Quem conta um ponto...
727 - Pérolas e Diamantes: Toda a realidade é... e não é...
Toda a realidade é empírica. Isso leva-me a estar sempre com um pé em Husserl e outro em Heidegger. E com os dois na sua fenomenologia. A verdade é que a filosofia não é uma ciência de verdades universais. Uma dúvida metódica: por que razão os seguidores de Marx são fanáticos? Mas numa coisa têm razão, a liberdade não pode ser alcançada na poltrona. Um paradoxo: as liberdades são construções ideológicas. Autoilusões. Cada um vive a sua. E tem de lutar por ela. Eu, por exemplo, continuo a ter o sonho marxista de que será possível criar uma sociedade onde se caça de manhã, se pesca à tarde, se pastoreia ao final do dia e se faz crítica depois da refeição. Isto sem jamais nos tornarmos caçadores, pescadores, pastores ou críticos. Esta é a fantasia do marxismo. Eu acredito nisso porque acredito em fantasias e também porque sei que os seres humanos são naturalmente criativos e sociáveis. Mas também concordo com Isaiah Berlin que criticava Marx porque o filósofo alemão subordinava tudo a uma teoria determinista da história e que isso o colocava “entre os grandes fundadores autoritários de novas crenças, subversores e inovadores implacáveis que interpretam o mundo em termos de um único princípio claro e ardentemente defendido, denunciando e destruindo tudo o que entra em conflito com esse princípio. A crença dele… era daquele tipo ilimitado, absoluto, que põe fim a todas as questões e dissolve todas as dificuldades”. Por isso é que “reformista” é um termo ofensivo para os marxistas. Eles acreditavam (agora já não sei) que a sociedade comunista só podia chegar através de uma revolução violenta. O que faz dos marxistas (sobretudo os leninistas) fanáticos, não é o facto de acreditarem que o capitalismo é injusto, que a propriedade privada deve ser abolida ou que tudo tem de ser alcançado através de uma revolução. O que os torna fanáticos é a crença de que a revolução é inevitável. E que tudo é legítimo para a provocar. A revolução não é, sequer, passível de discussão. Ela vai acontecer. Quer queiramos ou não. Só é necessário perceber quando é que estão criadas as condições para a desencadear. Há sempre uma porta entreaberta para podermos entrar nela. Mas depois ninguém dela pode sair. Os marxistas (do rito leninista e trotsquista) acreditam piamente que a liberdade e a igualdade são conceitos inseparáveis. O zelo em excesso também mata. Estou até em crer que foi isto o que aniquilou o comunismo enquanto prática. Peço de novo ajuda a Berlin: “Tudo é o que é: liberdade é liberdade, não igualdade ou equidade ou justiça ou cultura, ou felicidade humana ou uma consciência tranquila.” Eu continuo a pensar que a liberdade se baseia, sobretudo, no princípio da tolerância, que permite que as pessoas escolham os seus próprios gostos e valores e que persigam os seus próprios fins. Mas convém esclarecer que a tolerância não é diferente da liberdade, da igualdade ou da sociedade sem classes. Tem apenas outro fim. Mas será possível tolerar as pessoas intolerantes? As pessoas intolerantes raiam a obscenidade. Mas. Mas convém lembrar que o nosso sistema democrático está baseado na liberdade e na dignidade dos indivíduos. Os estados comunistas ignoraram, logo desde o início, estes valores. Foi por isso que fracassaram. Mas eu ainda tenho uma réstia de esperança no futuro da humanidade porque li “O Manifesto Comunista” num livro brochado, como os editados pelo saudoso Miguel Torga, possuindo eles uma característica comum, são muito rebarbativos. E até poéticos. Sendo que o livro de prosa poética de Marx e Engels é um pouco mais chato do que os diários do escritor de São Martinho de Anta. E então que dizer da poesia de Adolfo Correia da Rocha, feita a golpes de podão. Já oiço por aí dizer: “Apóstata.” Pois que o seja. A mim não me assustam os bajuladores. Estou até em crer que a obra de Miguel Torga consegue aguentar, com um sorriso maneirinho, as minhas penosas críticas e consegue sobreviver ainda melhor sem o cântico dos sereios bajuladores. A verdade é que comprei “O Manifesto Comunista”, “Os Bichos” e o “Tintim” num quiosque da minha terra. O 25 de Abril tinha saído há pouco do forno. Depois baralhei tudo. E comecei a escrever poemas e cartas de amor. Sim, eu vivo da paródia. Peço desculpa.
João Madureira