Zarcão Laranja - Chaves - Portugal
.
Há sempre alguém, alguma coisa, que nos indica o Norte, pois há! Mas há almas que insistem em andar desnorteadas toda a vida, por distracção, algumas, por teimosia, quase todas. À teimosia não há quem resista, até as latas do velho cata-vento, cansadas da insistência de indicar os bons ventos em que ninguém reparava, exaustas, deixaram-se tomar pelos ventos frios, perderam-se no ofuscar da névoa e enferrujaram sem ninguém dar por nada…
.
.
Por cá é assim, nem iluminados entre as colunas da história talhada pelos velhos pedreiros, conseguem lançar olhares para além daquilo que o horizonte deixa ver. Substituíram-se aos cata-ventos, vestidos de modernidade, com uma modernidade que não enferruja por fora e os deixa livres para virar conforme os ventos, mas não conseguem tirar o olhar do curto horizonte para onde ficam vi(d)rados. Não vale a pena insistir, estás-lhes na formação da intinidade, no ferrugem interior que apenas um zarcão laranja consegue esconder, mas só e apenas isso.
.
.
Chaves, 6 de Setembro de 1989
O que é preciso fazer e dizer para desatar o nó de certas almas! Almas obscuras, como todas as almas, mas ciosas da escuridão em que vivem. Aflitas em cada hora da vida, anseia pela libertação sem verdadeiramente a desejar. Estão como viciadas no desespero. E ouvem com indisfarçável desconfiança quem procura ajudá-las, a mostrar-lhes a luz. Anos e anos de recalcamento criaram nelas uma segunda natureza, tímida, fechada, esquiva. E é no fundo do poço que se sentem seguras. Ao menos aí, nada as acusa. O consciente culpa-se; o subconsciente desculpa-se.
Miguel Torga, In Diário XV