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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

01
Jun16

Chá de Urze com Flores de Torga - 133


1600-torga

 

Alturas do Barroso, 1 de Setembro de 1991

 

Incansavelmente atento às lições do povo, venho, sempre que posso, a este tecto do mundo português, admirar no adro da igreja, calcetado de lousas tumulares, o harmonioso convívio da vida com a morte. Os cemitérios actuais são armazéns de cadáveres desterrados da nossa familiaridade, lacrimosamente repelidos do seio do clã mal arrefecem, cada dia menos necessários, no progressivo esquecimento, à salutar percepção do que significam na dobadoira do tempo. Ora, aqui, cada paroquiano pisa, pelo menos dominicalmente, a sepultura dos ancestrais, e se liga a eles, quase organicamente. Vive, numa palavra, referenciado. Sabe que tem presente porque houve passado, e que, mais cedo ou mais tarde, enterrado ali também, será para os descendentes consciência e justificação do futuro.

 

Miguel Torga, In Diário XVI

 

1600-s-sebastiao (854)

 

E terminam aqui as referências às terras de Barroso, concelho de Boticas e Montalegre. Concluídas que estão as referências ao Barroso e Chaves, a partir de hoje a rubrica “Chá de Urze com Flores de Torga” deixará de estar aqui no blog todas as quartas-feiras. Mas continuará, ocasionalmente, sem dia certo, não só com trechos dos diários, mas também outros textos e notícias, de preferência com referências transmontanas e com o sentir transmontano como Torga o sabia fazer tão bem.

 

As próximas quartas-feiras darão lugar a uma nova rubrica, ainda em preparação, mas até que surja aqui, não faltarão motivos flavienses para preencher o espaço dos dias de feira em Chaves.

 

 

25
Mai16

Chá de Urze com Flores de Torga - 132


1600-torga

 

Tourém, Barroso, 2 de Setembro de 1990

 

LIMITE

 

Pátria até que os meus pés

Se magoem no chão.

Até que o coração

Bata descompassado.

Até que eu não entenda

A voz livre do vento

E o silêncio tolhido

Das penedias.

Até que a minha sede

Não reconheça fontes.

Até que seja outro

E para outros

O aceno ancestral dos horizontes.

 

Miguel Torga, In Diário XVI

 

1600-tourem-360-486

Tourém (composição com duas imagens)

 

Travassos do Rio, Montalegre, 29 de Agosto de 1991

 

Notabiliza este lugar um baixo-relevo na torre sineira a figurar a cabeça de um toiro, que foi campeão invencível nas turras do seu tempo e os habitantes, ufanos de tanta valentia, quiseram perpetuar.

 

Vou rememorando: Cornos das Alturas, Cornos da Fonte Fria, Tourém, Toural, Pitões.

 

Era assim antanho. Por todo o lado a mesma obsessão a tutelar as consciências. O mal é que o povo, em meia dúzia de anos, deixou apagar nos olhos a imagem viril, e perdeu a identidade. O Barroso de hoje é uma caricatura. Sem força testicular, fala francês, bebe coca-cola, deixo de comer o pão e centeio do forno comunitário, assiste a chegas comerciais, em campos de futebol, com bilhetes pagos e animais alugados. É um nédio boi capado.

 

Miguel Torga, In Diário XVI

 

 

18
Mai16

Chá de Urze com Flores de Torga - 131


1600-torga

 

Carvalhelhos, 3 de Setembro de 1989

 

Horas e horas de correria por este Barroso a cabo, num Domingo de romarias, na mira de assistir a mais uma vez uma chega de toiros. Mas não fui feliz. Em todas as aldeias visitadas, o grande acontecimento tinha já acontecido. Restavam dele apenas o doce sabor do triunfo ou o amargo da derrota. Na pega ribatejana, outra expressão da nossa virilidade e vitalidade, é o pegador que está em causa ao saltar para dentro da arena. Aqui, é a povoação inteira que se revê na luta entre o boi e o boi rival. E o desfecho do combate diz respeito a todos. Por isso, se vence, o deus testicular é festejado até ao delírio, se fraqueja e se rende, é amaldiçoado até às lágrimas.

 

Celebração colectiva, a turra é a mais sagrada cerimónia que se pode presenciar nestas paragens, onde cada acto tem a profundidade dos tempos primordiais e não há divindade sem terra nos pés. E eu sou uma natureza religiosa, sedenta de transcendente, que aprendeu nas grutas de Altamira que ele pode ter a figuração de um bisonte e é sempre uma resposta luminosa a perguntas obscuras do instinto.

 

Miguel Torga, In Diário XV

 

1600-montalegre (1169) -1

 

 

Montalegre, 1 de Setembro de 1990

 

Eram jovens, abordaram-me, gostavam do que escrevi, e queriam saber coisas de mim. Qual era o meu segredo?

 

— Ser idêntico em todos os momentos e situações. Recusar-me a ver o mundo pelos olhos dos outros e nunca pactuar com o lugar-comum.

 

Miguel Torga, In Diário XVI

11
Mai16

Chá de Urze com Flores de Torga - 130


1600-torga

 

Serraquinhos, 14 de Setembro de 1975

 

O Barroso coberto de gado. Os mais diversos bichos a granel nos mesmos pastos, nos mesmos eidos, nos mesmos currais. Bois, ovelhas, cães, cabras, burros, porcos e galinhas no mesmo cordial convívio. E pus-me a pensar na fácil comunhão da condição viva, em encontra-me com difícil harmonia da condição social. A fraternidade de que não somos capazes nós os homens, simples como o bom dia entre seres sem cromossomas permutáveis.

 

Miguel Torga, In Diário XII

 

1600-serraquinhos (7)

 

Pitões das Júnias, Barroso, 8 de Setembro de 1983

 

Só vistas, a aspereza deste ermo e a pobreza do mosteiro desmantelado. Mas canta dia e noite, a correr encostado às fundações do velho cenóbio beneditino, um ribeiro lustral. E os ascetas e o poeta que se digladiam em mim, de há muito peregrinos desta solidão, mais uma vez se conciliam no mesmo impulso purificador, a invejar os monges felizes que aqui humildemente penitenciaram o corpo rebelde e pacificaram a alma atormentada. O corpo a magoar-se contrito no cilício quotidiano da realidade e a alma a ouvir de antemão, enlevada, a música da eternidade.

 

Miguel Torga, In Diário XIV

 

1600-barroso XXI (321)

 

Covas do Barroso, 8 de Setembro de 1987

 

Uma bonita imagem de Nossa Senhora de Rocamador na igreja matriz, e o forno do povo ainda quente  e a reacender da última fornada. Um lavrador, quando me viu ougado, meteu a navalha a uma broa e fartou-me. O comunitarismo, por estas bandas, não é uma palavra vã. Significa solidariedade activa em todos os momentos. Até a fome turística tem direito ao pão da fraternidade.

 

Miguel Torga, In Diário XV

 

 

04
Mai16

Chá de Urze com Flores de Torga - 129


1600-torga

 

Boticas, 17 de Setembro de 1970

 

Um lauto e demorado jantar, a que assisti de talher praticamente cruzado, num enjoo renitente do estômago e do cérebro. Quanto mais a fome crónica de Portugal se farta, mais repugnância sinto pelos guisados. É que, sem almejar finuras de espírito ou Banquetes de Platão e de Kierkegaard, também me não resigno a que saiam sempre delas, ou raciocínios que parecem eructações, ou Ceias dos Cardeais.

 

Miguel Torga, In Diário XI

 

1600-boticas (7)

 

Boticas, 7 de Setembro de 1973

 

O mundo de frustrações que ia naquela alma! Que vai em todas as almas, afinal, mesmo se o não revelam. Nunca ninguém lhe ouvira queixume, um lamento, uma confidência. Tudo nela era descrição e compostura. E há pouco, inesperadamente, traiu-se. Falava-se de chegas que se realizam aqui no Barroso.

- Sabe o que fazem aos toiros vencidos? – perguntei.

- Não faço ideia.

- Abatem-nos.

- Porquê?

- Porque deixaram de simbolizar o poder da virilidade.

- Deviam fazer o mesmo a certos homens…

E foi como se uma flor serôdia de orgasmo se abrisse na sala.

 

Miguel Torga, In Diário XII

 

 

27
Abr16

Chá de Urze com Flores de Torga - 128


1600-torga

 

Montalegre, 11 de Janeiro de 1970

 

Avisado por um amigo de que havia hoje cá na terra uma chega de toiros, meti-me a caminho debaixo dum temporal desfeito, e tanto teimei com a chuva, o vento e o granizo, que consegui chegar a horas de assistir ao combate. E valeu a pena. Se há em Portugal meia dúzia de espectáculos que merecem ser vistos, este é um deles. Primeiro, as bichezas, depois de nove voltas propiciatórias à capela do orago e da sanção da bruxa, a sair dos respectivos lugarejos, rodeadas pela juventude dos dois sexos, enquanto o sino toca a Senhor fora e o mulherio idoso reza implorativamente aos pés do Santíssimo; a seguir, a chegada dos cortejos ao toural da vila, as cerimónias preliminares do encontro — vistoria rigorosa dos animais (não tragam eles pontas de aço incrustadas nos galhos), a escolha do piso, etc.; finalmente turra — os dois bisontes enganchados, cada qual a dar o que pode, no esforço hercúleo de não perder um palmo de terreno, ou ganhá-lo, apenas cedido. Turra que dura eternidades de emoção, e só termina quando uma das bisarmas fraqueja, recua, e acaba por fugir.

 

1600-montalegre (371)

 

Não é, contudo, a luta gigantesca, apesar de empolgante, o que mais diz ao espectador forasteiro. É o halo humano que a envolve, os milénios de ancestralidade que ela faz vir à tona da assistência. Símbolo de virilidade e fecundidade, o boi é na região o alfa e o ómega do quotidiano. Cada povoação revê-se nele como num deus. Vitorioso, cobrem-no de flores; derrotado, abatem-no impiedosamente. Quando há minutos a turra acabou, depois de viver numa tensão de que a palidez de um padre a meu lado era a síntese, toda a falange que torcia pelo vencido parecia capada.

 

Miguel Torga, In Diário XI

 

 

20
Abr16

Chá de Urze com Flores de Torga - 127


1600-torga

 

Tourém, 7 de Abril de 1968

 

A intensidade de certos sentimentos mede-se pelo pudor de que os rodeamos. Quanto menos se exibem, mais fundo latejam. Mas, ao contrário, só na denúncia clamorosa de todos os atentados contra o objecto dos nossos afectos preservamos a sua pureza. A indignação publicamente manifestada é, nesse caso, a única prova de fidelidade do coração.

Azoeirado diariamente pelos papagaios do amor acrisolado à pátria, que açaimam, prendem ou liquidam os que duvidam da cantilena e erguem, ofendidos, a voz acusadora, é com inveja que olho os habitantes felizes deste pequenino enclave barrosão, que a grandeza espanhola nunca conseguiu deslumbrar nem devorar. Sempre que atravesso o istmo que o liga ao corpo nação, percorro as ruas da aldeia pavimentadas de cagalhetas, e entro na igreja onde o escudo real é uma ara de pedra de fervorosa celebração lusitana, apetece-me assentar arraiais e ficar a ser português assim o resto da vida. Unido visceralmente à matriz por um cordão umbilical de ternura, e ao mesmo tempo desterrado, esquecido, analfabeto, civicamente impedido de ouvir, e culturalmente desobrigado a responder.

 

Miguel Torga, In Diário X

 

1600-barroso XXI (360)-1

Vista geral de Tourém

 

Alturas de Barroso, 21 de Setembro de 1969

 

A paz destes barrosões, sentados no combro de uma lameira a guardar uma junta de bois! Parecem sonâmbulos a apascentar a eternidade.

 

Miguel Torga, In Diário XI

 

 

13
Abr16

Chá de Urze com Flores de Torga - 126


1600-torga

 

Sarraquinhos, Barroso, 17 de Setembro de 1967

 

Parece que é lenda o célebre pedido que se atribui a Frei Bartolomeu dos Mártires no Concílio de Trento: a abolição do celibato ao menos para os padres de Barroso. Mas ela define um ambiente onde o natural pesa sobre todas as criaturas da mesma maneira, dobrando-as às suas leis como o  vento dobra os vimes, e que me não canso de respirar. Já conheço a paisagem de cor e salteado, em poucas aldeias ou lugarejos deixei de meter o nariz, os caracteres humanos são de tal clareza que se decifram à primeira leitura.

 

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A verdade, porém, é que volto sempre que posso, e cá estou mais uma vez. Atrai-me esta amplidão pagã, sinto-me bem a pisar um chão em que o deus vivo de ricos e pobres, de alfabetos e analfabetos, é o toiro do povo. Um deus de cornos e testículos, que, depois de cada chega e de cada vitória, a gratidão dos fiéis cobre de palmas, de flores, de cordões de oiro e de ternura. Um deus que a devoção adora sem lhe pedir outros milagres que não sejam os da força e da fecundidade, provados à vista da infância, da juventude e da velhice. Um deus a que se dão gemadas e cervejas para que possa inundar as vacas de sémen, as moças de esperança, os moços de certeza e a senilidades de gratas recordações. Um deus eternamente viril, num paraíso sem pecado original.

 

Miguel Torga, In Diário X

 

 

06
Abr16

Chá de Urze com Flores de Torga - 125


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Paradela do Rio

 

1600-torga

 

Paradela do Rio, 1 de Julho de 1956

 

Estes tempos de barragens são uma verdadeira era nova do mundo. Qualquer dia, na escola, o mestre aponta o mapa e diz:

- Antes do período albufeirozóico, aqui era Barroso.

Miguel Torga, In Diário VIII

 

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Covas do Barroso

 

Covas do Barroso, 27 de Setembro de 1958

 

Almoço na casa do abade da terra. É bom alimentar de vez em quando o ateísmo a uma mesa residencial.

 

Miguel Torga, In Diário VIII

 

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 Negrões

 

Negrões, Barroso, 24 de Setembro de 1960

 

Tanto monta ser aqui, como no Terreiro do Paço. Ouvir um político, é ouvir um papagaio insincero.

 

Miguel Torga, In Diário IX

 

 

30
Mar16

Chá de Urze com Flores de Torga - 124


1600-torga

 

Alturas do Barroso, 27 de Junho de 1956

 

Entro nestas aldeias sagradas a tremer de vergonha. Não por mim, que venho cheio de boas intenções, mas por uma civilização de má-fé que nem ao menos lhe dá a simples proteção de as respeitar.

 

Miguel Torga, In Diário VIII

 

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 Alturas do Barroso

 

Montalegre, 28 de Junho de 1956

 

Feira do prémio. As elegâncias bovinas da região num concurso de beleza. Mas coisa a sério! Cada vedeta examinada e medida com um rigorismo de meter Hollywood num chinelo. Torci quanto pude por uma bezerra ruiva – Deus me perdoe a oculta transposição antropomórfica que se estaria a operar no meu subconsciente, fiz de jarrão à mesa do júri, apertei a mão aos donos das beldades eleitas, e, no fim, quando esperava ver coroada com uma chega de toiros a minha abnegação pecuária, arma-se tamanho sarilho entre duas povoações donas das bisarmas à altura da façanha, que parecia o fim do mundo. No meio de negociações complicadas, em que pus toda a diplomacia de que sou capaz – a escolha do terreno da luta, a verificação de que não havia navalhas de ponta e mola embutidas nas hastes dos cornúpetos, etc.,etc. -, insofrida, a virilidade humana antecipou-se à virilidade dos animais. Nas barbas da autoridade, dispensou galhardamente os actores contratados e, em vez duma turra de bois, ofereceu-me o espectáculo mais sensacional ainda de uma turra de gente. Com esta vantagem para mim: metido também na dança.

 

1600-montalegre (1081)

 

Atónito no meio da insólita floresta de varapaus, tratei de me defender como pude das bordoadas, sem medir a grandeza da generosidade, e até propenso a considerá-la abusiva. Mas logo que a tempestade amainou, e tive de estancar o sangue no lanhaço de um dos heróis, testemunhei-lhe o meu alarmado reconhecimento. A resposta veio num simples sorriso sibilino, que interpretei desta cândida maneira: já que eu estava tão interessado em conhecer as coisas por dentro…

 

Miguel Torga, In Diário VIII

 

 

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