Texto de Blog da Rua Nove
"Pelo mês de Abril de 2001, na varanda que dá sobre as serras de Mairos e Brunheiro, contemplávamos um pôr do sol de eterna e grandiosa beleza. Talvez levadas por este panorama, começámos a falar da cultura local e das suas muitas raízes.
Cada uma, por razões diversas, tinha recolhido serranismo transmontano com origens remotas."
É assim que começa o posfácio de Maria de Jesus Facco Viana ao livro Sabores Judaicos – Trás-os-Montes, obra de duas transmontanas de origem flaviense, Graça Sá-Fernandes e Naomi (Graça) Calvão, publicada em Abril de 2008.
Com fotografia de Valter Vinagre, o livro reproduz algumas imagens dos distritos de Bragança e Vila Real e várias receitas tradicionais, recordando-nos o entretecer das culturas judaico-cristãs em Trás-os-Montes.
Parece-me assim oportuno recuperar um texto que publiquei na imprensa regional, há dez anos, sobre alguns aspectos da tradição judaica e anti-semita em Portugal:
"Por vezes, o entrelaçar raiano das tradições de Natal e Reis é algo que ainda nos traz revelações inesperadas e surpreendentes. Mesmo nos detalhes mais simples. A mim, este ano [1998], foi a marca utilizada por um fabricante de turrón que me trouxe a surpresa.
A mim, que há já muito tempo estou convencido das origens anti-semitas da palavra bruxa, embora careça de provas documentais que apoiem tal tese.
É possível, no entanto, concatenar um conjunto de factores que nos levem a aceitar esta tese como extremamente plausível. Por um lado, as pesquisas desenvolvidas não me permitiram encontrar esta palavra no léxico português anterior ao século XVI. Por outro lado, verifica-se que as características de paronímia e sinonímia entre bruxa e bruja não são extensíveis a quaisquer outras línguas para além do Português e do Castelhano. A isto se junta o facto de [Frei Joaquim de Santa Rosa de] Viterbo [1744-1822], no seu Elucidário [1798], e [José Pedro] Machado [1914-2005], no seu Dicionário Etimológico [1952], ignorarem a sua etimologia ou darem explicações nebulosas para a origem do vocábulo.
Não disponho, como é óbvio, de provas sustentáveis que me permitam afirmar peremptoriamente que a adopção desta palavra, em Português e em Portugal, apenas surgiu no século XVI, como manifestação anti-semita... mas sempre considerei muita coincidência paronímica o facto de a palavra utilizada para abençoar e consagrar as refeições judaicas de sexta-feira ser precisamente baruch(a), que significa bento/a, bendito/a, abençoado/a, abençoar... É esta palavra, aliás, utilizada também como nome próprio. Um famoso filósofo europeu de origem judaico-portuguesa é disso claro exemplo – Baruch Spinoza (Bento de Espinosa, 1632-1677).
Agora, intencionalmente ou não, a memória colectiva subjacente ao grafismo do turrón La Bruja trouxe-me outro indício... A intrigante utilização de estrelas pentagonais como simples elemento decorativo e a insólita utilização de uma estrela hexagonal para realçar o lettering do logotipo La Bruja. Isto é: La Bruja tiene la estrella de David...
Num sentido mais lato, contudo, o que ainda muito me intriga é a persistente componente anti-semita da nossa linguagem e do nosso imaginário, por paradoxal oposição ao profundo enraizamento de tradições nitidamente judaicas na nossa cultura.
Entre muitas outras, as palavras gabirú, maganão, safado e safardana apresentam uma evidente conotação negativa na nossa língua, bem como as expressões fazer judiarias a alguém e ser de estrela [de David] e beta [baeta]. Apesar destes preconceitos, o Natal de muitos dos nossos pais e avós foi marcado por um jogo que está bem presente nas suas memórias de infância. Rapa, tira, deixa e põe...
O jogo do rapa. Deixem, agora, que mude o nome a este brinquedo e lhe chame dreidel, ou dreydl, em yiddish, e passe a ler as quatro letras em Hebraico, Nun, Gimel, Hei, e Shin, sabendo que constituem um acrónimo da expressão (Um) Grande Milagre Aconteceu Lá (em Israel)... O rapa. Um brinquedo e um jogo que a diáspora judaica manteve durante as festividades do Hanukkah, para consagrar e honrar a memória da Terra Santa. Um jogo que nós adaptámos e baptizámos com a devida vénia à tradição anti-judaica: rapa, tira...
Vem-me ainda à memória a curiosa tradição de Páscoa que, na minha adolescência, vim encontrar em Chaves. Em vésperas da Semana Santa juntava-se dinheiro para comprar peças de barro no antigo mercado da Rua do Olival. No domingo de Páscoa, na Rua de Santa Maria, as crianças jogavam aos púcaros e caçoilos, atirando-os de mão em mão até se partirem... Mais tarde, Amílcar Paulo [n. 1929], ensinou-me que a tradição sefardita cripto-judaica mantinha o hábito de quebrar loiça doméstica, durante a Páscoa, como símbolo de renascimento e renovação...
Recordo, para concluir, as reticências que algumas pessoas tiveram perante o nome escolhido para a minha filha. Embora não aceitando as objecções, compreendi-as. Há uma quadra popular que evidencia ainda o preconceito dos católicos para com este e outros nomes:
Ana, Magana,
Rebeca, Susana,
Pariste um gato
Debaixo da cama...
Surge como inevitável a associação das expressões aqui há gato e sabe a rabo de gato com esta quadra, mesmo que as suas origens possam ser outras... Se, entretanto, considerarmos que a antiga judiaria de Chaves ainda não foi definitivamente localizada e à tradição oral acrescentarmos um pouco de imaginação, veja-se onde a Rua dos Gatos nos pode levar..."
Adenda de 21 de Maio de 2009:
Por deferência da Real Academia Española (http://www.rae.es/rae.html), fui informado que o projecto Nuevo Diccionario Histórico de la Lengua Española, coordenado por José Antonio Pascual, nos permite saber que o texto em língua espanhola onde se regista a ocorrência mais antiga da palavra bruja é La Celestina (1499), a célebre obra atribuída a Fernando de Rojas (c. 1465/70-1541), ele próprio descendente de judeus conversos.
Uma rápida releitura de uma edição recente da obra (Barcelona: Ediciones Brontes, S. L., 2007) permitiu-me verificar que, pelo menos, o vocábulo hechicera ocorre 6 vezes, o vocábulo hechizos 1 vez e o vocábulo bruja 1 vez (acto sétimo, página 140).