![GIL GIL]()
A RAÇÃO NÃO É PARA QUEM SE TALHA...
Diz o povo que dos Santos ao Natal é Inverno natural. A bem dezer não sei se ainda é assim ou se já foi. É que está tudo tão mudado que até os adágios começam a querer mentir! Seja lá como for, há muitos, muitos anos… não tantos que encontremos o homem nas cavernas, os Invernos no Planalto do Brunheiro davam pelos peitos a uma mula! O mesmo é dizer que eram duros como o granito porfiróide do Alto da Cunha. Começava a gear por meados de outubro e até maio eram dias infindáveis de carambelo. Não passava o ano sem meia dúzia de fortes nevões. Nessas ocasiões, o que valia ao povo e ao gado era o que se guardava nas adegas e nos palheiros. Os bichos comiam o feno ripado, quando o havia, o povo as baijes de palheiro regadas com um fiozito de azeite — para quem o tinha — e um cibo de carne da pá, rijada, ou uma malga de caldo engodado com pingue. E viva o velho!
Quem avezasse uma ceva para matar pelo Ano Novo era considerado rico! Devidamente poupado, o requito e seus derivados haviam de dar até Natal seguinte. Para curar as carnes, o tempo queria-se frio e seco. Da ceva faziam os planálticos uma espécie de multiplicação dos pães. Milagres autênticos que multiplicavam, por mais de mil, as potencialidades gastronómicas do animal.
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Para a engorda, os porcos tinham de ser capados. O macho para que não ficasse borrão e a fêmea para que não se levantasse à cria. O borrão destinava-se à cobrição. Normalmente, por cada aldeia bondava um para pôr as recas ao ganho. Ao ritual da capagem assisti diversas vezes. Impressionava mais do que a própria matança. O capador, veterinário a martelo, andava pelas aldeias com um assobio próprio cuja melopeia anunciava a chegada. Quem precisasse da capar, reco ou reca, contratava-o. O serviço era rápido e eficiente. O primeiro passo da operação consistia em dispor a ferramenta cirúrgica sobre uma toalha de linho estendida num qualquer carro de bois que estivesse estacionado no pátio. De seguida, procedia à desinfeção do material com um líquido roxo que tingia tudo. Se o animal fosse macho, o cirurgião fazia um rasgo na bolsa escrotal e retirava os testículos agilmente. Desinfetava a ferida com aquele líquido, dava quatro pontos na dita, agora vazia, e pronto. No final, e já depois de tudo devidamente arrumado, era oferecido ao capador a iguaria frita e um copo de tinto. Em sendo reca, deitava-a de lado no chão, fazia uma pequena incisão no ventre e metendo dois dedos nas entranhas retirava aquilo que parecia ser uma pequena tripa. Desinfetava a incisão e por fim suturava-a. Os requinhos, durante dois dias andavam abatidos, mas logo arrebitavam para a engorda.
Depois de capados, os bichos eram alimentados como príncipes para que botassem corpo. Batata, farelo e castanha eram as principais iguarias para que se fizessem antchos. Comiam quanto o bucho levasse. Em Dezembro, as cevas, já quase não se levantavam por tão gordas estarem. Depois, antes do Natal ou perto do Ano Novo, conforme o tempo desse, o animal ia à faca. Era um ritual interessante, atualmente com tendência a ser engolido pela fatalidade da globalização. Marcava-se o dia com o matador, convidavam-se alguns vizinhos e tudo acontecia mais ou menos assim:
Nos pátios, nas eiras ou noutros lugares que se achassem azados, colocava-se um banco corrido, tosco, de quatro patas canejas para que tivesse mais estabilidade. O carrasco dava os últimos retoques no facalhão de lâmina dupla com uma pedra de afiar. Os homens arregaçavam as mangas e à sua ordem abriam a cancela da loje onde estava a vítima. O requinho parece que até adivinhava. Mal se abria, saltava numa gritaria medonha como se de um cristão se tratasse. Botava-se para o pátio e quatro homens, dos mais fortes, cravavam-lhes as unhas nas orelhas, no rabo e nas patas e estendiam-no de cangalhas sobre o banco da morte. Passavam-lhe uma corda pela queixada prendendo-o ao banco. Bem seguro grunhia quanto podia, mas nem por isso comovia os algozes! Quando aprouvesse ao matador, metia-lhe a faca na garganta e de uma estocada fazia-lha chegar ao coração. A morte era rápida quando era experimentado. Caso contrário, o animal tinha muitos minutos de agonia até que a estocada certeira o ferisse de morte. O sangue jorrava em golfadas pelo boeiro que a faca abrira. Com a orientação desta, caía num alguidar de barro, aparado, quase sempre, por uma mulher, que, após a colheita, passava minutos infindos a batê-lo com uma cebola descascada para que não tralhasse. Depois de bem morto e ainda no banco, o porco era chamuscado. Com fachucos de palha a arder, dois dos mais experimentados queimavam a pelagem do animal sem deixar que o couro se tisnasse. A seguir, era a vez de o lavar. Retirava-se do banco para uma cama de colmo limpo. Três ou quatro homens de ásperas pedras na mão fazendo de esfregão, raspavam quanto podiam para pôr o defunto limpinho. Era a vez da canalha se tornar útil pois cabia-lhe botar a água sobre as mãos dos lavadores. Não era um trabalho fácil porque eles exigiam que o fio fosse constante e caísse no sítio certo. O campeão haveria de ganhar o rojão das palhas! Esta fase terminava com o ritual da confeção do tal rojão. Um dos homens torcia um punhado de colmo. Introduzia-o no cu do reco para lhe limpar a parte terminal do intestino grosso que ficara sujo nas ânsias da morte. A este fachuco chamavam então o rojão das palhas, noutras bandas também rojão do banco, e era oferecido a quem tivesse demonstrado melhor desempenho na tarefa de botar a água.
À lavagem das orelhas dedico especial atenção. Era um momento único. Quando algum farsola, menos habituado a estes trabalhos, os apreciava curioso, era hábito ser atraído para a manobra da lavagem dos pavilhões orelhudos do reco. Pediam que se aproximasse o mais que pudesse, mandavam encher a orelheira de água, indejavam bem e, quando lhes parecia, espanavam-na na direção do observador que, como se advinha, ficava salpicado de água suja. Surpreendido pelo gesto inusitado que não esperava, ficava puto! Uma risota!
A seguir punha-se, já limpinho, sobre o banco onde morreu. Agora de barriga para cima. Era a fase da abertura. O matador afiava as facas da especialidade que cortavam como lâminas e desenhava o corte com a ponta da uma delas através de um rasgo superficial. Então passava a retirar a couracha, que havia de servir para fazer as alheiras. Depois extraía o soventre e o redanho para os rojões que entregavam às mulheres e ia os potes ferver. Depois de horas de lume, com uma escumadeira tiravam-se os rojões e, com a gordura fervente, enchiam-se potas de barro de Nantes. Era o pingue ou adubo e serviria, ao longo do ano, para temperar o caldo. Depois disto, passavam uma corda pelo osso que unia os ilíacos e, à força de braços, penduravam o morto numa trave da adega, de focinho para baixo. Era a fase de retirar as entranhas. Com a ponta da faca fazia um corte longitudinal e a tripalhada caia sobre um lençol branco que duas mulheres seguravam e a que chamavam panal. Dali as tripas iam para lavar. Era um trabalho árduo que cabia igualmente às mulheres. Árduo por várias razões: primeiro, porque era preciso limpar a parte mais suja do animal; segundo, porque a água estava muito fria, terceiro porque, por vezes, era preciso calcorrear grandes distâncias à procura de água corrente que no planalto é rara. Depois de limpa das vísceras, a carcaça, haveria de estar dois dias à espera da desfeita. No final deste trabalho, o pessoal que participou na matança era convidado para almoçar e do repasto faria parte o verde — sangue cozido — e os rojões. Tudo regado com um bom maduro tinto de Cova do Ladrão. De tarde, os homens, normalmente, não faziam nada por culpa do tintol!
Passados dias, o matador era de novo chamado, agora para a desfeita. Consistia a operação em separar a carne por categorias para posterior tratamento. Descia-se o porco, hirto e rosado, da trave onde esteve pendurado, para o colocar, de barriga para cima, na adega, numa cama de colmo centeio. Começava, então, por se lhe cortar as patas e retirar a cabeça da qual se separava a focinheira e a orelheira. Depois, colocavam-no de costas e com um fio desenhavam dois traços paralelos e longitudinais do cachaço ao rabo, marcando uma faixa a cortar a que se dava o nome de enguião. Seguidamente, retiravam o lombo e os lombelos, assim como as costelas e a espinha. Os presuntos, agarrados ainda às pás, iam para a salgadeira. Aí, envoltos em sal, repousariam cerca de um mês. Passado esse tempo, eram cortados e com os cimos das pás eram colocados ao fumo, para acabar uma cura de cerca de outro mês. Finda esta curtição, colocavam-se na adega para consumo, ou para venda.
Cabeça, enguião costelas e espinha destinam-se ao fumeiro, A carne magra e alguma entremeada ia para a sorça e dava origem aos salpicões e às linguiças. O resto era cozido. Os ossos da suã, descarnados para os chouriços e as alheiras. Um trabalho pesado que cabia igualmente às mulheres. Orgulhavam a casa quando exibiam, vaidosas, dúzias de lareiros com o fumeiro alinhado sobre a lareira.
Na maior parte das casas, a matança do porco e os produtos daí resultantes destinavam-se ao consumo próprio durante o ano. E feliz de quem matava pelo menos uma ceva!.. Nas casas mais fartas chegavam a matar-se meia dúzia delas. Havia até quem matasse para vender os presuntos (afinal a parte mais nobre do animal) e o fumeiro, resultando, muitas vezes, no único rendimento da casa.
Hoje estão muito em voga as feiras do fumeiro. Abençoadas terras transmontanas que as organizam. Elas proporcionam o afluxo de muitos forasteiros que ávidos de sabores genuínos, ajudam a preservar as tradições do fabrico dos enchidos e interessantes rendimentos a quem se dedica a esta atividade.
Ora, a casa do Ti Zé Paranhos era uma destas. A Paranhas, quanta chouriça defumasse, quanta vendia no mercado de Chaves. Nos primeiros meses do ano, não falhava a uma feira. Madrugava, juntava-se com as parceiras de outros lugares e Brunheiro abaixo lá ia, cada qual com sua giga, vender o produto do trabalho. Umas levavam fumeiro, outras níscaros, castanhas, coelhos, pitas, perus e sei lá o que mais. E quase sempre regressavam leves, com as cestas vazias e os bolsos cheios com o produto das vendas. Os mimos do Planalto eram considerados pelos flavienses, sequiosos da qualidade dos produtos genuínos da terra. Compravam quase tudo. E que mais houvesse!..
Num qualquer fevereiro, ainda pela alva, descia a serra até à praça do Arrabalde um rancho destas mulheres carregando daquelas iguarias. A Paranhas levava uma giga à cabeça com linguiças e uma seira no braço com salpicões. Não chovia mas a manhã demorava a despontar, culpa de um céu plúmbeo que fazia adivinhar por’i algum nevão. Mas, por graça do Divino Espírito Santo, enquanto iam, nem nevou nem choveu. Atravessaram a Ponte de Trajano quando os sinos da Madalena badalavam as sete da matina. No Arrabalde, pousaram sobre o lajedo do mercado e arreganharam a mercadoria. Lá foram vendendo, mas nada que se parecesse com o negócio de outros dias. As dos coelhos e das pitas ainda se safaram. No final do dia, à Paranhas, sobrava ainda metade daquilo que levara. A tarde estava a ficar feia e as léguas a percorrer até casa ainda consumiam umas boas três horas, era tempo de dar de frosques.
Arrumaram.
Quando se preparavam para partir, começou a cair uma folecra que fazia adivinhar o pior. Como de facto! Ainda não tinham chegado ao Raio X e já nevava que levava diabo. Subir a serra naquelas condições ia ser tarefa brava, se bem que ainda havia umas quatro horas com de dia. Isso sossegava-as.
Ao Chegarem a Lagarelhos, e com medo da fama das voltas das Cabeceiras, onde era hábito o Pita atacar, deu-lhes o dianho para largarem a estrada de Carrazedo e subirem a Nogueira da Montanha por Maços, para depois chegarem mais facilmente aos seus lugares. Contudo, às vezes, o diabo tece-as! A neve já mal deixava divisar o caminho. Entre calçada e carreiro acabaram por se perder. Não se via viv’alma por aqueles ermos. O medo da noite escura e dos lobos começava a instalar-se entre aquelas infelizes criaturas. Eis senão quando, ouviram um tropel de cavalo, abafado pela neve da vereda. Era a salvação, ou seria Belzebu em forma de alazão para as atazanar ainda mais?..
Um homem gerigoto, montado num cavalo bem arreado, estacou perto delas e perguntou:
— Boa tarde, senhoras, antão vossemecês que fazem a estas horas e por estes caminhos da fim do mundo?
Respondeu a Paranhas:
— Ó mou senhor, estemos perdidas! Para fugir às voltas das Cabeceiras, com o medo do Pita, metemos por aqui, mas a neve toldou os caminhos e não sabemos como ir para a Amoinha Velha.
— Antão e d’onde bêm? — Insistiu o desconhecido.
— De Chaves, do mercado, fomos vender umas coisitas — respondeu Marcolina, uma das mais destemidas.
— Antão e venderam tudo?
— Não, ou a modos qu’inda levo aqui meia giga de linguiças. — Respondeu a Paranhas.
— Pois atão vai pesada, coitada! Deixe cá ver a giga que eu la levo à garupa. Venham atrás de mim que les inxino o caminho.
E lá foram as vendedeiras enregeladas, atrás daquela esperança.
Chegadas a uma encruzilhada, o cavaleiro parou e indicou o caminho da direita como sendo aquele que deveriam seguir. Puxou a rédea esquerda do freio, espetou as esporas no flanco da montada e ala que se faz tarde, desapareceu por outro caminho.
— O alma do diabo fodeu-me as chouriças — Constatou a Paranhas aflita.
— Filho de uma puta, em nas comendo que tenha uma esfoura que o leve o carbalho! — Desejava outra das companheiras.
— Do mal, o menos, Paranhas, ainda nos deixou os trocos da venda, vamos indo!.. — disse resignada a Aida Pataloa.
— Bem falaides, mas quem se fodeu fui eu… Raisteparta, alma do diabo!..
Passado uns meses souberam que quem afinal as tinha roubado tinha sido o malvado do Pita!
Deram graças a Deus por não ter sido pior. À fama que o sendeu tinha por aquelas serranias, podia ter ido o dinheiro, a roupa e sabe-se lá que mais!.. A sorte é que a neve deve ter refreado a cleptomania do gatuno, que, à laia do Zé do Telhado, trazia o Planalto em sobressalto.
Que se fonhessem as linguiças. Ficaram ainda as alheiras!..
Gil Santos