A GRANDE AVENTURA
(SCENAS DA GUERRA)
António Granjo
A GRANDE AVENTURA
(SCENAS DA GUERRA)
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Nota: A GRANDE AVENTURA - (SCENAS DA GUERRA) é um pequeno livro que resultou da participação do ilustre flaviense António Granjo na I Guerra Mundial de 1914-1918, que deixamos aqui em episódios, escritos no português da altura, incluindo erros e gralhas tipográficas.
Flores da Terra de Ninguém
Minha boa amiga :
A Terra de Ninguem está cheia de bem-mequeres e de papoilas. Quando a neblina, como nesta manhã, oculta a linha inimiga, saltamos a trincheira e escolhemos nesse jardim da morte um ramo de flores, que, metido num copo de granada, nos alegre um pouco a meza de jantar, só guarnecida por garrafas vasias de cerveja, latas furadas de confitures, granadas de mão e pentes de balas.
Acudiu-me hoje o pensamento gentil, minha boa amiga, de ir buscar a essa tira de terra, que é uma tira viva e sangrenta do corpo esquartejado da pobre humanidade, um ramo de flores para lh'o oferecer e mandar. Não sei se chegará às suas pequeninas mãos, se ficará pelo caminho, entre dois fardos de coelhos da Australia ou entre as lombadas de dois presuntos de York. Que importa? Pensarei sempre que chegaram ao seu destino e que os seus lindos olhos as contemplarão como uma prova da minha amizade. Lembrar-se-há mais algumas vezes de mim: a certeza de que a não esqueço avivará na sua memoria a lembrança deste homem que anda para aqui, ou arrastado como uma folha sêca de canto em canto, ou metido como uma toupeira debaixo da terra — joguete da ventania e irmão da lama.
Sei bem que nunca compreenderá o que há de sangue e horror nessas flores, adubadas com cadáveres humanos, coloridas pelo sol doentio destas terras da Flandres, regadas pela água podre dos drenos. Que importa? Fico com a idéa de que às suas mãos chegou, pela única forma graciosa que me é permitida, um grito destas paragens em que o anjo exterminador continuamente faz sibilar a sua espada ardente.
Acabada a guerra, quando nós voltarmos, ouvirá contar coisas que nunca fôram imaginadas e que serão inacreditáveis para aqueles que se deixaram ficar na doce paz da sua casa. E reconhecerá então que só um coração muito amigo podia render-se, nestes momentos em que a vida anda sobre a baba duma aranha, ao pensamento de lhe oferecer meia duzia destas petalas que brotam do meio da sangueira desta hecatombe, como a virtude poderia brotar do inferno.
As papoulas colhi-as junto duma trincheira de sapa, donde ainda ontem os alemães, mascarrados de negro, deslizando como fantasmas, quizeram assaltar um posto de granadeiros. Corri, numa patrulha, certa noite, parte dessa trincheira. Os corredores dessas cavernas onde viviam os lobishomens, de que falam os velhos creados, à lareira, nas longas noites de inverno, não podem ser diferentes dêste valado tenebroso, aberto através a Terra de Ninguem por mãos desconhecidas, donde sobem vozes misteriosas e onde erram sombras disformes. Nas bordas seguem filas de troncos renegridos e despedaçados pelos projecteis de todos os calibres, sem uma folha, sem um galho, com lascas da casca pendentes, como braços decepados erguendo para o alto os cotos sangrentos com esfarpas de carne dependuradas.
A nevoa envolvia os ultimos troncos, alêm dos quais começava a rêde de arame inimiga. Através a primeira cortina transparente da nevoa, onde o sol punha irisações fugazes, via-se um cadáver feito em pedaços. A historia dêste cadáver corre pelas trincheiras. Vou-lh'a contar.
Os mortos são baldeados por êste furacão de ferro e fogo como os vivos. Logo nas primeiras linhas há algumas sepulturas, sôbre as quais a piedade dos combatentes colocou, como última homenagem, a espingarda e o equipamento que serviram ao morto e algumas ervas caíram, à falta de flores, das mãos comovidas de um camarada. De vez em quando, o bombardeamento arraza as trincheiras, revolve essas sepulturas e deixa à mostra os cadáveres. A's vezes, as explosões dos morteiros pesados levantam-os ao ar; outras vezes, ficam meios enterrados, meios descobertos, com os rostos, já descarnados, adquirindo contorsões as mais sinistras, visualidades desconhecidas de todos os cultores do horror, atitudes que escaparam a todos os romancistas da agonia. Como a trincheira fica aberta, para se passar sem ser visto pelos snipers, que, do seu buraco blindado, com a espingarda de alça telescópica, atiram sôbre a primeira cabeça que se descuide, é preciso ir de rastos, sôbre os restos fedorentos, cosendo a cara aos farrapos apodrecidos da farda ou à terra impregnada dos humores cadavéricos. O sabor desta terra putrida, a impressão horrível dêstes trapos desfeitos que a saliva da morte humedeceu, ficam nos labios, ficam nos olhos, ficam na alma, como nodoas deixadas por larvas.
Os cemiterios são em geral entre os postos de reserva da primeira linha e as segundas linhas, aí até 5 quilómetros à rectaguarda. Por via de regra, são situados junto dos acantonamentos, dos postos de socorros, das fermes aproveitadas para posições das metralhadoras pesadas, dos obuzes ou da artilharia. Um dia, uma noite, repentinamente, quando qualquer dessas posições foi descoberta por um aeroplano ou por um observatorio, ou denunciada pela negligência dos soldados, desaba sôbre o cemitério a tempestade de fogo, e as cruzes partidas sirandam no ar e os cadáveres saltam das sepulturas, numa dança macabra de membros despedaçados e de caveiras partidas entre o fragor das explosões.
A história dêsse cadáver, que adubou a terra onde nasceram as humildes flores que lhe mando, é uma das mais trágicas. E' o cadáver dum oficial inglês. Comandava um raid, quando foi morto à frente da primeira vaga de assalto. Abandonado na Terra de Ninguem, depois de repelido o ataque, os ingleses batiam de dia e noite o sitio em que ficára o cadáver, para que o inimigo se não apoderasse de quaisquer papeis que o oficial trouxesse no bolso e que podiam fornecer-lhe indicações preciosas. Por sua vez os alemães, sempre que sentiam para aquele lado o mais leve ruído nos arames, atiravam sobre o cadáver uma chuva de metralha, para que os ingleses o não podessem arrastar para as suas linhas. E dias se passaram, num terrível duelo em volta dos troços desconjuntados dêsse corpo humano, que amigos e inimigos retalhavam a canhão numa sanha de bestas feras.
Veja, minha boa amiga, a que extremos de crueldade chegou o homem — êsse mesmo homem que por aí amaneira a terra com a solicitude com que ageita um filho no berço, que tira o chapeu humildemente quando os sinos, às primeiras sombras da noite, tocam às trindades e que trata os próprios cães como próximos parentes.
Alguns bemmequeres colhi-os já numa trincheira de comunicação, quasi toda destruida, a Plum Street, perto de uma posição de metralhadoras pesadas, e quási no ponto da sua interseção com a trincheira de combate. Sobre aquela trincheira tinham-se sobreposto alguns sacos de terra, e pelo canto esbarrondado dum dos sacos saíam os bemmequeres. Como na frente ficava o abrigo betonado das metralhadoras, os tiros inimigos haviam-nas poupado.
Esses bemmequeres representam as longas horas em que, nos intervalos dos bombardeamentos, nas horas quietas dos dias ensoalhados, nos é dado pensar na vida e destino dos homens, nas razões e conseqùências da guerra, e nas pessoas que vivem dentro de nós, como um raio vive dentro do sol ou como uma gota de água vive dentro de um lago. E' nestas horas que fazemos a escolha das nossas recordações e das nossas saudades, deixando esbater nos últimos planos da memória as tenues simpatias e as vagas amizades, os encontros dum dia e os contactos furtuitos, e trazendo à flôr dos olhos, trazendo à flor da alma, as imagens que se nos apoderaram do coração e lá fizeram a sua eterna morada. E' nestas horas, porisso, que mais me lembro de si.
As pobres flores são dignas de serem tocadas pelos seus brancos dedos, porque são o que há de pureza e de graça nestas torvas regiões em que a morte dispõe de todos os elementos de acção e a vida teve de se refugiar no seio da terra, como precita da luz e como escrava do crime.
Diz-se que algumas vezes o amor provém do ódio. Será possível que dêste imenso pôço de ódios e de amarguras venha a sair a claridade e a alegria? Será possível que desta guerra saia a paz universal?
Se assim fôsse, as pobres flores que lhe mando mereciam ser guardadas religiosamente, num relicario precioso, como se guardam as relíquias sagradas.
Tenho medo de a maguar, pedindo-lhe que me não esqueça nas suas orações.
(Continua na próxima quarta-feira.)