Discursos Sobre a Cidade - Por Gil Santos
RETRATO RASGADO
Anacleto Brilhantina era filho da crujidade.
Sua progenitora, Raimunda, era mãe solteira. Uma cabaneira pobre que nos Aregos sobrevivia de favores. Pagava com o corpo o pão que manjava. Anacleto foi o fruto desta necessidade.
O rapaz cresceu pobrezinho mas limpo. O pouco que houvesse na masseira da cozinha era para o menino. A pobre mãe nunca deixou que lhe faltasse o pão para a ceia. Umas vezes roto, outras remendado, vivia quase só de arroz, de massa e de caldo. Carne, quase sempre gorda e rançosa, só a avezava ao domingo e ralas vezes!
Apesar destas e de muitas outras dificuldades, medrou escorreito e aos sete anos foi para a escola. Aprendia tão bem como a abelha a topar as flores de melhor néctar. Era um prodigioso aluno. Com apenas um caco de lousa e um ponteiro fanado, fazia contas de dividir como comboios e quando lhe aplicava a prova dos nove davam sempre certo. Nos ditados raramente dava erros e lia como o padre lê na missa. O mais das vezes papagueava de cor as lições do seu livro de leituras da 3ª, como por exemplo Vozes dos animais:
Palram pega e papagaio
E cacareja a galinha,
Os ternos pombos arrulham,
Geme a rola inocentinha
(…)
Era um prodígio que fazia ver aos demais. Claro está que muitas e muitas vezes teve de vencer a cruel discriminação de seus pares, por não ter pai, andar remendado nos fundilhos, usar botas de boca aberta e comer pão seco à merenda. Mas que lhe importava isso se a professora Carminda o compensava com mimos na sala de aula e a mãe em casa? As visitas esporádicas do pai, apenas nas noites de lua cheia, também o compensavam com promessas, sempre adiadas, de se juntar à sua mãe e com cinco tostões para rebuçados.
A mãe Raimunda tinha um orgulho incomensurável na criatura que pariu e não era para menos! Quando taramelava com as comadres, o rebento era quase sempre o mote da conversa e não se cansava de o pôr nos cornos da lua. Toda a gente os sabia pobres, porém, ela achava-se rica. De facto era-o, e muito mais do que alguns cheios de dinheiro!
— Ó comadre Jacinta, olhe que o meu Cletinho é muito gerigoto e tem tudo: tem pombinha, tem rua para brincar, tem pardais no telhado, tem sapatos de ir à missa, tem paz, tem liberdade e olhe que até tem banquinha de carpinteiro!
E não é que tinha mesmo!
O moço mostrava um jeito raro para trabalhar a madeira e, aos poucos, foi construindo a sua pequena oficina a um canto do pardieiro onde não faltava a tal banquinha de carpinteiro. As ferramentas embora escassas e rudes faziam autênticas maravilhas, manuseadas pela mão do artista. Era um regalo apreciar os seus trabalhos de artesão. Fabricava miniaturas de alfaias agrícolas e outros arcanhos que tais, à escala e com uma incrível perfeição.
— Há-de de ser carpinteiro, mas um carpinteiro de estalo! — dizia orgulhosa sua mãe.
Assim foi.
Mal largou a escola, após o exame da terceira, empregou-se na oficina do marceneiro Pangaio, um mestre artífice de nomeada. Com ele aprendeu os segredos do ofício e tão bem, que não demorou a corrigir o próprio mestre!
Pelos dezanove anos foi às sortes e ficou livre de todo o serviço militar por ter amputada a falangeta do indicador da mão direita. Perdeu-a num acidente infeliz quando se deixou entalar por um barrote de castanho que resvalou, enquanto o mestre Pangaio se preparava para o serrar.
Apesar de ganhar pouco dinheiro naquele ofício, sempre dava para viver desafogado com sua mãe. Contudo, ambicioso, rapidamente percebeu que tinha potencial para ir muito além das limitadas fronteiras da Veiga. Abriria as asas ao mundo e voaria por essas terras longínquas vendendo o seu talento a quem lho soubesse pagar.
Emigraria para França onde alguns amigos lhe prometeram apoio.
Para vencer os Pirinéus teria de ser a salto, por ser impossível ajeitar as autorizações necessárias. Para isso recorreu aos serviços do nosso já conhecido Neves, o Passador.
Procurou o guerreiro no Grande Hotel de Chaves onde se dava amiúde a prolongados descansos. Encontrou-o. Combinaram o preço — uma exorbitância de cinquenta contos de reis — e o resto dos pormenores. Marcaram a noite da partida e a forma do pagamento. Anacleto deixaria a cidade daí a um mês e pagaria vinte e cinco notas de mil no dia da partida em dobrando a raia. O restante seria pago por sua mãe contra a apresentação do retrato rasgado.
Rasgava-se um retrato, metade ficava com alguém da confiança do emigrante no lugar de partida, a outra seguia com o clandestino que se comprometia a devolvê-la ao Passador, logo que chegasse em segurança ao destino negociado. Após o confronto das metades e ajustando-as na perfeição, seria pago o resto do acordado. Esta prática, estranha e original, tornou-se muito comum, depois de alguns passadores menos escrupulosos enganarem os desgraçados emigrantes lerpando-lhes o dinheirinho e deixando-os pelo caminho.
Poucos dias antes da data marcada, o Anacleto botou fato de ir à missa, penteou os caracóis, untou-os com um cibo de brilhantina para que luzissem e foi à Foto Águia tirar o retrato. Era a primeira vez na vida que se outrava num cibito de papel, portanto, aquele era mesmo um dia especial. Encomendou dois retratos de meio corpo. Estariam prontos em quatro dias. Que fosse por eles. Lá foi.
Ficou bem… um autêntico fidalgo!
Comprou um passepartout no Mocho, colocou lá um dos retratos e ofereceu-o à mãe para que o colocasse sobre a cómoda do quarto de dormir para matar as saudades. O outro rasgou-o a meio e entregou-lhe uma das metades juntamente com vinte e cinco notas de conto. Recomendou-lhe, vivamente, que entregasse o dinheiro somente a quem lhe trouxesse a outra metade. Comprou uma mala de cartão, meou-a com os parcos haveres que possuía e na noite marcada, ala que se faz tarde. Deixou a extremosa mãe em pranto e fez-se à estrada.
A natureza prendou a despedida com uma das infindáveis zerbadas de Novembro. Encontrou-se com o Neves no Tabolado onde uma carrinha fechada acolhia já cinco ou seis parceiros de viagem. Partiram a caminho de Vila Verde pela estrada de Outeiro Seco. Pararam junto da igreja da Senhora da Azinheira para dali seguirem, a pé, até à raia. Não puderam dobrá-la naquela noite porque receberam a informação de que os carabineiros controlavam o carreirão que levava a Feces de Abajo. Pernoitaram no termo da aldeia, num palheiro, onde também passaram todo o dia. Na noite seguinte, os guardas espanhóis ainda patrulhavam a área, pelo que o Neves decidiu conduzi-los até Lama d’Arcos, onde seria mais fácil atravessar o ribeiro que se esperava desimpedido. Para lá chegar teriam de atravessar o Tâmega. Por acaso o caudal estava manso. Venceram-no com a água pelos peitos. Ficaram ensopados. Apesar disso lá chegaram à outra aldeia raiana e ao ribeiro que faz fronteira com a Galiza. Do outro lado, esperava-os um galelo que os conduziu até à povoação espanhola. Aí se enxugaram aguardando que a noite encobrisse a continuação da saga. Antes de atravessarem o ribeiro, cada um deles fez contas com o Neves pagando a primeira tranche do valor acordado.
Na noite seguinte, esperava-os um camião cisterna de transporte de vinho. O camião tinha um depósito de aço tripartido. Duas partes estavam repletas de néctar de Tamaguelos, o do meio vazio, para acolher os desgraçados.
— Oh… que viagem excomungada de três dias até aos Pirenéus! Enquanto foi possível viajar com a portinhola aberta, ainda vá que não vá. Agora quando por razões de segurança e sobretudo quando se atravessavam lugares, tinha de ser fechada, cuidámos de morrer abafadinhos. Uma das vezes, perto de França, demoraram mais um bocado a abri-la e dois dos seis companheiros desmaiaram com falta de ar. Foi o cabo dos trabalhos para os retornar à vida — contava o Anacleto mais tarde.
Mas, por obra e graça do divino Espírito Santo, lá chegaram pelo final de uma tarde à fronteira francesa. Passaram com facilidade e, recolhidos por um francês de bom trato, seguiram de comboio de Hendaia até Paris.
Desembarcaram na gare de Austerlitz. O Anacleto era esperado por um amigo que o levou até ao conhecido bidonville de Champigny-sur-Marne, onde chegaram a viver na clandestinidade e em condições de grande miséria, mais de quinze mil emigrantes portugueses.
Na primeira oportunidade, enviou a metade do retrato para o Neves e fez-se à vida.
Tal foi o sucesso alcançado pela arte de carpintaria que não tardou a construir a sua própria barraca. Passado ano e meio já tinha casa de alvenaria e mandou ir sua mãe.
Não enriqueceu, mas amealhou o suficiente para fazer felizes os últimos anos de vida da sua Raimunda.
— Abençoados sejam os Passadores, os retratos rasgados e a bendita França. Juntos, fizeram tanto português feliz!
Gil Santos