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O Rio de Torga
Texto de António de Souza e Silva
Prometi ao meu caro amigo Fernando DC Ribeiro que, quando pudesse, dava uma «bicada» nesta rubrica.
Pois hoje passo a cumprir a minha promessa.
E queria trazer aqui à partilha dos nossos (as) leitores (as) um texto, que considero muito interessante, de Inácio nuno Pignatelli, constante do seu livro “O Douro Português – Coisas que o Douro me contou”.
Estão, com certeza, já familiarizados com esta minha «doença» que tenho pelo Douro, parte integrante do Reino Maravilhoso de que tanto fala o nosso poeta maior – Torga.
Pena que as vicissitudes da nossa política caseira tenham inviabilizado a criação de regiões em Portugal!
Teríamos saído todos duplamente ricos.
Em primeiro lugar, estaria criada uma fase, preliminar que fosse, para uma verdadeira reestruturação e organização do território nacional, em ordem a um efetivo e solidário desenvolvimento do todo nacional; em segundo lugar, porque se criaria condições para virem ao de cima a enorme diversidade cultural e geográfica portuguesa e, com ela, sairíamos mais ricos sob o ponto de vista cultural, mais fortes, mais reforçados.
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Veja-se o que acontece em Espanha, em particular na nossa vizinha Galiza. Dá gosto ver o orgulho daquelas gentes pela sua terra e respetivas tradições!
Para mim, sob a capa de verdadeiros patriotas, defensores de uma pseudo unidade nacional, outra coisa não se esconde senão verdadeiros abutres que comem à sombra e à custa de um orçamento, pago por todos nós, e que nos comandam, em todos os ínfimos aspetos da nossa vida coletiva, a partir do Terreiro do Paço. Calando a nossa diversidade. Diversidade essa que deveria fazer de nós orgulhosos e grandes, maiores!
E, com este arrazoado, vem-me à lembrança Torga que, nas palavras de Inacio Pignatelli, toda a vida porfiou na procura das nossas mais profundas raízes, no descrever dos traços que nos são próprios e singulares, na busca e defesa da nossa identidade. Particularmente das regiões, transmontana e duriense, e do Douro de uma e outra margem, zonas que se apegam e combinam, como refere nesta passagem do livro Portugal:
“A autoridade emana da força interior que cada qual traz do berço. Dum berço que, oficialmente, vai de Vila Real a Montalegre, de Montalegre a Chaves, de Chaves a Vinhais, de Vinhais a Bragança, de Bragança a Miranda, de Miranda a Freixo, de Freixo a Barca de Alba, de Barca de Alba à Régua e da Régua novamente a Vila Real, mas a que pertence Foz Côa, Meda, Moimenta e Lamego – toda a vertente esquerda do Doiro até aos contrafortes de Montemuro (e sublinho agora esta frase) carne administrativamente enxertada em corpo alheio que através do Côa, do Távora, do Varosa e do Balsemão desagua na grande veia-cava materna as lágrimas do exílio”.
Terra Quente, apegada e intimamente ligada à Terra Fria.
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Mas a passagem que em Torga mais me emociona, no mesmo capítulo do livro Portugal, capítulo a que lhe chama “Um Reino Maravilhoso” (Trás-os-Montes), é quando alude ao Douro e à generosidade da terra:
“Nas margens de um rio de oiro, crucificado entre o calor do céu que de cima o bebe e a sede do leito que de baixo o seca, erguem-se muros do milagre. Em íngremes socalcos, varandins que nenhum palácio aveza, crescem as cepas como os manjericos às janelas. No Setembro, os homens deixam as eiras da Terra Fria e descem, em rogas, a escadaria do lagar do xisto. Cantam, dançam, trabalham. Depois sobem. E daí a pouco há sol engarrafado a embeber os quatro cantos do mundo… A terra é pródiga em generosidade natural. Como um paraíso basta estender a mão. Produz batata, azeite, cortiça e linho. De figos, nozes, amêndoas, maças, peras, cerejas e laranjas nem vale a pena falar.”
É que o Reino Maravilhoso – Trás-os-Montes -, nas palavras de Pignatelli, que concordo plenamente, está intimamente ligado ao Douro, ao Doiro a que Miguel Torga dedica uma rubrica particular no mesmo livro Portugal e onde surge aquela célebre frase:
“Douro, rio e região, é certamente a realidade mais séria que temos”.
Esta frase coloca-nos a seguinte interrogação: “Rio e região”. Mas que região? Que região abarcará o Douro?
Pensamos que para Miguel Torga que o Reino Maravilhoso é toda a extensa manta duriense que se estende pelas duas margens do rio. Certamente que, para Torga, essa seria toda a verdadeira e extensa região que o rio une, que lhe pertence e que a ele está intimamente associada, ou seja, toda a região que o Douro (e a sua bacia) abarca, integrada em território português.
Na relação entre Miguel Torga e o Douro houve algo de semelhante como com os celtas em relação às fontes e aos cursos de água. Qualquer coisa, nas palavras de Pignatelli, como um culto interior, um misto de espanto, respeito, admiração e adoração. Porquanto o escritor considera o Douro como uma espécie de divindade natural e telúrica, distribuidora de fertilidade às terras e às gentes das povoações ribeirinhas e dos montes entre os quais traça o seu curso.
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Torga, embora fosse grande andarilho e conhecedor de muitos outros lugares e zonas do país, era na extensa manta duriense que encontrava as mais profundas raízes do povo português. No Douro pleno de grandiosidade natural e humana. Da arquitetura grande e do grande significado que, para ele, tinha:
“No Portugal telúrico e fluvial não existe outro drama assim, feito de carne e sangue”.
E, ainda, como relata Inacio Pignatelli, foi nesse sentido que aconselhou e se exprimiu nestes termos à professora Luciana Stegagno Picchio:
“O Douro sim, a Luciana tem de ver o Douro, se quiser conhecer Portugal, o Portugal autêntico, mítico, secreto, as raízes. Porque o Douro é um rio macho…”.
Na verdade, o Douro é um rio macho, um rio viril, em permanente casamento com as serras e as margens, fecundando-as, prendando-as de beleza, mas sem lhes admitir discordâncias ou entraves no seu curso, mesmo que hoje em dia mais domado por via das barragens contruídas ao longo do seu percurso, avançando, decidido, em direção ao mar.
Envolve e une uma imensidade de gentes, terras e montes. E, quer pela enorme extensão da região que compreende, quer pelo ciclópico trabalho, pleno de caráter e tenacidade que os homens fizeram e continuam a fazer nas suas margens, tornou-se uma realidade incomensurável (Inacio Nuno Pignatelli).
João de Araújo Correia, um outro ilustre escritor, aludiu a essa incomensurabilidade, a essa impossibilidade de medir o rio e a região duriense nestes termos:
“Tem montes que não deixam de crescer,
Videiras que ninguém pode contar,
Oliveiras que vivem a rezar
E um rio que não para de correr”.
António de Souza e Silva