Discursos Sobre a Cidade - Por António de Souza e Silva
Considerações à volta de uma homenagem
I
Já se passou a quadra do Natal.
O ano de 2013 já está em andamento.
Estamos todos expectantes, face aos tempos que atravessamos, o que 2013 nos reserva. Possivelmente muitas coisas boas não teremos, com certeza.
No final do ano que passou um dos esteios daquele que foi chamado o Movimento das Forças Armadas, o MFA e o 25 de Abril privou-nos do convívio quotidiano. Foi-se um homem impoluto, honesto, que quis que seus restos mortais repousassem na terra que o viu nascer – o seu querido Trás-os-Montes.
Há que distinguir o trigo do joio: não há só políticos maus. Marques Júnior, um dos «capitães» de Abril, era, efectivamente, um dos bons e dos melhores. Que nunca precisou de alardear para que, de todos os quadrantes, o reconhecessem como tal. Marques Júnior foi um exemplo de cidadão. Que todos devemos recordar e não esquecer.
II
Ao chegar a casa, no passado dia 19 de Dezembro, depois de uma «aventura» a pé por terras das Astúrias e da Galiza, em direcção a Santiago, entre a vária correspondência acumulada, deparo com dois convites: um, do Grupo Cultural Aquae Flaviae, a convidar-me para a sessão de homenagem ao ilustre flaviense Dr. Júlio Montalvão Machado, a realizar dia 13, às 17:30 na Biblioteca Municipal de Chaves, onde seria apresentada a sua última obra intitulada «História Moderna e Contemporânea da Vila de Chaves, através das Actas da Câmara e dos Jornais da Época»; um outro, com o título «Recordar Júlio Montalvão Machado» para dia 15 de Dezembro, com o seguinte programa: 14:30 – Atribuição do nome de Júlio Montalvão Machado à sede do Partido Socialista de Chaves; 16:00 – Percurso pedonal histórico (Largo General Silveira); 18:00 – Sarau cultural no Auditório do Forte de São Francisco Hotel).
Tive imensa pena não poder estar cá para participar, essencialmente, no evento do primeiro convite.
Exemplificando.
Júlio Augusto de Morais Montalvão Machado, nascido numa das freguesias da cidade de Vila Real, era um apaixonado por Chaves.
Na sua aguerrida juventude lutou pelos ideais da liberdade, da democracia e do socialismo democrático. Razão pela qual – e com todo o mérito – seu nome figura, juntamente com outros, em letras «garrafais», como um dos fundadores do Partido Socialista Português, na sede do Partido Socialista, a nível nacional. É, pois, ali que gosto que seu nome tenha a honra de brilhar!
Mas Júlio Augusto de Morais Montalvão Machado não foi apenas um lutador pela liberdade, pela democracia e pelo socialismo democrático. Era também um verdadeiro, autêntico republicano. Para quem democracia não é só o exercício de direitos mas também a consciência cívica e a obrigação prática, da prestação efectiva de deveres.
Enquanto, muito esporadicamente, e após o 25 de Abril, exerceu actividade política, quer como deputado, quer como governador-civil, o lema republicano esteve-lhe sempre presente.
Como apaixonado flaviense que era, e não querendo ausentar-se da sua terra por longos períodos de tempo, foi, lentamente, abandonando a vida político-partidária activa que, obviamente, o chamava para a capital.
Dizia, frequentemente, aos camaradas que o ouviam, que fazer uma vida político-partidária em Lisboa, sem se desligar do seu terrunho, que tanto amava, para além de extenuante, era um empreendimento pessoal demasiado caro.
Júlio Augusto de Morais Montalvão Machado, como muitos, - agora infelizmente já tão poucos -, era um democrata e republicano impoluto. No seu horizonte de realização pessoal, em termos políticos, estava fora de questão o exercício da política para subir na vida. A política, ou melhor, o seu exercício, apresentava-se-lhe como um efectivo serviço público, como um autêntico dever de um cidadão para com a sua polis.
Por isso, fez a sua opção: ficou pela sua terra flaviense, que tanto aprendeu a amar e amou. E, aqui, fez toda a sua vida. Como profissional de um dos ramos da saúde e, na linha já de um dos seus familiares, de curioso e investigador da história, em particular da história flaviense.
Foi com muito gosto, sendo responsável pelo sector da cultura na autarquia flaviense, que assisti ao lançamento do seu livro «Crónica da Vila Velha de Chaves»; foi com imensa satisfação que o vi trabalhar na Revista Aquae Flaviae, escrevendo nos seus números, temas relacionados com Chaves; seria, igualmente com grande entusiasmo que estaria presente no lançamento póstumo da sua última obra.
Positivamente, a sua paixão era por tudo que se relacionasse com a sua «Vila de Chaves»!
Júlio Augusto de Morais Montalvão Machado era um homem de palavra. Estive numa das últimas reuniões da Assembleia Geral da Revista Aquae Flaviae. A sua Presidente, D.ra Isabel Viçoso, quando apresentava o Plano de Actividades para 2012, apontava estava obra como uma das prioridades do programa da Revista. A Revista cumpriu. Porque também o seu responsável, embora tenha partido mais cedo do que todos nós pensávamos, deixou tudo pronto para que se pudesse editar. Júlio Augusto de Morais Montalvão Machado deu-nos, efectivamente, um exemplo: o saber cumprir com a palavra dada!
Esteve, pois, de parabéns a Revista Aquae Flavia em editar e lançar a última obra de Júlio Augusto de Morais Montalvão Machado. Porque, muito justamente, é a melhor homenagem que se poderia ter feito ao homem que tão apaixonado era por Chaves.
III
Já, por outro lado, não concordo com o programa «Recordar Júlio Montalvão Machado», especificadamente quanto à atribuição do seu nome à sede do Partido Socialista de Chaves.
Não sei nem tão pouco interessa aqui escalpelizar, os desígnios ou intuitos que presidiram a esta decisão e posterior iniciativa.
Júlio Augusto de Morais Montalvão Machado, estou certo, não apoiaria esta iniciativa: pelo seu sentido certo de justiça que tinha perante as coisas.
O Partido Socialista de Chaves não deve a sua existência só a Júlio Augusto de Morais Montalvão Machado. Todos os seus feitos e realizações foram (e são) obra de todos os seus militantes. Muitos deles militantes, cidadãos anónimos.
Embora saibamos que Júlio Augusto de Morais Montalvão Machado tenha sido Presidente da Assembleia Municipal de Chaves, nos consulados socialistas na Câmara, bem assim Presidente Honorário do Partido, a nível da Federação do Partido Socialista de Vila Real, tais cargos ou designações possuem apenas a simples e honrosa distinção que se tem para com uma pessoa, a quem pelo seu exemplo e pela sua vida, nos merece o maior respeito. Mas o PS de Chaves não se esgota (ou esgotou) apenas em Júlio Augusto de Morais Montalvão Machado.
Desta feita, dar o nome de Júlio Montalvão Machado à sede do Partido Socialista parece-me não só despropositado como até abusivo, ofendendo o sentido de rectidão e justeza que, estou certo, Júlio Augusto de Morais Montalvão Machado tinha. Repito: o Partido Socialista de Chaves é obra de todos. E sublinho: de todos os militantes da sua Secção. E não me refiro apenas aos que pelo seu mérito e trabalho ganharam e ajudaram a ganhar eleições mas, fundamentalmente, aqueles, muito deles anónimos, que, com dedicação e perseverança, todos os dias (ou quase todos os dias) a souberam organizar e mantiveram, ao longo de anos, a sede aberta, mantendo bem vivo e de pé o nome do Partido Socialista no concelho de Chaves.
E, a este propósito, pedindo perdão àqueles que aqui, porventura injustamente, não refiro – e que foram tantos! – queria nomear três militantes, muitas vezes tão injustamente esquecidos e/ou criticados:
Um deles – e que, infelizmente, há muito tempo nos deixou – António Chaves Medeiros. Tendo sido deputado e desempenhado mais vida político-partidária a nível nacional (e, com certa predominância em Valpaços), não nos devemos esquecer do trabalho de bastidores e de «sapa», junto do mundo rural. Em particular quando o Partido Socialista sobe, pela primeira vez, ao poder na Câmara de Chaves, após o 25 de Abril.
De lá até agora algum de nós se lembrou de António Medeiros? De o associar ao mundo rural e aos lavradores da nossa região? E de se instituir ou criar seja o que fosse para preservar e continuar a sua memória e obra?
Um outro – que também infelizmente há muito tempo nos deixou – José Augusto Fillol Guimarães.
Alguém duvida da sua militância como também do seu compromisso para com o Partido Socialista?
Alguém se lembra, nos tempos difíceis para o PS de Chaves – e áureos para o PPD, dono da Câmara flaviense – dos candidatos socialistas à Câmara? Quem, na altura em que Fillol Guimarães desempenhava as funções de deputado na Assembleia da República, os responsáveis da altura do PS de Chaves foram buscar para ser opositor ao todo poderoso Branco Teixeira? Sabem, porventura, o que este convicto socialista, e também republicano, respondeu? Como sabeis, estou de armas e bagagens em Lisboa, desempenhando as minhas funções de deputado, contudo, se não tendes candidato e achais que deva ser eu, é meu dever aceitar.
E, de lá até cá, algum dos socialistas se lembrou de José Augusto Fillol Guimarães? De associar o seu nome a qualquer iniciativa ligada ao ensino, onde, aliás, ele desenvolveu quase toda a sua vida? Como, por exemplo, a de um prémio, com o seu nome, para o melhor estudante dos membros da JS de Chaves, aliás como já a Escola onde trabalhou tantos anos – A Escola Secundária Fernão de Magalhães – faz aos alunos que se distinguem pelas suas qualidades humanas…
Finalmente, um terceiro, emigrado há longos anos em terras helvéticas – Domingos Benjamim Carneiro Ferreira, o mal-amado por alguns militantes, de memória curta. A quem recordo, melhor, desafio que, nos arquivos da Secção do Partido Socialista de Chaves «vasculhem», nas primeiras listas à edilidade flaviense, após o 25 de Abril, e digam quem nelas figura, nomeadamente, como cabeça de lista.
Dizem que, Benjamim Ferreira, na prática, era um aliado de Branco Teixeira. Não me compete, aqui e agora, julgar cada acto ou decisão de Benjamim Ferreira enquanto vereador socialista na Câmara de Chaves. Apenas deixo aqui uma constatação e faço uma pergunta: Benjamim Ferreira comprometeu-se a aparecer na sede do Partido todas as semanas para dar conta aos responsáveis da secção do que se tinha passado nas reuniões e preparar os assuntos que o PS achasse por conveniente levar à seguinte sessão de Câmara. Salvo raras excepções, Benjamim Ferreira cumpriu escrupulosamente o seu compromisso, muitas vezes mesmo com sacrifício da sua vida familiar, numa altura tão complicada da sua vida. Estava sozinho, pelo PS, na Câmara. A pergunta: quantas pessoas apareciam a essas reuniões para o ajudar?...
Como se trata de um grande amigo meu, não peço para ele nada, apenas justiça quanto ao seu julgamento e respeito pelo seu trabalho como verdadeiro militante socialista da Secção de Chaves, enquanto permaneceu nesta terra e desempenhou funções públicas.
Não é de bom tom avaliar o trabalho de qualquer militante atendendo ao berço onde se nasce ou de se ser de «gema» flaviense. O que importa é o amor e o empenho que se dedica à terra que se aprendeu a amar ou que se escolheu para viver. Isso é que é o mais importante!
Urge, hoje em dia, que muitos militantes, sejam de que quadrantes partidários forem, revejam o verdadeiro sentido da palavra «militância», tantas e tão reiteradamente corrompida!
IV
Tenho ultimamente frequentado com mais assiduidade as terras dos nossos vizinhos espanhóis, em particular Galiza e, recentemente, Astúrias.
O que mais me impressiona, quando deambulo pelos diferentes recantos das suas cidades e vilas é o «orgulho» que eles têm pelos seus «maiores». Desde os mais humildes aos mais ilustres. E que está tão bem espelhado na respectiva estatuária urbana.
Referia ainda, aqui há dias, na minha página do Facebook, em tom de brincadeira, dirigindo-me aos associados Lumbudus, que, no Parque de São Francisco, na cidade de Oviedo, capital das Astúrias, tinha encontrado uma personagem original – a mulher do nosso fotógrafo Lombudo, que havia emigrado para aquelas paragens exercendo a profissão do ex-marido. Ali chamaram-lhe «La Torera», por usar uns sapatos iguais aos que os toureiros usam. Ao mostrar a foto desta escultura aposta naquele Parque São Francisco obviamente estava a brincar!
Contudo, pergunto: onde temos nós as figuras tão autênticas da nossa cidade e que marcaram tanto uma época? Será que, para além das pessoas ditas ilustres, não vale a pena recordar o Lombudo, a tia Landainas e, porventura, tantas outras? Não vale mesmo a pena? O que deve valer mais a pena: A fidalguia; o preconceito ou a humanidade?
A história e a identidade de uma terra constrói-se com episódios e figuras que definem e moldam uma época, mesmo que sejam simples. Perdendo essa memória não só um pedaço da nossa identidade se perde como a nossa auto-estima se enfraquece. E, sem auto-estima, não se constrói e faz história. E, desta forma, a alma de uma terra se esvazia e tende a desaparecer.
O mesmo acontece em toda e qualquer instituição, seja ela de que cariz for!
António de Souza e Silva