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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

26
Mai21

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)


1024-antonio granjo

 

António Granjo

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)

15

 

Nota: A GRANDE AVENTURA - (SCENAS DA GUERRA) é um pequeno livro que resultou da participação do ilustre flaviense António Granjo na I Guerra Mundial de 1914-1918, que deixamos aqui em episódios, escritos no português da altura, incluindo erros e gralhas tipográficas.

 

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Flores da Terra de Ninguém

 

Minha boa amiga :

 

A Terra de Ninguem está cheia de bem-mequeres e de papoilas. Quando a neblina, como nesta manhã, oculta a linha inimiga, saltamos a trincheira e escolhemos nesse jardim da morte um ramo de flores, que, metido num copo de granada, nos alegre um pouco a meza de jantar, só guarnecida por garrafas vasias de cerveja, latas furadas de confitures, granadas de mão e pentes de balas.

 

Acudiu-me hoje o pensamento gentil, minha boa amiga, de ir buscar a essa tira de terra, que é uma tira viva e sangrenta do corpo esquartejado da pobre humanidade, um ramo de flores para lh'o oferecer e mandar. Não sei se chegará às suas pequeninas mãos, se ficará pelo caminho, entre dois fardos de coelhos da Australia ou entre as lombadas de dois presuntos de York. Que importa? Pensarei sempre que chegaram ao seu destino e que os seus lindos olhos as contemplarão como uma prova da minha amizade. Lembrar-se-há mais algumas vezes de mim: a certeza de que a não esqueço avivará na sua memoria a lembrança deste homem que anda para aqui, ou arrastado como uma folha sêca de canto em canto, ou metido como uma toupeira debaixo da terra — joguete da ventania e irmão da lama.

 

Sei bem que nunca compreenderá o que há de sangue e horror nessas flores, adubadas com cadáveres humanos, coloridas pelo sol doentio destas terras da Flandres, regadas pela água podre dos drenos. Que importa? Fico com a idéa de que às suas mãos chegou, pela única forma graciosa que me é permitida, um grito destas paragens em que o anjo exterminador continuamente faz sibilar a sua espada ardente.

 

Acabada a guerra, quando nós voltarmos, ouvirá contar coisas que nunca fôram imaginadas e que serão inacreditáveis para aqueles que se deixaram ficar na doce paz da sua casa. E reconhecerá então que só um coração muito amigo podia render-se, nestes momentos em que a vida anda sobre a baba duma aranha, ao pensamento de lhe oferecer meia duzia destas petalas que brotam do meio da sangueira desta hecatombe, como a virtude poderia brotar do inferno.

 

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 As papoulas colhi-as junto duma trincheira de sapa, donde ainda ontem os alemães, mascarrados de negro, deslizando como fantasmas, quizeram assaltar um posto de granadeiros. Corri, numa patrulha, certa noite, parte dessa trincheira. Os corredores dessas cavernas onde viviam os lobishomens, de que falam os velhos creados, à lareira, nas longas noites de inverno, não podem ser diferentes dêste valado tenebroso, aberto através a Terra de Ninguem por mãos desconhecidas, donde sobem vozes misteriosas e onde erram sombras disformes. Nas bordas seguem filas de troncos renegridos e despedaçados pelos projecteis de todos os calibres, sem uma folha, sem um galho, com lascas da casca pendentes, como braços decepados erguendo para o alto os cotos sangrentos com esfarpas de carne dependuradas.

 

A nevoa envolvia os ultimos troncos, alêm dos quais começava a rêde de arame inimiga. Através a primeira cortina transparente da nevoa, onde o sol punha irisações fugazes, via-se um cadáver feito em pedaços. A historia dêste cadáver corre pelas trincheiras. Vou-lh'a contar.

 

Os mortos são baldeados por êste furacão de ferro e fogo como os vivos. Logo nas primeiras linhas há algumas sepulturas, sôbre as quais a piedade dos combatentes colocou, como última homenagem, a espingarda e o equipamento que serviram ao morto e algumas ervas caíram, à falta de flores, das mãos comovidas de um camarada. De vez em quando, o bombardeamento arraza as trincheiras, revolve essas sepulturas e deixa à mostra os cadáveres. A's vezes, as explosões dos morteiros pesados levantam-os ao ar; outras vezes, ficam meios enterrados, meios descobertos, com os rostos, já descarnados, adquirindo contorsões as mais sinistras, visualidades desconhecidas de todos os cultores do horror, atitudes que escaparam a todos os romancistas da agonia. Como a trincheira fica aberta, para se passar sem ser visto pelos snipers, que, do seu buraco blindado, com a espingarda de alça telescópica, atiram sôbre a primeira cabeça que se descuide, é preciso ir de rastos, sôbre os restos fedorentos, cosendo a cara aos farrapos apodrecidos da farda ou à terra impregnada dos humores cadavéricos. O sabor desta terra putrida, a impressão horrível dêstes trapos desfeitos que a saliva da morte humedeceu, ficam nos labios, ficam nos olhos, ficam na alma, como nodoas deixadas por larvas.

 

Os cemiterios são em geral entre os postos de reserva da primeira linha e as segundas linhas, aí até 5 quilómetros à rectaguarda. Por via de regra, são situados junto dos acantonamentos, dos postos de socorros, das fermes aproveitadas para posições das metralhadoras pesadas, dos obuzes ou da artilharia. Um dia, uma noite, repentinamente, quando qualquer dessas posições foi descoberta por um aeroplano ou por um observatorio, ou denunciada pela negligência dos soldados, desaba sôbre o cemitério a tempestade de fogo, e as cruzes partidas sirandam no ar e os cadáveres saltam das sepulturas, numa dança macabra de membros despedaçados e de caveiras partidas entre o fragor das explosões.

 

A história dêsse cadáver, que adubou a terra onde nasceram as humildes flores que lhe mando, é uma das mais trágicas. E' o cadáver dum oficial inglês. Comandava um raid, quando foi morto à frente da primeira vaga de assalto. Abandonado na Terra de Ninguem, depois de repelido o ataque, os ingleses batiam de dia e noite o sitio em que ficára o cadáver, para que o inimigo se não apoderasse de quaisquer papeis que o oficial trouxesse no bolso e que podiam fornecer-lhe indicações preciosas. Por sua vez os alemães, sempre que sentiam para aquele lado o mais leve ruído nos arames, atiravam sobre o cadáver uma chuva de metralha, para que os ingleses o não podessem arrastar para as suas linhas. E dias se passaram, num terrível duelo em volta dos troços desconjuntados dêsse corpo humano, que amigos e inimigos retalhavam a canhão numa sanha de bestas feras.

 

Veja, minha boa amiga, a que extremos de crueldade chegou o homem — êsse mesmo homem que por aí amaneira a terra com a solicitude com que ageita um filho no berço, que tira o chapeu humildemente quando os sinos, às primeiras sombras da noite, tocam às trindades e que trata os próprios cães como próximos parentes.

 

Alguns bemmequeres colhi-os já numa trincheira de comunicação, quasi toda destruida, a Plum Street, perto de uma posição de metralhadoras pesadas, e quási no ponto da sua interseção com a trincheira de combate. Sobre aquela trincheira tinham-se sobreposto alguns sacos de terra, e pelo canto esbarrondado dum dos sacos saíam os bemmequeres. Como na frente ficava o abrigo betonado das metralhadoras, os tiros inimigos haviam-nas poupado.

 

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Esses bemmequeres representam as longas horas em que, nos intervalos dos bombardeamentos, nas horas quietas dos dias ensoalhados, nos é dado pensar na vida e destino dos homens, nas razões e conseqùências da guerra, e nas pessoas que vivem dentro de nós, como um raio vive dentro do sol ou como uma gota de água vive dentro de um lago. E' nestas horas que fazemos a escolha das nossas recordações e das nossas saudades, deixando esbater nos últimos planos da memória as tenues simpatias e as vagas amizades, os encontros dum dia e os contactos furtuitos, e trazendo à flôr dos olhos, trazendo à flor da alma, as imagens que se nos apoderaram do coração e lá fizeram a sua eterna morada. E' nestas horas, porisso, que mais me lembro de si.

 

As pobres flores são dignas de serem tocadas pelos seus brancos dedos, porque são o que há de pureza e de graça nestas torvas regiões em que a morte dispõe de todos os elementos de acção e a vida teve de se refugiar no seio da terra, como precita da luz e como escrava do crime.

 

Diz-se que algumas vezes o amor provém do ódio. Será possível que dêste imenso pôço de ódios e de amarguras venha a sair a claridade e a alegria? Será possível que desta guerra saia a paz universal?

 

Se assim fôsse, as pobres flores que lhe mando mereciam ser guardadas religiosamente, num relicario precioso, como se guardam as relíquias sagradas.

 

Tenho medo de a maguar, pedindo-lhe que me não esqueça nas suas orações.

 

 

(Continua na próxima quarta-feira.)

 

 

19
Mai21

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)


1024-antonio granjo

 

 

António Granjo

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)

 

14

 

Nota: A GRANDE AVENTURA - (SCENAS DA GUERRA) é um pequeno livro que resultou da participação do ilustre flaviense António Granjo na I Guerra Mundial de 1914-1918, que deixamos aqui em episódios, escritos no português da altura, incluindo erros e gralhas tipográficas.

 

 

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Um S. O. S.

 

A guerra moderna obrigou os exercitos á adopção de metodos e processos que, sem serem inteiramente novos, jámais tiveram aplicação a operações militares. Sabe-se que os navios quando vão ao fundo teem um sinal convencional para pedir socorro. E´ o S. O. S. Estas três letras são as iniciais das palavras «Save our saults», cuja tradução corrente é: Salvai as nossas almas! As marinhas de todo o mundo seguiram essa boa pratica inglesa, e o S. O. S. generalisou-se, sendo o ultimo recurso, o grito desesperado, a suplica derradeira e anciosa dos que naufragam no alto mar ou dos que se vêem perdidos nalguma costa deserta.

 

Como também se sabe, na guerra actual, por via de regra, os combates são nocturnos. Os sistemas de trincheiras atrás das qnaes os exércitos se defendem, não consentem os ataques frontais, á luz do dia, e apenas por surpreza, e sob a protecção das sombras da noite, se pode actuar. E' verdadeiramente uma guerra de salteadores, em que os costumes da antiga cavalaria foram substituídos pelos mais ferozes métodos de extermínio, e em que não ha outras convenções além das que são impostas pelos elementos, pela extrema fadiga ou pelo mutuo aniquilamento. No inverno, as ofensivas paralizam, porque a neve, o frio e as tempestades não permitem á fraca compleição humana maior esforço do o que é necessario para se defender do ambiente. Nos sectores de repouso e de instrução, que se estendem talvez por dois terços de toda a frente, as divisões destroçadas, que se recompuzeram na rectaguarda, ou as novas formações, fazem apenas a chamada pequena guerra. A frente do Somme, que foi teatro das mais horriveis hecatombes, deixou de dar que falar de si, porque os exércitos que se defrontavam foram, como se diz na nova terminologia bélica, ceifados.

 

A palavra «retaliação», simbolo das velhas epocas de barbaria, entrou nos documentos oficiais e anda em todas as bocas como a mais perfeita expressão desta guerra modernissima. Os mamelukos e os berbéres, com os seus habitos hospitaleiros e a sua lealdade em combate, devem sentir-se infinitamente superiores a estes europeus ultracivilisados, que se assemelham bem mais aos bandidos da Floresta Negra do que aos cavaleiros da Tavola Redonda.

 

Em ambos os campos se adoptou o S. O. S.  E' o sinal dado á artilharia do avanço da infantaria inimiga ou da nuvem de gaz que se adeanta. Nos abrigos dos comandantes dos pelotões da primeira linha, nos comandos das companhias, nos comandos dos batalhões, vêem-se sempre as longas varetas dos foguetões do S. O. S., com as cabeças envoltas em coberturas de latão e tudo oculto das vistas dos aviadores por tiras de lona.

 

Esta organização obrigou as batarias a terem uma sentinela do S. O. S., encarregada de olhar sempre a frente inimiga e fazer avisar o oficial de serviço logo que no ar subam os três foguetões vermelhos do estilo.

 

Aquela tarde, eu estava em apoio, e tinha ido, depois de jantar, com alguns camaradas, pela estrada junto da qual estava a posição da bataria do capitão Beleza, dissimulada sob as ramas do pateo duma «ferme». O oficiál de serviço comandava um «teste». Por dentro dos vidros da janela da casa via-se uma linda rapariga loira que conversava e ria com dois soldados ingleses.

 

Era já quase noite. Um grande cemi-circulo de côr de ouro esbatido, com algumas nodoas de purpura, desenhava-se no poente. A estrela Venus suspendia-se, no ceu baixo, como o farol de um aeroplano. As ruinas duma povoação destruida amontoavam-se como os escombros de um grande incêndio; e como se elevava dos drenos da estrada uma leve neblina, parecia que esses escombros fumegavam ainda.

 

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Um dos meus camaradas conhecia o oficial de serviço e ficámos conversando um pouco. A conversa recaiu inevitavelmente sobre a guerra e as coisas de Portugal e ali nos deixámos ficar até á hora do recolher.

 

Os «very-lights» começaram a ascender na noite suave de verão, por toda a extensa linha da frente, como repuxos intermitentes duma imensa fonte luminosa. Um soldado sentou-se com uma guitarra sobre os joelhos e começou dedilhando o fado do «Ganga». Um automovel carregado de munições passou de luzes apagadas, fazendo tremer o leito saibroso da estrada. Cruzando com o automovel, um grande cavalo normando puxava um carrito de lavoura e desenhava na noite o seu enorme vulto. Sentado no dorso do cavalo um «gavroche» assobiava.

 

Nisto ouviu-se a voz da sentinela:

 

-S. O. S.!

 

Todos nos voltámos para a frente. O ultimo foguetão vermelho palpitava ainda, como uma grande palpebra oftalmica, no ar dormente.

 

O oficial de serviço correu ao telefone. Passado um minuto, chegava a confirmação do S. O. S. pelo telefone do batalhão.

 

— Aos seus logares! Bataria, fogo pela direita! — e a voz estentorica do oficial de serviço dominou a noite.

 

As peças estavam apontadas e os apontadores tinham já repartido entre si o objectivo e feito as correcções. A primeira granada partiu. A chama iluminou o abrigo. Sobre o assento do eixo, o apontador verificou se a peça continuava apontada, o municiador introduziu outra granada no regulador de espoletas e o graduador volteou febrilmente a manivela do fundo da caixa. No abrigo da segunda peça, um cartuxo feriu sonoramente o chão. A essa nova chama, viu-se o carregador da primeira peça erguer-se um pouco sobre o joelho para introduzir outra granada na culatra e viu-se o apontador fazer o disparo. As granadas sucederam-se, cortando o ar flamejante, tisnando as ramarias, fazendo tamborilar as janelas da «ferme» e enchendo a treva de estrondos e clamores.

 

O cheiro da polvora irritava as narinas e as caras dos artilheiros, vistas entre os rebrilhares dos bronzes dos reguladores e dos reforços das peças e entre os clarões dos disparos, faziam pensar em personagens mitologicas arrancadas ás forjas de Plutão ou á imaginação de Dante.

 

Corremos ao acantonamento. Já devia ter chegado a ordem de marcha e provavelmente a companhia de prevenção tinha já partido. Chegámos, e não tive mais que colocar-me à frente do meu pelotão:

 

—Quatro á direita volver! Ordinário marche!

 

Seguimos por um caminho de pé posto, a marche-marche. Ao passarmos defronte da bataria, os cartuchos dansavam no ar. Uma granada pesada inimiga uivou por cima das cabeças e foi rebentar para traz do acantonamento. Conforme nos íamos avisinhando da primeira linha, tornavam-se mais distintas as explosões dos obuzes e dos morteiros. As balas das metralhadoras pesadas batiam os caminhos e sibilavam entre os ramos das arvores.

 

Ouviu-se o tinir da campainha duma bicicleta. O soldado apeou-se e entregou-me um papel.

 

—Alto!

 

O pelotão estacou. O comandante do batalhão dava-me ordem para ocupar a posição de reserva. Os outros pelotões foram chegando, destacando-se como massas alvacentas na escuridão.

 

Os foguetes cruzavam-se em todos os sentidos. O urro cavo dos morteiros pesados abalava a noite, as granadas procuravam na treva os objectivos e as rajadas das metralhadoras pesadas enfiavam as estradas e as trincheiras de comunicação. No misterio da noite, o drama ia-se desenrolando, conforme todas as regras, sobre aquele scenario apocalitico de ruina e assolação. Parecia chegar ás almas o bafo putrido do cavalo da Morte, a qual serenamente ia manejando a fouce implacável por entre os taludes das trincheiras.

 

O bombardeamento abrandou com os primeiros alvores da madrugada. O inimigo não tinha conseguido entrar na nossa primeira linha.

 

Um ou outro soldado dormitava. Veio a ordem de regressar ao acantonamento. Voltámos pelo mesmo caminho de pé posto. Os soldados, de armas em bandoleira, as mãos metidas nos bolsos, marchavam depressa para sacudirem o torpôr da madrugada.

 

Onde o caminho se encontrava com uma estrada vicinal, havia um calvario. Um renque de ciprestes espontados, em fórma semi-circular, formava uma capela de ramos entrelaçados. Projectada sobre o fundo verdenegro a imagem de Christo parecia mais triste e abandonada, a cabeça mais pendida sobre o hombro lacerado, as chagas mais abertas, as mãos a despegarem-se mais dos cravos ensanguentados. Especialmente a chaga dum joelho tinha adquirido o livôr sujo da carne corrupta, e no peito, onde o escultor havia posto certo cuidado anatómico, a podridão alastrava sob a pele de opala.

 

Na bataria, agora, dormia-se. Alguns ramos despedaçados pendiam dos troncos, presos pela casca, e varriam a erva chamuscada.

 

Os soldados desequiparam-se e estiraram-se nos leitos de palha, entre as mantas. Eu tinha deixado sobre um caixote que me servia de meza de cabeceira os «Contos fantasticos», de Edgar Poe. Li algumas paginas e o sono veio lentamente. Adormeci sob a impressão de que tudo quanto se passara era também um conto fantástico, em que as figuras e a propria paisagem eram movimentadas pela mão poderosa dum romancista portentoso.

 

(Continua na próxima quarta-feira.)

 

27
Jun14

Discursos Sobre a Cidade - Por Gil Santos


 

 

A saga de um combatente na Grande Guerra

De Chaves a Copenhaga

 

A participação de Portugal na Grande Guerra, é um assunto arredado do interesse e do conhecimento de muitos portugueses. Infelizmente o Estado Novo branqueou esta participação e durante muitos anos tentou alhear os portugueses destes acontecimentos e ignorar quantos neles participaram.

 

Passou quase um século sobre esta catástrofe mundial que provocou mais vítimas mortais do que a população portuguesa da atualidade. Portugal esteve lá. E mais, muitos flavienses estiveram lá!

 

 

Hoje, em jeito da comemoração do centenário da guerra, publica-se muita coisa. Vêm à luz inúmeros documentos e muitos acontecimentos escondidos ou ignorados. Aproveitam-se, e bem, as redes sociais para a sua divulgação[1]. Nós, já o fazíamos antes. Com a publicação da obra De Chaves a Copenhaga – a saga de um combatente quisemos homenagear não só o nosso combatente António, como todos os que participaram no conflito armado, com especial destaque para o Batalhão de Infantaria 19 e os seus militares.

 

 

É nesta senda que surgirá, em agosto próximo, a 2ª edição, melhorada, daquela obra, agora com nova cara e novo título. Dela fará parte a introdução de que a seguir damos nota em primeira mão. Fala do combatente António, dos seus camaradas e de todos que temos obrigação de prestar vassalagem a estes heróis, nem que mais não seja, através do conhecimento e do estudo das peripécias da sua participação:

 


 

 

O avô António, paizinho, como gostava de ser chamado, era um homem simples. Apenas um António como tantos, sem fama, sem proveito e sem glória! Esteve em dezassete na guerra de catorze e, ao jeito do João Ninguém, Soldado da Grande Guerra, repousa no eterno silêncio dos desprezados. Para além de herói, que outro nome lhe poderemos dar, questiona Menezes:

 

“Que nome poderei eu dar aos simpáticos soldadinhos, aqueles trigueiraços que das oito províncias acorreram de mochila às costas, sem faltar ao embarque para honra dos seus batalhões? Nem «serrano», nem «lanzudo», nem «gambúzio», nem «folgadinho». Baptizá-lo-ei, muito simplesmente, com o nome de João Ninguém, incarnando assim, nesta modesta alcunha, aquele português que nas horas difíceis tudo faz para Maior glória da pátria e a quem muitos esqueceram, chegada a hora dos benefícios e compensações”[2]

 

Não adornavam os seus ombros de miliciano os galões da oficialidade, mas somente as divisas de um 1º Cabo de Infantaria. Não lhe coube a sorte do cachapim, para fazer a guerra na recoca a colher os louros do front. Era apenas um dos muitos milhares que não mandava, obedecia! Foi um reles praça-de-pré da malta da trincha no Corpo Expedicionário Português.

 

 

 

 

Teve a desdita de nascer em tempo de guerra. Sem padrinho que o livrasse, sofreu no corpo e na alma as agruras de um destino cruel que não mereceu. E, como se não bastasse o pavor quotidiano da morte, ainda viveu as maiores privações nas trincheiras. Experienciou, inclusivamente, o miserável estatuto de prisioneiro de guerra. Do Reno à Silésia, passando pela Prússia Oriental, vivenciou o ódio do boche sob a forma da desonra, da doença, da fome e do abandono. Da rija têmpera do granito do Brunheiro, venceu as maiores adversidades e, como o carvalho das touças do Planalto, sobreviveu a uma beligerância que nunca lhe explicaram e que ele pas compris. A guerra escacholou-lhe a alma, como o morteiro a Terra de Ninguém. Marcou-lhe o ritmo para o resto da sua vida. E de tal forma que não recordamos sesta, serão ou passeio d’acavalo, sem a eterna presença das suas memórias. A sua narrativa precipitava-se como os morteiros à pilha cão: orgulhosa, fria e medonha, porém, sempre admirável e bela. A resenha era tão real que trazia consigo o cheiro à pólvora, ao gás mostarda e à maçã assada. As suas palavras remedavam o matraquear da costureira e, por vezes, até passavam a sensação da coceira provocada pelas migalhas de pão com pernas, que chegavam a ser do tamanho de chícharos.

 

 

 

Aqui daremos conta das suas memórias de gambúzio. Fá-lo-emos com a mesma emoção e o mesmo realismo com que foram escritas na trincha pelo próprio punho. As vivências, relatadas em primeira mão, genuínas, hão de arreganhar como ouriços maduros. Delas verterão as palavras como as castanhas: luzidias, escorreitas e cristalinas. A ingenuidade das suas expressões, lavradas como quem as diz, transporta-nos a uma realidade pura, ausente dos subterfúgios da escrita elaborada que desconhecia. Não se especte, por isso, literatura arrevesada. Seria até injusta tal exigência. De um homem simples, nascido nos corgos do Brunheiro, que poderíamos esperar? Muito se lhe deve por saber ler e escrever. Raríssimo privilégio para o seu tempo. Muito fez ele, movido, certamente, por uma vontade incomensurável de trazer à saciedade a sua vivência de serrano. Fê-lo com a mesma coragem com que foi aos arames ou cortou prego, a mesma abnegação com que lidou com os arraites do boche ea mesma fé com que sobreviveu à metralha e ao cativeiro. Quem sabe até se com a mesma ironia com que teria troçado dos kilt das mademoiselles de tranchée!

 

E versejou:

 

Para quem nunca tinha visto                    Perguntei se naquele campo

Fogo de tantas maneiras                          tinham arrancado castinheiros

Foi uma entrada bonita                            e responderam-me que eram covas

Que eu tive nas trincheiras.                      de granadas e morteiros.

 

 

Quisemos, por isso, convocar na integra o seu Diário de Guerra e publicá-lo em fac-simile, para que não se perca cibo. Desta feita, cremos oferecer o encanto no seu estado mais puro. Os nossos escritos, em segunda mão, jamais conseguiriam proporcioná-lo.

 

Para que melhor se entenda o propósito, estruturámos a obra na correspondência cronológica do manuscrito do combatente. Assim, no início de cada capítulo, identificamos a paginação que no Diário lhe corresponde.

 

 

O objetivo da primeira parte deste livro, é o de contextualizar/esclarecer a leitura principal do Diário, a mais significativa.

 

Não se pense que foi tarefa fácil reconstituir, com o rigor que se exigia, a saga do nosso toupeira! As lacunas naturais do relato e o difícil acesso à raríssima informação do Arquivo Histórico Militar e do Geral do Exército, foram obstáculos sérios, exatamente por se tratar de um António Ninguém, com um nome igual a tantos outros!

 

Contudo, a nossa persistência, o crédito das suas vivências, mas sobretudo a nossa curiosidade pela descoberta, conseguiram afastar todos os escolhos. Desta forma, que cremos digna, contamos, com ele, a epopeia na Grande Guerra. Apesar de tudo, o que indagámos e aqui vertemos é, do nosso ponto de vista, bastante para engrandecer os feitos de quem emprestou à pátria, ingrata, tanta dor!

 

 

Queremos, no entanto, que esta saga vá mais longe. Que reze, também, por todos os que, ignorados, douraram a glória de quem os mandou para a trincheira.

 

Neste primeiro centenário da Grande Guerra, acreditamos que esta obra dignificará a memória de quantos empenharam a pele pela pátria imerecida!

 

À sua tenacidade e inteligência devemos o orgulho da portugalidade, ao avô António a existência. Só isso basta para esta justa homenagem.

 

Reconheçamo-la como um humilde tributo à sua coragem, um hino imperfeito à sua sobrevivência e um preito inopioso à sua memória.

 

Gil Santos



[1] https://www.facebook.com/groups/114833731880655/

[2] Cf. Menezes Ferreira, João Ninguém Soldado da Grande Guerra, Impressões Humorísticas do cep, 1917-1919, Lisboa, Serviços Gráficos do Exército, 1921, p. 14

 

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