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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

09
Jun21

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)


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António Granjo

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)

17

Nota: A GRANDE AVENTURA - (SCENAS DA GUERRA) é um pequeno livro que resultou da participação do ilustre flaviense António Granjo na I Guerra Mundial de 1914-1918, que deixamos aqui em episódios, escritos no português da altura, incluindo erros e gralhas tipográficas.

 

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Dois heroes

 

Havia na 1.ª companhia do meu batalhão dois granadeiros, que eram como irmãos. Nascidos na mesma terra, tinham crescido juntos, curtindo a pele ao sol da mesma charneca e fortalecendo os braços e a alma no amanho da mesma leziria. Nos rostos quasi bronzeados os olhos luziam-lhes como carvões, e sobre as espaduas d'atletas a cabeça parecia atarraxar-se-lhes como uma bola de ferro entre duas barras metalicas. Nas marchas, seguravam a espingarda pelo fuste, como quem segura uma vara de marmeleiro. Quando vestiam o colete de granadeiros tomavam um estranho aspeto de guerreiros de lenda, respirando força e violência.

 

Dos seus lábios grossos de beduinos da charneca nunca tinha sahido um murmurio contra a guerra, prestando-se humildemente a tudo quanto deles exigiam os superiores. Só uma vez, quando um deles, por qualquer conveniencia de serviço, foi transferido do pelotão, os dois perguntaram de modo menos respeitoso ao sargento porque é que eram separados, e foram a seguir suplicar com as lagrimas nos olhos ao comandante da companhia para que os deixasse ficar a ambos no mesmo pelotão. Pouco mais sendo do que dois numeros, resvalavam pelas trinheiras ou pelos acantonamentos, sem ninguem se preocupar com eles, merecendo menos cuidado do que os cavalos que conduziam a cosinha rodada, dando menos que falar do que as mulas alentejanas que puxavam aos carros de companhia.

 

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O meu pelotão, dessa vez, guarnecia a Garden Trench. A noite ia decorrendo com uma tranquilidade que fazia desconfiar das intenções do inimigo. No silencio absoluto que dominava a terra apenas se ouvia de vez em quando uma rajada ou outra de metralhadora, cortando o ar como uma lamina e prolongando-se ao longe como uma pequena vaga que morre na areia. Para a rectaguarda mal se distinguiam os primeiros zigue-zagues da trincheira de comunicação. Adivinhava-se, num novelo mais negro de sombras, por traz da segunda linha, a Factory, com o seu esqueleto desconjuntado de engrenagens.

 

O momento critico, a meia-noite, tinha passado. Seriam 2 horas da manhã, quando já a treva começava a adelgaçar-se e o céo começava já a adquirir um vago tom violaceo, que o bombardeamento rebentou com extrema violência sobre a direita do batalhão. Os soldados evacuaram de roldão a primeira linha; e, como as trincheiras de comunicação eram batidas com pontarias certeiras, alguns fugiram a campo descoberto, esgaçando as pernas pelos arames, cahindo nas covas dos morteiros, rastejando pelos drenos para não serem apanhados pelas metralhadoras. Uma dessas trincheiras, a Junction-Street, tinha sido arrombada e obstruída, e os que haviam escolhido esse refugio viram-se obrigados a voltar para o talude e a esconder-se atraz duma antiga trincheira abandonada, onde existia a carcassa dum avião inglez que ali tinha tombado e ali apodrecia, como uma grande ave morta, de ventre para o ar.

 

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O bombardeamento era a preparação para um raid. Tomaram-se as devidas precauções para o caso de os alemães quererem atacar a segunda linha e esperou-se pela madrugada para fazer o reconhecimento e a reocupação.

 

Um sargento deu pela falta dos dois granadeiros. Ou tinham sido mortos ou feitos prisioneiros.

 

—Os pobre rapazes !--comentou o sargento. Aos primeiros alvores da madrugada reocupou-se a primeira linha. Acompanhei o oficial que comandava o pelotão. Foram-se guarnecendo os postos. Foi aclarando o dia. Verificámos que nos abrigos não faltava nada. Nem os lençoes impermeáveis abandonados, nem depositos de granadas, tinham atraído a cubiça do inimigo. Quando passámos pelo abrigo do comandante do pelotão notámos que o S. O. S. estava intacto.

 

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O meu camarada observou:

 

—O inimigo desta vez foi gentil...

 

Uma ordenança chamou a nossa atenção para dois vultos que se entremostravam para a direita, meios escondidos entre os destroços dum travez. Avançámos de pistola na mão. E ao precipitar-se a ordenança, de baioneta calada, sobre os dois vultos, reconhecemos os dois granadeiros, surpresos do ataque, e sorrindo um para o outro.

 

— Como é que vocês estão aqui? Como foi isso?

 

Um deles vae contando, numa voz descançada, como se estivesse contando na praça da terra algum episodio duma ferra de touros:

 

— Ó meu alferes, os meninos sem braços cahiatn ahi como as nozes maduras duma nogueira varejada por boa mão. O chão tremia como um terramoto. Tanto se podia morrer ficando como fugindo. Alapardamo-nos aqui entre os travezes. Se o morteiro rebentava dum lado, escapavamo-nos para o outro. Os estilhaços voavam por cima como vespas. Parecia o fim do mundo. De repente o bombardeamento abrandou. Deixaram de cahir os morteiros na primeira linha. Calculamos que o boche viria ao cheiro da carniça. Arrastamos para aqui dois cunhetes de granadas e puzemo-nos à coca. Vimos uma cabeça erguer-se sobre o parapeito. O boche julgou que aquele tronco d'arvore que está ali defronte era algum dos nossos e atirou para lá uma granada. Lá se vê o ponto onde a granada bateu. Atraz d'aquela, outras cabeças apareceram, como uma fila de diabos. Um deles trepou ao parapeito e ficou de pé espionando a trincheira. Não estivemos com meias medidas. Joguei uma granada ao que tinha trepado para o parapeito. Cahiu logo para traz, soltando um urro, que parecia duma fera. E as granadas seguiram umas atraz das outras. As cabeças desapareceram e nós saltámos para cima da banqueta e atirámos sobre eles as ultimas ameixas. No talude o meu alferes pode ver ainda manchas de sangue até abaixo, à Terra de Ninguém...

 

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Nas caras bronzeadas dos dois granadeiros a madrugada punha uns reflexos metálicos. 

 

Os seus olhos pareciam abrir-se mais, como a penetrarem ainda a treva. O braço direito dum deles guardava ainda o movimento semi-circular do lançamento das granadas. Alguns soldados fizeram cerco, contemplando-os a certa distancia, como se estivessem deante de animaes ferozes.

 

Subimos à banqueta. Viam-se ainda no talude as hervas esmagadas por um corpo que fôra arrastado até à base e levado depois às costas atravez a Terra de Ninguém. Tinham sido arrancados alguns long-picquets e as hastes das gramineas procuravam endireitar-se às primeiras caricias do sol.

 

Quando voltávamos, os dois granadeiros dormiam a sono solto, metidos num abrigo, com as pernas estendidas para a passadeira.

 

Os seus nomes? Que importa conhecer os seus nomes? Ninguém tem nome nesta guerra.

 

Sei apenas que, enquanto os que ficaram pela retaguarda, batendo-se junto duma mulher ou duma garrafa de champagne, trazem no peito a cruz de guerra, esses dois soldados, esses dois heroes, que repeliram sosinhos um raid inimigo, foram simplesmente louvados em ordem do batalhão, como deve constar do arquivo do 22.

 

 

(Continua na próxima quarta-feira.)

 

 

26
Mai21

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)


1024-antonio granjo

 

António Granjo

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)

15

 

Nota: A GRANDE AVENTURA - (SCENAS DA GUERRA) é um pequeno livro que resultou da participação do ilustre flaviense António Granjo na I Guerra Mundial de 1914-1918, que deixamos aqui em episódios, escritos no português da altura, incluindo erros e gralhas tipográficas.

 

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Flores da Terra de Ninguém

 

Minha boa amiga :

 

A Terra de Ninguem está cheia de bem-mequeres e de papoilas. Quando a neblina, como nesta manhã, oculta a linha inimiga, saltamos a trincheira e escolhemos nesse jardim da morte um ramo de flores, que, metido num copo de granada, nos alegre um pouco a meza de jantar, só guarnecida por garrafas vasias de cerveja, latas furadas de confitures, granadas de mão e pentes de balas.

 

Acudiu-me hoje o pensamento gentil, minha boa amiga, de ir buscar a essa tira de terra, que é uma tira viva e sangrenta do corpo esquartejado da pobre humanidade, um ramo de flores para lh'o oferecer e mandar. Não sei se chegará às suas pequeninas mãos, se ficará pelo caminho, entre dois fardos de coelhos da Australia ou entre as lombadas de dois presuntos de York. Que importa? Pensarei sempre que chegaram ao seu destino e que os seus lindos olhos as contemplarão como uma prova da minha amizade. Lembrar-se-há mais algumas vezes de mim: a certeza de que a não esqueço avivará na sua memoria a lembrança deste homem que anda para aqui, ou arrastado como uma folha sêca de canto em canto, ou metido como uma toupeira debaixo da terra — joguete da ventania e irmão da lama.

 

Sei bem que nunca compreenderá o que há de sangue e horror nessas flores, adubadas com cadáveres humanos, coloridas pelo sol doentio destas terras da Flandres, regadas pela água podre dos drenos. Que importa? Fico com a idéa de que às suas mãos chegou, pela única forma graciosa que me é permitida, um grito destas paragens em que o anjo exterminador continuamente faz sibilar a sua espada ardente.

 

Acabada a guerra, quando nós voltarmos, ouvirá contar coisas que nunca fôram imaginadas e que serão inacreditáveis para aqueles que se deixaram ficar na doce paz da sua casa. E reconhecerá então que só um coração muito amigo podia render-se, nestes momentos em que a vida anda sobre a baba duma aranha, ao pensamento de lhe oferecer meia duzia destas petalas que brotam do meio da sangueira desta hecatombe, como a virtude poderia brotar do inferno.

 

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 As papoulas colhi-as junto duma trincheira de sapa, donde ainda ontem os alemães, mascarrados de negro, deslizando como fantasmas, quizeram assaltar um posto de granadeiros. Corri, numa patrulha, certa noite, parte dessa trincheira. Os corredores dessas cavernas onde viviam os lobishomens, de que falam os velhos creados, à lareira, nas longas noites de inverno, não podem ser diferentes dêste valado tenebroso, aberto através a Terra de Ninguem por mãos desconhecidas, donde sobem vozes misteriosas e onde erram sombras disformes. Nas bordas seguem filas de troncos renegridos e despedaçados pelos projecteis de todos os calibres, sem uma folha, sem um galho, com lascas da casca pendentes, como braços decepados erguendo para o alto os cotos sangrentos com esfarpas de carne dependuradas.

 

A nevoa envolvia os ultimos troncos, alêm dos quais começava a rêde de arame inimiga. Através a primeira cortina transparente da nevoa, onde o sol punha irisações fugazes, via-se um cadáver feito em pedaços. A historia dêste cadáver corre pelas trincheiras. Vou-lh'a contar.

 

Os mortos são baldeados por êste furacão de ferro e fogo como os vivos. Logo nas primeiras linhas há algumas sepulturas, sôbre as quais a piedade dos combatentes colocou, como última homenagem, a espingarda e o equipamento que serviram ao morto e algumas ervas caíram, à falta de flores, das mãos comovidas de um camarada. De vez em quando, o bombardeamento arraza as trincheiras, revolve essas sepulturas e deixa à mostra os cadáveres. A's vezes, as explosões dos morteiros pesados levantam-os ao ar; outras vezes, ficam meios enterrados, meios descobertos, com os rostos, já descarnados, adquirindo contorsões as mais sinistras, visualidades desconhecidas de todos os cultores do horror, atitudes que escaparam a todos os romancistas da agonia. Como a trincheira fica aberta, para se passar sem ser visto pelos snipers, que, do seu buraco blindado, com a espingarda de alça telescópica, atiram sôbre a primeira cabeça que se descuide, é preciso ir de rastos, sôbre os restos fedorentos, cosendo a cara aos farrapos apodrecidos da farda ou à terra impregnada dos humores cadavéricos. O sabor desta terra putrida, a impressão horrível dêstes trapos desfeitos que a saliva da morte humedeceu, ficam nos labios, ficam nos olhos, ficam na alma, como nodoas deixadas por larvas.

 

Os cemiterios são em geral entre os postos de reserva da primeira linha e as segundas linhas, aí até 5 quilómetros à rectaguarda. Por via de regra, são situados junto dos acantonamentos, dos postos de socorros, das fermes aproveitadas para posições das metralhadoras pesadas, dos obuzes ou da artilharia. Um dia, uma noite, repentinamente, quando qualquer dessas posições foi descoberta por um aeroplano ou por um observatorio, ou denunciada pela negligência dos soldados, desaba sôbre o cemitério a tempestade de fogo, e as cruzes partidas sirandam no ar e os cadáveres saltam das sepulturas, numa dança macabra de membros despedaçados e de caveiras partidas entre o fragor das explosões.

 

A história dêsse cadáver, que adubou a terra onde nasceram as humildes flores que lhe mando, é uma das mais trágicas. E' o cadáver dum oficial inglês. Comandava um raid, quando foi morto à frente da primeira vaga de assalto. Abandonado na Terra de Ninguem, depois de repelido o ataque, os ingleses batiam de dia e noite o sitio em que ficára o cadáver, para que o inimigo se não apoderasse de quaisquer papeis que o oficial trouxesse no bolso e que podiam fornecer-lhe indicações preciosas. Por sua vez os alemães, sempre que sentiam para aquele lado o mais leve ruído nos arames, atiravam sobre o cadáver uma chuva de metralha, para que os ingleses o não podessem arrastar para as suas linhas. E dias se passaram, num terrível duelo em volta dos troços desconjuntados dêsse corpo humano, que amigos e inimigos retalhavam a canhão numa sanha de bestas feras.

 

Veja, minha boa amiga, a que extremos de crueldade chegou o homem — êsse mesmo homem que por aí amaneira a terra com a solicitude com que ageita um filho no berço, que tira o chapeu humildemente quando os sinos, às primeiras sombras da noite, tocam às trindades e que trata os próprios cães como próximos parentes.

 

Alguns bemmequeres colhi-os já numa trincheira de comunicação, quasi toda destruida, a Plum Street, perto de uma posição de metralhadoras pesadas, e quási no ponto da sua interseção com a trincheira de combate. Sobre aquela trincheira tinham-se sobreposto alguns sacos de terra, e pelo canto esbarrondado dum dos sacos saíam os bemmequeres. Como na frente ficava o abrigo betonado das metralhadoras, os tiros inimigos haviam-nas poupado.

 

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Esses bemmequeres representam as longas horas em que, nos intervalos dos bombardeamentos, nas horas quietas dos dias ensoalhados, nos é dado pensar na vida e destino dos homens, nas razões e conseqùências da guerra, e nas pessoas que vivem dentro de nós, como um raio vive dentro do sol ou como uma gota de água vive dentro de um lago. E' nestas horas que fazemos a escolha das nossas recordações e das nossas saudades, deixando esbater nos últimos planos da memória as tenues simpatias e as vagas amizades, os encontros dum dia e os contactos furtuitos, e trazendo à flôr dos olhos, trazendo à flor da alma, as imagens que se nos apoderaram do coração e lá fizeram a sua eterna morada. E' nestas horas, porisso, que mais me lembro de si.

 

As pobres flores são dignas de serem tocadas pelos seus brancos dedos, porque são o que há de pureza e de graça nestas torvas regiões em que a morte dispõe de todos os elementos de acção e a vida teve de se refugiar no seio da terra, como precita da luz e como escrava do crime.

 

Diz-se que algumas vezes o amor provém do ódio. Será possível que dêste imenso pôço de ódios e de amarguras venha a sair a claridade e a alegria? Será possível que desta guerra saia a paz universal?

 

Se assim fôsse, as pobres flores que lhe mando mereciam ser guardadas religiosamente, num relicario precioso, como se guardam as relíquias sagradas.

 

Tenho medo de a maguar, pedindo-lhe que me não esqueça nas suas orações.

 

 

(Continua na próxima quarta-feira.)

 

 

12
Mai21

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)


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António Granjo

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)

 

13

 

Nota: A GRANDE AVENTURA - (SCENAS DA GUERRA) é um pequeno livro que resultou da participação do ilustre flaviense António Granjo na I Guerra Mundial de 1914-1918, que deixamos aqui em episódios, escritos no português da altura, incluindo erros e gralhas tipográficas.

 

 

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Crianças na guerra (autor desconhecido)

 

 

Acantonamento de Penin-Mariage

 

 

Os inglezes puzeram a esta herdade o nome elegante de Skipton-Castle. E' o tipo comum da «ferme». Um terreiro com uma depressão quadrada ao meio, revestida de tijolo, para a nitreira; a casa da residência do «fermier» ao fundo, em frente da entrada; as dependências á roda.

 

A herdade foi abandonada nos primeiros dias da invasão, e como o refluxo da enorme vaga alemã parasse á distancia de alguns dois kilometros, os donos ou os rendeiros preferiram deixar-se ficar para o interior, ganhando a vida tranquilamente, a arriscarem-se á existência de inferno que levam os poucos civis que por aqui continuam agarrados ao seu torrão.

 

A casa da residência foi aproveitada para a messe e instalação de alguns oficiais, e por cima, num largo sobrado destinado á arrumação dos utensílios de lavoura, acomodou-se um pelotão. Numa das dependências, aquela que corre sobre a estrada, funcionava, quando estavam aqui os ingleses, um cinematógrafo. Meteu-se aí outro pelotão.

 

A' entrada vê-se ainda uma taboleta, tendo a letras vermelhas: «Grenad's School». Nas terras de semeadura, que se estendem para além do pomar, e onde se vêem ainda bocados de trincheira, exercitaram-se os melhores granadeiros ingleses. Os ingleses teem ainda nesse campo de instrução um posto de telegrafia sem fios e um posto de observação aerea.

 

Os telhados da herdade são de colmo, em pendente vertical, dando ao conjunto o aspecto amaneirado e pretencioso dum «chalet».

 

As cozinhas rodadas, onde se está fazendo o rancho dos soldados, fumegam sob as copas do pomar. As peras e as maçãs, cujas películas verdes reluzem ao sol, entre as folhas, como dorsos de reptis, aguçam já a gula dos soldados. Um soldado nu, com uma esponja que mergulha num balde, delicia-se com a frescura da agua e sorri para cima, para o sol.

 

Durmo, num pequeno quarto, com mais dois oficiais. As camas são as mesmas da primeira linha. Somente a rede de arame está menos esticada, mais bamba, porque, havendo mais tempo para dormir, desforram- se nestes dias de apoio as longas horas, os infindáveis dias de vigília em frente do inimigo.

 

A minha companhia está hoje de prevenção, e por isso, depois de almoçar umas lascas de presunto e umas fatias de queijo, deitei-me e consegui dormir regaladamente.

 

Acordei tarde, jantei, e dei um passeio pela estrada, a que os ingleses deram o nome duma das suas rainhas. Uma criança que encontrei junto duma casa meia arruinada, fazendo um ramo, emquanto uma bataria anti-aerea cercava um aeroplano alemão de «schrapnells», fez-me parar um pouco e lembrar-me dessas coisas tenras, as crianças e as flores, que havia alguns dias tinham desaparecido da minha vista. O que será esta geração, criada sob o fragor do canhoneio, presenciando continuamente o horror, vendo espadanar por todos os lados o sangue, e vendo cair do ceu, em vez das bênçãos de Deus, os torpedos e as granadas incendiarias?

 

Seriam 10 horas quando entrei no acantonamento. Os foguetes subiam de extremo a extremo do horizonte; e de vez em quando, dos lados da Bélgica, chegava aos ouvidos o trovão rolante.

 

Os meus dois camaradas estavam já deitados. Como a minha companhia estava de prevenção, tirei apenas as botas, pus o equipamento no chão, á cabeceira, e deitei-me de costas por cima das mantas.

 

Os meus camaradas dormem, inteiramente entregues ao sono, como as sombras se entregam inteiramente á noite. Pela janela, donde as vidraças e os caixilhos desapareceram, entra, por entre as cortinas de lona, o luar. No compartimento onde está o Posto de Socorros um maqueiro ressona. Ouve-se um leve murmúrio de vozes no pequeno quarto onde dormem os medicos do batalhão, o dr. Fradique e o dr. Ruivo. Um feixe de raios luminosos brinca nas colunas de madeira do fogão, sobre cujo abaco luzem ainda os restos duma «garniture». Um dos oficiais é um alferes miliciano do Porto, estudante de direito, e que leva a guerra um pouco como leva o seu curso—sorrindo. E' o alferes Araujo. Pequenino, pálido, olhos de azeitona, dilatando as narinas sensuais á aproximação de uma mulher, e repregando energicamente os musculos da face á aproximação duma granada, foi o meu companheiro ideal dessas longas horas de prova. O outro oficial é um meu patrício, do quadro permanente, o alferes Videira, eternamente indignado contra a falta de disciplina e organização dos nossos e patrioticamente clamando pela adopção dos ferreos métodos da Germania.

 

Ambos dormem um sôno bem merecido.

 

O alferes Araujo meteu a cabeça debaixo das mantas e engrunhou-se como uma criança cheia de frio. O alferes Videira dorme com os lábios abertos e uma respiração quase imperceptível. De cima, do sobrado, onde está instalado um pelotão, vem de vez em quando o rumor de corpos que se mexem sobre a palha.

 

Quanta gente já passou por aqui? Parece-me ver no tecto, onde algumas teias de aranha, aos cantos, me dão a impressão de cabeleiras dependuradas, as sombras dos heróis de Vieille Chapelle e Neuve Chapelle, cujos corpos juncam por aí fóra esses campos e que também dormiram sobre estas mesmas camas um sôno bem merecido.

 

Pela meia noite um rouxinol começou a cantar. Levanto-me e chego á janela. Debruço-me sobre as duas tabuas que a tapam até meio. Uma linha de agua corre paralelamente á parede. Num sitio em que a agua empoça, a lua retrata-se vaidosamente. Um bocadinho á direita vêem-se as cruzes dum pequeno cemitério. Os galhos dum amieiro pendem sobre as cruzes. E' neste amieiro que o rouxinol canta.

 

Na noite silente não passa um rumor. Apenas a grande voz murmurante da terra adormecida nos chega aos ouvidos da alma, e um ou outro foguete sobe silenciosamente, denunciando a primeira linha. Uma estrela mais brilhante parece deslocar-se no ceu, como o farol dum aeroplano.

 

O rouxinol canta. Ponho-me a escutá-lo. Uma briza fresca, quase molhada, acaricia a face e produz na folhagem dos amieiros um sussurro de pequeninos lábios que falam baixo para não acordarem os heróis que dormem.

 

As notas elevam-se na atmosfera luminosa, graves e solenes, como uma prece. Dir-se-ia um padre resando um salmo pelos mortos. O luar parece iluminar melhor o pequeno cemitério. Quase distingo as inscrições fúnebres. Os amieiros parecem acompanhar, pianissimo, a oração do rouxinol.

 

Uma bataria pesada rompeu bruscamente fogo, fazendo um teste. Os clarões das quatro peças rasgaram através do luar violáceo rastos sanguíneos, e a sua voz portentosa fez estremecer a terra. Depois, tudo recaiu no mesmo silencio religioso.

 

O rouxinol soltou, neste silencio religioso, algumas notas baixas, como os ecos dum cântico perdendo-se numa nave. Em seguida houve uma pausa. O côro dos amieiros subiu um pouco mais forte.

 

O rouxinol continuou a cantar, noutro tom. Já não era a elegia, era qualquer coisa de uma narração heróica, em que as notas metálicas vibravam entre estrofes sonoras. Ora o cântico era uma vaga frase bemolada, como o passo duma patrulha distante ou como o bater opresso do coração duma sentinela sentindo na sombra o bafo do inimigo; ora, de repente, parecia o choque de duas baionetas que se disputam. Uma pequena pausa parecia o minuto eterno que separa um encontro decisivo; e uma onda de notas mais altas, enchendo todo o espaço, parecia a voz heróica de toda uma fila que avança ao assalto.

 

Por fim, o cântico gradou-se num gemido débil, qualquer coisa como um fio que se parte ou como uma bala que se espeta na terra. Dir-se-ia a voz flebil dum coração moribundo que se extingue na noite como o suspiro duma folha ou como a palpebra duma estrela.

 

E toda a noite o rouxinol cantou, desfolhando as suas notas, como pétalas sonoras, sobre as cruzes brancas do pequeno cemiterio, ora como um responso piedoso, ora como um hino de gloria.

 

Merecerei eu, se morrer nesta terra estranha, ao menos, os cânticos de algum desses rouxinóis, a quem a natureza deu uma voz mais formosa que a voz humana e que são os sumos sacerdotes da noite e do mistério?

 

(Continua na próxima quarta-feira.)

05
Mai21

A GRANDE AVENTURA

Scenas de Guerra


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António Granjo

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)

12

 

Nota: A GRANDE AVENTURA - (SCENAS DA GUERRA) é um pequeno livro que resultou da participação do ilustre flaviense António Granjo na I Guerra Mundial de 1914-1918, que deixamos aqui em episódios, escritos no português da altura, incluindo erros e gralhas tipográficas.

 

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Carta a uma mãe

 

Os comandantes dos pelotões são quem censura as cartas dos seus soldados. E' uma tarefa aborrecida e ingrata, cumprida por desfastio nos intervalos dos bombardeamentos, entre o almoço e a ronda, á luz duvidosa do abrigo.

 

Em regra, são cartas pequenas, noticiando o estado de saúde, mandando recados aos visinhos, lembrando festas de familia ou pedindo novas das moças da terra. Mas, ás vezes, a nostalgia aperta mais os ingénuos corações dos magalas, os olhos cerram-se-lhes, e as suas almas simples, como grandes borboletas de asas impalpáveis, deixam-se ir, para além dos horizontes, até qualquer cantinho risonho e florido das nossas províncias, onde porventura, àquela mesma hora, numa correspondência misteriosa de afectos, numa telepatia obscura de sentimentos, vozes aflitas rezam por eles, mãos trementes se cruzam sobre os peitos confrangidos e olhos turvos de lagrimas se erguem para alguma Nossa Senhora, com o filho morto nos braços, entre as flores de papel do velho oratorio. O magala chama então o cabo ou o camarada mais letrado, e vai espremendo o coração sobre o bocado de papel.

 

Algumas dessas cartas, feitas nos momentos de maior emoção, são squemas admiráveis da sentimentalidade nacional. Verdadeiramente, constituem o nosso «folk-lore» da guerra. As imagens cáem dos bicos da pena com a mesma simplicidade luminosa com que o dia cai sobre os campos e com a mesma brandura e graça com que a nascente corre da serra. O coração salta para a palma da mão, as lagrimas saltam para os cantos dos olhos e as palavras escorrem dos lábios, doces como fios de melaço, acalentadoras como o lume da lareira, tranquilas como um seio de irmã.

 

As cartas passam do comando da companhia para o comando de batalhão, daqui para a brigada, daqui para a estação postal, e daqui para a terra longínqua, como asas de andorinhas que buscam um beiral amigo, onde, emfim, possam soltar os seus gorgeios.

 

A carta que vai a seguir é talvez uma dessas. Apenas lhe puz algumas virgulas, emendei alguns erros de ortografia e introduzi um ou outro período para lhe dar tal ou qual feição literária. Ela aí vai, como uma andorinha, em procura dos regaços carinhosos das mães dos soldados portugueses:

 

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«Minha santa mãe:

 

«Estimo que ao receber desta esteja de perfeita saúde. Eu continuo bom, graças a Deus.

 

Escrevo-lhe numa hora de grande saudade. Tenho-me lembrado todo o dia das nossas coisas — da nossa horta, do nosso eirado, da nossa casinha. Véem-me á memoria, sem querer, os tempos da infancia, e parece-me que chego a sentir as caricias da sua mão adoçarem a febre que me queima esta pobre cabeça, sobre a qual, a cada hora, como pios lugubres de corujas, passam os grasnidos das granadas.

 

Ha bocadinho deixei-me adormecer. A gente não deve abandonar-se ao cançasso, nem pôde entregar-se ao sono. O descuido de um minuto, o desfalecimento de um instante pagam-se com a vida. E' preciso olhar para todos os lados, quase adevinhar as intenções das balas, ter todos os sentidos bem espertos, para a gente se poder defender da  morte. Mas o corpo é fraco, e muitas vezes deixamo-nos cair numa especie de amolecimento da carne, de quebrantamento do sangue, que nos faz bem. Que se lhe ha de fazer? O que tem de ser tem muita força.

 

Como lhe ía dizendo, ha bocadinho deixeime adormecer. E entre a roseta vermelha que o sol fazia dançar deante dos meus tristes olhos fechados, o seu rosto apareceu-me como que vindo do céu, com o mesmo sorriso que tinha no dia em que eu levei para casa o primeiro dinheiro que ganhei. As saudades matam-nos, minha mãe.

 

Num outro dia, numa tarde de chuva, estava eu dentro do abrigo comendo o rancho, e descançando um pouco, porque todo o dia tinha andando a compor uma trincheira arrombada pelos morteiros do inimigo, e ouvi distintamente, junto de mim, a sua voz. Já o rancho me não prestou e para ali fiquei, agachado, vendo pela boca do abrigo cair a chuva na passadeira, tomado de uma melancolia que me fazia arrefecer as veias. Resistiremos facilmente ao inimigo, mas não sei se resistiremos a isto.

 

Temos o coração maior que os outros. E' talvez a nossa desgraça.

 

Os franceses teem na frente da batalha todos os seus homens validos. Passa-se pelas  vilas e pelas aldeias e não se encontram senão mulheres e crianças cobertas de luto. Mas as crianças riem e brincam como se nada fosse, e as mulheres divertem-se com ingleses e portugueses.

 

Não entendo esta gente. Não, não é lá por falarmos linguas diferentes. Quase todos falamos já um pouco de francês e não nos é dificil compreendermos os proprios ingleses. Não é por isso. Os corações é que não se entendem.

 

O beijo é para as nossas mulheres um pecado. Pois aqui é um cumprimento. Uma mulher casada que aí fosse vista a beijar um homem que não fosse o seu marido ou o seu irmão, estava perdida. A mim, ainda ha dias uma mulher casada me beijou na presença do marido, que sorria com indiferença. E preparava-se para se me sentar nos joelhos, se eu não tivesse mais vergonha do que ela e não tivesse fugido, com as mãos apertadas na cabeça.

 

As raparigas d'ai teem medo de que nos deixemos ficar por cá, enamorados das «demoiselles». Que não tenham receio!

 

As longas horas de namoro, ao luar duma desfolhada, sob as ramos duma arvore, juntodo peitoril duma janela, tocando-se, não as faces, mas as almas, beijando-se, não as bocas, mas os olhos, e isto por muitos anos, até que se assente o dia das bodas e se vá pedir a Deus que abençoe aquele longo e manso amor, emquanto os sinos repicam alegres, e as raparigas esperam cá fóra, no adro, com os açafates cheios de flores, a saida dos noivos, — toda essa graça, toda essa luz, toda essa pureza da nossa terra são coisas inteiramente desconhecidas desta gente.

 

Ail minha Mãe! se me vejo em Portugal, bebendo a nossa agua fresca, comendo o nosso pão amargo, dormindo nas nossas duas tabuas, e se tiver a felicidade de, á volta, encontrar uma mulher saudavel e bonita que me queira e que me dê tantos filhos quantos forem os anos que vivamos, como eu serei feliz!

 

Mas quando será isso? Quando acabará esta maldita guerra? Quando é que os homens deixarão de se matar como bestas féras e por cima destas trincheiras as mãos se estenderão aos inimigos no gesto irresistível de irmãos que se reconhecem e que se perguntam a si mesmos porque ha tanto tempo se estão matando?

 

Eu sei lá, minha santa Mãe! se as suas orações, e as de tantas mães que ha pelo mundo e teem aqui os seus filhos, não fizerem nada, estou a ver que os dias e os anos se passarão sem que se veja o fim.

 

Como quer que seja, minha Mãe, o seu filho ha de saber cumprir o seu dever de português. Já fui louvado duas vezes, e os meus superiores falam de mim aos camaradas como um exemplo a seguir. Considero, no entanto, que pouco fiz. Uma vez, no aceso do combate, sozinho, porque os meus camaradas tinham sido feridos, salvei o meu morteiro, levando-o ás costas, sob o desabar da metralha, para uma nova posição. Outra vez, tendo um obuz rebentado no meio da posição e tendo fugido os meus camaradas, eu não me deixei tomar do medo e despejei sobre o inimigo todas as munições. No fim de contas, como vê, pouco fiz. Outros teem feito mais, e ou porque foram vitimas da propria heroicidade e cá ficaram estrumando esta terra estranha, ou porque as suas façanhas não foram do conhecimento dos seus superiores, ficaram no mais ingrato esquecimento.

 

E não sou só eu. Todos são portugueses. Todos sentem que é com o seu sacrifício que a Patria, a nossa outra e grande Mãe, conta para se salvar e engrandecer. Se era necessário para cá vir, não temos remedio senão olhar para a frente. Os olhos devem abrir-se bem para o largo, a alma deve desagarrar-se das raizes da vida até tocar o céu, e os braços, visto que sômos poucos, devem  animar-se de dobrada força e triplicada vontade.

 

Quando o Pae morreu, da doença que contraiu na Africa numa expedição, havia nos seus olhos uma luz interior que parecia iluminar tudo. Eu era ainda pequeno, mas essa luz arde dentro de mim, como se fosse a minha propria vida.

 

Entendo que a vida só é boa quando dela possa resultar uma lição, e Deus me livre de ter o coração tão pequenino que não me encha bem o peito, e não bata tão forte que todos lhe sintam as pulsações.

 

Eu sei, minha boa Mãe, que ao lêr esta carta hade chorar muito. Hade chorar de tristeza, por ter o seu filho tão longe, exposto aos maiores perigos, passando os mais árduos trabalhos, refugiado numa toca como um lobo, com os pés sempre agarrados á lama e a mão procurando sempre a espingarda. Mas sei que também hade chorar d'alegria por vêr que o leite que eu bebi dos seus seios bemditos não se corrompeu dentro das minhas veias e que as lições de honra que eu hauri da boca moribunda de meu Pae, indicando-me o sentido da vida e o caminho da gloria, se insuflaram dentro da minha carne como células vivas que fazem parte do meu ser.

 

Peço-lhe que, se tem de chorar, o faça emquanto eu estou ausente. Porque, quando eu fôr—e hei-de ir, que tenho fé na minha estrela e sinto que Deus me tem sob a sua guarda —quero vêr-lhe os olhos bem enxutos, brilhando de toda a sua luz e penetrando-me de toda a sua doçura e de todo o seu calôr.

 

Vou terminar. Com esta longa carta, soceguei um pouco a alma e a saudade é menos viva. E' quasi a hora do álerta, em que todos temos de ir para o nosso posto.

Deite-me a sua benção e até um dia. — Antonio».

 

 

 

Esta carta, publicada no Diário de Noticias, mereceu a uma senhora franceza, M.me Blanche Froment, que imaginou ser nossa intenção visar depreciativamente as suas compatriotas, uma outra carta, que veio também publicada no Diário de Noticias, e em que justamente se exalta o papel da mulher franceza durante a guerra.

 

Essa carta vae a seguir publicada, bem como a resposta. Quando respondemos a M.me Blanche Froment sinceramente julgámos que se tratava dum pseudónimo. Viemos depois a saber que não, e antes se tratava de uma senhora distintíssima, que casou com um ilustre artista portuguez, e que da nossa terra fez a sua segunda e egualmente querida Patria.

 

Entendemos que não é fora de proposito dar aqui á estampa essas cartas, taes quaes foram publicadas.

 

Eis a carta de M.rae Blanche Froment:

 

 

«Lisbonne, le 27 fevrier 1918.

Monsiur le Directeur.

 

Je vous serais três reconnaissaute si vous vouliez insèrer ces quelquer lignes dans votre journal si impartial et estimable.

 

Vous avez publié hier un article sous forme de lettre « Carta a uma mãe» qui blesse mes justes susceptibilités de femme française, et je viens protester hautement contre la littérature pretentieuse de Monsiur Antonio Granjo. Afin de faire ressortir les beautés de l'âme feminine portugaise, à laquelle je rends hommage de tout coeur, il ne craint pas de fouler sous le talon de sa botte le caractère et la dignité des femmes de mon pays. II écrit que ces femmes en deuil s'amusent et rient avec les soldats portugais et anglais et que celles qui sont marieés n'hesitent pas fi embrasser aussi les soldats et a s'asseoir sur leurs genoux même em présence de leur mari!-…

 

D'un fait auquel il a « peut être» présidé, il fait une géneralité, mais ce qu'il démontre surtout, c'est qu'il est totalement dépourvu de 1'usage et du savoir-vivre écessaires a lui faire discerner la différence existante entre la « femme à soldat», dont le type es connu ici comme lá-bas, et la femme française, quelle que soit sa position sociale; et ce n'est vraiment pas en ce moment oê elle donne et continue à donner 1'exemple des vertus familiales, du dévouement et du courage, qu'il convient de venir la dénigrer sous pretexte de littérature.

 

J'ajoute que la « Carta a uma mãe» n'est même pas un article patriotique et qu'il est loin d'apporter na coeur des pauvres rnères portugaises le courage, la résignation et l'espérance qui leur seraient si necessaires! Cette lettre ne peut servir qu'á les faire souffrir davantage (si cela est possible) et personne ne devrait chercher à ébranler leur foi dans l'avenir et leur espoir d'un jour prochain oú elles pourront serrer sur leur coeur ceux qui lá-bas vivent du même rêve.

 

Personne plus que moi ne partage les angoisses de ces meres douloureuses, et —j'ai de la peine à retenir des larmes de pitié quand je vois partir ces beaux jeunes hommes empcrtant dans leurs bagages les « saudades » de tous et les miennes aussi.

 

Nons savons tous que la vie est dure pour eux làbas... La guerre veut cela, et les pauvres mères tremblent des dangers qu'elles entrevoient pour leurs enfants; mais alors? Est-il necessaire de leur noircir encore la tableau?

 

Veuillez croire, Monsieur le Directeur, à mes sentiments de haute consideration.

Blanche Froment.»

 

E eis a resposta:

 

Snr. Director.

Agradeço a v. as palavras benévolas que encabeçam a carta, assinada Blanche Froment, que vem publicada no Diário de Noticias, de 28 de fevereiro, e que só hoje, 2 de março, ás 23 horas, pude ler. Tenho a minha vida, que me obriga a estar fora de casa alguns dias, e eis aqui está porque só hoje posso responder á dita carta. Aproveito a ocasião, já agora, para me desculpar perante v. e os leitores do seu jornal, da fórma irregular por que vou redigindo e mandando as minhas impressões de «turiste» das trincheiras.

 

Creio, sr. diretor, que o nome que subscreve a carta é um pseudónimo.

 

Uma senhora, mesmo francesa, dirigir-se-ia a um cavalheiro, quem quer que fosse, de um modo bem diferente. E quando faço esta restrição — mesmo francesa— não quero de maneira alguma discutir, ao menos por agora, a mulher francesa.

 

Atribuo ás praticas malthusiasnas e ás velas de Erbon, e similares, em grande parte, a situação em que se debate a França, mas esse tema servir-me-á porventura para um artigo que escreverei quando tiver vagar e oportunidade, e não está nas minhas intenções antecipar o estudo dessa materia.

 

A mulher francesa tem, sem duvida, uma moralidade e uma sentimentalidade diversas da mulher portuguesa, e, sem averiguar por ora de que lado está a inferioridade, não me parece que a qualquer senhora francesa seja legitimo julgar-se ofendida, ou sentir-se susceptibilizada, por eu fazer uma tal afirmação.

 

Os costumes portugueses não permitem que uma mulher beije outro homem que não seja o seu marido ou um seu proximo parente. E' a verdade. Os costumes franceses fizeram do beijo um cumprimento. E' também a verdade. Não ha ninguém que conheça Portugal e que conheça a França e que não saiba isto. Não é a «femme à soldat» quem usa o beijo como um cumprimento — essa criatura usa o beijo como um triste modo de vida.

 

E' esse costume francês de uma moralidade superior ou inferior ao costume português? Eu não discuti esse ponto, que aliás é perfeitamente digno de discussão, sem que a dignidade da mulher francesa possa sequer ao de leve ser atingida ou molestada.

 

Assim, uma senhora francesa jámais se podia sentir ofendida com essas minhas palavras. Desde que o beijo é um cumprimento, não ha na troca desse beijo a porção de impureza que nós, os portuguezes, lhe poderíamos atribuir. Isso será até a manifestação, por uma fórma bem gentil, duma civilização refinada e superior, que nós ainda não alcançámos, e eu desejaria que jámais alcançássemos. Por isso eu creio que se trata de um pseudónimo.

 

A carta insurge-se contra o eu dizer que as mulheres francesas, embora tenham os seus maridos e irmãos na frente, se divertem com os ingleses e os portugueses. Não quiz fazer apenas pretensiosismo literário -registei um facto. Muitas mulheres francesas chorarão, no silencio recolhido do seu lar enlutado a morte dos seus seres queridos, sem que se lembrem, de certo, de vir á imprensa fazer alarde da sua dór. Efectivamente, a dór tem os seus direitos em toda a parte; e não é porque os costumes são mais livres que as lagrimas sentidas de uma mãe, de uma esposa ou de uma irmã são menos a expressão de uma alma aflita. Mas essas pobres almas mal podem com a sua cruz, e a essas me não poderia referir eu.

 

Não precisam, essas mulheres heróicas, que em Portugal, ou noutras quaisquer paragens, venha quem quer que seja em sua defesa. Essas, conheço-as eu bem. Vi-as, nas humildes «fermes» onde acantonei, rezando e chorando, como as mulheres portuguesas. Mas a par dessas, e sem ser preciso recorrer ás lobas dos acampamentos, quantas mulheres fizeram desta hora de combate a hora alegre e despreocupada duma vida de criaturas fáceis, mais perniciosas á França do que a metralha inimiga?

 

Quanto a ver-se uma mulher casada sentar-se nos joelhos d'um soldado, na presença do marido, será, e creio bem que é, facto singular —mas vi coisas piores em França. Vi, com infinita repugnância, em quase todas as cidades da rectaguarda, mulheres venderem, na presença dos maridos, aos soldados, colecções de postais obscenos. E essas scenas despertavam em todas as almas bem formadas, e que, como eu, amavam e amam a França, a tentação de correr tudo isso a chicote, porque a França não é, e jámais será, um balcão de imundicies. Ha, porventura, alguma senhora francesa que não sinta a necessidade de purificar a França de todo esse vil comercio?

 

E' «isso» a França?  E' «isso» a mulher francesa? Quem é que o disse aqui? Eu, ao menos, não.

 

De resto, dizer que os corações portugueses não sentem como os corações francezes; que nós, os portugueses, encontramos mais poesia, mais graça e mais pureza nos costumes do nosso povo do que em qualquer outro, incluindo o francês; que as moças de Portugal escusam de recear pelos seus namorados, porque os encantos das «demoiselles» não serão bastantes para os desviar do bom caminho do lar natal — dizer isto será porventura um crime? Pôr algumas palavras, simples e honestas, angidas de amor pátrio, na bôca dum soldado português, será defeso, a nós os portugueses ?

 

Não creio, repito, que a carta em questão fosse escrita por uma senhora francesa. Mas se o foi, essa senhora deve compreender que deveres de cortezia me impedem de ir mais além. Faço justiça ás suas intenções, mas onde não houve proposito algum, nem palavra alguma que denegrisse a verdadeira mulher, francesa ou portuguesa, eu não merecia as suas recriminações. E se ha injustiça que nos fira, a nós, os  homens, é justamente a que nos vem duma mão donde supomos que só pode cair... um ramo de flôres ou um livro de orações.

 

Essa senhora não me compreendeu, como talvez me não compreenda ainda. Eu quiz, com a minha carta, espertar o patriotismo das mães portuguesas, e procurei fazê-lo duma forma que tocasse os corações. Algumas senhoras portuguesas teem-me falado da carta com as lagrimas nos olhos—lagrimas quase de agradecimento, porque as minhas palavras foram de algum modo consoladores. Mas essa senhora não compreendeu. A razão está em que nós, os portugueses, sentimos e compreendemos de maneira diferente. E' a confirmação de tudo quanto tenho dito.

 

Espero não me enganar, dizendo que se trata de um nome suposto. Se, na verdade, contra o que é de esperar, se trata de uma senhora, reconheço que é a mim que me compete pedir desculpa, e como procuro sempre cumprir o meu dever, para ressalvar essa hipótese absurda, aqui apresento, por fim, as minhas homenagens á mulher francesa, e em especial á senhora que me deu pretexto para lhas apresentar.

 

Chaves, 2—3—18.

Antonio Granjo.

 

(Continua na próxima quarta-feira.)

 

28
Abr21

A GRANDE AVENTURA

SCENAS DA GUERRA


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António Granjo

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)

11

 

Nota: A GRANDE AVENTURA - (SCENAS DA GUERRA) é um pequeno livro que resultou da participação do ilustre flaviense António Granjo na I Guerra Mundial de 1914-1918, que deixamos aqui em episódios, escritos no português da altura, incluindo erros e gralhas tipográficas.

 

 

 

O metralhador

 

 

Ao «a postos» da manhã recomendei novamente que a limpeza das duas metralhadoras se não fizesse à mesma hora. O inimigo podia surpreender-nos quando ambas as metralhadoras do pelotão estivessem desarmadas e não poderíamos oferecer a resistência indispensável para na segunda linha se tomarem as posições de combate e para terem tempo de acudir as forças de apoio. Levantado o «a postos», fui verificar se a ordem

tinha sido cumprida.

 

Uma das guarnições ficara efectivamente em alerta. Ao periscópio, uma sentinela vigiava a campanha. A metralhadora, com um tambor carregado, estava encostada a um ângulo do parapeito. O cano, bojudo e negro, destacava-se dos sacos de terra, como uma enorme lesma. Disse ao cabo que a dissimulasse e fui ver a outra guarnição.

 

Sôbre uma manta, junto do abrigo, os soldados tinham estendido as peças da metralhadora desarmada. Ao sol daquela manhã de princípios de agosto, os aços reverberavam. Sentado sobre um lençol impermeável, um soldado ia carregando os tambores que se haviam esvasiado nas ultimas horas da noite. O cabo escolhia os cartuchos de dentro dum cunhete e ia-os entregando ao carregador. O tic-tac dos cartuchos, entrando nos cavados, e adaptando-se entre as cavilhas, fazia cabecear de sono um outro soldado que limpava o cano.

 

As metralhadoras não fazem em regra fogo dos postos de combate. Ha posições à direita e à esquerda, donde, de vez em quando, para manter espertas as sentinelas, conservar os homens confiados e perturbar alguma patrulha inimiga que ronde a Terra de Ninguém, se fazem rajadas.

 

Chamei o cabo e fui ver essas posições. Por virtude da disposição da trincheira, os dois postos das metralhadoras eram muito próximos. Havia um ponto na linha inimiga onde, nos dias anteriores, se tinha notado algum barulho nos arames, supondo-se que os alemães andassem reparando ou reforçando as suas defesas acessórias. Esse ponto ficava um pouco afastado das posições de combate das metralhadoras. Dei ordem para se fazerem naquela noite, duma posição fonteira, algumas rajadas baixas.

 

Reparei que o cabo se mostrou um pouco enleado e se lhe crisparam levemente os músculos da face.

 

—Que é?

—0' meu alferes, esta posição é batida toda a noite por morteiros ligeiros...

—Homem, se vamos a pensar nisso...

 

Eu fui para o outro lado da linha e o cabo fez a continência e foi ganhar a sua guarnição.

 

O dia decorreu no socego já habitual. Raras, as granadas, passavam altas, para a rectaguarda; e apenas ao meio dia um combate sem resultado de dois aeroplanos, que se metralhavam a 200 ou 300 metros de altura, quebrou a tranquilidade do sector.

 

A' noite, entrei de ronda às 22 horas. A lua estava no quarto minguante. Uma claridade mortuária, com uns laivos azulados que erravam sobre os arvoredos, amortalhava a terra. O céu parecia mais profundo e as estrelas pareciam chegar-se, tiritantes, umas às outras. A estrada de Santiago estendia de lez a lez o seu imenso rasto fosforescente. Estrelas cadentes precipitavam-se de quando em quando no vácuo. Um «very-light» subiu rapidamente no ar untuoso, descreveu a sua curva luminosa, e foi cair, ainda aceso, dentro da trincheira inimiga. No céu, emquanto o foguete ardeu, projectou-se um fugaz clarão vermelho. Para a rectaguarda, o reverbero das fabricas de canhões e munições de Yzeberg fazia sonhar num incêndio enorme que devorasse uma cidade longínqua.

 

Lembrei-me de ir ao posto da metralhadora verificar se a minha ordem tinha sido cumprida. O cabo informou-me, numa voz grave, que, justamente, iam fazer naquele momento uma rajada da posição indicada. Um soldado pôs a metralhadora ao ombro e outro, com um balde de tambores, seguiu-o sem dizer palavra.

 

Acompanhei-os. Emquanto assentavam a metralhadora, debrucei-me no parapeito e inspeccionei a Terra de Ninguém. Uma vala, paralela ao parapeito, corria em baixo, antes da nossa rede de arame, como um fôsso estreito, no fundo do qual a água dormia. Adiante, a nossa rêde de arame emaranhava-se meia escondida entre as hastes tenras das gramíneas bravas e das flôres silvestres. Viam-se as cabeças dos «long-pickets», como grandes olhos de insectos pousados. Na frente, por sobre a planície sem fim, rolava o mistério. Dentro do bosque misterioso sentia-se o rodar surdo das vagonetas. Em duas crateras produzidas por morteiros pesados, e que alargavam para o luar os lábios irregulares e sujos, agitavam-se as sombras. Daquela facha de terra de alguns metros de largura, e que os maiores exércitos que ainda se tinham reunido sobre a terra disputavam ha três anos, ascendia uma fermentação de coisas pútridas que turbava a alma.

 

O metralhador premiu o gatilho e o som da rajada prolongou-se na noite calma como o rebentamento duma vaga na praia deserta.

 

— Está bem, rapazes. Daqui a uma hora outra rajada...

 

E um com a metralhadora, outro com balde, os dois soldados voltaram para a posição de combate.

 

Junto dum abrigo próximo, tinham colocado um bocado de passadeira sobre dois cunhetes vasios. Sentei-me. Procurei matar o tempo. O tempo é o grande inimigo. O segredo desta guerra está em fazer à roda do espírito uma atmosfera em que não haja cor, nem som, nem movimento e em que se vejam correr as horas como os ramos pendentes das margens vêem correr as águas do rio. O essencial é ganhar a soma de inconsciência necessária à vida animal em que se transformou a existência de toda esta gente que se mata e que range os dentes.

 

Sôbre Bethune as grauadas anti-aereas fosforejam como grandes pirilampos. Os jactos luminosos dos projectores cruzam-se. Alguns morteiros pesados caem no sector à esquerda. A passadeira toma uma trepidação violenta como se a terra fosse sacudida por uma convulsão.

 

O tempo vai-se passando. Um maqueiro dormita com os braços apoiados num través e com a cabeça encostada às mãos cruzadas. A boca fica-lhe livre, respirando brandamente o ar fresco. Disse às ordenanças que fossem a meio da trincheira morta lançar um «verylight» e fiquei contemplando, sósinho, a noite sereníssima.

 

O luar adelgaçára-se, tornára-se mais transparente, mais diafauo, como um imenso véu de tule coando a luz dos astros. Os lábios grossos do maqueiro, sôbre os quais o luar caía em cheio, mechiam-se, parecendo alongarem-se para sorverem alguma coisa distante. Talvez o pobre rapaz sonhasse com a boca da namorada...

 

Ouviu-se uma descarga de morteiros ligeiros. Uma ordenança voltou.

 

— Meu alferes, está um homem morto na trincheira...

 

Acordei o maqueiro e passámos sob os estilhaços. Atravessado de lado a lado, dobrado  sobre si mesmo, estava um soldado de borco 110 chão. 0 maqueiro foi buscar a maca. Uma das ordenanças voltou o cadáver e compôs-lhe piedosamente as mãos sobre o peito. A cabeça descaiu-lhe sobre a valeta e os olhos do morto pregaram-se nos meus. Era o metralhador, que tinha vindo à trincheira morta fazer outra rajada, em obediência às minhas ordens, e que tinha sido varado alguns passos antes da posição.

 

 

(Continua na próxima quarta-feira.)

 

 

 

21
Abr21

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)


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António Granjo

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)

 

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Nota: A GRANDE AVENTURA - (SCENAS DA GUERRA) é um pequeno livro que resultou da participação do ilustre flaviense António Granjo na I Guerra Mundial de 1914-1918, que deixamos aqui em episódios, escritos no português da altura, incluindo erros e gralhas tipográficas.

 

1024-terra de ninguem-1.jpg

 

A primeira patrulha

 

 

Marcaram-me as 24 horas para fazer a minha primeira patrulha. Tinha como objectivo patrulhar a Terra de Ninguém e inspecionar a rêde de arame inimiga. Alguns minutos antes da hora marcada os meus homens estavam prontos e reunidos no ponto de saída — na trincheira morta, entre um posto de granadeiros e um posto de fuzileiros. Faço cruzar dois foguetes sobre a linha do itenerario e um pouco depois salto o parapeito e desço até á nossa rêde de arame.

 

A nossa primeira linha formava neste ponto um angulo reintrante, e a massa irregular do parapeito fechava-se, para dentro desse angulo, num profundo poço de sombra. Pistola na mão, fico uns instantes deitado sobre os lábios duma cratera, devassando a noite. Não se ouve o menor ruido. Por entre a herva crescida espontam as cabeças dos «longs-piquets» da nossa rêde. Um cavalo de frisa, atirado para o lado, com uma cantoneira partida e o fio de ferro bambo, dá a ideia dum cadaver abandonado.

 

Faço sinal aos meus homens para que desçam. Primeiro vem o sargento, depois os outros, em fila, escorregando pela rampa suave do talude exterior do parapeito. Um foguete despedido da primeira linha inimiga abre a sua rosa de luz, que se vai desfolhando lentamente sobre os ramos despedaçados duma linha de arvores. Os homens ficam imóveis. Um deles deixou-se ficar, agachado, sobre o pequeno fosso que acompanha o talude, e faz-me lembrar uma fera preparando o salto. O ultimo foi surpreendido mesmo em cima do parapeito, e estaca, levemente curvado para a frente, com a espingarda na mão. O colete de granadeiro reveste-lhe o arcaboiço como uma couraça, o capacete rebrilha um instante como uma escama. Passa-me pela imaginação a imagem dum guerreiro antigo, guardando uma barbacã e inclinando-se para

a frente a ouvir na noite um rumor suspeito.

 

Todos os homens se alapardam nas crateras. Dos postos, algumas cabeças estendem-se para seguirem os nossos vultos. Da linha inimiga sobem agora mais frequentemente os foguetes. Como na nossa frente não se atiram «very-lights», o inimigo presume que lançámos uma patrulha e ilumina o campo.

 

Deixo passar alguns minutos, para os meus homens se familiarizarem com a situação e para não nos denunciarmos ao inimigo. Uma brisa fresca faz ondular as gramíneas que espontaneamente nasceram nesta tira de terra fartamente adubada. Para o sector da esquerda rebentaram granadas e morteiros ligeiros. Uma rajada de metralhadoras passa alta. As estrelas parecem baixar do ceu.

 

A patrulha segue. Até ao meio da nossa rede caminhamos de gatas. Depois temos de ir de rastos. A mascara dificulta os movimentos. De vez em quando um arame solto prende-se-nos às pernas. Atravessamos o ultimo sistema da nossa rede e estamos na verdadeira Terra de Ninguém — a facha, dalguns dez metros, entre as duas redes de arame.

 

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Deixaram de se ouvir as explosões das granadas e dos morteiros. Um silencio inquietante pesa sobre nós como uma barra de chumbo.

 

A nossa linha perde-se como uma vaga tinta na escuridão. O arame inimigo emaranha-se espesso e baixo, traiçoeiramente, entre as hervas. A linha inimiga, quasi enterrada na minha frente, eleva-se para a direita, onde se adivinham alguns cestões.

 

Ouvimos, na linha inimiga, o disparo de um  foguete. Os homens cingem-se à terra. O foguete ergue-se rapidamente no ar, fica suspenso um segundo e cai com uma lentidão desesperante. Num posto inimigo, viu-se uma cabeça erguer-se, inspecionar a Terra de Ninguém e baixar-se atrás do parapeito.

 

Deslizamos para a direita, seguindo o itenerario marcado. Deparamos com uma trincheira antiga, do tempo em que o campo esteve ocupado pelos alemães. Ficamos uns minutos à escuta. Um tvery-light» despedido dum saliente da nossa linha vem cair no meio de nós. Consulto o relogio. Tenho ainda uma hora deante de mim. Uma ordenança veio-me dizer que atrás dum pequeno morro, em frente, assomou um inimigo. Arrasto-me um pouco para a frente, até dentro da rede inimiga. E' um tronco despedaçado. Continuamos. Mando o sargento com dois soldados explorar a trincheira até à nossa rede e permanecer aí até retirarmos.

 

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Uma frescura matinal começa a acariciar a terra. Para a direita, no sector dos canadianos, ouve-se agora um fogo rolante; e para a esquerda, no sector dos ingleses, cinco ou ses projectores picam o ceu de feixes luminosos.

 

De repente, uma metralhadora inimiga rompe fogo contra nós. As balas cortam as hervas cerces. Uma ou outra bala, resvalando pelos fios de arame, acende algumas faiscas, que brilham na noite latejante como pequeninas fitas de fogo. Estamos descobertos. Recuamos, de rastos, a cabeça metida nas hervas, a mascara bamboleando ao lado para o peito se apoiar firmemente na terra e assim facilitarmos a marcha.

 

Junto da nossa rede de arame paramos. As rajadas de metralhadora continuam. Os foguetes cruzam-se. Alguns tiros soltos assobiam-nos aos ouvidos. Tomo as devidas medidas de segurança, instalo-me no funil duma granada e espero. As granadas de espingarda rebentam bastante à direita. O inimigo perdeu-nos a pista.

 

A impressão de segurança é absoluta. Deixamo-nos ficar, de bruços, os onvidos aplicados à terra, os olhos espreitando, entre as hastes tenras, a frente inimiga, penetrados do mistério da noite, moídos do imenso esforço daquela marcha de larvas. Um soldado vê reluzir qualquer coisa que lhe parece um capacete boche. Estende a mão e encontra um craneo com filamentos de carne podre.

 

A noite começa a adquirir a claridade leitosa da madrugada. Seguimos a nossa rede, procurando uma entrada. Numa volta, dou com o arame calcado e as estacas de ferro derrubadas. E' certamente um dos pontos por onde as patrulhas inimigas conseguem acercar-se da nossa linha.

 

Sinto o ruido dum corpo caindo na agua. E' um soldado que caiu ao poço duma antiga «ferme», da qual nenhum outro vestígio existe. Dois soldados pegam nas mãos do camarada, para o ajudarem a subir. Mas dentro do poço entrelaçam-se os fios de arame farpado e o pobre rapaz grita, porque as farpas enterram-se-lhe na carne. Com a bengala liberto do arame as pernas do soldado e os dois camaradas içam-no. Espalha-se um cheiro fétido. Aos pés do soldado vem agarrado um montão de farrapos.  A ponteira da bengala bate num osso. No poço apodrecia (ha quanto tempo?) tranquilamente um cadaver.

 

O pobre rapaz está horrivelmente pálido, e o fétido da água choca e da carne podre revolvida é insuportável.

 

1024-terra de ninguem-4.jpg

 

Procuro uma rampa para trepar ao parapeito.

 

Uma voz, como um murmurio, pergunta-me:

 

—Quem vem lá?

—Oficial português.

—Senha?

—Almeida.

 

Fico de pé, na base do talude, até que o ultimo dos meus homens entre. Depois, salto,

e fico um minuto sentado na banqueta, descançando.

 

Pergunto ao sargento:

 

— Falta alguém?

—Não falta ninguém, meu alferes.

 

Uma parpalhaça, a meio da Terra de Ninguém, canta. As estrelas, como o cadaver do poço, parece que apodrecem. O ceu ganha livores cadavéricos. Um pequeno nevoeiro começa a esconder as linhas inimigas. A brisa torna-se cada vez mais fresca.

 

O canto da parpalhaça eleva-se mais alto. Como nma voz de bom agoiro, esse canto acorda a atmosfera quieta, como um grito de vitória.

 

Sim, é necessário vencer!.

 

 

Continua na próxima quarta-feira.

 

 

07
Abr21

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DE GUERRA)


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António Granjo

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)

8

Nota: A GRANDE AVENTURA - (SCENAS DA GUERRA) é um pequeno livro que resultou da participação do ilustre flaviense António Granjo na I Guerra Mundial de 1914-1918, que deixamos aqui em episódios, escritos no português da altura, incluindo erros e gralhas tipográficas.

 

 

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Tenente Grilo - In Ilustração Portuguesa 593 de 2/7/1917

 

O tenente Grilo

 

Tinha-me apresentado no comando do batalhão de infantaria 22, no dia 11, quasi á noite. Ao outro dia, de manhãsinha, o segundo comandante, capitão Godinho, fazia a sua visita ás linhas. Pedi-lhe para me deixar ir com ele.

 

Comandava a companhia da esquerda o tenente Grilo. Estou ainda a vêl-o. A sua cabeleira fulva ardia sob a negrura viscosa da abobada de ferro. A sua face branca, a que as sardas não tinham conseguido tirar uma grande expressão de beleza varonil, trazia á idéa o perfil dum archanjo.

 

— O dr. Granjo...

 

— Conheço-o de nome, e gosto de o vêr por cá...

 

A voz sahia-lhe dos lábios com um timbre quasi infantil. Mas dava desde logo a impressão de estarmos em frente de um homem.

 

O olhar de noviço da guerra prendia-se-me ás coisas mais insignificantes, lnspecionei o abrigo. Cigarros, papelada, cartas de trincheira, mantas, respiradores, capuzes, granadas de mão, uma meza, um banco — o mobiliário da primeira linha. Como um luxo raro, qualquer coisa de refinadamente asiático, sobre a leito de arame estendia-se um magnifico couvre-pied. Devagar, como quem conta uma historia, o tenente Grilo ia fazendo o relatório dos acontecimentos da vespera. Os alemães tinham assaltado o posto de granadeiros que defendia a trincheira de comunicação, a Hun-Street, depois de terem com um bombardeamento prévio de morteiros desmantelado a linha. Haviam conseguido levar prisioneiro um soldado quasi moribundo

 

As palavras cahiam-lhe dos lábios como leves pancadas metálicas. As mãos, duma delicadeza feminina, acompanhavam as palavras com gestos curtos e tímidos; de vez em quando as suas pupilas ganhavam um brilho fosforescente.

 

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O pintor português da Grande Guerra - Sousa Lopes

 

Saimos, eu e o segundo comandante, demos volta á primeira linha e voltámos pelo abrigo do tenente Grilo, que escrevia o relatório, a lapis, tranquilamente.

 

— V. quer alguma coisa? —perguntou lhe o capitão Godinho.

 

— Não, comandante.

 

E ergueu a cabeça. Uma mécha de cabelos mais ruivos, que lhe tombava sobre a nuca, assumiu á luz crepuscular do abrigo uns tons acobreados. Cá fora as ordenanças conversavam.

 

Voltámos para a séde do batalhão. Uma camouflage escondia o caminho das vistas do inimigo. Atravez da malha fina da camouflage, onde se tinham fixado folhas de arvores para melhor enganar os observadores inimigos, via-se o bosque de Biez, o legendário bosque misterioso, no qual, ao que se dizia, haviam desaparecido duas brigadas inteiras, uma de canadianos e outra de indios, sem que voltasse um só homem a dar conta do que se passara. As imaginações provavam-no de redutos, de corredores minados, de sistemas de alta tenção, de engenhos monstruosos inventados pelo génio guerreiro da Alemanha.

 

Uma maquina agrícola, torcida e enferrujada, jazia no meio dum campo. Um balão cativo, por traz do bosque, vigiava o horizonte, onde passavam esquadrões de nuvens cinzentas.

 

Depois, á tarde, eu fui apresentar-me na minha companhia e nunca mais vi o pobre rapaz. Foi já no dia 13 que soube da sua morte gloriosa na noite de Santo Antonio.

 

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O tenente Grilo sahiu do abrigo e veiu á barraca do telefone fazer a ligação. Tinha de atravessar a estrada de Lens, enfiada pelas metralhadoras e onde as granadas e os obuzes continuamente rebentavam, revolvendo a terra, como um tufão revolve um bocado esfarrapado de pano.

 

Cabeleira fulva ao vento, a face branca resplandecendo, ao clarão das explosões, dir-se-hia o proprio Archanjo da Victoria, que avançava sobre a trincheira e vinha estender protetoramente sobre a nossa frente a sua espada flamejante. Algumas palavras trocadas á pressa, einquanto o telegrafista martelava uma comunicação, e o tenente Grilo voltou para o seu abrigo, a descoberto.

 

O alferes Pereira, que comandava a companhia, ainda o avisou: — O' Grilo, tenha cautela!...

 

O tenente Grilo desapareceu sob a onda de metralha. Quem o viu disse-me que, nesse momento, lhe trouxe á imaginação um desses guerreiros lendários que nas batalhas medievaes apareciam no mais apertado do combate, dicidindo da vitoria com o prestigio deslumbrador do penacho do seu elmo.

 

Passaram alguns segundos, viram-se dois soldados correr, ouviu-se um rápido vozear, e deante da barraca do telefone, conduzido por duas ordenanças, seguia o tenente Grilo moribundo, com o sangue a sair-lhe aos borbotões da cabeça fulva. A mécha de cabelos mais ruivos pendia-lhe da nuca e dessa mécha escorriam grossas pingas rubras.

 

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Sousa Lopes - Portugal na Grande Guerra, uma encruzilhada perigosa, c. 1918, água forte, 212 x 298 mm

 

Um estilhaço de granada tinha-lhe perfurado o craneo e duas balas de metralhadora tinham-lhe varado o peito. Levara as mãos á cabeça, andara mais dois passos e cahira de borco, no meio da estrada, desamparadamente.

 

Pobre Archanjo da Vitoria! Uns segundos bastaram para fazer dessa linda figura, digna de imortalizar um grande pintor, um pobre trapo humano, que ia enfileirar-se entre os outros trapos humanos no pequeno largo saibroso, em frente do posto de socorros do batalhão, destinado á macabra formatura dos cadáveres.

 

Como se celebrou o funeral do tenente Grilo? Onde está enterrado o seu cadaver? Não sei ao certo. E' provável que ninguém saiba.

 

Ouvi dizer que tinha sido sepultado num cemitério inglez, na estrada conhecida pelo nome de Rue de Bois. Ao menos, a bandeira nacional teria coberto a maca rodada em que foram transportados os seus restos mortaes.

 

Nem discursos, nem flores, nem lagrimas. Nem um cântico religioso, nem uma palavra de despedida. Mãos indiferentes abriram o coval e, emquanto o canhão continuamente troava, os braços de alguns soldados deixaram cahir o cadaver embrulhado numa tira de lona, cobrindo-o depois daquela terra barrenta e pegajosa, apressadamente, atarefadamente, como quem se quer desembaraçar de um serviço incomodo. Na cabeceira do coval porão os inglezes uma cruz, com o nome, o posto, o numero do batalhão e a menção honorifica: Killed in action.

 

Esta miserável e pequenina grande guerra tirou toda a grandeza épica ás lutas humanas.

 

Até que, finda a guerra, aqueles que tombaram no campo de batalha possam ser trasladados para a Patria, nem as honras oficiais poderão ser-lhes prestadas. As descargas da ordenança revelariam ao inimigo a presença de tropas, e o boche não deixaria também de prestar as suas honras, desencadeando sobre o local uma tempestade de metralha.

 

Esta miserável e pequienina grande guerra!

 

Este episodio foi publicado no Diário de Noticias de 30 de janeiro de 1918. No mesmo jornal, em 12 de fevereiro do mesmo ano, veiu publicada uma carta anónima, que dá alguns informes sobre o bombardeamento da noite de Santo Antonio e diz a forma por que se fez o enterro do tenente Grilo. Publicamol-a a seguir porque dá alguns detalhes para a historia da campanha da Flandres. Diz a Carta:

 

«Ecoam ainda nos meus ouvidos os sons dos rebentamentos das granadas de todos os calibres, com que os alemães brindaram durante toda a noite de Santo Antonio de 1917 as posições de artilharia 2 e as trincheiras ocupadas por infantaria 22 e 7. No local onde me encontrava durante o bombardeamento, passaram-se horas aflitivas e as mais angustiosas da minha vida.

 

A oficialidade passeia nervosa na casa onde tomava a refeição, que ficou em meio; o telefone a cada instante transmitia-nos o que se passava na frente: «Os alemães atacam violentamente a 1.ª linha! Pedimos auxilio á artilharia! Alguns soldados que conseguiram salvar-se da 1.ª linha estão na 2.ª! Acudam-nos! Os alemães estão a atacar a nossa 2.ª linha! Pedimos auxilio á artilharia!»

 

A artilharia portuguesa estava calada! Nem um tiro! Os bravos soldados de artilharia 2, que horas antes tinham resistido ao violento bombardeamento, estavam de braços cruzados! Os valentes soldados de artilharia 7 estavam encostados ás peças sem que das mesmas saissem as granadas que iriam animar e defender a infantaria, que nas trincheiras sofria o embate inimigo! Felizmente para esses soldados, aos seus ouvidos não chegavam os gritos que eu sentia! Não sabiam o que se passava lá no fundo das trincheiras, onde soldados portuguezes pediam auxilio aos camara[1]das. Os oficiais estão como petrificados! Vêem morrer portugueses e não lhes podem valer. O meu major chora como uma criança; desgrenhado atravessa a passos largos a sala; parece-me que vai cair. Só lhe oiço estas exclamações: «E não lhes podemos valer!» Vejo-o aproximar-se do telefone e dizer: «Dêem-me a minha demissão! Não posso ver morrer camaradas e soldados portuguezes sem lhes poder acudir!»

 

A resposta!... A resposta não a direi agora. Deixemos terminara guerra. Não se fala, não se troca uma palavra. São duas da manhã e nas trincheiras apenas se ouve de tempos a tempos o rebentar de algum morteiro.

 

São três horas. Pelas estradas ha um movimento enorme de camions, automóveis, carros de munições, tudo quanto sirva para transportar metralha. Avisinha-se a alvorada e eu corro para o commando do 22. Chego antes do nascer do sol, quando começavam a chegar os mortos e os feridos. A nossa artilharia rompera o fogo já eu seguia o meu destino. Tenho ouvido falar no belo horrível e eu creio que presenceei esse belo horrível. O silvo de milhares de granadas, cruzando-se com o troar do canhão, obrigava-me a curvar a cabeça, num movimento de defeza, pois me parecia que as mesmas cortavam o espaço a um ou dois metros do solo, que tremia obrigando-me a vacilar. Os alemães raro respondiam a esse tempo. Deviam estar a descançar.

 

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Portugal na Grande Guerra, uma sepultura portuguesa na terra de ninguém, c. 1918, água forte, 210 x 292 mm

 

Chegam agora os mortos que são colocados numa pequena trincheira de comunicação entre dois abrigos de oficiais. Vou contemplá-los. Lá encontro um cabo cujo cadaver enregelado tinha a posição em que o surpreendeu a morte. Na tarde anterior esse cabo praticara um acto heroico. Uma patrulha alemã, chegando ás nossas linhas, roubara-lhe o chapéu de ferro, o cinturão e o cantil. Exasperado, esse cabo jurou vingar-se. Mesmo de dia salta o parapeito das trincheiras e rastejando atinge as linhas alemãs. Penetra nas mesmas e encontrados objectos que lhe tinham roubado! Encontra mais um cinturão alemão e umas granadas de mão e, radiante, alcança novamente as nossas linhas. E' recebido com abraços, prometendo nunca mais largar o cinto, usando-o por cima do seu. Poucas horas o usou porque nessa noite, ao disparar a sua metralhadora, não querendo abandonar o posto que lhe estava confiado, uma bala inimiga, atingindo-o na testa, deu-lhe morte instantânea. Rigido, conservando a sua posição de atirador, foi encontrado nas trincheiras. Parecia vivo, tal era a sua posição. Olhos abertos, perna direita um pouco curvada, braços como se estivessem ainda com a metralhadora, assim o retiraram do local onde morreu, assim o conduziram para a séde do comando e assim foi sepultado. A rigidez do cadaver não deixou que os membros tomassem outra posição. Fui eu que lhe tirei o cinto que encontrei a um oficial e fui também eu que pedi a um soldado que lhe desabotoasse a farda e tirasse qualquer documento. Tinha uma linda recordação na carteira: era o retrato duma filhinha que ele na vespera cobrira de beijos antes de ir ás linhas alemãs. Era de Castelo de Vide este cabo, se não me engano.

 

Estão amontoados mais soldados mortos e entre eles vejo um oficial muito loiro, barbeado de fresco, com a cutis da cara tão branca, que se vêm as artérias esverdeadas. Está com a farda cheia de barro. Quem era? O tenente Grilo! Peço para lhe retirarem uma pequena aliança de oiro do dedo e um botão de camisa. Nada mais trazia comsigo. Estendo-lhe por cima um cobertor até que chegue a vez de ser conduzido A sepultura, distante uns dois quilómetros.

 

Veem chegando homens atacados de gazes e é necessário activar o movimento de saida dos feridos. Corro ao posto de socorros inglês onde... os nossos soldados aguardavam transporte para a ambulancia hoje n.º 3.

 

O que se passou neste posto não é para agora; deixemos terminar a guerra.

 

Eram duas da tarde quando mandei retirar de cima de dois cadáveres dos nossos soldados a bandeira inglesa que os cobria. Até esse dia os cadáveres dos soldados portugueses, foram cobertos com a bandeira da nossa aliada; depois dêsse dia os cadáveres dos soldados portugueses foram cobertos com a bandeira portuguesa, por pedido e para não dizer imposição dos poucos capelães portugueses. O tenente Grilo deve ter sido coberto com a bandeira da nossa aliada. O seu cadaver foi aspergido, bem como o coval onde repousa, por um padre português, que, tendo-se inutilizado no front, regressou a Portugal não lhe dando o Estado nem a residência, nem o registo paroquial de que se apossara quando êle partira como capelão e onde protestara contra o facto de os cadáveres dos soldados portugueses serem cobertos com uma bandeira estrangeira!

 

O cadaver do tenente Grilo está sepultado no cemitério inglês, e hoje português, da «Rue du Bois», uma das estradas mais lindas de França.

 

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Cemitério da «Rue du Bois»

 

Os encarregados do cemitério teem-lhe a sepultura plantada de miosótis e rosas, e varias vezes lá encontrei ramos de flores, ofertados pelas mãos piedosas dos que visitam as sepulturas dos camaradas. Eu também lá deixei em todos os cemitérios o incenso das minhas orações e o orvalho das minhas lágrimas de saudade pelos que lá ficaram sepultados.

 

Continua na próxima quarta-feira…

 

31
Mar21

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)


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António Granjo

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)

7

 

Nota: A GRANDE AVENTURA - (SCENAS DA GUERRA) é um pequeno livro que resultou da participação do ilustre flaviense António Granjo na I Guerra Mundial de 1914-1918, que deixamos aqui em episódios, escritos no português da altura, incluindo erros e gralhas tipográficas.

 

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A noite de Santo Antonio

 

12 de Junho de 1917.—18 horas. — Saio do comando do batalhão, acompanhado do segundo comandante, que me vai conduzir ao abrigo da 2." companhia, onde fui colocado. Atravesso uma estrada, a que os ingleses deram o nome duma artéria de Londres e passo pelo Posto de Socorros para entrar na trincheira de comunicação. Ha ainda no chão alguns vestígios do sangue de dois granadeiros que foram mortos na vespera; e ainda, dentro dum abrigo, dois homens atordoados pelas explosões dos morteiros esperam que as suas faculdades mentais e os seus nervos destrambelhados regressem à normalidade.

 

A trincheira desce. Os meus passos, batendo a passadeira, perdem-se molemente nos taludes, onde as papoilas e os malmequeres se debruçam galantemente. Um aeroplano inimigo plana alto. Uma ordenança passa em sentido contrario.

 

—Ha alguma novidade?—pergunta o comandante.

— Nada, meu comandante... — e a ordenança segue o seu destino.

 

Um «decauville» atravessa a trincheira, depois ha uma linha de água e desembocamos na segunda linha.

 

Sobre toda a superfície da terra reina uma paz absoluta. O sol agarra-se aos caules tenros das ervas como um oleo gorduroso. Uma cotovia ergue-se a toda a altura, e, depois descrever sobre as linhas alguns círculos concêntricos, começa cantando o seu hino da tarde. O canto como que faz vibrar a atmosfera luminosa, a que uma brisa leve dá a amenidade das nossas lindas tardes de outono. Uma fila de amieiros espreita por cima do parapeito da segunda linha.

 

Os soldados repousam nos abrigos. A sentinela dum posto de metralhadora, para matar o tempo, faz um catavento, ao qual dá a semelhança dum aeroplano.

 

Dobramos à esquerda. A linha vai seguindo em ziguezage. Surgem dois soldados, detraz dum través, com um pequeno caldeiro suspenso dum pau que seguram aos ombros. E' o chá. Pousam o caldeiro em cima de uma banqueta e os soldados do pelotão vão-se chegando, com os copos e os cantis. Um deles traz uma lata com algumas sopas de pão no fundo; outro engrunha os ombros, olhando desdenhosamente o grupo.

 

— Se fôsse vinho... — e encosta-se ao travez, assobiando, e olhando melancolicamente a paisagem untada de sol, a qual se estende para a rectaguarda em notas bucólicas de arvoredo.

 

Mais uns passos, atravessamos uma estrada, por cuja berma corre uma linha de abrigos, e estamos no comando da companhia.

 

Fazem-se as apresentações e fico instalado. Não dormi nada na vespera. Estou a cair de sono.

 

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20 horas. — Enfia-se para o abrigo por uma estreita abertura, em rampa, escavada no terreno. O abrigo é uma abobada canelada de ferro, protegida por sacos de terra. Há uma pequena janela para receber a luz e o ar. De cada lado, dois leitos—quatro travessas de madeira, às quais se prendeu uma rêde de arame, e o sistema alteado meio palmo do chão por uns pés arrancados aos troncos das arvores visinhas. Por baixo da janela, uma mesa feita de madeira de caixotes.

 

Trocam-se algumas palavras. Contam-se episódios. Detalha-se o serviço. E' a hora comovida da iniciação. Mas os olhos cerram-se-me irresistivelmente, e a voz lenta do segundo comandante da companhia, que me está dando as instruções necessárias, e que já m'as repetiu duas ou três vezes, embala-me como uma velha cantiga.

 

Um dos meus camaradas acordou estentoricamente os ecos do abrigo perguntando, com as mãos em porta voz, para a boca da caverna, se o jantar estava pronto. Ouvi umas palavras confusas, que presumi serem a resposta, e deixei-me estupidamente adormecer.

 

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21 horas menos 15 minutos. — Oiço um estampido enorme e sinto abalar o abrigo. Acordo. Estou só. Uma granada explode, faz oscilar o leito e um jacto de terra entra pela janela. Consulto maquinalmente o relogio. São 21 horas menos 15 minutos. Saio. Uma ordenança agacha-se atraz do abrigo.

 

Os últimos raios de sol, horizontalmente, babam a terra de uma espécie de espuma doirada. Uma andorinha perpassa, como tomada de pânico. O bombardeamento rebenta sobre as nossas cabeças com a maxima violência.

 

As granadas caem perto e vêem-se os «shrapnells» cobrirem toda a segunda linha. E' a barragem. As metralhadoras varrem as estradas e as detonações sucedem-se sobre as trincheiras de comunicação. Um estilhaço revoluteia no ar e vem cair sôbre o paracostas, fumegando ainda.

 

O comandante e o segundo comandante foram para o abrigo do telefone. Estou um minuto com êles e vou assumir o comando do meu pelotão.

 

21 horas.—Os meus homens estão já a postos. Os morteiros pesados desabam, num estrondo de derrocada, à frente da linha e os estilhaços assobiam em roda, como enormes vespas. Um sargento que comanda as guarnições das metralhadoras, abrigou-se atraz dum travez. Mando-o para o seu posto. Um minuto depois um obuz destrói o travez. Um maqueiro vem-me avisar de que ha um homem ferido. Mando uma ordenança acompanhá-lo ao Posto de Socorros.

 

A noite vai crescendo. O céu mantém ainda alguns reflexos do dia, mas pela superfície da terra as trevas rolam já como novelos de tinta. Os clarões das explosões rasgam no crepúsculo moribundo os seus caminhos de destruição e de morte. As estrelas principiam a aparecer, como pequenas lampadas palpitantes.

 

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Percorro toda a segunda linha. De roldão um posto da primeira linha invade a trincheira.

 

— 0 que ha?

 

— A primeira linha foi já evacuada e há já muitos mortos e feridos... —e o olhar do soldado, dilatado de espanto, parecia rebuscar ainda um refugio por onde se escapasse áquelle inferno.

 

Ordeno-os e ficam guarnecendo uma banqueta de combate que tem um bom campo de tiro.

 

Efectivamente, confirmando a informação do soldado, alguns foguetes luminosos sobem para a extrema direita, já da segunda linha.

 

22 horas. — Subo a uma banqueta e perscruto a noite. Na frente a rede de arame emaranha-se entre as hervas. Atrás de uma árvore parece-me ver um vulto. Desloco dois sacos de terra para abrigar a cabeça e fico uns instantes debruçado no parapeito. E' um galho mexendo-se debilmente ao sopro da brisa.

 

Começam a vir os reforços. O comandante da companhia de reserva passa, informa-se comigo da situação e segue para o comando da minha companhia. As granadas da nossa artilharia passam baixas, batendo a primeira linha inimiga e a nossa primeira linha. Uma metralhadora pesada inglesa vem tomar posição junto do meu pelotão. Por cima do crepitar das metralhadoras e do assobiar dos «schrapnells», o fragor rouco e arripiante das explosões dos obuzes e dos morteiros apodera-se da noite, que se cerra tragicamente em volta como a cortina dum abismo.

 

Chega a primeira companhia do batalhão de apoio. A trincheira povôa-se de sombras. Um soldado fuma um cigarro, resguardando a chama dentro do chapéu metálico.

 

Doem-me os musculos das pernas, de percorrer continuamente a linha. Encosto-me a um travez e olho uns minutos para a rectaguarda. Línguas chamejantes, das posições da artilharia pezada, saem do horizonte. As trincheiras de comunicação enchem-se de murmúrios, de choques de metais, de passos abafados. São as tropas de apoio, que continuam chegando.

 

Uma granada explode com um rumor surdo e sinto uma sufocação na garganta.

 

— Gaz alarme!

 

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Ponho a mascara. Os chocalhos começam a badalar. Corre pela noite, como um grito de mau presagio, a voz das trombetas, e pela linha fora as espingardas que se abandonam, para se porem as mascaras, caem pesadamente nas passadeiras, produzindo o som cavo dum corpo moribundo que tomba.

 

Depois, os soldados imobilizam-se e a trincheira parece deserta.

 

23 horas. — Os oculos da mascara embaciam-se e a cada passo preciso de os limpar, esfregando com os polegares o fole de encontro à mica. Os foguetes iluminam toda a linha.

 

Os soldados, com as mascaras, acotovelam-se nos postos, como figuras satânicas de um círculo dantesco ou resvalam entre os taludes como fantasmas sinistros dum mundo subterrâneo. Um maqueiro, às apalpadelas, procura um caminho. Largo o bocal da mascara.

 

— Que ha?

 

A minha voz sôa, aos meus proprios ouvidos, dentro da mascara, como vinda do fundo dum tumulo.

 

Ouve-se um susurro de palavras dentro da mascara do maqueiro. Consigo perceber que à direita, na companhia de reserva, uma granada incendiaria matou quatro homens.

 

A violência do canhoneio começa a decrescer sensivelmente. Não ha a menor noticia dos alemães. Nem a segunda linha foi atacada, nem qualquer posição de morteiro ou metralhadora foi assaltada.

 

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O cabo do gaz vai avisando os postos:

 

— Tirem a mascara. Já não ha gaz!

 

Respira-se. Os pulmões, o coração, as veias dilatam-se. As estrelas parecem arder duma luz nova e a propria treva parece abrir-se em luz aos olhos ansiosos. Faz-se-me mais profunda a impressão de que a guerra descambou na mais aviltante miséria e de que é necessária uma sanção para tão horríveis crimes. O sangue referve num cachão de odio e de revolta contra aqueles que rebaixaram a existência humana até a fazerem descer à atmosfera mefítica dos canos de esgoto.

 

24 horas. — Cessou o fogo rolante. Algumas granadas rebentam ainda, como os últimos rugidos da fera, mas não pode haver duvida de que passou esta primeira hora de prova. O que ha a fazer é preparar o espirito para as intermináveis e terríveis horas que se vão seguir.

 

Vou até ao comando da companhia. Ao chegar ao abrigo do telefone passa o comandante da minha companhia, o capitão Celestino Soares, acompanhado de uma ordenança.

 

— Onde vai, capitão?

 

— Ao Posto de Socorros. Estou «gazofilado»...

 

E o rosto lívido do pobre rapaz desaparece na volta da trincheira.

 

Um soldado atacado de gazes contorce-se na estrada. Agitam-se sombras na boca da trincheira de comunicação que serve a companhia da esquerda.

 

0 segundo comandante, na sua voz lenta, diz-me que ha perto de 100 baixas, que um reconhecimento lançado sôbre a primeira linha não encontrou o inimigo, e que aos primeiros alvores da madrugada se fará a reocupação pela primeira companhia, ficando o meu pelotão de apoio.

 

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1 hora. — A' esquerda, o horizonte pontua-se de chamas e a noite vibra de novo sob o canhoneio. São os ingleses que, para desafogarem a nossa frente, fazem um «raid» em grande estilo.

 

2 horas.—O canhão calou-se. A treva é já menos espessa. Distingue-se já o fundo da trincheira. Começam a vir as noticias do que se passou na primeira linha. Um pelotão, comandado pelo alferes Vilhena, desligado da companhia, manteve-se até receber em forma a ordem de retirada; um posto de granadeiros foi inteiramente aniquilado; a guarnição duma metralhadora ficou soterrada sob os destroços e as ondas de terra levantadas pelos morteiros, mas conseguiu desenterrar a metralhadora e os tambores e ganhar a segunda linha; um homem tinha endoidecido e vagueava pelas trincheiras.

 

3 horas.— A noite ia-se fundindo ao bafo da madrugada. Desenhavam-se já os ângulos das trincheiras e as filas das arvores começavam a delinear-se, além da rêde de arame. 0 nascente principiava a tiugir-se de purpura, por traz do bosque, cuja massa sombria tapava a rectaguarda inimiga como uma muralha misteriosa.

 

É para a direita, agora, que o canhão troa, bruscamente, como se o horizonte se possuísse duma convulsão epilética. É, provavelmente, um «raid» simulado dos ingleses para nos facilitar a ocupação da primeira linha.

 

4 horas. — O meu pelotão está pronto à "primeira voz. Uma ordenança vem comunicar-me que a ocupação se fez sem incidente e que é dispensada a cooperação do meu pelotão.

 

É dia claro. Meio disco do sol está já acima do horizonte. As azas das andorinhas tracejam de negro o azul ferrete do céu. Através da terra, por onde ainda parecem errar umas sombras indecisas que se vão precipitando nas ravinas ou fugindo pelas linhas de água, a luz esparge-se como um leite luminoso que os primeiros raios do sol pincelam ligeiramente de oiro. Uma nuvem, pela forma e pela côr, traz-me à lembrança o manto de Sant'Ana duma cópia de Murillo que vi em qualquer parte.

 

5 horas.—Distribue-se o café. Os soldados deixam-se adormecer nas banquetas. É ainda a hora do alerta, mas deixo repousar essas almas simples e heróicas. Um deles deitou-se ao comprido e pôs o capacete sôbre os olhos. Uma borboleta pousou-lhe um momento nos lábios, que se contraíram num instintivo movimento de repulsa, e seguiu a linha da trincheira.

 

Fui também andando. No sítio em que caíra a granada incendiária, o paracostas ficára esbarrondado e a passadeira partida. Longas pastas de saugue atestavam sôbre a banqueta e as grades de revestimento que ali tinham morrido alguns heróis obscuros. Uma papoula vermelha, que irrompera entre as travessas da grade, parecia debruçar-se sôbre a banqueta para chupar o sangue.

 

A terra espreguiçava-se num imenso bocejo de mulher que acordou após uma noite inteira de deboche. As cabeleiras verdes das arvores, acariciadas pela brisa, ondulavam brandamente sobre as terras abandonadas às ervas daninhas.

 

Um sargento contemplava fixamente as manchas de saugue. Tinha posto a espingarda a um canto e os lábios grossos de ribatejano tremiam-lhe. Os nossos olhos encontraram-se.

 

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— O' meu alferes!... Emquanto tantos aqui morreram, sem ao menos terem o consolo de enterrar a baioneta no corpo dum inimigo, em Portugal toda a noite se passou em danças e descantes...

 

Um aeroplano inglês passou, em reconhecimento, para as linhas inimigas.

 

Fitei o rapaz. Perguntei-lhe:

 

— V. deixou lá a namorada?

 

Uma lagrima apontou-lhe nos olhos negros, virou costas, pegou na espingarda e retirou-se para o abrigo.

 

6 horas.—Levantei o álerta. A lagrima do sargento como que borbulha dentro de mim. Uma onda de saudade me toma docemente o coração. Lembro-me da linda capela que os meus oito anos erigiram ao grande santo, por baixo das janelas da minha casa, sob o sorriso indulgente e o olhar vigilante de minha mãe. A linda capela! Renques de buxo emolduravam o largo; na rampa de musgo todos os santos do calendário nacional; e no alto o Santo Antonio com a sua careca luzidia, o seu capuz de franciscano, os seus sagrados pés nus metidos nas humildes sandálias, e o Menino Jesus na palma da mão, tão pequenino como o meu coração de criança...

 

Cheguei ao abrigo, tomei umas goladas de café e deixei-me cair pesadamente, como um cepo, na cama.

 

Continua na próxima quarta-feira…

 

 

10
Fev21

A Grande Aventura

(SCENAS DA GUERRA)


1024-antonio granjo

 

António Granjo

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)

 

 

Nota: A GRANDE AVENTURA - (SCENAS DA GUERRA) é um pequeno livro que resultou da participação do ilustre flaviense António Granjo na I Guerra Mundial de 1914-1918, que deixamos aqui em episódios, escritos no português da altura, incluindo gralhas tipográficas.

 

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Ao 1.º Batalhão de infantaria 22

 

Apeei-me do comboio militar na base do sector portuguez, em Aire-sur-la-Lys, a 11 do referido mez de junho. Tive ordem para me apresentar na 1.ª Brigada, a fim de receber destino. Um caminhão conduziu-me no dia seguinte ao quartel general da Brigada. Fui colocado no Batalhão do 22, que estava guarnecendo o sub-sector esquerdo do sector da Ferme du Bois. Dormi neste mesmo dia, 12, no comando do Batalhão. Tomei conta do meu pelotão, o 3.° da segunda companhia, em 13, ás 15 horas.

 

Neste batalhão fiz a minha campanha nas trincheiras até passar à reserva, em 30 de outubro, em virtude da edade e em obediência à lei, e ser nomeado defensor do Tribunal de Guerra que funcionava na frente, junto do quartel general do corpo. Tinha cumprido o meu dever. A situação comoda e livre de perigo que disfrutava não estava nos meus propositos. Regressei a Portugal, tendo chegado a minha casa justamente na noite de Natal.

 

As impressões que me ficaram, e a que eu procurei dar a forma simples e desataviada de pequenas narrativas, sem pretensões a grande descritivo, tinham que ser dedicadas, porque lhe são devidas, a esse firme batalhão do 22.

 

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A grande aventura

 

--------------

 

No imenso acampamento, onde formigavam 150.000 homens, foi destinado ao meu batalhão um pequeno quadrado sobre um monticulo de areia, do qual se disfrutava um vasto panorama. Pela encosta abaixo, as tendas de campanha alinhavam-se pelos largos arruamentos ou ordenavam-se em xadrez em longos quadrilateros. As barracas das messes, das igrejas, dos cinematografos, dos postos de socorros, com as paredes sujas da poeira e do ar salino, negrejavam entre a brancura das tendas; e os edificios das cantinas, aqui e além, avultavam como obras em começo de uma grande cidade em construção.

 

Para a direita, na parte da duna revestida de pinheiral, limitando com o nosso, mas vendo-se apenas entre os pinheiros as primeiras barracas, ficava o acampamento dos australianos. Tinha já havido alguns conflitos entre os nossos soldados dos primeiros batalhões desembarcados e esses enormes homens do Pacifico, pagos principescamente e que enchiam as terras por onde passavam das suas libras esterlinas, dos seus olhos azuis e ingenuos de grandes animaes e dos seus chapeus semelhantes aos das nossas tropas coloniaes. Os nossos tinham liquidado esses conflitos à facada; e como se chegara a pegar nas espingardas de ambos os lados, tinham-se extremado os dois campos com solidas defesas d'arame farpado, tinha-se prohibido a entrada duns no acampamento dos outros e tinha-se regulamentado até o itenerario dos que estavam de folga e queriam ir dar uma vista d'olhos a Etaples, a Paris-Plage ou aos hospitaes.

 

Para o poente, o céo coloria-se das tintas das marinhas dos paizes do norte. Viam-se as pontas dos mastros das embarcações que se baloiçavam negligentemente no pequeno porto. Quando o sol cahia e tocava a linha do horisonte, o céo apagava-se quasi logo em sombra, envolvendo o acampamento numa penumbra funebre.

 

Para o sul, até à praia elegante cujos chateaux mal se adivinhavam, estendia-se uma massa florestal sobre a qual voavam bandadas de corvos. No sopé da colina arenosa, á borda do pequeno rio, perpendicularmente à linha ferrea, acachapava-se a pequena cidade de Etaples.

 

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António Granjo

Nessa manhã de junho o sol espontara, entre nuvens de rebordos recortados, dando a perfeita idéa de uma rosa de luz. Tinha-me erguido, com os ossos moidos da tarimba, logo ao alvorecer. Ao ar livre, com duas mantas por cima, dormiam dois inglezes. Na ravina, onde estava acampado o batalhão do 6, ouviram-se rufos de tambores. O 6 marchava para o campo de instrução.

 

Encontrei levantadas as tendas do batalhão inglez que acampava ao nosso lado, para o nascente, onde começavam os campos de trigo. As cotovias cantavam. Os raios do sol arrancavam da areia fugitivos reflexos metalicos e faziam reverberar as goticulas de orvalho que se suspendiam das hastes tenras dos trigaes.

 

Na sua prisão—quatro palmos de terra cercados de arame farpado com uma tenda ao meio — um soldado inglez contemplava indiferentemente o acampamento, que se enchia de ruidos de passos, de toques de clarins e de vozes de comando.

 

Num terreno de parada formava uma companhia ingleza. Ia embarcar para a frente. Uma charanga, na larga rua desenhada com fiadas de pedras de cal, esperava que a companhia encetasse a marcha. Os oficiaes chegaram, tomaram os seus logares. As caras duras dos soldados, voltadas para o sol nascente, tinham um ar de desafio. O 'desfile começou. As notas do Typerary vibraram no ar translucido da manhã, logo que o primeiro pelotão, com o oficial à frente, a espingarda suspensa horisontamente pelo fuste, na altura da culatra, avançou os primeiros passos. O sol dardejáva sobre os capacetes e os metaes dos equipamentos. As mascaras e os capuzes bamboleavam nos flancos. Os outros pelotões partiram. Atraz, o capitão, segurando tambem a sua espingarda, com as tres ordenanças, marchava de olhos no chão.

 

Quando as ultimas filas sahiram da parada, viram-se passar as primeiras a meio da encosta e ouviu-se uma musica escoceza tocar uma canção regional. A gaita de foles ria estridulamente acima do barulho das pesadas botas inglezas batendo surdamente a areia.

 

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Fiquei pensando no destino desses homens que marchavam para a morte a passo chronometrico. As musicas calaram-se. Ouviu-se o apito duma locomotiva.

 

Um grupo de escocezes, as pernas musculosas ao léo, as saias curtas em volta dos quadris, as fitas dos gorros pendentes sobre a nuca, passou numa algaraviada alegre. Sentia-se o rouquejar dos motores dos automoveis que passavam para os hospitaes, instalados entre o acampamento e o mar, à sombra das arvores seculares de um velho bosque.

 

Para onde iam esses homens? Sabiam apenas que embarcariam num comboio, na NewSiding, estação improvisada que servia o acampamento, em direção à frente, à procura do inimigo. Era lá que os esperava a morte.

 

Este pensamento fez com que me parecesse ver nos seus movimentos uma gravidade quasi religiosa. Dir-se-hia que se despediam da luz do sol. Ao mesmo tempo, quando os seus olhos claros fitavam o horizonte, havia neles uma tal tranquilidade e uma tal confiança que dir-se-hia dirigirem-se apenas para uma agradavel empreza, rodeada de perigos, acumulada de obstaculos, cheia de imprevisto e de grandeza, da qual haviam de voltar em breve para gosarem longas e deliciosas horas de merecido repouso e de doce alegria. O olhar de um oficial que, ao passar, me fixou risonhamente, trouxe-me à lembrança o olhar de um inglez que um dia, no Caes da Alfandega, vi despedir-se dalguns amigos no momento de partir para a Zambezia numa digressão cinejetica.

 

Continua na próxima quarta-feira…

 

05
Jan21

Chaves de Ontem - Chaves de Hoje


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Na rubrica do “Chaves de Ontem - Chaves de Hoje” vamos até ao ano novo de 1916, com umas despedidas do ano velho que encontrámos no jornal “O Flaviense”, em que se lamentava o ano e se projetavam esperanças para o ano novo. Recordemos que na altura se estava em plena Grande Guerra Mundial.

 

Ano novo

 

Entramos em ano novo sem que o velho nos deixe saudades.

 

Ao soarem as badaladas da meia noite, o ano de 1915 traspoz definitivamente os humbraes da História ouvindo um grandioso côro de maldições. Troava o canhão, crepitava a fuzilaria, corriam por sobre a terra rios de sangue, longos crepes cobriam milhares de viuvas e de orfãos, alastrando pelo velho mundo como negra mancha cada dia mais extensa e mais carregada, talava os campos uma devastação enorme, ouviam-se os brados colericos da miseria e os uivos lamentosos da fome, e por toda a parte, na terra, no mar e nos ares, maquinas de morte e destruição marcavam a par de um feroz engenho, producto da cultura dos homens de hoje, o mais brutal retrocesso aos tempos barbares, a mais cruel e completa negação da paz e do amôr que deviam caracterisar uma epoca de fraternidade universal.

 

Ano tragico foi o que findou, terrivel período de ferocissima lucta, que a Historia registará com lamentos de dôr.

 

Não desponta menos tragicamente o novo ano. O que será o seu curso? O que será o seu termo?

 

Não podemos rasgar o veu que nos encobre o futuro. Anima-nos, porem, a esperança de que 1916 será ano de paz e que a paz marcará o inicio de um novo periodo de reconstituição e de ressurgimento. E desejando que as nossas esperanças não sejam iludidas, a todos os nossos estimados leitores e assinantes aqui apresentamos, com os nossos cumprimentos, os votos mais siceros para no ano novo que começa lhe seja possível gosar as maiores venturas e prosperidades.

 

Pois, mas as venturas e prosperidades foram de mais 3 anos de guerra (1914-1918) e como se a guerra não bastasse, foram seguidos de 2 de pandemia denominada de “Gripe Espanhola” ou “Pandemónica” (1918-1919), que portugueses e flavienses também sofreram, em que na Grande Guerra houve 31.130.500 de mortos, feridos e desaparecidos,  e a pandemia, de janeiro de 1918 a dezembro de 1920, infetou uma estimativa de 500 milhões de pessoas, cerca de um quarto da população mundial e estima-se que o número de mortos esteja entre 17 milhões e 50 milhões, e possivelmente até 100 milhões. Só em Portugal estima-se que o número de mortos fosse entre os 60.000 a 100.000 com uma população que na altura era aproximadamente metade daquela que temos hoje. Penso que dá para imaginar o que foram aqueles 6 anos…

 

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O Chaves de ontem e de hoje, desta vez foi assim, mas fica já uma imagem da praça que iremos abordar na próxima semana.

 

 

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