Dez Andamentos
Da Cartografia do Desconhecido
DA CARTOGRAFIA DO DESCONHECIDO
O desconhecido aproxima-se muitas vezes da suave atracção do exótico, originando um mapa onde, inadvertidamente, as camadas de um inocente imaginário criam um mundo fabuloso.
As atraentes listas alaranjadas de um nautilus, expelido pelas tépidas águas do mar de Andaman, podem assim encobrir o nacarado brilho interior da sua concha. Mas dessa brilhante luminosidade, aconchegada nas sinuosidades da uterina cornucópia, poderá saltar, inesperadamente, um listado tigre de Bengala, traçando com as suas presas e as suas garras um avermelhado rasto que rasga, como sanguinolenta radiografia do seu selvagem instinto, todas as nossas inocentes e idílicas imagens.
Na desilusão deste insuspeito mundo, agora esventrado e desvendado, o cativante brilho interior da madrepérola poderá albergar também a gelatinosa memória de uma medusa, cuja leitosa translucidez, subitamente transparente, acaba por fustigar as pernas, os braços e o corpo de quem mergulha em busca da nacarada e ideal perfeição circular, discretamente protegida pela exterior rugosidade das ostras.
Mas a perfeição do nácar, essa, poderá não resistir sequer à suave diluição lilás das pétalas de uma saponária, não necessitando sequer de vinagre para lembrar a corroída erosão de uma estátua de mármore, perdida no tempo e fustigada pelas chuvas, cuja desfigurada forma sempre ostentou, afinal, uma silenciosa boca preparada para qualquer inclemência.
São chuvas semelhantes a estas, com uma outra acidez, interior mas palpável, que fustigam também o nosso quotidiano, cavando profundos sulcos que ininterruptamente esgrafitam o mapa das nossas vidas e, a cada dia que passa, nos deixam perdidos dentro de nós próprios.