![1600-cornos-barroso (30)-granjo 1600-cornos-barroso (30)-granjo]()
Cornos do Barroso
![estrambolicas estrambolicas]()
Crónica de um Primeiro-Ministro sobre Barroso 10
Mais uma crónica do antigo Primeiro-Ministro António Granjo, um ilustre flaviense. É a uma das 15 crónicas sobre Barroso publicadas no jornal A Capital em 1915. A crónica está escrita como foi publicada, no português da altura, incluindo gralhas tipográficas.
Como esta crónica é quase toda sobre o ataque do Paiva Couveiro a Chaves e tem pouco sobre Barroso, vou pedir ao Fernando que faça uma introdução sobre este tema[i]. Só faço o reparo seguinte. Esta batalha em Chaves foi ganha pelos de Chaves, sabendo-se que um dos cabecilhas era o Granjo. Reparem como o Granjo descreve a batalha mas nunca diz que esteve lá ou faz referência ao general do comando de Chaves. Não se vangloria de nada, deixa para os outros esse trabalho, como deve ser. É este tipo de pormenores que mostram a grande classe deste ilustre flaviense.
Luís de Boticas
![1600-paradela (627)-granjo 1600-paradela (627)-granjo]()
Serra do Gerês
AS LÁGRIMAS DE COUCEIRO
Onde chorou o paladino quando da incursão de 1912
Depois de ter desvendado as Alturas, face granítica que se offerecia sob o sol oleoso e para beijar a qual parecia que todas as grandes serras se comprimiam n'um circulo de grandes vagas immoveis, tinha de fazer o circuito de Barroso — transpor o Larouco, internar-me no chamado Alto Barroso, estabelecer contacto com o Gerez, admirar as fechas (cascatas) de Pitões e do Outeiro, passar pela Borralha, tocar na Roca da Ponteira e encher os olhos, cançar os olhos, da visão apocalíptica do Regabão visto da Lomba de S. Bento, quando o sol descambava e tudo se desfazia em luz.
![1600-barroso XXI (290)-granjo 1600-barroso XXI (290)-granjo]()
Cascata de Pitões das Júnias
O que vou contar vae porventura ser tido como o producto de uma exhuberante phantasia de meridional ou d'uma paixão regionalista exagerada até à obsecação c à mentira. No entanto, a phantasia mais exaltada era incapaz de crear e dar forma a tanta coisa admirável.
Às cinco horas, n'este mez de Setembro, é noite. É pouco mais ou menos, eu sei, ahora de o lisboeta se deitar, perdidas as suas últimas ilusões; mas é a hora em que por cá se levanta quem tem alguma coisa que fazer. Pois às cinco horas estava organizada a caravana, e sob luz palpitante das estrelas, marchavamos pela ponte romana das Caldas, seguindo a antiga via militar de Aquae Flaviae a Bracara Augusta.
Nas Casas dos Montes começos a alvorecer, O castello de Monforte projectava-se no fundo purpura do nascente como uma espécie de viseira calada. A casaria do velho burgo flaviense emergia da sombra. Um clarim tocava à alvorada.
Em Valdanta, o sol abria já a sua corola d'oiro. Uma ténue neblina alongava-se por sobre o cio Tamega, esgarçando-se nos amieiros. As videiras, as hortas reverberavam.
![1600-alto-soutelo (5).jpg 1600-alto-soutelo (5).jpg]()
Amanhecer no alto de Soutelo com a veiga de Chaves de fundo
Paramos para comer o almoço frio, acima de Soutelo, no meio d'um lanço vial milagrosamente conservado das iras do tempo e das unhas dos homens. Os carvalhos ladeiam a via; a vinha cobre as encostadas; é na veiga, desde Soutelo de Valdanta, entre as batatas do tarde e os milhos, lavradores gritam aos bois, premindo o arado celta ou guiando pelos corregos o carro Romano.
Passa-sa a hora da sesta em Calvão, photographa-se um dolmen à entrada de Castellãos e avista-se Soutelinho da Raia, fim da primeira étape, ainda com sol.
O Larouco, para o norte, parece um phantastico saurio com a cauda rastejando pelas Limias e a enorme cabeça, o Larouquinho, solevantada, como uma ameaça, para Montalegre.
![soutelinho (608)-granjo.jpg soutelinho (608)-granjo.jpg]()
Serra do Larouco vista desde Soutelinho da Raia
Foi à entrada de Soutelinho, à sombra prásaga dos castanheiros que rodeiam o cemitério, que Paiva Couceiro acampou no dia 7 de Julho de 1912 quando marcava, certo do triumpho, sobre Chaves, e foi onde, logo no dia seguinte, outra vez acampou, esmagado sob o peso da irremediável derrota. Um pouco à direita, fora das tapadas e do baldio onde os seus soldados rouquejavam as raivas dos vencidos ou curavam as feridas, fica o castanheiro debaixo do qual se diz que Paiva Couceiro se sentou depois da derrota e, com a cabeça escondida nas mãos, chorou o seu sonho perdido.
![1600-avd-soutelinho (1)-granjo 1600-avd-soutelinho (1)-granjo]()
Soutelinho da Raia
Reconstituo esses momentos. Paiva Couceiro tinha entrado por Sendim e seguido a estrada velha, por Gralhas e Solveira acampára depois do meio dia em Soutelinho. O sol ostentava pelos outeiros o seu manto de glória; do céu cahiam bençãos; as cotovias elevavam-se no ar translúcido entoando os seus himnos triumphaes; os carvalhos pendiam para as bordas dos caminhos, offerecendo-se os combatentes. Pouco depois de ter acampado, Couceiro recebia a notícia de que se organisára em Chaves a columna mixta, composta das melhores forças da guarnição, de quasi todos os cavallos e toda a artilharia, a fim de marchar sobre Sapiães com o objectivo de impedir a junção das suas forças com as duas centenas de labregos que se haviam levantado em Cabeceiras às ordens do Padre Domingos. Couceiro devia ter sorrido, os seus olhos deviam-se ter iluminado da fé viva no Triumpho: O seu como esguio devia já sentir-se levado nas azas da victória.
![1600-sendim-00.jpg 1600-sendim-00.jpg]()
Ao fundo, Sendim por onde Paiva Couceiro entrou com as suas tropas, vindos da Galiza
![1600-larouco (85)-granjo 1600-larouco (85)-granjo]()
Planalto da Serra do Larouco que Paiva Couceiro teve de percorrer para chegar a Chaves com as suas tropas, passando por Gralhas, Solveira e Soutelinho. Ao fundo, lado esquerdo, avista-se a Serra do Brunheiro.
O acampamento Ievantou-se e a marcha começou, sem o regular serviço de segurança. Para quê? Chaves ia cahir de madura. Era um fructo delicioso que estava apenas à espera dos seus dentes. Pelo caminho, os soldados cantavam. As grevas de panno, as amas em bandoleira, davam-lhes um cento aspecto de salteadores. Alguns antegosavam a entrada triumphal na antiga praça forte, maquinavam a sua vingançasinha, delíciavam-se porventura na ideia do saque.
De madrugada chegaram ao alcance de Chaves sem encontrarem uma patrulha. Os primeiros soldados da República que os monarchistas encontram são os da carreira de tiro que o commando havia esquecido e deixado entregues à sua sorte. O cabo que commanda esses soldados, surpreendido, arma-se e apparece no cimo do Espaldão. Na guarda avançada vinham alguns desertores da infantaria 19. Estes chamam-n'o pelo nome, cumprimentam-n'o riem-se. E é esse cabo, sósinho, que do Espaldão começa o fogo.
![1600-(41463)-granjo 1600-(41463)-granjo]()
Espaldão - Chaves, onde começou o combate do 8 de julho de 1912 entre os republicanos de Chaves e os realistas de Couceiro.
![antonio-granjo.JPG antonio-granjo.JPG]()
António Granjo, ao centro na imagem (Clicar na imagem para ver post do Blog Chaves Antiga relacionado com a mesma)
Fazem-se os preparativos do assalto, as flechas couceiristas chegam quase às muralhas. A companhia do capitão Tito Barreira faz refluir a onda, o combate trava-se.
Paiva Couceiro olha fixamente um ponto. Os solados perguntam uns aos outros, inquietos, porque não apparece a bandeira branca. A resistência prolonga-se e sobre o ponto fixo que Couceiro olha cruzam-se as balas. Mas então Chaves não se rende'? Então vieram mette-los n'um matadouro? No hospital de sangue os feridos accumulam-se; os moribundos contorcem-se pelas terras centeeiras; os mortos levantam para o ceu os olhos parados n’uma supplica derradeira e suprema.
A tropa fandanga encolhe-se atraz dos pinheiraes das paredes, das penedias. Paiva Couceiro olha ainda o ponto fixo, mas o seu rosto contrahido, os seus olhos apagados, denunciam a sua agonia.
O official de antilharia, que dirige o fogo das duas peças, e a quem a derrota já certa enlouquece, manifesta o propósito de despejar sobre a villa um montão de granadas incendiárias. Couceiro oppõe-se. Conta-se, mesmo, que para pedir a realização de tal propósito, atirou com o cavalo para frente das peças.
Estava tudo perdido. Paiva Couceiro ordena a retirada.
![1600-couceiro.jpg 1600-couceiro.jpg]()
Gravura/Postal retratando a retirada de Couceiro
A retirada faz-se tranquilamente. Couceiro não se pode queixar da perseguição das tropas republicanas. E à noite, sob as mesmas árvores presagas, ouvindo o gemer dos feridos, as coleras da turba-multa vencida, Paiva Couceiro procura aquele sítio ermo, em que possa chorar todas as suas illusões desfeitas em poeira e sangue. Ali, se terá revoltado silenciosamente contra os cúmplices que faltaram, contra a cobardia d'aquelles que o cercaram de incitações e de promessas e que ficaram detraz das janellas a verem deslizar o curso dos acontecimentos.
Acaso, n'esse instante, Couceiro perguntaria a si próprio se, em vez do paladino nun'alvaresco que queria ser, não estaria apenas desempenhando papel de cavalleiro da triste figura; e acaso, vendo passar junto dos seus pés a fronteira hespanhola, perguntaria a si próprio se não estava sendo instrumento da ambição castelhana e se promovendo a desordem na sua Pátria a História lhe não applicaria na face o ferrete de traidor...
Antonio Granjo
[i] - Nota do Blog Chaves: O post anterior, "Cidade de Chaves - Feriado Municipal - O 8 de Julho e António Granjo", serve para a introdução solicitada pelo Luís.