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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

02
Jun16

Discursos (emigrantes) Sobre a Cidade


800-(34358)-sandra

 

A Viagem

 

Dentro, somos muitos.

Somos de toda a terra que nos viu nascer e nos acolhe.

 

Foto 1 - Sighignola, Itália, Maio 2016.jpgSighignola, Itália, Maio 2016 - Foto de Sandra Pereira

 

Somos de todo o ceú que nos ilumina e dá fé.

 

Foto 2.jpg

Foto de Sandra Pereira

 

Somos de todo o mar que nos dá fôlego e alento para sentir-nos vivos.

 

Foto 3 - Cagnes-sur-Mer, França, Maio 2016.jpg Cagnes-sur-Mer, França, Maio 2016 - Foto de Sandra Pereira

 

Somos da lua e de toda a noite escura que guarda os nossos mistérios e segredos mais íntimos.

 

Foto 4 - Estocolmo, Suécia, Maio 2016.jpg

Estocolmo, Suécia, Maio 2016 - Foto de Sandra Pereira

 

Dentro, somos muitos. A nossa terra é o mundo. O nosso mundo é a terra. A nossa vida é uma viagem, cuja verdadeira descoberta, já dizia o escritor Marcel Proust, consiste não só em ver e buscar novas paisagens, mas em ter novos olhares.

Sandra Pereira

 

 

07
Abr16

Discursos (emigrantes) Sobre a Cidade


800-(34358)-sandra

 

De coração aberto

 

Como todas as manhãs, ela esperava o comboio para ir trabalhar e seguir a rotina habitual. No final do trajecto, iria sentar-se oito horas em frente a um computador, teclando as mesmas palavras de sempre.

 

Mal começou a enrolar um cigarro, aproximou-se uma senhora. Pediu-lhe um. Não era pobre, nem triste. Não tinha cigarros porque estava a tentar deixar de fumar. Contudo, permitia-se um cigarro por dia para “não ser tão radical”. Estava doente, e tinha mesmo de deixar de fumar.

 

Ela olhou para a sua bolsa de tabaco. Tinha pouco, talvez só desse mesmo para dois. Na primeira reacção, disse à senhora que já não tinha mais tabaco. A senhora agradeceu e afastou-se.

 

Depois de enrolar o seu cigarro, começou instintivamente a enrolar outro. Também ela já tinha estado na delicada situação de tentar deixar de fumar. Usara a mesma táctica: nunca tinha tabaco na bolsa, mas de vez em quando não resistia em pedir um. Também ela já tinha sentido o mesmo que aquela senhora.

 

Discursos_CoracaoAberto.JPG

 Monastério Budista, Parc del Garraf, Barcelona, Fevereiro 2016 - Fotografia de Sandra Pereira

 

Ao dar-lhe o cigarro, o rosto da senhora abriu-se e sorriu. Num desabafo, começou a contar a sua história. Falou do esforço mental diário que fazia para deixar de fumar. Era uma luta que travava há anos. Ela ouviu os sentimentos da senhora de coração aberto. Entretanto o comboio chegou e ela ganhou uma companhia inesperada para o resto da viagem.

 

Pouco depois, a senhora perguntou para que trabalho se dirigia. Ela explicou o que fazia com uma cara triste. Não gostava do que fazia. A senhora sorriu. “Eu já fiz o mesmo trabalho e saí. Não aguentei”. O rosto dela iluminou-se. “O que faz a senhora agora?”.

 

A senhora explicou como tinha mudado de trabalho para outro que a libertava e a satisfazia bem mais. Depois, com algumas perguntas pelo meio para perceber o seu perfil, deu-lhe várias alternativas para também ela mudar de trabalho, com sites e locais específicos onde começar a procurar a mudança. No final da viagem, a senhora despediu-se com um sorriso. Ela nem queria acreditar no que acabava de acontecer: a vida enviara-lhe um sinal. Essa foi a “paga” por abrir o coração.

 

O que aconteceria se todos abrissemos o coração aos outros? Viveríamos num mundo melhor? Nas grandes cidades, na velocidade da passagem dos dias, é fácil esquecer que abrir o coração é uma questão de sobrevivência para uma vida mais humana. Nas terras mais pequenas, na lentidão da passagem dos dias, é fácil recordar que abrir o coração faz parte do nosso quotidiano mais humano. Não esqueçamos, recordamos.

 

Sandra Pereira

 

 

06
Ago15

Discursos (emigrantes) Sobre a Cidade


800-(34358)-sandra

 

Não vou a Portugal

 

Faltam-me os meus montes, faltam-me os meus "mais que tudo", faltam-me os meus amigos de toda a vida, faltam-me os abraços, os sorrisos e a generosidade da gente da minha terra, falta-me a minha comida (só ela tem o sabor da felicidade), falta-me a minha rua, falta-me o cheiro da minha terra, falta-me o meu Sol que brilha mais aí do que em qualquer outro lugar, falta-me o meu céu que é mais azul aí do que em qualquer outro lugar. Mas este Verão, altura em todos os "filhos" regressam e enchem a nossa terra de alegria e amor, eu não vou a Portugal. Por decisão própria.

 

Por que não vou a Portugal? Se o amo tanto, porque não vou?

 

Será por "birra"? Será por revolta e ressentimento de ela me ter "obrigado" a partir? Será por pena de constatar a cada regresso que está tudo igual, que nada mudou, e sentir na boca e na alma o amargo do motivo pelo qual me fui embora?

Aveleda, concelho de Chaves, Março 2013 .jpgAveleda, concelho de Chaves, Março 2013 - Fotografia de Sandra Pereira

Porque prefiro ver outros mundos? Porque insisto em ver outros sóis e céus que, por mais que brilhem de novidade e excitação, nunca me preenchem como o Sol e o céu da minha terra? Porque me doí voltar? Porque me doí voltar a ver de onde venho e onde vivi os anos mais importantes da minha vida, que determinaram todo o meu percurso de vida e me fazem ser a pessoa que sou hoje? Porque renuncio voltar a um lugar onde sempre e tanto sou acarinhada por tudo e todos, onde sou Eu, onde sei que nada de mau me pode acontecer? "Que estranha forma de vida tem este meu coração...", cantaria a nossa querida Amália, que tão bem sentiu (e sente) a alma do português.

 

Este Verão, eu não vou a Portugal. Por decisão própria. Nada me impede de ir. Se o amo tanto, porque não vou?

 

Será a distância a fazer das suas? A atirar para o bem fundo da minha memória a recordação do mais belo e puro que há dentro de mim? A querer enganar-me com a imensidão e diversidade do mundo e das gentes?

S. Vicente da Raia, concelho de Chaves, Março 201

 S.Vicente da Raia, Concelho de Chaves, Março de 2013 - Fotografia de Sandra Pereira

Este ano, eu vou a Portugal. Não me passaria pela cabeça não voltar. Como posso revoltar-me e negar algo que eu amo tanto?

 

Talvez eu precise de voltar na altura em que a minha terra e as minhas gentes estão mais sós e mais tristes, a precisar da minha presença, do meu carinho, de saber que eu não os esqueço nunca e que eles estão no meu coração.

 

Talvez eu me sinta mais transmontana nas noites frias de Inverno. Talvez eu precise das lareiras e das geadas, talvez eu precise de avivar o fogo na vida e coração das gentes que aguentam o isolamento, a solidão e o tédio do Inverno do meu Trás-os-Montes.

Segirei, concelho de Chaves, Março 2013_2.jpg

Segirei, Concelho de Chaves, Março de 2013 - Fotografia de Sandra Pereira

Talvez eu saiba que a melhor maneira de valorizar o trabalho das minhas gentes é estar lá na altura de provar o vinho e as batatas novas, de encertar o porco, de comer as filhoses e o Folar na altura certa. E confirmar a minha certeza de que a minha gente sempre canta e baila para agradecer o que a terra e a mãe natureza (ou seja a vida) lhe dá. Canta e baila para celebrar a jeropiga e as castanhas de S. Martinho em Novembro, canta e baila para celebrar o porco em Janeiro, canta e baila para o Natal, para o Folar da Páscoa...

 

Talvez eu tenha entendido o sentir do nosso Pessoa que nunca deixa de nos acompanhar ao longo da vida: "Um português nunca foi apenas um português: foi sempre tudo".

Sandra Pereira

 

 

04
Set14

Discursos (emigrantes) Sobre a Cidade


 

Ode à esplanada

 

Onde há sol e gente, há esplanadas. Onde há esplanadas, há também copos e garfos para se desfrutar dos prazeres da vida. É aí que o mundo se parece mais a um lenço, que tanto se desdobra para outros horizontes, como se amarrota dentro da mão.

 

Em Barcelona, e nas grandes e apertadas cidades, o encanto do “terraço” é mesmo a ousadia com que se aproxima do céu, oferecendo um pouco do que se avista lá de cima da condição humana. Do “terraço”, vêem-se muitos prédios “gaiola”, parabólicas e caos, mas também monumentos deslumbrantes, luz e muitas vezes a serenidade do mar...

 

Em Chaves, e nas pequenas e airosas cidades, os “terraços” estão de pés assentes na terra, e a atenção concentra-se no prato, pois se é verdade que os olhos também comem, mais verdade é que o estômago é que realmente enche de satisfação.

 

O prato em cima da mesa do “terraço” da grande Barcelona estará recheado de uma carne de origem desconhecida, comprada em promoção num hipermercado. Terá ainda tomates comprados em frutarias habituadas a vender em larga escala, aos quais se retiraram as etiquetas que ostentam nomes tão pomposos como artificiais, como tomates  “Marlene”. Terá, por isso, sabores pouco pronunciados, culpa de pesticidas ou outra presença alheia, mas já ninguém notará a diferença nem se questionará ao que realmente sabe um tomate. Terá receitas pouco trabalhadas, oriundas da era em que “não há tempo para nada” e em que existem soluções “num minuto” e “basta juntar” para ir “mais rápido” e “facilitar a vida”.

 

Barcelona, Agosto 2014 - Fotografia de Sandra Pereira

 

O prato em cima da mesa da “esplanada” da pequena Chaves estará certamente recheado de produtos que dão saúde. Terá carne de origem caseira ou da região, de animal com bom repasto desde a nascença. Terá ainda tomates cultivados em horta própria ou na do vizinho, de aspecto mais coitado, mas sem etiquetas e com o seu próprio sabor. Terá ainda receitas transmitidas de geração em geração que o paladar reclama quando não as saboreia há demasiado tempo, como se a sua sobrevivência dependesse delas.

 

É assim que o mundo de um emigrante transmontano se renova a cada Setembro, após ter feito um breve e satisfeito regresso aos sabores genuínos na esplanada da terrinha e na da família e amigos de sempre. Bem longe do “fogo de vista” dos “terraços”, deixou-se estar demoradamente vegetar na esplanada, pois, na nossa terra, não faltam montes para se aproximar do céu e, também, ver lá de cima a condição humana que povoa a veiga flaviense.

 

Sandra Pereira

 

 

P. S.: Embora tendo acompanhado os eventos à distância, pelos relatos dos media e testemunhos ouvidos, Chaves – com a segunda edição da Festa dos Povos Romanos a ganhar destaque e êxito graças a uma temática perfeitamente ajustada à sua história e património – e Boticas – com o FestInvale (Festival da Juventude) a pôr em palco bandas actuais e de renome no panorama musical português como Diabo na Cruz e Throes+The Shine – estão de parabéns. A qualidade na organização dos eventos é factor decisivo para o sucesso das mesmas e para o dinamismo que conferem às suas terras, podendo, seguramente, motivar a visita (cada vez mais espaçada) dos seus “filhos” espalhados por esse país e mundo fora.

 

 

03
Jul14

Discursos (emigrantes) Sobre a Cidade


 

A cidade da Liberdade

 

- Disse ao meu pai que era homosexual quando tinha 18 anos. Era noite de passagem de ano, foi-me buscar à discoteca e eu estava bêbado...

 

- Bem, é caso para dizer... Feliz ano gay!!!

 

Esta típica conversa de café aconteceu realmente em Barcelona e voltaria a ser ouvida em qualquer outro local da mesma cidade. Sejam bem-vindos a uma cidade que acolhe todas as escolhas e estilos de vida sem preconceitos nem restrições.

 

 Desfile "Orgulho Gay" Barcelona - Fotografia de Sandra Pereira

 

Nesta cidade da Liberdade, encontra-se gente que já viajou por meio mundo, teve mil e um empregos nada relacionados uns com os outros, “casou” e “descasou” mil e uma vezes, seguiu a sua diferença e forma de (vi)ver a vida, concretizou os desejos mais íntimos outrora inconfessáveis, e vai perseguindo o ideal da juventude eterna... . Sejam bem-vindos a uma cidade que acolhe todas as histórias de vida possíveis e inimagináveis, aqui em Barcelona, logo a seguir ao primeiro “hola!”.

 

A cidade da Liberdade é também a da perdição, pois, como se diz pelas nossas terras, quando a escolha é muita, pouco ou nada se acerta. E aqui, é preciso ser muito tenaz para perseguir/atingir objectivos e não se deixar cair em tentações... Mas elas aí estão, na cidade da Liberdade, e eles aí estão, “os locos” de Barcelona, sem lei nem rei...

 

 

 Desfile "Orgulho Gay" Barcelona - Fotografia de Sandra Pereira

 

Viver na cidade da Liberdade é também aceitar a mudança constante, pois ser livre é poder mudar de ideias e rumos a cada momento, sem estar sujeito a ditaduras sociais. E se a cidade é ponto de encontro entre várias nacionalidades, tem sol e praia que convidam à rua e fervilha de eventos socio-culturais todo o ano, a estabilidade nas relações humanas procura-se e encontra-se, mas é mais difícil. Nada nem ninguém é para sempre, pois tudo se renova constantemente – gente, ideias, escolhas, lugares.

 

A cidade da Liberdade é saborosa, mas deixa muitas vezes um amargo na boca.  Traz à nossa lembrança a gente de todos os dias que se encontra na nossa pequena cidade, onde, apesar da “mesmice” de sempre e dos “julgamentos comunitários” das excepções/transgressões à regra, há constância nas relações humanas. Este é o porto seguro, o refúgio sentimental que qualquer ser humano necessita. Na nossa terra transmontana, os laços criam-se com sinceridade e alimentam-se com entrega. E quando entrelaçados, não se desfazem de um dia para o outro, estão ali para o que der e vier, até porque “o respeitinho é muito bonito”. Na nossa pequena cidade, o mundo parece mais bonito, pois que é feito da liberdade sem amor?

 

Sandra Pereira

 

 

03
Abr14

Discursos (emigrantes) Sobre a Cidade


 

Uma Páscoa sem folar

 

- De que mais sentes falta da tua terra?

 

Pergunta difícil de responder assim à primeira, sem pensar muito no assunto, pensa a Maria, o João, o António e a Rita, jovens amigos transmontanos e agora separados pela emigração nos quatro cantos do mundo. Estão bem, não estão? Pois não há que dramatizar, e respondem:

 

- Faltará um pedaço ao emigrante no dia em que houver um Natal sem bacalhau ou uma Páscoa sem folar!

 

Felizmente, pensam eles, tais saudades serão sempre "mortas" pois, mesmo que a madrinha ande a contar tostões para acabar o fim do mês coitada, resta sempre uma mãe e um pai ou uma avó que acende um forno de lenha para mandar umas iguarias.

 

Até que um dia se dão conta que a avó já não acende o forno de lenha, pois já não tem idade para tantos trabalhos, e para quê com tantas feiras de folares e fumeiro, ainda por cima com o sabor caseirinho e característico que bem lhe conhecemos? Nada de preocupações então, pensam eles, a tradição ainda é o que era e é para manter. O folar, o fumeiro e mesmo o bacalhau hão-de chegar à boca da juventude que está à quilómetros de Portugal.

 

Até que um dia, como todos nós, a Maria, o João, o António e a Rita são apanhados pelo tempo que corre. Esse malvado enterrado nas nossas costas como uma erva daninha, apesar das flores continuarem a desabrochar em cada uma das nossas primaveras e das gaivotas sobrevoarem à nossa volta atirando para longe as nossas expectativas e liberdades. Pois este ano, dá-se conta a Maria, sim este ano, será uma Páscoa sem folar.

 

Fotografia de Sandra Pereira

 

- Então e a mãezinha e o paizinho?

 

É verdade... Chegou o dia em que também eles voltaram a pegar nas malas, que pelo menos, desta vez, já não são de cartão. Sim, pensa o João, desta vez já não precisam de "ir a salto", podem levar o carro ou pelo menos o conforto de uma conta bancária mais ou menos recheada para os primeiros tempos. Depois de décadas douradas no seu país e na sua querida terra, em que compraram a própria casa e até mandaram o António para a universidade ser "Doutor", lhe pagaram as primeiras rendas da emigração e o foram visitar nas férias, pensariam eles repetir o violento desconforto da emigração, já passados os 50 anos de idade? E os "velhotes"? Alguma vez a avó que já não acende o forno pensaria, depois de todos os netos, ver também os filhos seguirem-lhe outra vez os passos e abandoná-la ao país no qual quis acreditar e deu a oportunidade do regresso, e que, afinal, acaba por deixá-la de novo mal remediada e só na idade em que mais precisaria de ver os seus sacrifícios de outrora recompensados pelos seus?

 

E à pergunta - De que mais sentes falta da tua terra? -, a Rita responde cada vez mais baixinho. Na verdade, a Rita não sabe que país vai ser este. A Rita não sabe o que lhe vai sobreviver e restar de nosso. E mesmo que a Maria, o João e o António hoje animem os pais à aventura e ainda acreditem na velhice dentro das suas origens, a Rita só sabe que dificilmente se deixará cair de novo na ilusão do regresso e que este ano, sim este ano, será uma Páscoa sem folar.

 

Sandra Pereira

 

05
Dez13

Discursos (emigrantes) Sobre a Cidade


 

Flores de Bach

 

O que o inquietaria mais? Estar encurralado no meio de uma multidão ou estar aprisionado no meio de um vazio de gente? De que situação fugiria em primeiro?


Certamente pensaria, em primeiro, na maldade das pessoas. Na gente que o empurra sem dó nem piedade nos transportes públicos, na gente que o olha com desdém, desconfiança ou inveja na rua, na gente que perde paciência e modos no trato humano em locais públicos. Na gente que lhe vira a cara e que o ignora, como se também fosse parte do mobiliário urbano fora de contexto a adornar as avenidas. Sim, certamente quereria fugir da inquietação da cidade.


Certamente pensaria, em segundo, na solidão das pessoas. Na gente que não tem que lhe aqueça um prato de sopa quando adoece no inverno, na gente que não tem quem lhe acuda na hora de levantar um trapo caído no chão quando envelhece. Na gente que não tem quem lhe estenda um lenço para lhe enxugar as lágrimas, e na gente que fala para os animais, para as paredes, para o céu ou para os seus próprios ouvidos. Sim, certamente quereria fugir da inquietação da aldeia.


Certamente pensaria, em terceiro, na loucura das pessoas. Na gente que inventa "modernas" terapias para: rir em conjunto; entrar em contacto físico com os outros sem "intenções"; amar o próximo sem egoísmo ou violência; não matar para alimentar-se; ouvir o silêncio; reservar o tempo para ouvir-se a si próprio; reservar o espaço para dançar e libertar a revolta com os movimentos do corpo para, por fim, "livrar-se do mal"...


... caso isso não bastasse ou não chegasse até si, ouviria ainda falar das "Flores de Bach", uma terapia floral cujas gotas tomadas cada manhã ao pequeno-almoço serviriam para gerir desequilíbrios emocionais tais como o medo, a impaciência, a angústia, a incerteza, a raiva, a confusão, a intolerância, a timidez... Exatamente a terapia que precisaria para suportar de forma rápida e eficaz a inquietação da cidade! Bendito seja o médico inglês Edward Bach que pensou na hipótese de as doenças serem consequência de "transtornos emocionais e mentais da personalidade derivados de um conflito alma-personalidade"! E tudo isto posto em frascos de plástico e vendido a preço de saldo!



Solidão, Barcelona, Maio 2013 - Foto de Sandra Pereira

Não. Definitivamente, não quereria nem sequer pensar na inquietação da grande cidade...


Certamente pensaria, em quarto, na tristeza das pessoas. Na gente da nossa terra flaviense, que à pergunta do costume "e então como corre a vida?", responde "a vida aqui em Portugal está de mal a pior. Ainda não arranjei trabalho... nem no McDonald’s, vê lá tu! Aqui continua tudo na mesma...


Tem ido muita gente para o estrangeiro e a cidade está mais parada do que nunca"...


... caso isso não bastasse ou não chegasse até si, ouviria ainda falar das "Flores do Jardim Público", uma terapia floral cujas gotas do "tempo que passa" acabaram com as verbenas, as cantigas à desgarrada, o gosto pelo "pé de dança" da juventude, os pedidos de namoro - tímidos e receosos - ao luar, a quietude de uma tarde de domingo saboreada lentamente na cidade de Chaves ou numa vila transmontana... Um tempo onde o aroma destas flores bastava para resolver o "conflito alma-personalidade". Um jardim ainda de todos, mas hoje já sem gente para cuidar das flores. Um jardim tristemente só, muitas vezes despedaçado pelo vandalismo ou pelo alcoolismo, que já nem o regresso dos emigrantes - cada vez mais espaçado - consegue reavivar.


Não. Definitivamente, nem quereria sequer pensar na inquietação das nossas aldeias...

 

Sandra Pereira


07
Nov13

Discursos (emigrantes) Sobre a Cidade


 

Mundos e Mundinhos

 

Há mundos e mundinhos.


Quem está num mundinho, está bem e deixa-se estar. Quando descobre um mundo, é um choque.


No mundo, a diversidade estala-nos na cara. São cores, cheiros, situações, diferenças, bizarias, desencaixes, anormalias, anormalidades, e às vezes incómodos, a surgirem ao virar de uma esquina. É tanto, mas tanto, que tudo tem de mudar à velocidade que o próprio mundo  (o físico) gira, e nada pode nem consegue permanecer. É como um carrossel que estonteia as mentes e as espicaça de ideias e vontades, que nem sempre chegam a ser cumpridas. Pará-lo é impossível; readaptar-se cada dia é condição para sobreviver nesse mundo, enlouquecido pela própria existência.


No mundo, a desigualdade estala-nos também na cara. À partida, a sorte é aleatória, depois cada um constroí a sua, mas é bom lembrar (vezes e mais vezes) que nem todos partem com as mesmas armas... injustiça. Quem a criou se somos todos homens iguais?


Quando se descobre um mundo é assim, um choque.



A diversidade estala-nos na cara (Barcelona) - Fotografia de Sandra Pereira

Já no mundinho, a familiaridade estala-nos na cara. A profundidade das relações humanas atinge-nos directamente o coração, acarinhado todos os dias. No mundinho, ele é rei que manda e pode, tem tudo à mão.


No mundinho, a uniformidade estala-nos também na cara. Reina a pacata convencionalidade, que não tolera grandes mudanças. Toda a gente conhece o mesmo, ninguém se perde. Ninguém precisa de ajustar nada, está tudo conforme. É como um baloiço, que quando dá um embalo em frente, logo volta para trás. Tem velocidade limitada, e respeitá-la é a única condição para sobreviver no mundinho.


Muitos que habitam o mundinho sentem um dia a necessidade de sair para o mundo. Até que um dia, o coração exige voltar ao trono, mas a maioria não conta nada sobre o mundo. Regressam com a diversidade num mundinho onde só cabe a uniformidade e são incompreendidos. São os "maluquinhos"! Reconhece-os? Então remetem-se ao silêncio e o mundinho não chega a provar um pedacinho do mundo.


O mundo, por sua vez, também pouco prova do mundinho, pois o carrossel raramente pára para deixar entrar a familiaridade.



A desigualdade estala-nos na cara (Barcelona) - Fotografia de Sandra Pereira

Há mundos e mundinhos. E estes, até prova do contrário, não se juntam.


No mundinho de Chaves e da região transmontana, diz-se que "quando a fome se junta à vontade de comer", as coisas acontecem. E os flavienses recebem com gosto e curiosidade quem vem do mundo. Só falta mesmo prestar-lhes mais atenção e tirar partido deles, em vez de menorizar o diferente e o que é de fora, teimando continuar a andar pacatamente de baloiço quando se tem a sorte de poder experimentar a adrenalina do carrossel.


Preservando o melhor do nosso mundinho, acabe-se com a fome de (re)pensar e junte-se-a à vontade de (re)adaptar-se cada dia, e as coisas acontecem num "reino maravilhoso" onde ainda há muito por acontecer. Pois se um mundinho tiver um pedacinho de mundo dentro de si, não será bom sítio para o coração reinar?

 

Sandra Pereira



03
Out13

Discursos (emigrantes) Sobre a Cidade


 

Domingo de manhã

 

É Domingo de manhã. Chuva miudinha, tudo está pintado de cinza em Barcelona. Munidos de guarda-chuvas, casacos impermeáveis e muitas bandeiras, cores amarelo, vermelho, azul, dezenas de pessoas "correm" pela independência. É um domingo como os outros, chove, mas os tambores ressoam.


É feriado de 11 de Setembro. Chuva miudinha, tudo está pintado de cinza em Barcelona. Munidos de guarda-chuvas, casacos impermeáveis e muitas bandeiras, cores amarelo, vermelho, azul, milhares de pessoas formam uma cadeia humana de 400 quilómetros que percorre 42 municípios de uma região - a Via Catalana -  pela independência. É um feriado como os outros, chove, mas os tambores ressoam.



Foto de Sandra Pereira

É Domingo de tarde. O sol ilumina as paredes que adornam as "calles" dos "pueblos" catalãs. Os guarda-chuvas, os casacos impermeáveis e as bandeiras, cores amarelo, vermelho, azul, descansam nas varandas. Ao virar a esquina, uma parede pede para "evoluir". É um domingo como os outros, não chove, mas a ousadia de um catalão ressoa.


É Domingo de manhã. Não há paredes ousadas, mas há cartazes laranjas, rosas, azuis e vermelhos espalhados pelas ruas das cidades portuguesas. Munidos de pouca vontade, muita desilusão e sem flores na lapela, são cada vez menos os que se expressam a cada eleição, faça chuva ou faça sol, são cada vez menos os que se expressam, seja domingo ou feriado. É um domingo como os outros em Chaves, no Barroso, em Trás-os-Montes, como em todo Portugal, mas é preciso pedir por favor para expressar uma opinião, uma vontade, um direito, uma liberdade.



Foto de Sandra Pereira

É Domingo de tarde. E o povo sabe que nada mudou, nem nada mudará. A independência é um sonho do qual os catalãs teimam não querer acordar. A liberdade de exprimir-se é uma realidade da qual os portugueses deveriam teimar nunca adormecer. É um domingo como os outros, os catalãs sonham, os transmontanos encolhem os ombros, e lá vão... Venha o sonho ou a realidade? Como se diz "lá em cima", "venha o diabo e escolha"...

 

A "estória" do mês: "La cosa cambia en Portugal"

 

Na viagem matinal para o emprego pelos transportes públicos urbanos de Barcelona, um sugestivo título de um artigo publicado num diário gratuito - o 20 Minutos - vem quebrar a habitual monotonia: "Enemigos del vello". Nele, pergunta-se às mulheres espanholas se acham bem que as mulheres não se depilem. A maioria mostrou-se contra, justicando ser "mau, feio e anti-higiénico" que uma mulher ande na rua a exibir a pelugem. Nada haveria a destacar, muito menos a (re)contar, não fosse outro texto a acompanhar o principal com o sugestivo título... "La cosa cambia en Portugal"...


Ai sim??? Vejamos. Segundo a professora de Dermatologia da Faculdade de Medicina de Granada, "la doctora Guitérrez Salmerón", isto é mais "una cuestión de modas". E continuo a citar: "aqui, desde tiempos remotos, prefieren no tener vello. Pero en otros lugares, como en Portugal, el vello es un adorno y presumem de ello". Mais: "Tal es la diferencia con nuestro pais vecino que, cuenta la doctora, cuando un colega suyo ofreció a un amigo portugués hacerle le depilación láser gratis a su hija, este se ofendió".



Foto de Sandra Pereira

Logo, várias perguntas me saltam à mente: até que ponto podem os estereótipos afectar injustamente a imagem de uma nacionalidade? Até que ponto são os meios de comunicação social responsáveis/culpados de perpetuar estereótipos que se desatualizam com o tempo? Até que ponto somos mesmo "hermanos"? Até que ponto os espanhoís e os portugueses continuam a adorar lançar "veneno" hipócrita uns contra os outros? Até que ponto o nosso passado histórico influencia a nossa relação atual? Até que ponto a doctora Guitérrez Salmerón existe mesmo? Até que ponto um jornalista (ou alguém sensato) acredita que "la cosa cambia en Portugal" em termos de padrões ocidentais de estética e que as portuguesas adoram o pêlo "mau, feio e anti-higiénico"?


Pois deixo as respostas à vossa avaliação, caros leitores. Quanto à minha, sorte teve o colega da doctora Guitérrez Salmerón não me oferecer a depilação laser gratis, pois ficaria com o bolso bem mais... "depilado".

 

Sandra Pereira



05
Set13

Discursos (emigrantes) Sobre a Cidade


 

 

O Palhaço

 

Chega sorrateiro, colorido e com sorriso amigo, atraído pela sombra de uma árvore num parque público onde já há balões, risos e guitarradas. Apresenta-se aos presentes com uma piada em vez do nome. Risos. Sai-se com duas carretas atrevidas. Mais risos. Enche mais balões para somar aos que já existem. Cada vez mais gente à sua volta. Pede também um "copito", sem cerimónias. Já faz definitivamente parte da festa.


Risos e mais risos. Uma personagem, este palhaço! Um "infiltrado" que não foi convidado para a festa, mas anima-a, sem pedir troco...


Em terra alheia, ninguém se detém no sotaque de quem não fala a sua própria língua, na forma como cada um pronuncia a palavra à sua maneira, denunciando de onde vem. Mas o deste palhaço é inconfundível, único, tremendamente acusador. É o "tuga".


"Sou do Porto. Fiz muita coisa, estava farto do meu emprego, era mal pago, e vim para aqui, tentar a sorte..."


Não se ganha a vida a despertar risos na rua, mas que admirável o mundo deste artista!


Depois do "copito", um cigarro "cravado" e mais alguns devaneios cómicos, a "personagem", que gravou um bonito instantâneo no coração de um grupo de amigos, segue o seu percurso, buscando animar outras gentes, que talvez escondam pelo meio uma pessoa que, ao ouvir uma palavra estrangeira lhe soar inesperadamente familiar, grite de emoção e saudade: "É um tuga, só podia!"

 

 

Parc de la Ciutadella (Barcelona), Verão 2013. Foto de Darryl Eisden.


O Pedinte

 

Entra discreto, anónimo, cinzento, e de olhar cabisbaixo. Só não tem o olhar triste porque, no final da trela que segura, tem por companhia fiel uma ternura de cão. Enfrenta o olhar das pessoas que se preparam para iniciar mais uma jornada de trabalho e começa a entoar baixinho uma ladainha famigerada. A firmeza do rosto confirma que está preparado para enfrentar também o desprezo e a pena. Cada vez mais olhares se cravam nele. Já faz definitivamente parte da estação de metro.


Olhares e mais olhares. Uma personagem, este pedinte! Um "infiltrado" que não foi convidado a entrar na carruagem, muito menos a quebrar o silêncio do anonimato egoísta que se cheira nos transportes colectivos das grandes cidades, mas aí está ele, sereno, paz no rosto e delicado nos gestos, ansiando por um "troco" cravado...


Em terra alheia, ninguém se detém no sotaque de quem não fala a sua própria língua, na forma como cada um pronuncia a palavra à sua maneira, denunciando de onde vem. Mas o deste pedinte é inconfundível, único, tremendamente acusador. É o "tuga".


"Sou do Porto. Há três anos que trabalho e paro, trabalho e paro... Agora as ajudas do Estado acabaram, e não me adianta regressar a Portugal, que lá também nada se arranja... Vim para aqui, tentar a sorte..."


Não se ganha a vida colmatando o desespero com compaixão na rua, mas que admirável o mundo deste pedinte!


Depois da recolha da esmola, a "personagem", que gravou uma breve emoção no coração dos mais altruístas, segue o seu percurso, buscando comover outras gentes, que talvez escondam pelo meio uma pessoa que, ao ouvir uma palavra estrangeira lhe soar inesperadamente familiar, grite de emoção e saudade: "É um tuga, só podia!"

 

O "Tuga"

 

Dois retratos "tugas" com duas histórias verídicas ocorridas na emigração. Tristes, ou alegres, diferentes, ou comuns a tanta gente, mas ambas demonstrativas do inconfundível e único "ser português lá fora". É o "tuga".


Na aventura, o "tuga" é um optimista totalmente incurável, e dotado de uma inexplicável ligação telepética aos outros compatriotas "tugas". Disto fala Miguel Torga no seu "Reino Maravilhoso" (e fazendo juz à minha costela transmontana e flaviense): é "... o puro dom de se olhar um estranho como se ele fosse um irmão bem-vindo, embora o preço da desilusão seja às vezes uma facada."


Na aventura, o "tuga" é animalesco. Adapta-se com admirável e reconhecida destreza social à "vida capitalista selvagem", tal como outrora ao campo e à "vida dura". É disto que sentimos sempre saudade nas nossas gentes, cujos melhores exemplos estão nas famílias e amigos que deixamos na nossa terra. As "personagens" que são unicamente "portugueses cá dentro". É por isto que, quando está expatriado, o coração grita de emoção ao ouvir uma palavra estrangeira soar inesperadamente familiar. E quanto mais o sotaque é parecido ao nosso, mais ele grita de saudade...


Nesta aventura da nova emigração "tuga", na moldura não cabem apenas os qualificados "à rasca". Há também os desqualificados, os marginalizados, os desaventurados, os que procuram um lugar e um mundo, longe da pátria. Em Espanha, diz-se que são "muy listos". São os "tugas", só podia.

 

Sandra Pereira

 

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