LEMBRANDO A BATALHA DE LA LYS, 100 ANOS DEPOIS
Comemora-se na próxima segunda-feira, dia 9 de abril, 100 anos sobre a Batalha de La Lys.
Façamos uma breve síntese e um balanço final da mesma.
Breve síntese
Nem todos os autores coincidem quanto à hora exata do começo da batalha. Jaime Cortesão, Pina de Morais e o major Godinho apontam as 4 horas da manhã (como é, aliás, a informação que vem nos relatos dos comandantes dos batalhões dos RI 2 e RI 11, da 6ª brigada, e do batalhão do RI 2, da 6ª brigada). A maioria indica as 4 horas e 15 minutos.
Começou primeiro com um brutal e maciço bombardeamento, que mais parecia um terramoto, atingindo os postos ou sedes de comando mais recuados, como a sede do CEP, em Saint Venant, Quartéis-generais, da 2ª divisão, em Lestrem, e das brigadas, e todos os comandos dos Grupos de Baterias de Artilharia e respetivas baterias, deixando incólumes as tropas em primeiras linhas. Logo de seguida, diminuindo a distância, incidiu, como se fosse um cilindro rolante, sobre os comandos dos batalhões e todas as primeiras e segundas linhas de Infantaria.
Após um ligeiro intervalo, de novo se alargou o tiro, cobrindo-se e mantendo-se toda a área de combate, impossibilitando qualquer ligação ou contacto com as unidades. Parecia um verdadeiro inferno de metralha, uma enorme e contínua girandola de fogo atravessando os céus.
Aquilo que, num primeiro momento, pareceria um raid, de retaliação a um bombardeamento da véspera, idêntico a muitos outros que durante o mês de março se tinha sofrido, depressa o comando se apercebe de que se tratava de coisa bem mais séria, com uma outra envergadura.
Pelas 4 horas e 30 minutos, a grande maioria das comunicações ou ligações, quer telefónicas quer telegráficas, ficaram cortadas, ou por efeito do bombardeamento ou, na convicção da maioria dos relatórios dos diferentes comandos das brigadas, devido a sabotagem, com o argumento de os fios estarem enterrados a boa profundidade.
O comandante da 5ª brigada, coronel Docleciano Martins, no seu relato diz que, logo após o início do bombardeamento, ficou sem comunicações, quer para a frente, quer para trás. Apenas os comandantes do batalhão do RI 10 e do RI 17 mantinham comunicações com as suas companhias, mas às 6 e às 8 horas, respetivamente, ficaram sem elas. O comandante do batalhão do RI 4, em apoio, ficou sem ligações logo que o bombardeamento começou.
O comandante da 6ª brigada, também no seu relato, afirma que ficou sem comunicações para a retaguarda e para a frente e que apenas uma companhia da esquerda conseguiu manter comunicações por algum tempo.
O comandante interino da 4ª brigada, tenente-coronel Carlos Mardel, diz que ficou quase imediatamente sem ligações telefónicas com as unidades da frente, montando logo um serviço de ordenanças para manter os contactos com as primeiras linhas. Apenas o batalhão do RI 8 é que, até às 10 horas e 15 minutos, ainda conseguia contacto com o comando da brigada.
Simultaneamente, as estradas eram também atingidas, tornando-se intransitáveis por via das enormes crateras que os bombardeamentos provocavam.
Sem ligações telefónicas e telegráficas, e com as estradas intransitáveis ou cortadas, os serviços de estafetas, ciclistas e motociclistas, para além de muitos arriscados ou perigosos sob bombardeamento, tornavam-se muito mais demorados. Muitos deles foram atingidos por granadas, ficando mortos ou feridos.
O nevoeiro era tal que só havia visibilidade entre 30 a 50 metros, impedindo os infantes de ver donde vinha o inimigo, para contra-atacar, e a aviação de operar.
Os pombos-correio, dado o imenso nevoeiro, pouco eficazes foram; assim como os sinais óticos.
O modo certeiro como foram atingidos certos alvos, como os postos das diferentes baterias de artilharia, logo após o início do bombardeamento, não deixou dúvidas que os mesmos haviam sido referenciados.
A barragem de artilharia alemão, para além de destruir os postos de artilharia, dificultava, por outro lado, as baterias que ainda podiam fazer fogo, por dificuldade de remuniciamento, e, assim, gradualmente, foram reduzidas ao silêncio, apenas se ouvindo o troar da artilharia inimiga.
Com duas horas de bombardeamento forte pela artilharia alemã, sem ligações com os comandos e com os postos de artilharia, e com as primeiras linhas e fortificações de defesa a serem completamente varridas e destroçadas, desde muito cedo, cada unidade ficou entregue a si própria, sem qualquer direção do comando. A batalha transformou-se numa série de combates locais de iniciativa dos oficiais subalternos.
Às 7 horas, segundo Guilhermina Mota, citando Gomes da Costa, “as primeiras linhas de infantaria portuguesa eram «uma massa de escombros, de terra, de revestimentos despedaçados, amalgamados com os cadáveres das guarnições!»".
Entre as 7 horas e 50 minutos e as oito, os soldados alemães, a coberto da sua barragem de artilharia e com a ajuda do nevoeiro, saltam os parapeitos das suas trincheiras, atravessam a terra-de-ninguém, e começam a atacar os poucos homens que sobram, defendendo as posições dos restos dos batalhões de Infantaria 8, 20, 2, 1, 17 e 10.
No setor mais vulnerável, Fauquissart, a 40ª divisão britânica, às 8 horas, informa que o inimigo tinha entrado na sua primeira linha. Passado uma hora, retira do setor e deixa o flanco português, do lado esquerdo, a norte, completamente desprotegido.
Às 9 horas e 30 minutos, as forças alemãs atacam as linhas de separação entre as congéneres portuguesas e inglesas em ambos os lados - Fauquissart e Ferme-du-Bois.
Os bravos da 4ª brigada estavam preparados para receber os alemães à baioneta, mas depressa são completamente avassalados pela imensa mole de tropas inimigas, que avança em ondas sucessivas.
Às 10 horas e 15minutos, os alemães tomam Rouge-de-Bout, localidade que era defendida pela 40ª divisão britânica e infletem para sul, contornando os portugueses pelo seu flanco esquerdo. Às 11 horas, vindos da zona entretanto conquistada aos Ingleses, tomam Laventie, local onde se encontrava o comando do setor de Fauquissart.
Atentemo-nos no que diz Luís Alves de Fraga, com base no relato da ação do batalhão do RI 29, em apoio ao setor de Fauquissart, e que, na impossibilidade de o seu comandante o não poder fazer, por estar quase cego, foi elaborado pelo capitão José dos Santos e Cunha: “Pelas 4:35h de 9 de Abril o Batalhão de Infantaria 29 já tinha enviado todas as suas forças para apoio às primeiras linhas. Às 10:30h, o major Xavier da Costa, tendo reunido à sua volta o máximo possível de homens, tomou a decisão de resistir, entrincheirando-se nos drenos. Apesar da resistência, os homens foram morrendo ou ficando feridos um a um, até que os últimos tiveram que se render”. E conclui, no seu relato, o capitão Santos e Cunha: “Fácil é de ver que o envolvimento se fez neste setor, pelo flanco esquerdo, que estava apoiado em tropas britânicas, que cedeu às 8 horas e 50 minutos, tendo os portugueses cedido cerca das dez horas”.
Por seu lado, quanto ao batalhão do RI 1, em primeiras linhas no setor de Neuve-Chapelle, Luís Alves de Fraga diz que “às 9;30h chegaram as primeiras notícias de prisões nas linhas “A” e “B”. As guardas avançadas alemãs caminhavam 80 metros atrás da barragem de artilharia e varriam o terreno a tiro de metralhadora. O número de baixas foi enorme; restaram somente cinco oficiais e algumas dezenas de praças que não foram presos nem feridos”. E o mesmo autor, quanta a esta, conclui, dizendo que “a 6ª Brigada, nas linhas “A” e “B”, sofreu envolvimentos pela esquerda e pela retaguarda, e na direita, ataque frontal; não teve possibilidade de fazer chegar às primeiras linhas quaisquer reforços por falta de ligações e devido à intensa barragem”. Relata, ainda a este propósito, o comandante do batalhão do RI 5, em reserva, major Mário Constantino Oom do Vale, que, pelas 9 horas e 15 minutos “«apareceu o padre capelão Manuel Caetano, da 6ª Brigada, e uma escolta de seis soldados que me transmitiu a ordem de mandar avançar duas Companhias para reforçar cada subsetor (...)». [Contudo,] a barragem de artilharia era tão forte que foi impossível penetrá-la para correr em socorro da frente. Havia que tentar ocupar mais à retaguarda algumas posições que possibilitassem uma defesa eficiente e, simultaneamente, constituíssem uma dificuldade para o inimigo. Entretanto, pelo percurso, o comandante de infantaria 5 foi recebendo ordens para recuar com pouco mais de centena de homens que o acompanhavam. Os alemães avançavam sempre, vindos da esquerda, de Fauquissart”.
Dos oficiais do batalhão do RI 17, lado direito do setor de Ferme-du-Bois, em primeiras linhas, “só escapou de morrer ou ficar prisioneiro o tenente miliciano médico José Viana Correia. Pelas 13 horas foi feito prisioneiro o comandante da 5ª Brigada com o seu Estado-maior”.
Às 9 horas, no setor de Ferme-du-Bois, as tropas alemãs estavam já muito próximas do posto de comando do batalhão do RI 10, após terem penetrado pelo setor inglês à direita, e as tropas deste batalhão, em primeira linha, ficaram envolvidas pelo inimigo à direita e pela retaguarda.
Às 9 horas e 30 minutos, o inimigo já penetrara as primeiras linhas e atacava em Givenchy.
Quer dizer, segundo ainda Guilhermina Mota, citando o general Gomes da Costa, as divisões em que os flancos da divisão portuguesa se apoiavam “retiravam para formarem flanco defensivo, deixando aberturas por onde o inimigo penetrou com mais facilidade".
Neste cenário, as unidades começam a desorganizarem-se e começam a verem-se soldados desgarrados, errando, depois de abandonarem os seus postos.
Gomes da Costa, depois dos alemães terem conquistado as primeiras linhas, limita-se, tão-somente, a ordenar que se mantenham as posições a todo o custo, ganhando tempo, esperando por reforços ingleses: eram 11 horas. Esperou uma hora mais, e os reforços não vieram.
Assim, toda a resistência era inútil.
Do Quartel-general do XI Corpo do exército britânico, às 12 horas e 15 minutos, ordenam-lhe que, de Lestrem, retire para Calonne.
Às 13 horas, as vagas de tropas alemãs, ultrapassadas as primeiras linhas, que, predominantemente, eram guarnecidas pela Infantaria, alcançam e tomam as posições de artilharia.
Quando o comando da 2ª divisão chega a Calonne, às 15 horas e 40 minutos, recebe ordens do XI Corpo do exército britânico “para tomar posição mais atrás na Ribeira de Lawe. Mas foi impossível formar unidades com as tropas que retrocediam completamente dispersas, desordenadas e perdidas pelos caminhos”.
Era um perigo tantos homens, desavindos na retaguarda, pela dispersão provocada pelo bombardeamento e pelo avanço da infantaria alemã, se encontrarem tão concentrados nesta povoação. Por isso, o comando retira para Saint Venant com o intuito de, aí, se reorganizar.
Como afirma Joaquim Ribeiro, citado por Guilhermina Mota: "Não houve quem organizasse a retirada. Os soldados vaguearam sozinhos; e assim entraram, desordenados, em cabelo, e até descalços, pelas povoações e cidades, dando uma triste impressão». Segundo este autor, pior que a derrota — na altura toda a frente aliada recuava - foi o caos da retirada, sem que ninguém fosse capaz de controlar a situação, ficando a ideia de uma total debandada”.
As tropas portuguesas e britânicas não conseguiram aguentar o embate de um confronto cuja proporção era de 1 para 10. E cederam à avalanche que sobre eles recaía. Milhares são feitos prisioneiros e mandados para o cativeiro.
Foram 1 500 (das cerca de 1 700) bocas-de-fogo para uma frente com cerca de 12 a 15 quilómetros. Uma enormidade! Que, contudo, segundo refere Luís Alves de Fraga, “era esta a experiência que a guerra das trincheiras vinha desenvolvendo desde os tempos já recuados de Verdun, pois qualquer ofensiva era antecedida de uma longa preparação de artilharia”, porquanto a intenção não era apenas destruir seja que obras defensivas fossem, mas, essencialmente, quebrar a vontade de combater por parte da Infantaria. O corte das ligações entre os diferentes comandos outra coisa não pretendia obter senão o retardamento dos reforços, desmoralizando e destruindo ainda mais o moral das tropas para oferecerem resistência ao combate. La Lys limitou-se a repetir um padrão conhecido nesta guerra.
Pelotões isolados ou grupos de tropas, ultrapassados pela avalanche dos alemães, combatem dia 9 de tarde e dia 10 de manhã, oferecendo resistência. E outros, muitos poucos já, ainda os vamos encontrar a combater ao lado dos aliados, na ribeira de Lawe, no dia 11, até que são mandados reunirem-se às suas tropas.
Com a «Operação Georgette», o comando inglês afirmava que as suas forças estavam de costas para a parede e que não lhes restava outra possibilidade que não fosse resistir ou morrer.
Só que, e como bem diz Mendo Henriques, o valor militar não se mede em termos só de sucesso. Os soldados portugueses resistiram durante 24 horas ao assalto dos alemães, sublinhando ter sido esta resistência um valor militar sem precedentes. E, contrariamente ao que dizem os relatórios dos Aliados, de La Lys ter sido um insucesso, os alemães consideraram uma derrota Aliada útil, na medida em que lhes atrasou a sua ofensiva.
Como se veio depois a verificar, as ofensivas alemãs da primavera foram um fracasso. E, tal circunstância, deveu-se, essencialmente, aos seguintes fatores:
Unificação do comando militar na pessoal do marechal Foch, permitindo aos Aliados coordenar de forma mais eficiente as suas forças, com unidades francesas a substituírem as forças britânicas nas primeiras linhas.
• A falta de meios motorizados e meios de transporte eficientes para suportar e apoiar o avanço das tropas, o que foi uma constante alemã em toda a guerra.
• Embora as forças alemãs de trincheiras fossem mais numerosas, estavam, contudo, menos preparadas que as unidades de elite e que foram utilizadas na Operação Michael, duas semanas antes.
• Finalmente, o solo, com a primavera e o degelo, encontrava mole e, por isso, as posições defensivas dos Aliados tinham mais vantagem, ao poderem contar com ninhos de metralhadoras que ceifavam alemães, à medida que estes avançavam. O solo mole foi um problema grave ao avanço das tropas alemãs porque, para destruir a posição das metralhadoras, era necessário utilizar artilharia que, num terreno irregular, com muitas crateras resultantes das explosões, se encontravam cheias de água, dificultando ainda mais o avanço.
A conjugação destes fatores levou a que o avanço alemão fosse mais tarde retido, mercê ainda do reforço das unidades britânicas com tropas francesas, a sul, e belgas, a norte.
Balanço final
Foi, contudo, graças ao sacrifício e à valentia de uns tantos bravos que os objetivos da ofensiva alemã, apesar de destroçarem por completo a 2ª divisão do CEP, não foram conseguidos, conforme mapa que se apresenta.
Eis o que nos mostra o mapa a seguir.
Veja-se agora o que os alemães pretendiam com a «Operação Georgette».
No mapa que se segue, para além de completar o que acima se reproduziu, assinala-se as unidades que mais se distinguiram nesta batalha.
Continua a não saber-se, com exatidão, as baixas ocorridas na batalha de La Lys. Segundo Luís Alves de Fraga, referindo os números adiantados por Vasco de Carvalho, em 1923, o quadro de baixas seria o seguinte:
As estatísticas do CEP “apontam para 32 oficiais mortos e desaparecidos na batalha e, em 1993,computavam-se 6 535 praças prisioneiros, mortos no cativeiro e desaparecidos, enquanto o número de sargentos ascendia a 364 prisioneiros, mortos no cativeiro ou desaparecidos”.
Mendo Castro Henriques e António Rosas Leitão, como Luís Alves de Fraga, com base no quadro do livro «História do Exército Português (1910-1945): Estado-Maior do Exército», III Volume, 1994, página 123, dizem-nos que “a lista de perdas portuguesas em La Lys é de 299 oficiais e 6 684 sargentos e praças, mortos, feridos e prisioneiros, um terço da força combatente a 9 de Abril. Não se conhece o número exato de feridos, porque ficaram no terreno ocupado, mas nunca terá sido inferior a 1 500 homens. No cativeiro faleceram mais 233 militares".
Se analisarmos o quadro acima das baixas, o que é mais espantoso é a enorme desproporcionalidade do tipo de baixas. Tanto prisioneiro, comparativamente aos mortos, é sinal mais que evidente que o moral das tropas era muito baixo, que estavam no limite máximo do seu esgotamento físico, psicológico e anímico, perante um inimigo que se mostrava tão verdadeiramente avassalador.
Mas, se por outro lado, formos ver o balanço da ofensiva da Operação Michael, os ingleses não se podem queixar muito do que aconteceu em La Lys. A derrocada das linhas portuguesas, não foi no entanto muito diferente da que tinha ocorrido com os britânicos em 21 de Março, onde durante as primeiras horas após a violenta barragem de artilharia, se renderam 21 000 britânicos.
Isabel Pestana comenta que “a perda de milhares de militares nas fileiras portuguesas para o cativeiro alemão foi mais significativo porque contribuiu para o desfalque [já de si bastante crítico e] que se fazia sentir há muito nas unidades militares do CEP, penalizando os sobreviventes ao serem obrigados a permanecer, muitas das vezes desmoralizados, numa campanha que não via receber tropas frescas para proporcionar o descanso merecido e há tanto tempo desejado”. Aliás muitos dos acontecimentos que a seguir sucedem, como as insubordinações, não se compreendem sem a devida compreensão desta realidade.
Há uma certa tendência, entre nós, em resumir a nossa participação na Frente Ocidental àquilo que apelidamos de o desastre de La Lys. Nada mais erróneo! Estamos plenamente de acordo com Isabel Pestana quando afirma que “dois anos de campanha não se reduzem a uma batalha que, ainda por cima, não se saldou por grande número de mortos ou feridos: os combates de Janeiro a Março [de 1918] foram mais mortíferos e desmoralizadores que La Lys!”.
Bazílio Telles, no seu opúsculo «Na Flandres (O episódio de 9 de Abril)», de 1918, não o classifica como um desastre, simplesmente um mero «episódio militar». É certo que este opúsculo foi escrito quase imediatamente a seguir ao acontecimento. Contudo, no contexto dos combates que se deram na Grande Guerra, positivamente, está mais próximo de um episódio do que de um desastre, coisa que Ferreira do Amaral, mais contristadamente se lastima que, em Portugal, assim se entenda.
Os dois anos de campanha do CEP na Flandres, de duas divisões desfalcadas e desmoralizadas, pelos motivos já amplamente expostos, numa frente variável, mas extensa para qualquer exército Aliado que fosse, apesar de todos os problemas com que o comando superior e unidades de combate na Frente se debateram, não se pode considerar, objetivamente falando, num fracasso. A exemplo de outros exércitos Aliados, teve os seus altos e baixos e, como se expressou, e bem, o general Fernando Tamagnini de Abreu, quando deixou o comando do CEP, até ao dia 9 de abril de 1918, soubemos defender o nosso setor com esforço, sim, mas com valentia.
Se quisermos fazer uma análise/avaliação destes dois anos de campanha, diríamos que, em 1917, o setor português, e na terminologia de Isabel Pestana “viveu o usual ritmo alternativo de momentos de espera e de momentos de combate, mais desgastante que nas outras zonas Aliadas devido à incapacidade portuguesa de facultar descanso às tropas que [...] permaneciam demasiado tempo na Frente”. Já o ano de 1918 foi bem diferente. Agudizou-se mais a carência de homens frescos para revezar a Frente, aumentou, principalmente no primeiro trimestre o «tempo de combate», que trouxe muita desmoralização às tropas. Não admira, assim, que, quando surge o mês de março, de intensos combates, este tenha sido um mês terrível, de mortos, feridos, doentes, à mistura com medo e pânico, um verdadeiro inferno para as tropas portuguesas. É nesta altura, ainda segundo Isabel Pestana, que “acontece o maior número de mortos em campanha, muitas vezes sepultados à pressa, ou enterrados nos escombros da 1ª linha e que se enchem as ambulâncias e os hospitais com combatentes de feridas abertas, esvaídos em sangue e, por vezes, mutilados”.
Houve, positivamente, um esforço notável das nossas tropas nos primeiros três meses de 1918, como a seu tempo demos conta. E nem vale agora a pena falar dos defetistas, desertores e dos oficiais a quem faltou Honra, Valor e Lealdade. Supervalorizar certos grupos pelo seu comportamento, pouco em conformidade com os compromissos assumidos para com uma profissão e para com a Pátria, é não dar o devido valor aqueles - e foram felizmente muitos - que, com todas as suas forças, honrarem a farda que vestiam e o País que representavam, ao lado dos nossos Aliados, independentemente de quem ocupava, num momento concreto, o poder político em Lisboa.
Perante a avalanche de metralha e aquela multidão de tropas de assalto, numa desproporção tão significativa, nenhum outro exército Aliado poderia ter feito muito melhor. Com certeza que poderia oferecer mais resistência, com maior número de mortos e, possivelmente, não tantos prisioneiros, contudo, o resultado final não seria muito diferente daquele que verificámos nos dias 9, 10 e 11 de abril de 1918.
Neste ponto, e concluindo, estamos com Isabel Pestana quando afirma que “a presença portuguesa de dois anos e três meses em terras francesas (Janeiro de 1917 a Março de 1919) [não se pode resumir] a única batalha, conhecida pelos ingleses por «Armentières», e apresentada sempre com recursos a adjetivos dignos de fantásticas e literárias figuras de estilo mas a poucos factos”.
E, quanto a este ponto, não resistimos em aqui deixar o ponto de vista de um bravo, antigo combatente, polémico, mas magoado, e frontal. Ferreira do amaral «queixava-se» assim: “A agência «Reuter» germanófila dos pés á cabeça, refere em 10 de Abril a resistência que os portugueses opuseram ao avanço dos alemães e elogia a bravura com que se bateram apesar de terem perdido os apoios dos flancos, mas o cidadão português é que não vai na fita e chama-lhe o desastre de 9 de Abril! O «Times» e o «Daily» Mail», jornais ingleses, em 11 e 12 prestam a mais sentida homenagem á bravura e sacrifício com que se bateram as quatro Brigadas Portuguesas, mas o cidadão português é que não vai no jogo e insiste em chamar-lhe o desastre de 9 de Abril!!! O «Matin» e o Telegrame de 10 e 11 referem-se ao valor dos portugueses que se bateram na Flandres no dia 9, 10 e 11 de Abril, como se se referissem ao valor provado dos seus compatriotas, mas o cidadão português é que não vai atrás do choro... e continua a chamar-lhe o desastre de 9 de Abril!!!” (Amaral, 1923: 46). E continua: “Resumindo: para o general Ludendorff o ataque de 21 de Março representa um alto feito de armas, e o ataque de 27 de Maio (Chemins des Dames) representa uma grande vitória tática. E ao referir-se a 9 de Abril não se dá por satisfeito! O cidadão português não acha que Ludendorfl se mostra exigente quando aprecia o 9 de Abril? Ele que atacou com 17 Divisões à frente de Armentiéres a Bethume e só para o ataque de frente feito contra os portugueses destina 8 Divisões, é porque com alguma cousa contava pela frente. A nós pelo menos parece-nos isso. Mas o cidadão português é muito esperto, muito desconfiado, muito astuto, e não vai com essas! O 9 de Abril continua a ser um desastre!”. Para, assim, concluir: “Em Portugal todos os políticos, (sem exceção alguma), discutiram muito o 9 de Abril, mas todos eles não procuravam sinceramente salvar a honra da Nação. Toda essa miséria moral nada mais foi do que uma discussão de interesses partidários e pessoais!”.
Mendo Castro Henriques e António Rosas Leitão dizem que a batalha de La Lys “deu origem à quase totalidade dos prisioneiros de guerra portugueses, que até essas data era insignificante. Antes da ofensiva de 9 de Abril havia apenas 102 prisioneiros. As estatísticas oficiais registam precisamente 7 000 prisioneiros internados nos campos de prisioneiros da Alemanha, dos quais 274 oficiais. O conjunto de mortos e feridos do CEP, que mobilizou 55 083 homens para a Flandres, foi calculado em 7 384 homens [nos dois anos de campanha, conforme quadro que abaixo se apresenta], ou seja, 13,4% dos efetivos, [portanto] abaixo da média da Grande Guerra”.
Para finalizar, queremos deixar aqui o ponto de vista de um velho republicano, Bazílio Telles, que, logo a seguir ao 9 de abril de 1918, assim se exprimia: “Ninguém melhor que um militar, e um militar distinto, sabe que a superioridade numérica não é sempre condição imprescindível para o êxito dum ataque. Outras condições, algumas de mais importância do que essa, influem no resultado que se teve em mira colher duma ofensiva, particularmente se acaso se lhes veio juntar algum incidente meteorológico, topográfico, ou doutra ordem, favorável aos projetos do inimigo. Igualdade de efetivos pode muito bem coadunar-se com uma vitória completa do atacante, se este conta do seu lado outras superioridades sobre as forças investidas”. E dá o exemplo de Aljubarrota. E, mais adianta, acrescenta que, “por mais que a velha organização militar se modifique, por mais que se aperfeiçoe o armamento, subsistem fatores imutáveis de vitória, que nenhum progresso material, nenhuma complicação de agrupamento de unidades, são suscetíveis de alterar de maneira apreciável, que vem a ser as qualidades, o temperamento, o caráter das populações dum certo país, seja qual for. A primeira, a imprescindível condição para vencer é possuir conhecimento completo do que é estrutural na alma dum povo, da série dos móveis, dos estímulos habituais ou transitórios capazes de a fazer entrar em vibração, tirando-lhe assim o máximo esforço no sentido que se quer. Não é só lendo tratadistas profissionais estrangeiros, que só podem ensinar o que num exercício há de exterior, é sabendo de cor a história desse povo, não unicamente a história militar, a integral, que se consegue ser um bom chefe de soldados. A técnica da profissão é a tabuada, se nos relevam este modo de exprimir; mas a história nacional é o a b c. A primeira é preciosa, a segunda é indispensável”.
Nunca ninguém manifestou grande empenho em inquirir porque foi que se venceu; todos anseiam sempre por saber porque é que se foi vencido. Aos olhos do grande público a vitória tem, ou parece ter, em si a sua razão suficiente; a si, e por si própria se justifica; é um facto que se toma sem lhe determinar as condições. A derrota exige, ao contrário, que se lhe apure os motivos, se lhe destaque até ao ínfimo pormenor os antecedentes e as fases, se lhe conheça os responsáveis, pessoais ou impessoais. Ninguém jamais regateou o preço porque se triunfou do inimigo; discute-se o último ceitil que se despendeu com uma derrota. A natureza humana é assim feita, deste barro grosseiro, em toda a parte; e nem a Geografia nem a História lhe modificaram até hoje a estrutura. Não faltam nesta guerra os episódios que nos conformam a realidade destas contraditórias exigências morais das multidões consoante se vence ou se é vencido”.
Nesta guerra, na Flandres e na África, conforme enfatizámos na Revista nº 50 do Grupo Cultural Aquae Flaviae, os militares do RI 19, e de Chaves, deram provas bastas de bravura, de amor e dedicação à República e à Pátria. Para além dos simples, humildes e anónimos homens que se bateram bravamente nos diferentes campos de batalha e de que a história não reza, outros há que ficaram com o seu nome bem marcado nas suas páginas, como sejam, Bento Roma, Germano Ribeiro de Carvalho e o celebérrimo soldados Milhais, o «Milhões»…
Contudo, num ponto, estamos de acordo com Filipe Ribeiro de Menezes, professor de História na Universidade de Maynooth, na Irlanda, na sua obra «De Lisboa A La Lys – O Corpo Expedicionário Português na Primeira Guerra Mundial»: “Em La Lys findou o sonho de uma República capaz de transformar os destinos de Portugal, do seu domínio colonial e dos Portugueses de todo o mundo, mobilizando todas essas forças em torno do sacrifício dos soldados nas várias frentes de combate e da valorização, pelo mundo fora, do bom nome português”.
100 anos volvidos, será que aprendemos efetivamente a lição, pelo que foi a história dos nossos «maiores»?...
António de Souza e Silva