valpassos, Torre de D. Chama, às vezes de Macedo de Cavalleiros, chega ao tio Foca ou ao tio Peguisto, que foram as capatazes das camaradas do anno anterior, uma carta convidando-os a ir fazer as ceifas. O tio Foca avisa os da terra e manda aviso aos das aldeias em roda; e no dia marcado juntam-se os da camarada e eis ahi vão, logo de madrugada, ao espontar do dia, atravez dos caminhos trepando outeiros, galgando serras, com os seus harmoniuns e os seus ferrinhos, os seus lodos e as suas mantas, cantando a última moda, enchendo o ar da sua alegria saudável, bracejando e rindo sob o sol loiro e amigo.

 

1600-cavalos (6).jpg

 

Há ainda a tradição de que outr’ora os capatazes, quando chegava a ocasião das ceifas, se iam até às feiras da Terra Quente, com tantas ceitouras ou fouces quantos eram as das camaradas. Na feira, punham as ceitouras no chão e quem tinha as messes contratava esta ou aquela camarada conforme as suas precisões.

 

Em 20 dias de ceifa, os barrozões trazem para casa os seus 7 ou 8 escudos. As mulheres ganham 0,24 e os homens 0,30 por dia, e a molhada. Os rapazes, se atam as molhadas, ganham como os homens ou pouco menos; se os seus braços ainda não podem com esse trabalho, ganham como as mulheres.

 

1600-fornelos (17)-granjo-8.jpg

 

O capataz é que recebe o dinheiro de todos, dirigindo a pequena tribu errante, dispondo onde dormem os homens, onde dormem as mulheres, applicando multas, garantindo o trabalho diário. No fim das ceifas, o capataz recebe de cada um dos da camarada 0,04. Este pataco é ainda uma sobrevivencia dos tempos em que os capatazes iam às feiras oferecer as camaradas. Cada um que se acamaradava contrahia a obrigação de pagar essa quantia ao capataz, a título de indemnização pelas despezas e trabalhos da jornada.

 

Tenho ainda viva a impressão que me ficou da primeira vez que vi partir uma camarada. Havia ainda luar. Dentro das casas abarracadas, o ar aborralhado da noite de julho pesava sobre as camas como uma vara metálica. Tinha-me levantado e estava à varanda olhando um monte que ardia ao longe. De repente, do lado das Lavradas uma camarada assoma. Uma voz canta:

 

     Toda a moça qu'é bonita,

     Nunca havia de nascer;

     É com’a pera madura

     Todos a querem comer.

 

E logo outra voz responde:

 

     Todos a querem comer.

     Olha lá que comerão;

     Inda qu'alimpes a bocca,

     Não te chega lá a mão.

 

A camarada passa. Vão descalços, os socos na mão, a manta no hombro. Algumas moças vão à frente, em fila, pondo cada uma a mão direita no hombro da que lhe fica ao lado. No meio vae a cantadeira.

 

tumblr_nzbcrnZ7vB1tcav4fo1_1280.jpg

Fotografia de Artur Pastor

 

Enchem a rua de tumulto, chamam uma ou outra conhecida, e somem-se n'um cotovello, entre os castanheiros. Apparecem n'um pequeno outeiro, um pouco adeante. As suas sombras projectam-se no chão, estirando-se sobre os penedos. Por fim, apagam-se as vozes como um murmúrio d’uma levada.

 

Era a avançada d'um povo que emigrava, à procura do valle, onde encontrasse no seu trabalho uma terra mais ubere e um ceu mais clemente? Era a vis ancestralis que arrancava dos seus eidos essa mocidade e a obrigava a levar os seus braços de terra em terra, cantando e trabalhando, rindo e amando, como outr'ora os seus antepassados levavam de terra em terra os seus rebanhos?

 

Antonio Granjo

 

 

18
Jun20

Crónicas Estrambólicas

Crónica de um Primeiro-Ministro sobre o Barroso - 7


 

1600-s-joao-fraga (1)-granjo.jpg

São João da Fraga, bem lá no alto da Serra do Gerês no meio do fraguedo, uma capela construída para proteção do gado em pastoreio na serra

estrambolicas

 

 

Crónica de um Primeiro-Ministro sobre Barroso 7

 

Mais uma crónica do antigo Primeiro-Ministro António Granjo, um ilustre flaviense. O comunitarismo barrosão já quase desapareceu, restando algumas coisas das decisões sensatas tomadas há muitos anos, como a divisão das águas de rega. Há terrenos em Boticas que só têm direito às águas dos corgos durante alguns meses e há outros que só têm direito a ano sim e ano não, obrigando à variação dos cultivos. Outra coisa curiosa, que será muito antiga, são os nomes dos terrenos duma veiga. Todos os terrenos duma veiga, por mais pequenos, têm um nome (como também acontecerá no resto do país), que seria muito útil nos tempos em que não havia topógrafos ou gps’s. Para além da evidente utilidade do nome num registo de propriedade, os nomes eram muito úteis no laboro diário: “Amanhã vais com as vacas para Lamas, que Pereiro está muito rapado!”. Já há muitos anos que não vejo ou ouço tocar um corno, que além de ser usado nas vezeiras também se tocava nas noites de despedidas de solteiro à porta da casa dos noivos para se beberem uns copos numa pequena festa. Gostei da crítica do Granjo à obsessão de muitos portugueses com tudo que vem do estrangeiro, esquecendo e desprezando a sua própria cultura. Para mim, os maiores flagelos do nosso interior rural são as obsessões com a cultura citadina e a cultura anglo-saxónica. Talvez um dia destes escreva uma croniqueta a explicar o que quero dizer com isto, apesar de achar que da maneira que as coisas estão, vai ser tempo perdido.

 

Luís de Boticas

 

1600-coimbro (95)-granjo

Pastagem de bovinos em Coimbró, Boticas

 

O COMMUNISMO BARROSÃO

 

O papel que desempenham os chefes de família

 

Ponhamos por agora ponto na descripção da paisagem, do solo, do ambiente em que este admirável povo de Barroso realisa a maravilha de viver, conservando zelosamente o seu ripo de família e os seus costumes, a sua indumentaria e o seu religiosismo pagão.

 

N'um paiz em que as imigrações, as invasões e as conquistas successivas engendraram o tipo de família desorganizada, o povo de Barroso, com o seu tipo de família communalista bem definido, offerece o mais espantoso exemplo de resistência à dissolação e desagregamento geraes.

 

foto de artur pastor.jpg

Fotografia de Artur Pastor

 

Quem manda em Barroso é o chefe de família. Os chefes de família reunem-se, a convite do regedor ou dos cabos de polícia, ou de dois ou três vizinhos, em volta do cruzeiro, no adro da egreja, na casa do forno, e deliberam por maioria sobre lamas do povo, os logradouros communs, as regas, as coutadas, a compra ou venda do touro, quaesquer melhoramentos ou concertos. A hora da chamada é anunciada pelo toque do corno (chifre), da buzina ou do sino.

 

Os chamados administram também a justiça. Apresentam-se as queixas àcerca dos terrenos comuns indevidamente apropriados por algum vizinho, àcerca da invasão da fazenda (os gados) em domínio privado. O chamado nomeia logo dois árbitros, faz-se uma averiguação summaria e, no caso de se provar o delicto, os árbitros assignalam o prejuizo e fixam a multa.

 

O dr. Léon Poinsard, convidado por alguns sócios portugueses da Societé Internationale de Science Sociale a vir fazer o estudo do nosso grupo nacional, atravessou Barroso de Ruivães a Boticas, e no seu livro Le Portugal Inconnu demora-se um pouco na análise das instituições e costumes barrosões.

 

1600-Vilarinho-seco (76).jpg

Largo, cruzeiro, bebedouro e chafariz em Vilarinho Seco, Boticas

 

Diz o veterano das sciencias sociaes:

 

«...estabeleceu-se entre esta pobre gente um conjunto de costumes, destinado a assegurar-lhe o usufruto pacifico do seu ingrato solo, costumes que, a despeito das suas formas simples e elementares, são admiráveis pela sua engenhosa precisão.

 

«D’onde lhe vem esta sabedoria tão prática e previdente? Algum legislador genial terá elaborado esses regulamentos à força de muito pensar e meditar? De modo algum. Possuindo uma organisação de família muito robusta, tendo o chefe de família uma grande autoridade, este povo, constatando as suas necessidades práticas, foi pouco a pouco modelando os costumes e regulamentos mais apropriados a satisfazê-Ias. Governando cada um a sua casa, os chefes de família, desde tempos imemoriais, entendem-se uns com os outros para encontrarem a solução mais simples e mais lógica do problema vital que a natureza lhes apresenta: adaptarem o mechanismo da família comunalista à gerência dos interesses da vizinhança, regulando amigavelmente as questões de interesse geral, tanto de carácter privado, como de caracter publico».

 

7 lagoas-geres (74).jpg

Gado em pastoreio no alto da Serra do Gerês

 

Os chamados deliberam também sobre a celebração das festas, a administração dos rendimentos das egrejas, a venda das offertas aos santos.

 

A pobreza das terras dá logar ao afolhamento, ou ao regimen da veiga vazia. É da veiga vazia que se faz em geral o pascigo do gado miúdo, emquanto o armentio se delicia com a herva fresca e tenra dos lameiros. Desde o S. Miguel até ao primeiro de maio o gado está nos estábulos, submettido ao regimen seco. Em chegando o mês de maio o gado sae das córtes e vae para as terras pastoraes, baldias ou apropriadas. Nas terras baldias o gado miúdo (ovino e caprino) anda sempre de vezeira, e ainda n’algumas ha vezeiras de gado bovino.

 

1600-sto andre (72).jpg

Chegada à aldeia da vezeira na aldeia de Stº. André - Montalegre

 

O rebanho de vezeira é a reunião de cabeças de gado de uma mesma espécie, pertencentes a diversas pessoas de uma mesma povoação em um rebanho commum ou adúa, que é pastoreado à vez nos pastos communs.

 

Em regra, quem tem dez cabeças, anda sempre à roda, dá sempre um dia, isto é, toca-lhe sempre a vez de guardar o rebanho em cada roda dos vizinhos: quem tem menos de dez folga um dia, isto é, guarda uma vez em duas rodas. A obrigação de ir com a vezeira impende sobre os donos da fazenda, que mandam os seus filhos ou as seus creados: mas às vezes assalariam entre todos um pegureiro por esse serviço.

 

1600-pedrario (114)-1.jpg

Pedrário - Montalegre

 

À hora habitual, o pegureiro ou o vizinho a quem cabe a vez, solta o pregão deita a rez à vezeira!, ou chama a vezeira pelo toque do córno ou buzina. Em Pedrario e n’outros sítios chama-se a rez à vezeira por toque de sino.

 

À noite, a vezeira volta e o pegureiro vae metendo para o curral de cada um a respectiva rez.

 

Em Pitões e n'outros lugares mais próximos do Gerez a vezeira das vacas anda na serra desde maio a setembro. O touro meiral é então o rei da serra, que percorre magestosamente em todos os sentidos com o seu cortejo de dezenas e dezenas de vacas.

 

1600-barroso XXI (527)-1.jpg

Pitões da Júnias com a Serra do Gerês de fundo - Montalegre

 

 

A cultura rotativa ou o alternamento da cultura com o pousio dá também logar a costumes interessantes. No anno da semeada, a folha cheia ou afrutada é coutada ao pasto comum dos gados da povoação. N'algumas partes, nomeia-se guardador para a veiga cheia, cargo que anda à roda por todos os que teem semeadas. A veiga vazia, destinada ao apascento commum, tem também o seu guardador, egualmente andando à roda. Então o guardador ou pegureiro que sae deixa à porta do que deve entrar um cajado,  a cajata, e assim fica avisado de que lhe cabe a vez.

 

1600-travassos do rio (97).jpg

A torre sineira do boi em Travassos do Rio - Montalegre

 

 

Lembro-me de que em Coimbra se estudava com alguma abundância de pormenores o mir russo e certos costumes e instituições das tribos índias do Orenoco e das populações nomadas do platô central da Ásia, vestigios do communismo primitivo, no qual a humanidade fruiu a sua edade d'oiro e para a volta ao qual se anda preparando a grande Revolução. Não se fazia, porém, a mais leve referência aos povos dos massiços de Barroso e de Miranda. Preferiu-se sempre fazer obra fácil sobre o livro estranho, com citações exóticas, do que fazer sciencia sobre a phenomenalidade ambiente, com observações rigorosas.

 

Estes artigos, sem pretenções scientíficas ou litteráridas, pretendem chamar as atenções para Barroso, especialmente do turista, mas isso não quer dizer que o lente não deva também deitar para lá a sua vista d’olhos.

 

Antonio Granjo

 

 

 

Nota: Texto de António Granjo escrito conforme original  (de inícios do Sec. XX)

 

 

11
Jun20

Crónicas Estrambólicas

Crónica de um Primeiro-Ministro sobre o Barroso - 6


estrambolicas

 

Crónica de um Primeiro-Ministro sobre Barroso 6

 

Mais uma crónica do antigo Primeiro-Ministro António Granjo, um ilustre flaviense. Não tenho comentários a fazer a esta crónica, deixo-a já aos leitores.

Luís de Boticas

 

1600-s-sebastiao (647)-granjo-6

 

A ADMIRÁVEL REGIÃO BARROZÃ

 

Porque não se faz hoje por ella o que os romanos fizeram ha perto de dois mil annos?

Quando os árabes dos desertos do oeste chegam ao valle do Nilo e param na contemplação do rio sagrado, o seu grito irreprimível é sempre: «Tanta água!» Se o alentejano que vem para as Pedras ou para Vidago curar o estômago derrancado pela respectiva sopa e suavisar na contemplação das veigas e dos longes do norte os olhos queimados da charneca — se o alentejano se visse no Côto dos Corvos ou no marco das Alturas o seu grito irreprimível seria à certa: «Tanta serra!».

 

O Gerez, o Larouco, a Cepeda, o Leiranco, o Brunheiro, S. Domingos. a Choupica, a Cabreira, a Picoreta formam um immenso círculo azul. Dir-se-hia que se dão as mãos e que, sob o sol loiro, que se derrama sobre os cimos como um oleo quente, todas essas serras dançam a roda. No meio, a serra de Barroso ou das Alturas parece esperar o momento de escolher o seu par, maneando imperceptiveImente a cabeça gentil e sorrindo às leves poeiradas d'oiro que sirandam em volta dos côtos e modelam voluptuosamente os recortes. O vento, emquanto as serras dançam, toca a sua flauta eterna. No último plano, para sul, entremostra-se a cabeça calva do Marão e, para sudeste, a cabelleira fulva da Padrela.

 

1600-desde-serra-barroso (38)-granjo-6

Alturas do Barroso vista desde o alto da Serra de Barroso

Eu não sei qual seja o sabor do mel do Himeto, mas juro que as trutas que comi, a 1.257 metros de altitude, na serra de Barroso, pelas 18 horas do dia 26, apoz uma estirada de algumas leguas eram bem um manjar dos deuses. Também não sei o que seja a bemaventurança, mas juro que as duas horas que passei n'esse dia, 1.200 metros acima do Terreiro do Paço, conversando com um guia analphabeto e dois pequenos pastores de cabras, os ouvidos cheios de silêncio da amplidão, os olhos cheios da magestade da montanha, quasi tocando o céo com os cabellos, o coração dormindo dentro do peito como uma creança dentro d'um berço, a alma librando-se como uma calhandra, na atmosphera silente, todo o ser impregnado do extase das coisas — juro que essas duas horas foram bem dois instantes de bemaventurança eterna.

 

Comprehende-se que as altitudes sejam as grandes santas milagreiras dos dias de hoje. Como é possível morrer-se tão perto do sol que basta estender o braço para se lhe tocar? Como é possível perder-se a vontade de viver tão longe das paixões que os lábios, se se abrem, é apenas para dizerem uma oração, e que os pulmões, se se dilatam, é apenas para receberem o ar?

 

Como dizia algum pobre poeta, se em Portugal os poetas não se houvessem transformado em directores da polícia de emigração clandestina ou acaso das commissões de separação dos funcionários — que bom devia ser errar por aqui alguns dias, convivendo com os astros, conversando com a noite, dormindo sobre as urzes e acenando às nuvens para que viessem poisar perto de nós...

 

1600 cela (192)-granjo 6

 

Enfim, enfim, não fosse este paiz a enorme Jumencia, de que costuma falar Joaquim Madureira, e a serra das Alturas teria deixado de ser ha cem annos o pasto de verão das cabradas de Campos, Villarinho Secco e outros pequenos agglomerados de cabanas primitivas, surgindo no Côto dos Corvos ou no Côto do Sudro um esplendido hotel servido por estradas, funiculares e todos os modernos meios de transporte, onde os tuberculosos viessem refazer os pulmões, as pobres vitimas dos hábitos citadinos viessem retemperar a saúde com o leite puríssimo e a água puríssima, e os políticos e Iitteratos viessem apagar as varias febres na contemplação das coisas pacíficas.

 

N'um pais que não fosse, como effectivamente é, o “habitat” de uma população de animaes políticos, entre os quaes honrosamente me conto, aproveitar-se-hia a circunstância de Pedras e Vidago serem as nossas melhores estancias d’aguas, e ter-se-hia valorizado, para o turismo, esta admirável região barrozã.

 

1600-covelo-Monte (4)-granjo-6

Covelo do Monte

Os romanos fizeram atravessar Barroso por duas magnificas vias, uma que vinha de Portus Cale a Bracara Augusta, passava por Aquae Flaviae e Asturica Augusta e penetrava nos Pirineus, e outra que, destacando-se da primeira, para alem da “mantio” Salatia atravessava o planalto pelas actuaes povoações de Bezerrinhos, Covêlo do Monte e Atilhó nas faldas das Alturas, entrando em Aquae Flaviae pelo sul. Ainda, atravessado o Gerez, e intemando-se nas regiões galaicas, os romanos construiram a grande via militar, que é conhecida vulgarmente pela Geira.

 

Dizer que se faça hoje por Barroso o que se fez há perto de dois mil annos será porventura uma exigencia demasiada? Pois não estará qualquer politiquelho de hoje quarenta furos acima de Augusto e qualquer jovem capitão quarenta furos acima de Cezar?

 

António Granjo

 

Sobre mim

foto do autor

320-meokanal 895607.jpg

Pesquisar

Sigam-me

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

 

 

19-anos(34848)-1600

Links

As minhas páginas e blogs

  •  
  • FOTOGRAFIA

  •  
  • Flavienses Ilustres

  •  
  • Animação Sociocultural

  •  
  • Cidade de Chaves

  •  
  • De interesse

  •  
  • GALEGOS

  •  
  • Imprensa

  •  
  • Aldeias de Barroso

  •  
  • Páginas e Blogs

    A

    B

    C

    D

    E

    F

    G

    H

    I

    J

    L

    M

    N

    O

    P

    Q

    R

    S

    T

    U

    V

    X

    Z

    capa-livro-p-blog blog-logo

    Comentários recentes

    • Anónimo

      Obrigado. Forte abraço. João Madureira

    • cid simões

      Muito bonito.Saúde!

    • Rui Jorge

      Muito Bom Dia a todos. Encontrei este blog e decid...

    • Luiz Salgado

      Sou neto do abilio Salgado e Augusta de Faria Salg...

    • Luiz Salgado

      Meus tios Abilio e Abel Salgado , sou filho de Hen...

    FB