O Barroso aqui tão perto - Pelas serras com Torga
Mais uma ida até ao Barroso aqui tão perto, mas mais uma vez sem termos por cá qualquer aldeia e até temos uma preparada em imagem, mas ainda lhe faltam as palavras para as quais não tivemos tempo de lhe alinhavar as letras. Assim, hoje vamos mais uma vez para o Barroso, sim, mas aquele que é feito de serras e montanhas e água que corre, que cai, que estaciona entre o penedio. Vamos fazer nossas as palavras de Miguel Torga, não só por também nós comungarmos da sua paixão telúrica, mas por serem também palavras inspiradas por imagens como as que deixamos hoje, aliás algumas delas foram tomadas enquanto se falava de Torga e de como tão bem entendíamos e sentíamos as suas palavras quando estamos no seu ambiente natural.
É possível que esta paixão telúrica que me faz divinizar as fragas, os rios e os carvalhos signifique, afinal de contas, que não consegui desembaraçar-me da placenta de ovelha que o destino me atirou à figura, como certo inimigo fez a Maomé. Mas não me desagrada a hipótese.
Estou sinceramente convencido de que a realidade campestre nem é inferior à outra, nem se lhe opõe. Por detrás das pedras roladas e das ravinas, pulsa o mesmo coração inquieto a vida. A solução, portanto, consiste apenas em auscultá-lo com a finura de ouvido que é obrigatória nas consultas citadinas. E a mágoa que me punge não é ser montanhês por devoção: é de não ser capaz de revelar todos os mistérios que se escondem nas dobras da estamenha.
Bem rústicas parecem as urzes, e a abelha tira das suas flores mel perfumado. Nada mais agressivo do que um silvedo, e o melro faz o ninho no meio dele.
O mal é nosso e, neste caso, meu particularmente. Confundimos a casca com o sabugo. Talvez porque só temos casca e não merecemos a graça de comungar à mesa onde Collete recebia o corpo eucarístico da natureza. Ela, sim, podia exprimir o cataclismo de cada fecundação e decompor o arco-íris de cada primavera. Através do sacramento do amor e da entrega, real e substancialmente, os seres e as coisas passavam a fazer parte da sua humanidade profunda e falavam depois pela sua boca.
Miguel Torga, In Diário VII