Crónicas Estrambólicas
CRÓNICAS DE UM PRIMEIRO-MINISTRO SOBRE O BARROSO - 15
Crónica de um Primeiro-Ministro sobre Barroso 15
(última crónica)
Mais uma crónica do antigo Primeiro-Ministro António Granjo, um ilustre flaviense. É a última das 15 crónicas sobre Barroso publicadas no jornal A Capital em 1915. A crónica está escrita como foi publicada, no português da altura, incluindo gralhas tipográficas.
Gostei bastante de ler esta série de crónicas, escritas por um homem culto e com grande sensibilidade para a natureza e as pessoas, entre outras. Achei a pontuação um bocado estranha mas não sei se isso terá a ver com algum revisor do jornal que terá alterado vírgulas e assim. Tem piada que o autor entrou como um leão, a gabar Barroso ao máximo, mas no final já diz que os pulmões estão cansados do ar puro… Já estaria com saudades da vida na cidade, é compreensível, há mais mundo pra lá de Barroso. Também há quem nasça em Barroso com vocação de marinheiro e não se pode travar essa gente de ir por aí afora. Isso de resistentes e que se negam a sair, é utópico, são lérias do dono deste blogue e mais alguns, mas não é bem assim como as coisas são. O inverso também é verdade para quem vem de fora fazer cá a vida, que são menos do que os que saem mas sempre existiram. Em Barroso não somos melhores que ninguém, como quase quis fazer crer o cronista ao dizer que os barrosões são o máximo e sempre ao máximo, a tal gente boa e pura e valente. Temos uma cultura muito própria mas mais nada, cá também há depressivos, alcoólicos, assassinos, ladrões, pedófilos, invejosos apenas, etc. Aliás, algumas das características que reconheço nas gentes de Barroso são a matreirice e a artimanha, ora vão ler os relatos do Bento da Cruz sobre os barrosões que, na altura do ano em que a agricultura não dava trabalho, iam por aí afora pedir para a casa “ardida”. Estórias como a seguinte não faltam. Há uns 30 anos houve um emigrante que apareceu numa oficina em Boticas para colar o quadro da bicicleta, que tinha partido. Na oficina disseram-lhe que faziam o serviço mas de momento não tinham a cola necessária, a super 18, e que ele devia tentar compra-la na farmácia. Na farmácia disseram-lhe que estava esgotada e mandaram o homem para outra loja e daí foi recambiado para mais uma ou duas, cada vez mais distantes, até que na cooperativa lhe puseram um saco de 50 quilos de adubo super 18 às costas para ele o carregar até à oficina. Isto tudo sem nenhum lojista estar combinado ou saber de nada, os manhosos de Barroso funcionam por telepatia. A arte de representação e de iludir os outros são coisas que cá passam de pais para filhos, é uma cultura enraizada, e os executantes são tão bons que normalmente os turistas nunca percebem essas qualidades, mesmo depois de carregar um saco de 50 quilos de cola às costas. Alguns são tão maus alunos que até têm que repetir a lição, o que dá direito a medalha de ouro aos artistas principais. Fiquem agora com a crónica do Granjo.
Luís de Boticas
QUADROS MARAVILHOSOS
Offerece-os a regido de Barroso aos pintores, aos romancistas, aos cultores do «camping»
Preciso acabar. A capital deve estar fana de aturar este impenitente o irresgatável bairrista; e as cinco ou seis pessoas que porventura hajam seguido estes artiguelhos devem começar a enfastiar-se.
Depois, a política anima-se. E concordemos, entre o que pensa o nosso amigo e senador da República, sua ex.a. Qualquer coisa, sobre o momento psicológico em que a nação corra perigo de perder-se e seja assim justificável perante a História um ministério de concentração, e o que se passa em Barroso, onde uma companhia estrangeira explora já uma das mais ricas minas de volfrâmio do mundo e pensa utilizar o Cávado e a Fecha de sahida (cascata do Outeiro) para a electricisação dos meios de transporte e illuminação entre Douro e Minho, não temos mesmo que hesitar. Como nos cumpre, temos de ficar suspensos da palavra preciosa de s. ex.a, e conceder por favor um encolher de hombros a esses doidos que vem da estranja desventrar as nossas montanhas à procura de ignorados thesouros ou com a intenção de transformarem o fio de água em torrente de força e onda de luz.
E, sendo assim, como é, finalizamos.
São um pouco adeante da Venda Nova as Minas da Borralha. Sobe-se por um corrego, pelo leito secco d’um ribeiro, um atalho que evita 2 km de estrada. A manhã beija a montanha.
A meio da encosta pára-se, e deixa-se correr a vista. Para o nascente, segue a estrada que se principiou há 60 annos e para cujo acabamento será talvez necessário que se faça uma revolução. É para esses lados, atraz das serras, que lá muito longe fica a minha terra, debruçada sobre um rio manso, no goso perene de um valle risonho, assentada sobre uma colina ainda cercada de muralhas. É pouco mais ou menos por esta hora que eu costumo chegar à minha varanda, onde cultivo mangerico, a dar bons dias ao sol. Sinto que me vae fazendo falta a minha cadeira de verga, sentado na qual, depois de jantar, conforme o velho preceito conventual acho excellente philosophar sobre as unhas e menos partes dos homens e sobre os cabellos e mais partes da mulher.
À vista segue um raio de sol que brinca sobre o Cávado. Ao fundo adivinha-se a ponte da Misarela ou do inferno.
Ponte da Misarela
É a essa ponte que vão as mulheres gravidas, e que já abortaram, pela meia noite, pedir ao espírito das águas que lhe dá um bom parto. Parece uma lenda medieval. Eu conto-a. Quando uma mulher tem um parto infeliz, e concebe novamente, uma noite, sem que ninguém a presinta, sae de casa acompanhada do marido. À meia noite em ponto está no meio da ponte da Misarela. O marido fica à entrada da ponte para afugentar todo o animal vivente. Porque é preciso que não passe sobre a ponte nem pássaro nem cão, nem besta alguma, antes que appareça algum transeunte. Por fim apparece ou um almocreve ou um bezerreiro ou um mendigo ou um lavrador ou um pequeno pastor. Será o padrinho. E logo que appareça uma pessoa do sexo feminino quer seja uma velha remelosa que venha dedilhando as contas do rosário, quer seja uma creança que venha com a fazenda e traga entre os dentes a côdea negra do centeio, tem lugar a cerimónia. O padrinho desce ao rio, traz na concha da mão um pouco de água aparada de uma rocha cavada no meio, e a que o povo chama o caldeirão, e sob o alvor das estrellas pronunciam-se as palavras sacramentaes do batismo. Se a mãe tiver um rapaz há-de chamar-se Gervásio; se tiver uma rapariga há-de chamar-se Senhorinha.
Não merecia uma scena d’estas apanhada em flagrante, uma página immortal de Camillo?
Ponte da Misarela
As casas brancas da Venda Nova e as águas brancas do Cávado dão à paisagem apocaliptica, feita para as tempestades, para os cenobitas, e para as aves presas, numa cena nota de suavidade. As bestas pararam também na contemplação estática da manhã doirada, e os seus perfis, projectando-se contra o azul lavado, parecem linhas de animaes estetizados ornamentando o horizonte.
A caminho, caminheiros!
Os carros, os fios telegraphicos e telephonicos, cruzam-se sobre a montanha, que uma estrada rasga, deixando a descoberto manchas de volfrâmio. As águas amarelladas do ribeiro, a 50 metros de profundidade, rugem de penedo em penedo, arrastando os detrictos.
Conta-se que na Suissa andam dias e dias os americanos e ingleses percorrendo os leitos pedregosos das ribeiras em busca dos moinhos de água. Uma pena de água, sobre uma rocha foi descrevendo um movimento circulatório; no meio a rocha ficou, arredondando-se; a água foi roendo a rocha, até chegar à areia; o pedaço de rocha que ficou no meio, entre o redemoinhar da água, despegou-se por fim e recebeu um movimento giratório. É o moinho d’água. Pois é pena que um archimilionario americano ou um armador inglez não venham fazer turismo por estas ribeiras barrozãs, porque escusava de gastar muito tempo para dar com o seu moinho d'água.
Minas da Borralha
Estamos nas instalações da mina — barracões enormes, cobertos de zinco, onde arfam as machinas potentes; carretas rolando continuamente nos railhes; pequenos grupos de casas operárias, com as chaminés furando para a rua; a enorme lavandaria, baixando em 7 ou 8 andares, desde o cimo da montanha até ao ribeiro; as boccas das minas abrindo-se convidativas e misteriosas; os elevadores surgindo do seio da terra e descarregando o minério; e o vae-vem, os movimentos apressados, a agitação ordenada, de uma grande mina em actividade. Alguém saberá que há em Barroso uma exploração mineira que occupa 500 operários e na qual está estabelecido o regimen das 8 horas do trabalho?
Trabalhadores das minas da Borralha em 1918
Fez-se ultimamente um certo barulho à volta do mr. Marijou, director d’estas minas, por virtude do projecto de lei, pendente do Senado, para a anexação da freguesia de Salto, a que as minas pertencem, ao concelho de Cabeceiras de Basto. A discussão na imprensa diária apenas arranhou um minuto o ouvido popular. De tudo isso não há já certamente a memória que deixaram as palavras transcendentaes de sua ex.a. Qualquer Coisa sobre as homorroidas do respectivo chefe. Apenas em Barroso subsiste ainda a justa revolta contra a tentativa de extorsão.
A caminhos, caminheiros!
Minas da Borralha
São 11 horas. A raçada do sol racha as fragas, no pittoresco dizer da região. O solo arde. As pedras queimam. O sol está no zenith. Caminhamos há uma hora com a cabeça bamboando entre os hombros, à procura, de uma sombra. O cavallo tropeça a cada passo: parece estar cego dos dois olhos.
Damos um cavallo por uma sombra, como o outro dava o seu reino por um cavallo.
Apparecem fetos, e logo se ouve cantar um pequeno fio de água por uma ravina. Acampamos atraz de uma parede, a um de fundo, para todos podermos aproveitar a sombra magra das galhas nodosas de uma giesta. Serve-se o sóbrio repasto, como comporia um clássico, e, classicamente, dispomo-nos a vencer a nova montanha, dessedentadas as gargantas no doce fio de água, que bem merecia um genial soneto do Sr. António Correia d’Oliveira.
Será o último dia da jornada. Os olhos vão cançados de ver, os pulmões recebem já enfastiadamente o bom ar azotado; o coração aborrece-se já do seu rithmo perfeitamente e inalteravelmente normal; e as pernas, as pobres pernas, vão cançadissimas, juro-o de uniformemente, uniformemente, uniformemente, galgarem despenhadeiros, treparem alturas, saltarem corregos, esmagarem urzes, dentarem com as brochas cardadas das botas este imenso pavimento de rochedos em que há uns poucos de dias vimos patinando.
De todo o resto da jornada, pouco vale a pena contar. Aldeias de nomes bárbaros que se viam dependuradas nas encostadas, vezeiras de gado meúdo mosqueando as serras, vaccas fazendo tilintar as suas campainhas pelos lameiros dos vales, algumas cruzes nos caminhos recommendando aos viajantes que rezem por alma do que ali morreu assassinado. Viva, tenho ainda a lembrança das mãos femininas e delicadas que à entrada de uma povoação me estenderam uma grande pota de água, vinho e mel e que constitue certamente a delícia das delícias.
Vila Pequena - Boticas
Apeámo-nos, sobre a tarde, na Villa Pequena, já nas faldas das Alturas. É um bonito logarejo com as ruas cheias de latadas, os campos cheios de milhos, onde já parece ter chegado «a bênção de Deus». Ao longe, vê-se o Lasenho, donde foram levadas as duas estátuas de guerreiros que se ostentam no Museu Etnographico, nos Jerónimos.
O Sr. Dr. Leite de Vasconceilos anda há bastantes annos empenhado na descoberta do Lasenho. Pois informo-o que fica junto à povoação de Campos, no sopé da serra das Alturas e tem a forma de uma pirâmide cónica. E não quero nada pela descoberta — nem mesmo as palavras da Academia.
Sahimos de Villa Pequena já noite escura. Um guia, com um lampião de azeite, vae ensinando o caminho e tagarelando sobre moiras encantadas, lobos e salteadores. E pelas 2 horas da madrugada, com as nossas 8 léguas (1) andadas, os bigodes ensopados da geada, e as pernas mechendo-se por hábito, chegamos enfim a Boticas.
A caminho de Boticas - Composição
Enfim!
Enfim, dirão também os leitores.
Fomos compondo, intervallada e arrepolladamente, conformo nos deixaram, estes artiguelhos a fim de chamar a atenção dos portuguezes e dos turistas para este canto de Portugal. Certamente, não encontrarão por cá funiculares, nem magníficos hotéis, e muito menos poderão dispor a cada canto d’urna cabina telephonica para chamar um automóvel de socorro quando se fure um pneumático. Mas quem quizer um pouco de imprevisto e for capaz de um pouco de esforço, deve visitar esta admirável região, sufficientemente grande para se fazer o camping uma estação inteira e sufficientemente ignorada para se tomarem duas notas inéditas e se tirarem algumas bellas photographias. Se há no paiz romancistas de costumes, têem matéria à farta para compor alguns volumes; se há pintores, têem os mais lindos motivos e as mais graciosas linhas de Portugal para fazerem alguns quadros maravilhosos.
Posto isto, como era de uso acabar antes, quando em Portugal uma mezura valia um pouco mais que um pontapé, receba a Capital, os meus agradecimentos, e a meia dúzia de leitores que se interessou pelos artiguelhos as minhas sinceras desculpas pelo tempo que lhes roubei.
António Granjo
30 de Setembro de 1915
(1) Talvez devido ao cansaço o autor duplicou a distância