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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

17
Jun16

15 - Chaves, era uma vez um comboio


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Locomotiva

 

A ti

A primeira vez que te vi na estação,

Abafei minha grande emoção.

 

Sentida

Por grandeza maquinal,

Por existência real.

 

A tua presença

Tudo silenciava:

Gente que chegava, gente que partia,

De rostos negados pela vida.

 

Só tu existias ali.

 

Num breve instante,

A tua força férrea

Carregava vidas do nada.

 

 

Partias…

 

Então o nada era o tudo

 

E sorriam…

Para ti.

 

Rita Gonçalves

 

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 Cp0095 – Locomotiva: CP E207, Data: 1973, Local: Chaves, Portugal, Slide 35 mm

 

In “Memórias de uma Linha – Linha do Corgo – Chaves”, Agosto de 2014

Edição Lumbudus – Associação de Fotografia e Gravura

 

Fotografias – Propriedade e direitos de autor de Humberto Ferreira (http://outeiroseco-aqi.blogs.sapo.pt)

Gentilmente cedidas para publicação neste post.

 

 

31
Mai16

13 - Chaves, era uma vez um comboio


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“… COMO SE FOSSE MEU”!

 

A primeira vez que viajei de comboio, apanhei-o na FONTE NOVA, foi para ir ser baptizado, num dia 13 de Outubro da II GG, pelo Pe. José do Nascimento Barreira, na Igreja de S. Pedro, em Vila Real.

 

A minha madrinha, irmã da minha avó materna, Conceição, tinha mais 58 anos do que eu.

 

O meu padrinho, filho de uma família muito amiga da minha madrinha, tinha mais 8 (oito!) anos do que eu.

 

Madrinha e padrinho moravam na «Bila». Ela, no Largo da Capela Nova; ele no Largo de S. Pedro, em casa anexa à Escola Comercial.

 

A madrinha era zeladora da Igreja do Carmo; o padrinho, filho de um célebre guarda-redes do Sport Club de Vila Real - o Silvino!

 

A essa primeira viagem seguiram-se outras, mais espaçadas, até à frequência do Liceu Camilo Castelo Branco, situado lá ao fundo da Avenida Carvalho Araújo e juntinho à entrada para a “Vila Velha”!

 

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CP0035  – Locomotiva: CP E209, Data: 1974, Local: Régua, Portugal, Slide 35 mm

 

A Estação da «minha vida» era o Apeadeiro da FONTE NOVA.

 

Descia as Carvalhas, atravessava o Pedrete, descia o Monte da Forca e já estava na FONTE NOVA.

 

Ouvia as últimas recomendações da Avó São, dos primos e da D. Lucindinha, guarda da linha, trepava para a varanda, arrumava as cestas das «lembranças» e acenava-lhes, qual cavaleiro triunfante a iniciar uma nova cavalgada.

 

Passada a curva que escondia a Azenha do Agapito preparava-me para dizer adeus a quem estivesse à vista em S. FraGústo. Até chegar ao apeadeiro de Curalha sentia-me como se estivesse a percorrer o meu império. Ao atravessar a ponte parecia-me estar a atravessar uma fronteira. Olhava para os moinhos, para o açude e para a encosta que sobe até à MINHA ALDEIA, e logo no peito sentia uma picada de saudade.

 

Em todas as paragens arregalava os olhos como que a catar quadros que me contassem histórias fantásticas de donzelas, cavaleiros e mouros, de gente misteriosa e diferente, de parentes afastados que numa, duas ou três aldeias desses apeadeiros ainda por lá terei.

 

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 Apeadeiro de Oura - Chaves

 

De Oura até Vila Pouca, julgava atravessar território «índio» ou de salteadores encapuzados.

 

Em Vila Pouca a paragem era, parecia-me, sempre muito mais demorada. Talvez fosse para o comboio esperar um bocadinho por uma qualquer «carreira» que viesse atrasada, desde o Alvão ou desde a Padrela!

 

Na estação da Samardã espreitava para todo o lado a ver se via rasto ou sombra de Camilo ou assistia a algum momento da «morte do lobo».

 

Na paragem de Abambres, já «estudante», na «Bila», aproveitava para fazer o levantamento topográfico de galinheiros e coelheiras, para o «assalto» do 1º de Dezembro.

 

A chegada, ou a partida, da Estação da «Bila», era sempre um «acontecimento».

 

Havia uma multidão de gente que chegava e que partia, quer para cima, quer para baixo, que é como quem diz, em direcção a Chaves ou em direcção à Régua.

 

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 CP0163  – Locomotiva: CP E205, Data: 1966, Local: Vila Real, Portugal, Slide 35 mm

 

Para se abraçar os familiares ou amigos (ou para se trocar o mais sôfrego e apaixonado olhar com o namorico!...) logo ao sair das carruagens, tinha de se pagar «bilhete de gare», na altura 1$00 (traduzo: UM Escudo) o que era uma fortuna, mesmo para os «estudantes» mais «afortunados»! Mas, de vez em quando, lá se arranjava maneira de fintar o Chefe da Estação e os «revisores».

 

De Chaves a Vila Real, e vice-versa, eram quase (ou sempre!) três horas de “truf-truf”!

 

Davam-me 20$00 (vinte escudos) para comprar o bilhete de 2ª, de Vila Real-Chaves e diziam-me:

 

- “Sobram dois tostões para qualquer eventualidade”!

 

(Era no tempo da fartura do aconchego familiar e do consolo de amigos!).

 

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 CP0055  – Locomotiva: CP E202, Data: 11 de Setembro de 1969, Local: Vidago, Portugal, Slide 35 mm

 

Às vezes, o comboio compunha-se com uma carruagem que transportava o correio.

 

O poβo dizia:

 

- “Olha, já lá vem (ou já lá vai) o comboio-correio”.

 

Às vezes, mais raras, havia um que dava saída a milhares de toneladas de “batatas de Chaves”.

 

O Poβo dizia:

 

- “Olha, lá vai (e só: lá vai!) o comboio-batateiro”!

 

Nos anos sessenta traziam e levavam gabelas de militares, que no BC 10 se preparavam para o «Ultramar». Algumas vezes, encheram-se de normando-tameganos com guia-de-marcha para os Quartéis de Recrutamento, qual deles o mais distante desta fronteira!

 

O «NOSSO» comboio também funcionava como contador do tempo: o que saía de Chaves, de manhã, avisava-nos da hora do levantar e preparar as trouxas para irmos para as aulas; o do «mei-dia» lembrava a muitas donas de casa que estava na hora de irem levar o almoço aos «homes» que andavam nas obras ou que trabalhavam nas Telheiras.

 

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 CP0126 – Locomotiva: CP E215, Data: 1973, Local: Samardã, Portugal, Slide 35 mm

 

Hoje em dia, os bebés mais apressados nascem em ambulâncias (Já houve tempo em que deixaram de nascer em casa para nascerem na Maternidade do Concelho).

 

Outrora até se davam ao luxo de nascer no «NOSSO» comboio!

 

Então ouçam:

 

- Uma vez….

 

Havia as «CORRIDAS de VILA REAL».

 

Alguns polícias de Chaves foram lá reforçar a segurança.

 

Uma estremosa esposa de um dos mais simpáticos e bonacheirões polícias de Chaves, já com o tempo de gravidez contado, teimou em ir à «Bila» ver as «CORRIDAS» e envaidecer-se com o marido no «exercício de tão espectaculares funções».

 

As vizinhas bem a avisaram dos perigos que corria naquele estado.

 

Mas teimou, teimou, e proclamou:

 

- “Pois ir, vou”!

 

Não se hão-de a ficar a rir de mim”!

 

E foi.

 

Meteu-se no comboio, na Fonte Nova. Assistiu às «Corridas». Apanhou o comboio de regresso. E vinha toda triunfante e regalada por «ter levado a dela avante”!

 

Mas o bebé também quis caprichar.

 

Entre OURA e VIDAGO as dores de parto provocaram um enorme alvoroço.

 

Alguém puxou o alarme.

 

O maquinista ia morrendo de susto - nunca tal lhe tinha acontecido!

 

Parou o comboio.

 

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 CP0039 – Locomotiva: CP E202, Data: Não datado, Local: Desconhecido, Portugal, Slide 35 mm

 

A parturiente foi deslocada desde a Carruagem de 2ª classe, onde viajava, para uma Carruagem de 1ª classe.

 

Ao menino e ao borracho!.....

 

E não é que nessa Carruagem de 1ª classe viajava um Enfermeiro?!

 

Nasceu uma rapariga, linda de verdade. Mais linda do que a Ricardina do retrato.

 

Lá em Chaves, em criança, mal ouvisse o comboio a apitar, dizia, toda vaidosa, para quem a quisesse ouvir:

 

- “O comboio é meu”!

 

O Enfermeiro foi seu padrinho de baptismo.

 

Quantos comboios se podem gabar de terem servido de Maternidade?!

 

A última viagem, na Linha do Corgo, de que guardo lembrança fi-la nos finais dos anos sessenta, num dia de um invernio Janeiro, com uma daquelas geadas de deixar qualquer mortal feito em caramelo, desde a Régua até às Pedras Salgadas.

 

O comboio da Linha do Corgo foi, e é, sempre como se fosse meu!

 

M., 13 de Março de 2014

Luís Henrique Fernandes

 

 

In “Memórias de uma Linha – Linha do Corgo – Chaves”, Agosto de 2014

Edição Lumbudus – Associação de Fotografia e Gravura

 

Fotografias – Propriedade e direitos de autor de Humberto Ferreira (http://outeiroseco-aqi.blogs.sapo.pt)

Gentilmente cedidas para publicação neste post.

 

 

20
Mai16

12 - Era uma vez um comboio


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Comboio

 

Primeiro, o sonho, a ousadia, a vontade de unir terras e aproximar pessoas

- “Faça-se!”

E fez-se!

Pás, picaretas, força de braços a rasgarem novos caminhos

Pontes, túneis, carris, estações e apeadeiros

Finalmente, a máquina, carruagens e vagões…

Milhares de viagens, milhares de sonhos

Histórias, peripécias, amores e desamores

Partidas e chegadas

Gente subindo, gente descendo…

Outro mundo para lá dos horizontes da terra de sempre…

A todos serviu, cruzando vales, rios e serpenteando montanhas

A todos encantou…

- “Feche-se!”

E fechou-se!

 

                                                                                               Luís dos Anjos

 

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CP0041 – Locomotiva: CP E202, Data: Não datado, Local: Chaves, Portugal, Slide 35 mm

 

 

In “Memórias de uma Linha – Linha do Corgo – Chaves”, Agosto de 2014

Edição Lumbudus – Associação de Fotografia e Gravura

 

Fotografias – Propriedade e direitos de autor de Humberto Ferreira (http://outeiroseco-aqi.blogs.sapo.pt)

Gentilmente cedidas para publicação neste post.

 

 

06
Mai16

11 - Chaves, era uma vez um comboio


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Chaves, era uma vez um comboio - Um poema de Laura Freire

 

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CP0097 – Locomotiva: CP E207, Data: 1973, Local: Pedras Salgadas, Portugal, Slide 35 mm

 

“…fumegando…”

 

28 de Agosto de 1921

 

Chegaste, fumegando…

Amodinho…

Tímido, perante a multidão que te esperava…

Enquanto os “VIVA's” eram abafados pelo repenicar do teu apito…

Incansável…

Ofegante…

Com sede de água e fome de carvão…

Rasgaste as serras para cá chegar…

Depois, foi o silêncio de todos…

De todos os que serviste…

E partiste, fumegando…

 

1 de Janeiro de 1990

 

Laura Freire

 

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 CP0046 – Locomotiva: CP E207, Data: 1971, Local: Chaves, Portugal, Slide 35 mm

 

In “Memórias de uma Linha – Linha do Corgo – Chaves”, Agosto de 2014

Edição Lumbudus – Associação de Fotografia e Gravura

 

Fotografias – Propriedade e direitos de autor de Humberto Ferreira (http://outeiroseco-aqi.blogs.sapo.pt)

Gentilmente cedidas para publicação neste post.

 

 

 

29
Abr16

10 - Chaves, era uma vez um comboio


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Poema de José Carlos Barros

in O Uso dos Venenos,

edições Língua Morta,

Lisboa, Agosto de 2014

 

NO TEMPO DOS POEMAS

 

Deixávamos as moedas no carril e ficávamos à espera a

olhar com o fascínio de quem é surpreendido num fim de

tarde pela presença de naves alienígenas num espaço de

silêncio e rarefacção a ver as rodas metálicas do comboio a

espalmá-las até ficarem assim nas mãos em concha de um

de nós como se tivéssemos recolhido enfim a prova irrefu-

tável dos milagres. Foi/

há tantos anos/

a senhora da bandeirinha vermelha perguntava se nunca

tínhamos visto um comboio/

lembro-me era no tempo dos poemas/

um verso podia ser também a moeda espalmada nos carris

da estação do caminho de ferro de Vidago/

tudo se misturava na mesma nuvem volátil de irrealidade

e sobressalto.

 

 José Carlos Barros

 

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In “Memórias de uma Linha – Linha do Corgo – Chaves”, Agosto de 2014

Edição Lumbudus – Associação de Fotografia e Gravura

 

Fotografias – Propriedade e direitos de autor de Humberto Ferreira (http://outeiroseco-aqi.blogs.sapo.pt)

Gentilmente cedidas para publicação neste post.

 

 

18
Mar16

7 - Chaves, era uma vez um comboio…


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As noites eram todas semelhantes…

 

Muitas vezes, acabados de deitar, éramos acordados sempre com a mesma pergunta:

 

- “Querendes ir ó contrabando?”

 

Sabíamos não ser uma pergunta, por isso, sem responder, levantávamo-nos e lá íamos nós em direcção ao ponto de recolha. Habitualmente, um curral em Vilarinho da Raia. Aí eram-nos distribuídas as nossas tarefas para essa noite de acordo com as capacidades que já tivéssemos demonstrado.

 

Sabíamos também haver sempre algum perigo inerente a estas actividades, pois nem todos os guardas-fiscais estavam a “dormir”, mas o dinheiro dava-nos jeito para as nossas pequenas coisas.

 

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 CP0107 – Locomotiva: CP E205, Data: 1973, Local: Chaves, Portugal, Slide 35 mm

 

As noites eram todas semelhantes…

 

Eram noites de Inverno e, por serem mais longas, permitiam, quando necessário, fazer mais do que uma viagem.

 

Eram noites frias, escuras, que serviam para disfarçar as nossas silhuetas e combiná-las com as sombras da vegetação que ladeava os caminhos por onde passávamos.

 

Mas, sobretudo, eram noites sem luar. O único brilho permitido era o pálido e suave tremeluzir das estrelas.

 

Para mim, as noites preferidas eram as de chuva. É certo que não tínhamos as estrelas, mas não restavam dúvidas quanto às noites serem mais frias, mais escuras e muito, mas muito mais silenciosas.

 

O som da chuva abafava os nossos passos. Também o “martelar” dos cascos dos animais e algum balido ou relinchar, que escapasse ao cansaço que se acumulava, deixavam de ecoar no vazio da noite.

 

Essencialmente, trazíamos ovelhas e cabras velhas, mas também cavalos, machos e burros, todos estes também com um longo percurso de vida ou com graves mazelas que os impedia de continuar a cumprir as suas funções.

 

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  CP0117 – Locomotiva: Não identificada, Data: Não datado, Local: Chaves, Portugal, Slide 35 mm

 

As noites eram todas semelhantes…

 

Tal como a passagem obrigatória pela nossa Aldeia – Outeiro Seco. Aqui, já os caminhos que percorríamos variavam. Ou para não utilizarmos sempre o mesmo, ou porque sabíamos que um deles estava a ser guardado, ou para dividirmos a “carga” para o caso de sermos apanhados pela Guarda Fiscal.

 

Nessa altura, os caminhos da nossa Aldeia eram transitáveis, não como hoje em dia, onde nem uma pessoa passa. Das nascentes brotavam águas límpidas, cristalinas, puras, onde qualquer Ser Humano ou animal podia saciar a sua sede sem receio, não como hoje em dia, em que tanto as nascentes, como as linhas de água estão poluídas pelos esgotos (provenientes dos parques empresariais) que correm a céu aberto e tudo infestam.

 

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  CP0165 – Locomotiva: CP E205, Data: Outubro de 2001, Local: Azpeitia, Espanha Slide 35 mm

 

As noites eram todas semelhantes…

 

Saíamos de Vilarinho da Raia com um destino muito preciso: a estação dos comboios em Chaves, onde carregaríamos o gado nos vagões com destino aos matadouros do Porto (ou pelo menos era o que se constava).

 

De Vilarinho da Raia seguíamos em direcção a Vila Meã e dali ao Cotrão. Ao chegar ao Cotrão, caso ainda não nos tivessem sido dadas indicações, deveríamos seguir um de dois itinerários ou dividir o gado pelos dois.

 

Aquele que mais utilizávamos era o que seguia pelo Alto Silveira, Almeirinho, Senhor dos Desamparados e Mina.

 

O outro vinha pelo caminho da Teixugueira, Caminho da Torre, Moucho e Mina.

 

A partir da Mina, o percurso era o mesmo: seguíamos em direção ao Papeiro, Mãe d'Água, Poços de Volfrâmio, Santa Cruz, Forte de São Neutel, Bairro Verde e, finalmente, estação dos comboios.

 

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  CP0123 – Locomotiva: CP E205, Data: 22 de Julho de 1976, Local: Vila Real, Portugal, Slide 35 mm

 

As noites eram todas semelhantes…

 

A estação estava sempre envolta em vapor, fumo e, porque não dizê-lo, mistério, que se acentuava com a escuridão da noite. Nunca vimos lá ninguém. Embora não tivéssemos interesse nenhum, presumo que o motivo fosse o de assim não poderem ser identificados. Os únicos ruídos que se distinguiam claramente eram os das caldeiras e do espezinhar do gado que, talvez por adivinhar o seu destino, se recusava a entrar nos vagões.

 

Havia rampas já colocadas para carregar as ovelhas e cabras nos vagões de bordas baixas (abertos) e outras para carregar nos vagões fechados os cavalos, machos e burros. O gado era encartado como sardinhas em lata. Diziam que o que interessava era o número de cabeças que chegava ao destino e não o estado em que estivessem.

 

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  CP0131 – Locomotiva: CP E202, Data: 1965, Local: Não identificado, Portugal, Slide 35 mm

 

As noites eram todas semelhantes…

 

Já de regresso a casa, às vezes a-modos de despedida, ouvia-se o apito estridente e o som metálico da locomotiva que assim anunciava a sua partida. A aurora já se renovava, dando início a um novo dia e, talvez, a mais uma noite semelhante a tantas outras.

 

A verdade é que nunca viajei no nosso comboio, mas sinto muito a sua falta e lamento que todas as infra-estruturas tenham sido abandonadas ou destruídas por quem dirigia ou dirige os destinos da nossa Região, amontoando num espaço exíguo meia-dúzia de objectos, destruindo com elas as memórias de uma linha.

Humberto Ferreira

 

 

In “Memórias de uma Linha – Linha do Corgo – Chaves”, Agosto de 2014

Edição Lumbudus – Associação de Fotografia e Gravura

 

Fotografias – Propriedade e direitos de autor de Humberto Ferreira (http://outeiroseco-aqi.blogs.sapo.pt)

Gentilmente cedidas para publicação neste post.

 

 

01
Mar16

6 - Chaves, era uma vez um comboio…


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O NOSSO CAMBOIO

 

O ramal de caminho-de-ferro do Corgo/Tâmega ligava a cidade de Trajano ao Peso da Régua, onde encontrava a linha do Douro.

 

A 25 de Maio de 1905, foi inaugurado o troço entre a Régua e Vila Real.

 

A 15 de Julho de 1907, o comboio já chegava às Pedras Salgadas.

 

A 20 de Março de 1910 a Vidago. Quedou-se por ali alguns anos, devido à indecisão quanto à margem do Tâmega que seguiria até Chaves e também pelas dificuldades da intervenção lusa na Grande Guerra.

 

A 20 de Junho de 1919, atravessou o Tâmega para a sua margem direita e chegou a Curalha.

 

A 21 de Agosto do 1921, o comboio estava em Chaves.

 

A ligação por via-férrea à Invicta, estava, finalmente, conseguida. Num tempo em que as estradas eram caminhos de cabras e os veículos automóveis estavam na alvorada, o comboio representava um progresso extraordinário. O Vale do Tâmega parecia livrar-se, por fim, do ostracismo a que esteve votado séculos, quer pelo isolamento a que o Marão, o Alvão, o Barroso e o Gerês o sujeitavam, quer pelo desprezo dos de Lisboa que, mesmo hoje, continuam a riscá-lo do mapa. Por isso, a obra era motivo de grande orgulho e de muita admiração.

 

Ninguém descia à Veiga que não visitasse a estação para ver o camboio.

 

Era um meio de transporte fantástico. Rapidíssimo! Tanto assim que não chegava a gastar quatro horas para percorrer os noventa quilómetros que separam Chaves da Régua! Esbaforido, galgava encostas e vales como as cabras as penedias e trazia novidades da cidade grande. Também levava esperanças da pequena.

 

Quem viajasse em primeira classe, dava-se à mordomia de bancos estofados. Os da segunda sentavam-se nos de madeira, e os da terceira viajavam de pé como o gado, entre os coelhos, as galinhas e as hortaliças que se vendiam pelos mercados. O Texas, como lhe chamavam, transportava muita gente. Eu próprio viajei inúmeras vezes. Recordo, com nostalgia, as viagens que fazia, nos dias de verão, para a piscina do Palace Hotel de Vidago. De regresso, enquanto o comboio, estafado pelos socalcos do Corgo, contornava as colinas do Tâmega, ia-se às uvas e caçava-se adiante.

 

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CP0059 - Locomotiva: CP E202, Data: 1969, Local: Vidago, Portugal, Slide 35mm

 

Quem viajasse armado em tirone, calça clara ou camisinha branca, ou em flausina, vestidinho níveo, chegava ao fim da viagem careto! O fumo do carvão de pedra era tão espesso, que sujava tudo. Mesmo com as ventanas fechadas entranhava-se até aos ossos.

 

Mas mais do que pessoas e bens, o comboio transportava os sonhos e as fantasias dos flavienses. Para muitos representava até o passaporte, a oportunidade, para um mundo outro!

 

Corriam os anos trinta e o Ti Morgado de Fornelos, homem de grande lavoura, tinha muita família no Porto. Ora, o comboio, mesmo a dezassete quilómetros, representava uma mais-valia, não só para a deslocação da gente, mas também para o negócio da batata de semente que chegava mais fresca ao húmus da Póvoa de Varzim. Possibilitava, ainda, fazer chegar à família tripeira os mimos do Planalto. Na volta trazia as novidades da civilização. Além do mais, permitia encontros amiudados entre os membros da família. Aos criados da casa estava incumbida a missão de fazer a ponte entre a estação e a casa de Fornelos. Era mais fácil e proveitoso do que ir ao Vidago. Andavam sempre aspadinhos por este trabalho, pois representava uma raríssima ocasião de irem à cidade, mas, sobretudo, de verem o camboio.

 

O Manuel Soqueiro, artista a talhar socos em pau de amieiro, foi criado na casa do Morgado, até contrair matrimónio e botar lavoura própria. Contudo, sempre que fosse preciso, estava às ordens e não se fazia rogado às ajudas mais pesadas.

 

Corria o mês do arranque da batata – o ouro do Planalto – e não havia braço que se livrasse desta safra. Ao mesmo tempo, acabavam as férias dos velhotes do Porto que vinham ao Brunheiro tomar ares. Não tardava o inverno, insuportável para os da beira-mar. Por isso, era preciso levá-los ao comboio. Não havendo criado disponível, recorreu-se ao Soqueiro.

 

Na madrugada de um derradeiro sábado de setembro, ainda o sol não espreitava dos lados da Terra Quente e já os bois galegos estavam pensados, jungidos e atrelados ao carro, amparados pelos ladranhos e apertados aos estadulhos, montaram-se dois bancos corridos sobre a mesa do carro, para maior conforto dos viajantes.

 

Toca para a cidade, rilhando o macadame da nacional 314!

 

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 CP0102 - Locomotiva: CP E206, Data: 1973, Local: Vila Pouca de Aguiar, Portugal, Slide 35mm

 

O Manuel era pai da Rita Soqueira, uma catraia abonada de carnes, nas suas doze primaveras. Porém, Rita era grossa como a casca das carvalhas da touça fronteira ao pardieiro em que sobreviviam. E não admirava, pois só conhecia mundo até onde a vista alcançava! Santa Leocádia, a quilómetro e meio de Fornelos, onde ouvia a missa de domingo, era o sítio mais longínquo que já tinha percorrido. Por isso, era uma boa oportunidade de lhe desvirginar os horizontes, levando-a à fim do mundo, a cidade de Chaves.

 

Chegaram à estação por volta do meio-dia. Como o comboio só partia à uma, ainda havia tempo para a merenda e para uma visita guiada. O pai, na companhia do velho Lopes, não perdeu a oportunidade de mostrar o camboio à sua piquena, explicando-lhe, com a erudição planáltica, os mais ínfimos pormenores:

 

– Olha, Rita, esta casa grande de prepianho é a estação do camboio. Aquela mais piquena o mijatório! Do oitro lado são os almazéns das mercadorias. É aqui, na gare, que a gente embarca e lá drento da estação despacham-se as encomendas p'ró Porto e tiram-se os bilhetes. Bês estas linhas de ferro no tchão em cima das bigas de madeira? São os carriles, a estrada por onde o camboio anda. Aquela casinhota que está lá na frente a botar fumo é a lacomotiba que putxa estas gaiolinhas que são as carruaijes. As que têm jinelas são para a gente, as fitchadas para as encomendas e para os animais. Aqueles homes do boné engatam as gaiolas umas nas oitras, com umas correntes e formam o camboio. Ódespois a mánica apita, arrenca e puxa o camboio, mas só quando o chefe da estação dá orde de partida com um assobio. A mánica tem lá drento um fogão de lenha como o de casa do senhor Morgado, mas muito maior! Atão o maquenista atafulha-o de carbão-de-pedra, risca um palhito e bota-le o fogo. O carbão alabareia-se e aquece duas ou três pipas de áuga que a lacomotiba tem no butcho. A água ferbe e o bapôr faz andar as rodas do camboio, como os potes na lareira alebantam os testos, nos dias das segadas, quando ferbem!

 

A rapariguita estava banzada! A boca escancarava-se-lhe de espanto e os olhos de emoção! A realidade era ainda mais estranha, fascinante e maravilhosa, do que as histórias dos comboios que lera nos livros da escola de Adães!

 

Prometera a si mesma que em casando havia de andar de camboio! - De facto veio a consegui-lo, como emigrante para a França!

 

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 CP0149 - Locomotiva: CP E54, Data: 1970, Local: Não identificado, Portugal, Slide 35mm

 

A emoção era de tal ordem que a sua cabeça rodopiava de ideias e de dúvidas:

 

– Ó pai e quando o camboio arrenca a estação vai atrás dele?!..

 

O pai não lhe respondeu, não sei se por não saber a resposta, se por o chefe da estação ter dado ordem de partida:

 

– Fiiiiiiiiiiiiii-uíííííííííííííííí-iiiiiiiiiiiiiiiiiiiii…

 

O comboio abriu as goelas, botou duas golfadas de fumo negro, espirrou vapor pelas partes e arrancou para a Régua.

 

– Pouca…….-…….terra; pouca….-……terra; pouca…-…terra; pouca..-..terra; pouca-terra; pouca-terra; pouca-terra; pouca-terra; pouca-terra!....................................

 

A Rita não aguentou, não sei se do medo se da emoção! Fugiu, espavorida, para o largo da estação! Porém, ainda ouviu o comboio a apitar, roufenho, na passagem de nível do Asilo, junto à casa do Mija na Garrafa!

 

– Huiiiiiiiiiiiiiiii……..Huiiiiiiiii……..Huiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!..

 

Em Janeiro de 1990, o ramal do Tâmega foi encerrado.

 

Infelizmente quem manda anda cego! Não percebeu que o prejuízo da supressão será no futuro, que já é hoje, pesadíssimo, para quem anda a ser sistematicamente espoliado!

 

É mais um esbulho que, a juntar a tantos outros, faz dos transmontanos portugueses de terceira.

 

Gil Santos

 

 

In “Memórias de uma Linha – Linha do Corgo – Chaves”, Agosto de 2014

Edição Lumbudus – Associação de Fotografia e Gravura

 

Fotografias – Propriedade e direitos de autor de Humberto Ferreira (http:outeiroseco-aqi.blogs.sapo.pt)

Gentilmente cedidas para publicação neste post.

 

 

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