Dez Andamentos
Da Solidão em Solilóquio
Da Solidão em Solilóquio
Ignorando o folheto que me pende das mãos, perde-se o meu olhar na memória das tonalidades que já envernizaram estas minhas unhas, irmanando pés e mãos ou denunciando as subtis dissonâncias públicas e privadas da minha existência.
Uma existência ainda hoje feita de outras existências passadas, onde os solilóquios fingiam ser altruístas diálogos disfarçando intermináveis monólogos autistas, sempre diluídos naqueles fascinantes brilhos esmaltados que escondem a obsidiana natureza estriada e translúcida das unhas.
Não sei porque fazes isto, Eduardo, mas até a claridade zenital deste quarto insiste nessa arte da dissimulação, encenando uma luminosidade que acompanha a nudez do meu corpo e atenua o facto de o meu rosto e o meu tronco permanecerem melancolicamente na sombra.
De onde queres que venha esta minha prostrada e desanimada melancolia? Das saudades de um entusiasmante passado, mais sedutor do que este monótono presente solitário? De uma persistente insatisfação que apenas terminará quando eu terminar?
Destas dúvidas emana uma única certeza – esta minha melancolia traduz saudades, sim, mas saudades de uma inebriante ideia de futuro que jamais se concretizará…
Um futuro materializado nesta bagagem fechada que me acompanha. Quando a abrir, todo o seu mistério se desvanecerá e poderei comprovar que, afinal, o seu fecho e a sua abertura em nada contribuíram para transmutar o seu conteúdo.
Como numa paradoxal metáfora, tudo o que dali sair será exactamente igual, embora este presente seja o futuro do passado e eu já não seja a mesma pessoa que ontem fui, nem esta minha solidão seja a mesma que ontem foi.
E este inquieto saltitar, Eduardo, este inquieto saltitar que tu insistes em gerar no nosso interior, fazendo-o contrastar com a aparente imutabilidade dos cenários onde nos colocas, mais parece justificar que as tuas mãos sejam tesouras, fazendo recortes e criando colagens, e não as extremidades com que manejas estas serenas pinceladas que inquietam a nossa existência.
Sim, não me enganas, Eduardo. Imagino a tua deliciada satisfação quando concluis uma destas telas, sabendo que nela poderás inscrever então, uma vez mais, o apelido Hopper, com toda a ironia que essa assinatura traz ao cenário e às personagens de cada uma das tuas obras.
Edward Hopper (1882-1967)
Hotel Room (1931)