Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

06
Jun17

O Homem Sem Memória em livro


capa-hsmem

 

No dia 19 de agosto de 2010, quando as “Crónicas Segundárias” do Luís de Boticas se despediam deste blog, anunciava a entrada de uma nova crónica de autoria de João Madureira, intitulada «O Homem Sem Memória». Dizia então eu na altura: “(…) crónica que acontecerá aqui todos os inícios das quintas-feiras (…) que em jeito de folhetim, caminhará (pela certa) para mais um romance deste autor.” E assim foi, religiosamente até inícios de 2014, todas as quintas-feiras o “Homem Sem Memória”, não se esquecia, e cá estava ele com mais um capítulo do, agora, livro que no passado domingo foi lançado em Montalegre na Feira do Livro a decorrer naquela vila,  e que dia 16 deste mês, será lançado aqui em Chaves, na Biblioteca Municipal.

 

1600-hom-s-mem (5)

 João Madureira com Luis Martìnez-Risco da Fundación Vicente Risco e a Vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Montalegre

1600-hom-s-mem (10)

 

Lançamento do livro que se iniciou em Montalegre, e muito bem, pois também é em Montalegre que o “Homem Sem Memória” começa a contar as suas memórias e estórias de criança com muitos adultos à mistura,  vividas nessa vila, ainda antes de passar para a cidade e concelho de Chaves, de se tornar homem, de atravessar uma revolução e muita coisa se passar na República Democrática do Norte, muito antes de acabar os seus dias na República Popular do Sul.

 

1600-hom-s-mem (24)

1600-hom-s-mem (26)

 

Mas tudo isto é ficção ou talvez não, tal como dizia António Aleixo “P`ra a mentira ser segura/e atingir profundidade,/tem de trazer à mistura/ qualquer coisa de verdade.” Ou como se diz na contracapa do livro “É, sem sombra de dúvida, um espaço de ficção onde cada leitor vai por certo encontrar um ou outro momento que por si poderia ter sido vivido”. Pela minha parte, confesso, que revivi muitos desses momentos como se fossem meus e outros, revivi-os porque fui testemunha deles, ou de outros bem parecidos, que muito bem poderiam ser os mesmos. Foi isto, continuo em maré de confissão, que desde início me ligou ao “Homem Sem Memória” e que criava em mim a ansiedade da espera pelo próximo capítulo, que então no blog só acontecia na semana seguinte. É sem qualquer dúvida um livro que fala de nós e que vão gostar de ler ou reler, pensando naqueles que acompanharam as publicações do “Homem sem memoria” blog.

 

1600-hom-s-mem (22)

 

Em imagens ficam alguns momentos do lançamento de “O Homem Sem Memória” em Montalegre, e não esqueça que no próximo dia 16 deste mês de junho, o livro será apresentado na Biblioteca Municipal de Chaves.

 

 

 

02
Jan14

O Homem Sem Memória - 184


 

O Homem Sem Memória

Texto de João Madureira

Blog terçOLHO 

Ficção

 

184 – O José estava sentado num banco à sombra de uma parede alva como a cal quando viu chegar a brigada de perseguidores. Além de suados, vinham todos perplexos, montadas incluídas. Apenas os cães e o camarada capataz denotavam uma satisfação acrescida. O José nem se mexeu. Fez-se de mexicano a dormir a sesta. Quando a ocasião se proporcionou, perguntou a quem sabia pelo paradeiro do seu amigo. “Será que escapou?”, questionou curioso conjeturando algum milagre. “Do inferno ninguém escapa”, responderam-lhe. Ele voltou a perguntar pelo amigo. A trupe limitou-se a apontar na direção dos cães. Como ninguém dizia nada de esclarecedor, um camarada menos camarada, resolveu contar-lhe a verdade nua e crua. Ele recusou-se a acreditar.

 

Nessa mesma noite, o José resolveu vingar a morte do contador de anedotas. Mas com paciência e método. Decidiu combater os comunistas com as suas próprias armas: organizando células clandestinas e espalhando a incerteza, a dúvida, a desconfiança e a desobediência.

 

Fez-se amigo de vários dirigentes e transformou-se num prisioneiro exemplar. Obedecia a todas as ordens e não contestava nada nem ninguém. Devido à sua conduta exemplar, resolveram conceder-lhe mais liberdade. E ele aproveitou-a. Ia de monte em monte fazendo amizades e tentando desenvolver cumplicidades.

 

Saía de manhazinha e caminhava enquanto o sol não apertava. Por volta das dez matava o bicho com pão e algum conduto que conseguia desenrascar entre a malta conhecida. Depois punha-se a olhar para o horizonte até se perder no infinito. Desesperado com a monotonia das vistas, adormecia. E sonhava. Sonhar era a forma de se manter mentalmente são.

 

Sonhava com a família, com a infância, com o verde dos montes, com os amigos. Sonhava com a sua terra. Quando acordava punha-se a gritar muito alto canções que tinha aprendido na infância. Quando chegava a algum monte habitado disponibilizava-se a ajudar no que quer que fosse. Transformou-se num bom trabalhador agrícola. Aprendeu a viver com as dificuldades do dia-a-dia, com a pobreza, com a indiferença, com a solidão. Amigos verdadeiros deixou de ter, por vontade própria. A sua inseparável amizade passou a ser a sua sombra. Afinal, o José dava azar a quem com ele convivia. Limitava-se a ter conhecidos, que respeitava. Mas nada mais do que isso. Contava histórias às crianças e entretinha-se a ensinar alguns adultos a ler e a escrever. Nunca falava de política, nem de religião e muito menos de futebol. Quando alguém lhe perguntava algo sobre a situação política do país respondia que nada sabia e que pouco lhe importava. Além disso ele era do Norte. E no Norte as coisas são diferentes. “Para pior?”, perguntavam-lhe a rir. Ao que ele respondia que apenas eram diferentes. “E diferentes, como?”, insistiam. O José mudava então de conversa. Falava do tempo e da natureza. Entretanto ia tirando algumas informações sobre o camarada capataz.

 

Contaram-lhe que era um homem que se tinha feito a si próprio, de origem humilde. Não se lhe conheciam amigos do peito. Tinha sido um jovem solitário que cedo se inscreveu no Partido. Era carreirista, ou, melhor dizendo, um homem de partido. Não discutia ordens nem admitia que as discutissem. Ascendeu rápido na hierarquia, o que não é de admirar. Ainda no tempo do fascismo ficou ligado ao assassinato de uma patrulha de dois soldados da GNR que tinham ido em serviço inspecionar uma greve numa herdade de um latifundiário. Perseguido pelos militares, e pela polícia política, o Partido resolveu enviá-lo para Moscovo. Foi na pátria de Lenine que decorou toda a parafernália de textos sobre a reforma agrária nos países socialistas. Visitou várias herdades coletivas e familiarizou-se com a retórica marxista-leninista. Não entendia nada de agricultura e muito menos percebia o que quer que fosse do conteúdo da ideologia que tinha jurado abraçar, mas era um ás na repetição das palavras dos camaradas do Comité Central que vinham plasmadas no jornal do partido. Com a queda do Estado Novo, voltou ao seu querido Alentejo e encabeçou todas as lutas que pode contra os latifundiários e os seus lacaios. A muitos deles derreou-os de porrada, ele mais as suas brigadas revolucionárias. Não olhava a meios para atingir os fins. Nisso era um leninista genuíno. Com a conquista do poder pelo Partido, manobrou as estruturas dirigentes para o nomearem diretor da primeira Unidade Coletiva de Produção da Reforma Agrária. Mas não tardou que muitos dos camaradas começassem a contestar os seus processos autoritários. Conseguiu saneá-los a todos, sem exceção. Ele mal comia, visitava a família muito de vez em quando e à mulher e aos filhos tratava-os com a mesma autoridade que os demais, como militantes de base do Partido. Muitos dos que lhe fizeram frente foram encontrados mortos nas encruzilhadas dos caminhos. Espalhava aos quatro ventos que era tudo manobra da reação ou de uma seita de fanáticos religiosos. E com esse argumento perseguia ainda mais os já poucos reacionários que por ali existiam, se é que nessa altura sobravam alguns. Como a UCP era um primor de organização política, mas um desastre na produção agrícola e pecuária, resolveram, para bem do povo e da revolução, transformar a UCP num projeto piloto, conferindo-lhe o estatuto de uma Unidade de Produção Agrícola e Pecuária destinada a albergar e a reabilitar prisoneiros políticos, quer reacionários, quer dissidentes. Pois todos sabemos desde o tempo dos campos de concentração nazi que o trabalho dá liberdade, confere igualdade e irradia fraternidade.

 

Ele, como bom comunista, detestava ambos os tipos de prisioneiros, mas odiava ainda mais os dissidentes. Não conseguia conceber como é que depois de terem sido iluminados pela verdade revolucionária eram capazes de renegar a revolução, ou os camaradas dirigentes, ou as orientações partidárias, ou contestarem as verdades ideológicas criadas por Marx, Lenine, Estaline e Alberto Punhal.

 

As orientações do Partido tinham sido explícitas: Os prisioneiros políticos apenas podem sair da UCP reabilitados ou mortos. E ele, como bom comunista, sabia que a reabilitação de um ex-comunista é pura e simplesmente, impossível. E os prisioneiros cada vez eram mais e piores. A dúvida num corpo comunista é uma doença epidémica e mortal. 

 

185 – O golpe final na fé comunista do José aconteceu quando ...

 

(continua)

 

 

23
Mai13

O Homem Sem Memória - 154


 

O Homem Sem Memória

Texto de João Madureira

Blog terçOLHO 

Ficção

 

154 – Acabada a fase do teatro começou a do cinema, também conhecida como o ciclo do “Trinta e Um”. Estava escrito nas estrelas, o José tinha de ser artista.


Já tinha experimentado a poesia com algum sucesso, o teatro com algum sacrifício e iniciava agora o seu ciclo cinematográfico. A partir daqui, apenas lhe faltava tentar a prosa, pois para a música não tinha jeito nenhum, apesar de possuir bom ouvido. Talvez desse um tocador medíocre de bombo ou um sofrível tangedor de ferrinhos, mas para o resto dos instrumentos era tosco de todo.


Podemos afirmar que a sua aproximação ao cinema já tinha sido iniciada há alguns anos atrás, quando, numa eira da sua aldeia, assistiu à projeção do “José do Telhado”, não do filme mudo realizado por Rino Lupo, em 1929, mas sim ao dirigido por Armando Miranda, em 1945; ou quando chorou baba e ranho ao assistir, no Café Terra Fria em Montalegre, ao “Amor de Perdição” de António Lopes Ribeiro, realizado em 1943. Também não é despicienda a visualização em televisão de várias películas, nomeadamente do “Feiticeiro de Oz”, de Victor Fleming, com a, para sempre, menina Judy Garland. Como viu o filme a preto e branco, nunca mais esqueceu a feiticeira que voava na vassoura e que se ria como uma louca. Essas imagens farão parte de muitos dos seus sonhos, ou, melhor dizendo, de maior parte dos seus pesadelos. Na sua condição de operário da construção civil, na já referida época missionária, José assistiu a muito filmes de cobóis e de kung fu.


Depois do 25 de Abril assistiu a três filmes fundadores da sua suposta personalidade artística: “Lawrence da Arábia”, de 1962, filmado por David Lean; “A Filha de Ryan”, de 1972, também da autoria do mesmo realizador; e o “Último Tango em Paris”, igualmente de 1972, realizado por Bernardo Bertolucci, a que assistiu no meio de centenas de espanhóis que faziam excursões para verem filmes deste género em Portugal, pois em Espanha Franco proibia-os de passarem nas salas de cinema.


Depois destes incidentes cinematográficos, dedicou-se a ler crítica de referência que o encaminhou para a cinematografia de Godard, Bergman, Fellini, Pasolini, Antonioni, Kurosawa, Fassbinder e Visconti.


Se antes saía do cinema um pouco embrutecido pela pouca qualidade dos filmes a que assistia, a partir das suas leituras de cineclubista passou a selecionar tanto os seus filmes que apenas ia aos que eram alvo das melhores críticas em revistas da especialidade, ainda mais densas do que os filmes de que falavam. Agora via-se e desejava-se para conseguir manter-se desperto até ao fim de um filme. E quanto melhores críticas tinham os filmes mais ele adormecia quando os via. Claro que começou a pensar, e com razão, que era muito estúpido e também ignorante.


O José bem perseverava na leitura das críticas e fazia os possíveis por se manter atento e desperto durante a projeção dos filmes. Mas, santo deus, adormecia quase sempre. E o pior era que o filme ainda nem sequer tinha chegado a meio. Por isso passou a ir ao cinema sempre sozinho, porquanto os amigos deram em lhe chamar pretensioso e convencido pois, apesar de falar muito bem dos filmes que programava ir assistir, nunca os conseguia ver até ao fim. Nem ele, nem os amigos, que o insultavam por os ter convencido a assistir “àquelas merdas”.


Eles, os ignaros, saíam a meio do filme fazendo um alarido enorme. Ele, o erudito, o devoto, ali se deixava ficar entre o sono e a qualidade intrínseca daquelas obras-primas da sétima arte que esvaziavam salas e punham as plateias aos gritos e às patadas no chão e nas cadeiras.


Vendo-o assim triste e abandonado, quer pelos amigos, quer pela sua imperfeita sensibilidade cinematográfica, Francisco, um seu colega de Liceu, resolveu convidá-lo para ir até ao “Trinta e Um”, pois andava a fazer ensaios para escolher atores e atrizes para rodar um filme em super 8. O José, um pouco envergonhado, disse-lhe que era um mau ator. O Francisco perguntou-lhe porque tinha tentado o teatro se não tinha as qualidades exigidas. Ele respondeu-lhe que se desenrascava a fazer de figurante. Foi então quando o Francisco atirou a matar: “Tens uma linda cara e um cabelo comprido que me fazem lembrar Jesus Cristo. Além disso, a representação no cinema é diferente da do teatro. Aparece lá, que logo vemos.”


E o José apareceu no “Trinta e Um” com a sua carinha larocas, o seu cabelo comprido e ondulado, os seus olhos carinhosos e o seu magro corpo de modelo. Francisco apresentou-o à malta e ofereceu-lhe qualquer coisa de beber. Depois passou um charro, ou dois, pela sala, mas o José, quando viu chegada a sua vez, agarrou na prisca e colocou-a nas mãos do seguinte elemento sem a levar aos lábios. Começou logo a ser olhado de lado. Quem rejeita partilhar um charro não é parceiro à altura de acamaradar, especialmente entre a gente das artes. Dar uma passa no charro cria identificação com o grupo ou coisa pelo estilo.


Alguns colegas do Liceu começaram logo a dizer à boca pequena que o José era o típico punhalista, não fumava maconha e criticava quem o fazia. Ali a malta era toda antirrevisionista. Tudo esquerdista da melhor linhagem. Tudo bom filho da burguesia. Por isso todos antissistema capitalista. Todos bons maoistas. E riam-se muito depois de dar uma passa na prisca. Todos se riam menos o José, que começou a pensar que troçavam dele. Depois de muito se beber e de muito se chupar nas priscas de liamba, o Francisco começou os ensaios. Tudo muito felliniano, muito circense, muito maneirista. O José saiu-se mal como o caralho. Não se conseguia descontrair e por isso não se mexia direito nem falava que se ouvisse.


Não foi chamado a entrar no filme. Mas Francisco não deixou de o convidar para o “Trinta e Um”. Ele não rejeitou a oferta, pelo menos lá podia observar boas fotos, ler livros interessantes e ouvir música de qualidade.


O único elemento com quem conseguiu acamaradar foi um rapaz que se apelidava de poeta e que escrevia quase em transe, provocado não por qualquer apelo divino, mas antes pela cerveja e uns ácidos excitantes que misturava com muita erudição e habilidade. Depois de engolir uns comprimidos e de beber duas ou três imperiais, subia ao “Trinta e Um”, pegava num caderno e numa esferográfica e escrevia até que o efeito lhe passasse. Por vezes saíam-lhe coisas com alguma qualidade que ele recitava para o José, ou ainda para o Francisco, quando este se encontrava a sós observando fotografias ou visionando filmes por si realizados.


O seu novo amigo também não entrava nos filmes do proprietário do “Trinta e Um”, pois, apesar de ser um bom poeta, era feio como as igrejas. O José por vezes brincava com ele, dizendo-lhe que se o Francisco fosse um adepto de Pasolini tinha com toda a certeza o papel principal, pois, na sua opinião, o Pasolini escolhia para os seus filmes sempre as criaturas mais feias que lhe apareciam pela frente. O poeta ameaçava-o sempre entre um sorriso e uma gargalhada: “Qualquer dia dou-te um beijo na boca para te calar.”


O Francisco falava muito com bonitas raparigas e algumas vezes com alguns rapazes lindos que por ali apareciam. O José invejava-lhe a sorte. Até ao dia em que soube que o Francisco, como bom artista de vanguarda, tinha uma inclinação para ser um amigo e cúmplice das meninas, mas uma teimosa cisma em namorar com os rapazes.


A última vez que entrou no “Trinta e Um”, foi uma tarde em que encontrou o Francisco sozinho de avental e espanador do pó na mão a escutar músicas da Gloria Gaynor e a dançar com uns trejeitos um pouco afetados para o seu gosto de comunista punhalista e de ex-seminarista assumido.


“Não queres dançar comigo”, perguntou-lhe o Francisco. Liberta-te desses preconceitos burgueses e da rigidez ideológica do marxismo-leninismo. Vem, solta-te, dança comigo, despe-te…”, mas não disse mais nada pois o José saiu do “Trinta e Um” como se fosse um diabo a abandonar o corpo de um possuído depois de ter sido expulso por um exorcista da força e do carisma do padre Fontes.


155 – Mas a sua carreira cinematográfica não acabou no “Trinta e Um”, era o ...

 

(continua)

 

16
Jun11

O Homem sem Memória (54) - Por João Madureira


 

Texto de João Madureira

Blog terçOLHO

Ficção

 

54 – Passado um ano voltou a Montalegre. Mais crescido, mais magro, mais branco. Mais triste.


O Verão corria tépido e luminoso, permitindo que as pessoas andassem de roupas mais leves e com um ar ligeiramente lavado. Agora, que tomava banho todos os dias, até de água fria, era mais sensível à aparência dos demais. Sempre apreciou o ar limpo e trigueiro da Luisinha, em contraste com o ar baço e pardacento da maioria das raparigas da vila. Do aspecto dos seus colegas nem é bom falar. Tinham uma aparência de cordeiros tresmalhados e famintos.


Os rapazes continuavam galhofeiros e despreocupados. Mas tinham crescido. Pareciam mais corpulentos e tisnados. Sobretudo mais alegres. E isso intrigava-o. Enciumava-o que ali no meio dos penedos os seus amigos crescessem brutos e felizes. Era como um anátema. Como se fosse possível na pobreza e na boçalidade ser-se feliz. Pelos vistos, sim, era possível. Ao contrário dele que, entre rezas, ladainhas, evangelhos, padre-nossos, ave-marias, livros, discussões, estudos e cogitações, dissidências e absolvições, se sentia um desventurado carregado de tristeza e frustração.


Todos o acolhiam agora de uma forma diferente, apesar de formalmente nada ter mudado. Todos o tratavam por tu, perguntavam-lhe pela vida no seminário, incitando-o a jogar, a rir, a galhofar e a dizer mal do Padre Zé. Ele sorria, que remédio. Um futuro abade tem de aprender a dizer ámen com todos os cordeiros de Deus, por muito que lhe custe.


“Afinal somos todos filhos de Deus”, pensava o José. “E iguais aos seus olhos. O ladrão e o roubado, o assassino e a vítima, o violado e o estuprado, o patrão e o empregado, o rico e o pobre, o remediado e o pobre, o pecador e o santo, o bom e o mau, o homem e a mulher. Mas também o salteador e o opulento, o amo e o aviltado, o homossexual e o chefe de família, o juiz e o carrasco, o médico e o doente, o jogador de futebol e o treinador, o banqueiro e o economista, o comunista e o fascista, o democrata e o ditador, o filho e Abraão, Cristo e Barrabás, Nossa Senhora e a sua desditosa virgindade.”


“Segundo Deus”, continuava a pensar o José com uma irritação crescente, “para o caso tanto faz, são seus filhos e ponto final. Ele não descrimina. Pois se ele não descrimina, descrimino eu. Eu não sou capaz de por tudo no mesmo saco. E Deus, se é que existe, e disso tenho muitas dúvidas, que me perdoe como eu lhe perdoo – na qualidade de seu filho e em nome de todos os outros seus filhos de boa vontade, – toda a dor do mundo, toda a pobreza, toda a desgraça, todas as guerras, toda a descriminação, toda a dor e, sobretudo, o arrufo de ter castigado Adão e Eva com a noção de pecado e com a vergonha da nudez, do sexo e da boa vida.”


Convenhamos que tais pensamentos, mesmo que sinceros e sentidos, num futuro clérigo católico responsável pela evangelização dos seus leigos não eram bom sinal. Mas, convenhamos ainda mais um pouco, Deus e a sua Igreja sabem bem as linhas com que se cosem.

 

55 - A Dona Rosa passou um mês banhada em lágrimas. Chorou como uma Madalena arrependida quando viu o filho entrar-lhe portas adentro entre os vivas do Virtudes, o latir do Leão e o fumo do cigarro do guarda Ferreira. Depois continuou ...

 

(continua)

21
Out10

O Homem sem Memória (14) e (15) - Por João Madureira


.

Texto de João Madureira

Blog terçOLHO



14Enquanto José vigiava a praça através dos buracos da muralha de jornais, os outros dois UEC entretinham-se a escavar um buraco na sala do bar, que ficava nas traseiras do apartamento térreo. Numa divisão encontrava-se a caçadeira com cartuchos de chumbo para caça grossa, numa outra repousava o revólver prateado junto à telefonia e na terceira descansavam as facas de matar recos. A Mauser estava com o Marcelino, pois em sua casa passavam-lhe os nervos no momento de a empunhar. Já o material bélico da Brigada Camarada Vasco era constituído por uma carabina de cinco tiros com mira telescópica, que pernoitava no quarto do funcionário do Partido, por duas navalhas de ponta e mola compradas em Feces e por duas pistolas de alarme transformadas em armas de defesa pessoal.


José vigiava a praça porque se recusou terminantemente a participar na abertura do buraco que os dois camaradas da UEC continuavam a escavar no chão do bar do Partido. O UEC ciclista, e alvejador de Cristos, com o apoio do outro, haviam decidido quase por unanimidade ir em frente com o furo que iria servir para guardar as várias bombas de fabrico artesanal que um camarada pirotécnico das bandas de Valpaços tinha fabricado para ajudarem na defesa do Centro de Trabalho de Névoa. Havia-as confeccionadas dentro de uma lata redonda com pólvora e cabeças de pregos caibrais e outras em forma de gordas espigas revestidas com pedaços de ferro de pote. A muitos dos camaradas curiosos que por lá passavam nas horas de expediente era-lhes dito que o buraco se destinava a guardar garrafas de vinho tinto para abrir no dia do triunfo da revolução, que estava para breve. Por isso muitos deles bebiam o café e o bagaço em cima de um barril de pólvora atulhado de pedaços de ferro fundido.

 


15Nas longas noites de vigília, como se estivesse na tropa ou no seminário, José, o SUV e os outros dois UEC dormiam no bar em cima de colchões de palha tapados com cobertores que mal os agasalhavam. Era normal José ter frio e comichão e desconforto e insónias e arrependimento e medo e dúvidas e saudades da família e dos amigos e de brincar e até, espantemo-nos, sentir falta dos dias da catequese, da voz doce da catequista, das melífluas imagens dos santinhos, da salvação, do céu, dos anjos e da bondade.


Dias e dias seguidos de vigília tinham posto os nervos daquelas sentinelas da revolução democrática e nacional à flor da pele. Discutiam por tudo e por nada. Nos intervalos das discussões, o SUV folheava revistas pornográficas e ia masturbar-se para a casa de banho, o UEC subalterno lia o Tio Patinhas e ria-se muito, o UEC caçador de cristos decifrava O Caminho do Triunfo, do Camarada Punhal, sublinhando-o e fazendo anotações do seu conteúdo num pequeno caderno de capa vermelha, enquanto fumava cigarros sem filtro e bebia copos de leite. José tentava em vão ler A Verdade. O jornal contava sempre o mesmo, dando conselhos e ordens aos militantes, como se eles fossem homens e mulheres sem vontade própria, constantemente a necessitar de auxílio e de orientação. Por vezes tentava ler algumas das obras de Marx ou Lenine, mas era como experimentar decifrar os Evangelhos. A mensagem enublava-se num emaranhado de palavras sem sentido.


José procurava afincadamente a bondade: a bondade de Deus, a bondade dos homens, a bondade dos proletários. Mas apenas se deparava com problemas. Ele buscava respostas para as suas inquietações, mas cada vez as perguntas eram maiores e mais complicadas.


Noite alta, enquanto olhava a rua deserta pelos buracos do muro de jornais, apetecia-lhe chorar. Mas um homem não chora, um revolucionário não chora. Apenas choram os covardes e os medrosos. Por vezes corriam-lhe dos olhos grossas lágrimas de desalento que desculpava por se tratar de reacções alérgicas ao pó ou às noites sem dormir.


O caminho da revolução, tal como o da redenção, é difícil de percorrer. “Temos de ser fortes para conseguirmos vencer as adversidades”, pensava ele, tentando iludir a sua fraca fé no mundo e nos seus protagonistas, porque se Deus não existe qual é o sentido da vida? E se Deus existe para que serve se não consegue aliviar a dor aos que sofrem, a lazeira aos famélicos e afastar as dúvidas a quem se encontra submergido por elas?

 


16Uma noite, enquanto os outros seus camaradas vigilantes dormiam o sono dos néscios, naquele engano de alma subversivo e vesgo que a realidade não deixa durar muito, José sentiu que alguém mexia na porta do Centro de Trabalho.(...)

 

(continua)

 

 


 

07
Out10

O Homem sem Memória (11) - Por João Madureira


 

Texto de João Madureira


Blog terçOLHO

 

 

11 – Todos olharam na direcção da estrada que conduzia à escola. Marcelino e os seus camaradas travaram de repente. O chefe da Brigada Brejnev virou-se para o segundo da fila e passou-lhe o revólver que transportava no bolso do casaco. “Sou muito nervoso”, sussurrou. O UEC pegou na arma a medo e passou-a ao terceiro da fila, dando a mesma desculpa.


Era este UEC, também ele, à sua maneira, um frouxo armado em revolucionário. O seu conceito de estudante comunista residia na ideia de que estudar era uma cedência vergonhosa ao capitalismo e à ideologia burguesa. Era dirigente da associação de estudantes e um dos mais velhos alunos do seu curso. Os anos de repetência usava-os como insígnias revolucionárias. Insultava os professores não comunistas e criticava os que eram seus camaradas de pactuarem com os reaccionários. Espalhava o terror revolucionário com o orgulho de um perfeito idiota. Todas as pessoas de bem o evitavam, pois a sua capacidade de insulto era muito temida. Possuía um duplicado de todas as chaves da escola, orgulhava-se de andar de bicicleta, durante a noite, por cima do chão encerado disparando com uma espingarda de pressão de ar sobre os cristos crucificados que existiam espalhados por todas as salas do estabelecimento.


O outro UEC, surpreendido pelo facto do auto-intitulado líder da Brigada Brejnev se ter despachado da pistola invocando nervos e do seu superior na célula da organização ter seguido o mesmo argumento revolucionário, nem pensou dois segundos, aproveitou o embalo e passou-a ao José como se ela queimasse.


José não deitou fora o revólver, que foi aquilo em que primeiro pensou. O seu estado de indignação aconselhou-o a metê-la no bolso do casaco e avançar. A sua cara de menino Jesus crescidinho ajudou-o a desviar as atenções.


“Ai Jesus, vem aí os guerrilheiros!”, tornou a gritar aflita a beata mais beata das beatas da aldeia. Uma das raparigas que estava à sua beira, desfez o equívoco. “Olha, mas é o senhor Marcelino! Ó mãe, o senhor Marcelino não é guerrilheiro nenhum. Pode ser comunista, mas não é guerrilheiro. O seu pai era muito rico e ele também tem muito dinheiro. Ele gosta é da brincadeira. É um pândego.”


“Olá Dona Isabel, então não me conhece? Olhe que eu conheço-a muito bem. O meu pai vendeu-lhe muita mercadoria a prestações.”


Entretanto os UEC pegaram no material de propaganda, enfiaram tudo nos carros e abandonaram a aldeia com muita subtileza revolucionária. Marcelino disse que ia ficar mais um pouco, aproveitando o bom nome do seu pai para comer presunto e beber uns copos de tinto.


“A única coisa que os comunistas têm de bom é o seu apetite”, comentou a certa altura a mulher que tinha reconhecido o camarada Marcelino.


Marcelino, naquela noite, fez-se convidado em casa do único camarada da aldeia e, por artes do diabo, arranjou forma de ir dormir a casa da mulher que o tinha reconhecido. Era ela uma viúva que não desdenhava de uma noite bem passada com um homem que lhe desse conforto e também algum dinheiro para botar cordão de ouro com que gostava de fazer inveja às mulheres casadas da aldeia.


12 – Foi através de um buraco existente entre os vários blocos de jornais (“A Verdade” atada com corda de sisal) que faziam de barreira contra uma possível saraivada de tiros ou pedradas da reacção contra as janelas de vidro do centro de trabalho, que José viu o povo a invadir a praça. E pela primeira vez, desde que era comunista (e já lá iam cerca de seis longos meses após a sua conversão) sentiu medo.


(...)

 

(continua)

 

 


30
Mai08

 

 

O "Jástou Servido"

 

Enfezado e de nariz adunco, o Anacleto passou a meninice sentado nos degraus do fontenário da Madalena. As mulherzinhas que iam encher os cântaros na torneira de pressão tinham que o enxotar quase sempre. Macambúzio, de joelhos ossudos e pernas esgalgadas, punha os braços sobre os joelhos que espreitavam dos calções, entrelaçava os pulsos  e ficava tempos infindos olhando para quem ia à água. Animava-se apenas quando os xailes negros ou os lenços sobre os cabelos grisalhos davam lugar a alguma moçoila espigadota, indiferente às suas graçolas de reguila ou, as mais das vezes, repontona.

 

Crescidote, era vê-lo a jogar ao sete-e-meio ou à lerpa, à sombra das arcadas, sempre de olho nas pernas das raparigas que iam à água.

 

Feito o serviço militar, em Braga, regressara a Chaves, lamentando que as representantes de um dos três "Pês" que a má-língua  atribuíra à cidade minhota não fossem assim tantas na sua terra. Foi-se contentando com as poucas que havia, ficando-se pelos hábitos da adolescência.

 

Continuando a viver na Madalena, aí trabalhava durante o dia, atravessando todas as noites a ponte para ir até aos reservados de jogo dos cafés da Rua Direita ou da Rua de Sto. António. Já de madrugada, passava depois pelas casas que consolavam a solidão dos milicianos de Cavalaria e Infantaria e dos noctívagos da cidade.

 

Mas não acamaradava com estranhos. Ia com o seu grupinho folgazão, o mesmo de sempre. Enfezado em criança e enfezado depois da tropa, um meia-leca como diziam os companheiros de pândega, deixava-se envolver pela animação das meninas, encostando-se aqui e ali, quase desaparecendo entre as ancas generosas e os seios opulentos.

 

Quando a bebida toldava os pensamentos dos folgazões e despertava os sentidos, o ambiente das casas animava-se ainda mais e começavam as romarias para os quartos. As meninas fugiam aos beliscões subindo os degraus, com gritinhos escandalizados, enquanto os mais atrevidos ensaiavam um levantar de saias ou o desapertar de um corpete.

 

Nessa altura havia sempre uma menina que olhava para trás e reparava que o Anacleto permanecia no sofá, com um aspecto seráfico, de sorriso nos lábios.

 

"Então o Sr. Anacleto não sobe?", perguntavam sempre. A resposta era invariavelmente a mesma — "Não, muito obrigado menina. Já estou servido..."

 

© Blog da Rua Nove

 

Sobre mim

foto do autor

320-meokanal 895607.jpg

Pesquisar

Sigam-me

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

 

 

19-anos(34848)-1600

Links

As minhas páginas e blogs

  •  
  • FOTOGRAFIA

  •  
  • Flavienses Ilustres

  •  
  • Animação Sociocultural

  •  
  • Cidade de Chaves

  •  
  • De interesse

  •  
  • GALEGOS

  •  
  • Imprensa

  •  
  • Aldeias de Barroso

  •  
  • Páginas e Blogs

    A

    B

    C

    D

    E

    F

    G

    H

    I

    J

    L

    M

    N

    O

    P

    Q

    R

    S

    T

    U

    V

    X

    Z

    capa-livro-p-blog blog-logo

    Comentários recentes

    • FJR

      Agora só existe o Quim "Xanato" mas dantes de um l...

    • Anónimo

      Obrigado. Forte abraço. João Madureira

    • cid simões

      Muito bonito.Saúde!

    • Rui Jorge

      Muito Bom Dia a todos. Encontrei este blog e decid...

    • Luiz Salgado

      Sou neto do abilio Salgado e Augusta de Faria Salg...

    FB