O Homem Sem Memória
Texto de João Madureira
Blog terçOLHO
Ficção
154 – Acabada a fase do teatro começou a do cinema, também conhecida como o ciclo do “Trinta e Um”. Estava escrito nas estrelas, o José tinha de ser artista.
Já tinha experimentado a poesia com algum sucesso, o teatro com algum sacrifício e iniciava agora o seu ciclo cinematográfico. A partir daqui, apenas lhe faltava tentar a prosa, pois para a música não tinha jeito nenhum, apesar de possuir bom ouvido. Talvez desse um tocador medíocre de bombo ou um sofrível tangedor de ferrinhos, mas para o resto dos instrumentos era tosco de todo.
Podemos afirmar que a sua aproximação ao cinema já tinha sido iniciada há alguns anos atrás, quando, numa eira da sua aldeia, assistiu à projeção do “José do Telhado”, não do filme mudo realizado por Rino Lupo, em 1929, mas sim ao dirigido por Armando Miranda, em 1945; ou quando chorou baba e ranho ao assistir, no Café Terra Fria em Montalegre, ao “Amor de Perdição” de António Lopes Ribeiro, realizado em 1943. Também não é despicienda a visualização em televisão de várias películas, nomeadamente do “Feiticeiro de Oz”, de Victor Fleming, com a, para sempre, menina Judy Garland. Como viu o filme a preto e branco, nunca mais esqueceu a feiticeira que voava na vassoura e que se ria como uma louca. Essas imagens farão parte de muitos dos seus sonhos, ou, melhor dizendo, de maior parte dos seus pesadelos. Na sua condição de operário da construção civil, na já referida época missionária, José assistiu a muito filmes de cobóis e de kung fu.
Depois do 25 de Abril assistiu a três filmes fundadores da sua suposta personalidade artística: “Lawrence da Arábia”, de 1962, filmado por David Lean; “A Filha de Ryan”, de 1972, também da autoria do mesmo realizador; e o “Último Tango em Paris”, igualmente de 1972, realizado por Bernardo Bertolucci, a que assistiu no meio de centenas de espanhóis que faziam excursões para verem filmes deste género em Portugal, pois em Espanha Franco proibia-os de passarem nas salas de cinema.
Depois destes incidentes cinematográficos, dedicou-se a ler crítica de referência que o encaminhou para a cinematografia de Godard, Bergman, Fellini, Pasolini, Antonioni, Kurosawa, Fassbinder e Visconti.
Se antes saía do cinema um pouco embrutecido pela pouca qualidade dos filmes a que assistia, a partir das suas leituras de cineclubista passou a selecionar tanto os seus filmes que apenas ia aos que eram alvo das melhores críticas em revistas da especialidade, ainda mais densas do que os filmes de que falavam. Agora via-se e desejava-se para conseguir manter-se desperto até ao fim de um filme. E quanto melhores críticas tinham os filmes mais ele adormecia quando os via. Claro que começou a pensar, e com razão, que era muito estúpido e também ignorante.
O José bem perseverava na leitura das críticas e fazia os possíveis por se manter atento e desperto durante a projeção dos filmes. Mas, santo deus, adormecia quase sempre. E o pior era que o filme ainda nem sequer tinha chegado a meio. Por isso passou a ir ao cinema sempre sozinho, porquanto os amigos deram em lhe chamar pretensioso e convencido pois, apesar de falar muito bem dos filmes que programava ir assistir, nunca os conseguia ver até ao fim. Nem ele, nem os amigos, que o insultavam por os ter convencido a assistir “àquelas merdas”.
Eles, os ignaros, saíam a meio do filme fazendo um alarido enorme. Ele, o erudito, o devoto, ali se deixava ficar entre o sono e a qualidade intrínseca daquelas obras-primas da sétima arte que esvaziavam salas e punham as plateias aos gritos e às patadas no chão e nas cadeiras.
Vendo-o assim triste e abandonado, quer pelos amigos, quer pela sua imperfeita sensibilidade cinematográfica, Francisco, um seu colega de Liceu, resolveu convidá-lo para ir até ao “Trinta e Um”, pois andava a fazer ensaios para escolher atores e atrizes para rodar um filme em super 8. O José, um pouco envergonhado, disse-lhe que era um mau ator. O Francisco perguntou-lhe porque tinha tentado o teatro se não tinha as qualidades exigidas. Ele respondeu-lhe que se desenrascava a fazer de figurante. Foi então quando o Francisco atirou a matar: “Tens uma linda cara e um cabelo comprido que me fazem lembrar Jesus Cristo. Além disso, a representação no cinema é diferente da do teatro. Aparece lá, que logo vemos.”
E o José apareceu no “Trinta e Um” com a sua carinha larocas, o seu cabelo comprido e ondulado, os seus olhos carinhosos e o seu magro corpo de modelo. Francisco apresentou-o à malta e ofereceu-lhe qualquer coisa de beber. Depois passou um charro, ou dois, pela sala, mas o José, quando viu chegada a sua vez, agarrou na prisca e colocou-a nas mãos do seguinte elemento sem a levar aos lábios. Começou logo a ser olhado de lado. Quem rejeita partilhar um charro não é parceiro à altura de acamaradar, especialmente entre a gente das artes. Dar uma passa no charro cria identificação com o grupo ou coisa pelo estilo.
Alguns colegas do Liceu começaram logo a dizer à boca pequena que o José era o típico punhalista, não fumava maconha e criticava quem o fazia. Ali a malta era toda antirrevisionista. Tudo esquerdista da melhor linhagem. Tudo bom filho da burguesia. Por isso todos antissistema capitalista. Todos bons maoistas. E riam-se muito depois de dar uma passa na prisca. Todos se riam menos o José, que começou a pensar que troçavam dele. Depois de muito se beber e de muito se chupar nas priscas de liamba, o Francisco começou os ensaios. Tudo muito felliniano, muito circense, muito maneirista. O José saiu-se mal como o caralho. Não se conseguia descontrair e por isso não se mexia direito nem falava que se ouvisse.
Não foi chamado a entrar no filme. Mas Francisco não deixou de o convidar para o “Trinta e Um”. Ele não rejeitou a oferta, pelo menos lá podia observar boas fotos, ler livros interessantes e ouvir música de qualidade.
O único elemento com quem conseguiu acamaradar foi um rapaz que se apelidava de poeta e que escrevia quase em transe, provocado não por qualquer apelo divino, mas antes pela cerveja e uns ácidos excitantes que misturava com muita erudição e habilidade. Depois de engolir uns comprimidos e de beber duas ou três imperiais, subia ao “Trinta e Um”, pegava num caderno e numa esferográfica e escrevia até que o efeito lhe passasse. Por vezes saíam-lhe coisas com alguma qualidade que ele recitava para o José, ou ainda para o Francisco, quando este se encontrava a sós observando fotografias ou visionando filmes por si realizados.
O seu novo amigo também não entrava nos filmes do proprietário do “Trinta e Um”, pois, apesar de ser um bom poeta, era feio como as igrejas. O José por vezes brincava com ele, dizendo-lhe que se o Francisco fosse um adepto de Pasolini tinha com toda a certeza o papel principal, pois, na sua opinião, o Pasolini escolhia para os seus filmes sempre as criaturas mais feias que lhe apareciam pela frente. O poeta ameaçava-o sempre entre um sorriso e uma gargalhada: “Qualquer dia dou-te um beijo na boca para te calar.”
O Francisco falava muito com bonitas raparigas e algumas vezes com alguns rapazes lindos que por ali apareciam. O José invejava-lhe a sorte. Até ao dia em que soube que o Francisco, como bom artista de vanguarda, tinha uma inclinação para ser um amigo e cúmplice das meninas, mas uma teimosa cisma em namorar com os rapazes.
A última vez que entrou no “Trinta e Um”, foi uma tarde em que encontrou o Francisco sozinho de avental e espanador do pó na mão a escutar músicas da Gloria Gaynor e a dançar com uns trejeitos um pouco afetados para o seu gosto de comunista punhalista e de ex-seminarista assumido.
“Não queres dançar comigo”, perguntou-lhe o Francisco. Liberta-te desses preconceitos burgueses e da rigidez ideológica do marxismo-leninismo. Vem, solta-te, dança comigo, despe-te…”, mas não disse mais nada pois o José saiu do “Trinta e Um” como se fosse um diabo a abandonar o corpo de um possuído depois de ter sido expulso por um exorcista da força e do carisma do padre Fontes.
155 – Mas a sua carreira cinematográfica não acabou no “Trinta e Um”, era o ...
(continua)