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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

18
Mar24

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674 - Pérolas e Diamantes: A luta continua

 

Por vezes somos dominados pelo cansaço. E também porque a luta continua. Provavelmente não. O diabo do escapismo sempre a sussurrar-nos ao ouvido. E nós a tentar diferentes tentativas de fuga à missão. Impossível. Pobre é o escritor que se deixa aprisionar pelas suas próprias palavras. Eu não desconfio delas. Desconfio é daqueles que lutam sobretudo com a forma, sobrestimando tudo o resto. Quem se esconde atrás da forma é porque desconfia das palavras. A temática sexual é geradora de desconfiança. A arte acontece entre pessoas concretas, necessariamente imperfeitas. Bendita arte. A literatura tipicamente sedutora, tende a ser pedagógica, por isso não inspira confiança. E é desnecessária. A má arte, por incrível que pareça, é sempre a mais representativa da pátria. A beleza tem os seus mistérios. Que beleza de nação cheia de gente que gosta de passarada, especialmente da de comer. E de bolachas Maria para embeber no café com leite. E de animais de estimação, sobretudo cães e gatos. E de porquinhos mealheiros. E de peixinhos vermelhos a nadar em círculos dentro de aquários minúsculos. Gente que gosta de sonhar acordada, escrever poesia romântica, doar sangue e falar impecavelmente línguas europeias. E que se pela por derramar teorias sobre a qualidade, ou a falta dela, do treinador da sua equipa de futebol. Que aprecia sentir as brisas a soprar nas esquinas e que adora o verão de São Martinho, castanhas e vinho e de contar pela milionésima vez a lenda do tal legionário romano que ofereceu metade da sua capa a um mendigo enregelado. Gente que se atrapalha com os números, com os sinais diacríticos, com os presságios, com as miríades, as complexidades estatísticas e os palimpsestos das aventuras numéricas das outras gentes. Esta é gente que se orgulha de gostar muito de caldeirada. Daí teorizar misturando aspetos sociológicos, antropológicos, metafísicos, éticos, religiosos, filosóficos, culturais, musicais, intelectuais, poéticos, artísticos, históricos, militares, judicias, ambientais, políticos, raciais, morais, futebolísticos, físicos, musculares, ginecológicos, prostáticos, dentários e até urinários. O que esta pacífica gente mais gosta de fazer é comer, beber e jogar às cartas. Gosta também de regressar a casa, de visitar a família e de convencer a vizinhança de que a sua vida é um sucesso. Durante as festas dos povos, agora deu-lhes para se enfiarem dentro de sacos de serapilheira, calçar sandálias mal-amanhadas feitas por artesãos de cacaracá, colocar uma espada de madeira à cinta e representar o papel de um lusitano que nunca existiu, a não ser na imaginação da rapaziada mais pândega. A peroração dos adeuses é que é o cabo dos trabalhos. Parece a história interminável. Estas pessoas gostam de fugir umas das outras, apesar de dizerem o contrário. Neste país de poetas, a poesia não se consegue concretizar. É ineficaz. Apesar de apesar… a estupidez é descarada, as pessoas são melodramáticas, tendem sempre para o sentimentalismo, para o phatos, para a palhaçada. Esta gente, esta gente indominável, momentos antes de alcançar o cais de chegada, apenas pensa no ponto de partida. Ora isto é saudade. Quando agora se olha para o céu, a tonalidade que se percebe é a de um azul reciclado. Atualmente é tudo reciclado. Até a bondade. E a mesmíssima liberdade. Ora isso faz com que toda a gente ande ligeiramente intoxicada com salmonelas e seja alérgica a leituras e a discussões literárias. Tantos anos de escola e de universidade e não se consegue arranjar emprego. Apesar disso, fico entusiasmado só de pensar no futuro. Quando forem velhos vai ser fantástico. Logo é que vai ser divertido, uma chuva de meteoros. E memórias. E chupa-chupas. E cromos de futebol. E ler duas páginas do Astérix na revista Tintim. Para o Tintim, propriamente dito, já não há pachorra. E depois a solidão e o silêncio. Ou outras coisas simples que me levam de volta ao tempo antigo. Mas não é apenas isso. A vida é bela se insistires. As saudades que eu já tinha da minha alegre casinha tão modesta… Já não há pachorra. Este porreirismo nacional vai dar cabo de nós.

 

João Madureira

 

11
Mar24

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673 - Pérolas e Diamantes: Ainda me lembro...

 

Ainda me lembro quando me deitava a ler Dostoiévski. Dessas noites frias. Dessas noites brancas. Dessas noites em branco. Foi um dos primeiros atos deliberados e conscientes que ajudaram a definir o meu mundo. Foi como se a Terra tivesse parado. Engoli muita daquela prosa inquietante em grandes tragos. Foi a primeira amostra que eu tive da alma humana. Dostoiévski foi o primeiro escritor a revelar-me a sua alma, se é que teve apenas uma. Provavelmente eu já seria um rapaz um bocadinho estranho, mas com Dostoiévski tornei-me decidida e irremediavelmente um ser excêntrico. Esses acontecimentos são, provavelmente, irrevogáveis. Senti-me então só no mundo. A solidão atingiu-me como um tornado. Senti-me estranho no meio da minha própria gente. As vagas de solidão continuaram a atingir-me como se estivesse a nadar numa praia de literatura. Tudo doido e eu, cansado, a tentar lutar contra o meu mundo. Entre o tudo e o nada. Os meus sonhos passaram a ser como metamorfoses. Sonhos e mais sonhos. Sonhos dentro de sonhos. Nunca pude jogar o jogo dos snobes. Nunca o fui e nunca o serei. Nunca frequentei esses meios. E a dita sociedade entedia-me e chega  a provocar-me enjoo. Aos poucos lá fui à razão. Nós somos a obra-prima do absurdo. A nossa loucura não tem pretexto, pois provém do contexto. Apesar das revoluções, e de outras traições (tradições?) históricas, ainda se continua a rezar a ladainha dos apelidos sonantes. Pois por aí continuam os mitos, as hierarquias, as honrarias. E as subserviências. E as “monarquices”, essa literatura de pechisbeque, essa mitologia imatura, esse snobismo desprezível, esses preconceitos ridículos. A estética é ruim e o encanto duvidoso. Apesar da aparência de modernidade, tudo isto tresanda a mofo. Eles gostam de interpretar o presente com os olhos do passado. São álbuns de outono com folhas secas. Essa gente gosta de pensar que nada mais nos resta do que nos embebermos com o perfume subtil das recordações, com bosques onde cantam rouxinóis antigos. Apesar dos disfarces, sente-se a esfinge da morte lenta e da impotência. As formas são sagradas, não Deus. O seu crepúsculo nem sequer é historicamente justificado. O jogo deles é cantarem para os outros os admirarem. Está na hora de revermos até os lugares-comuns. Não é a velha história que tem de nos impor o futuro. Temos de ser nós próprios a criá-lo. As pessoas sérias não se prestam a papéis de figurantes. Eu, por causa das coisas, cá continuo a escrevinhar. Os sapatos de molde antigo são-me sempre apertados nos pés, fazem-se calos. A mediocridade, por cá, é excessiva. E isso eu não consigo compreender. Eles sempre a declamar as imortais lapalissadas. E lá vamos celebrar porque todos celebram e mentir porque todos mentem. Dizem que a culpa não é das pessoas, mas das situações. Será? Ser e não ser faz parte da mentira. Da dramaturgia antiga. Estou em crer que Rabelais não tinha na ideia ser “histórico” ou “a-histórico”, nem sequer tencionava desenvolver uma “escrita absoluta” e muito menos prestar tributo à “arte pura”. Nem caraterizar a sua época. Resumindo, não revelava qualquer intenção, porque escrevia como quem se alivia. Malhava naquilo que o irritava, combatia quem se lhe metia no caminho, escrevia por prazer, para o seu prazer e para o prazer de quem o lia. Escrevia o que lhe vinha à cabeça. Apesar disso, ou por isso mesmo, expressou, melhor do que nenhum outro, a sua época e até pressentiu a época vindoura, criando uma arte pura e, por isso mesmo, eterna. Ao exprimir-se com inteira liberdade, condensava a essência eterna da humanidade e de si próprio, enquanto filho da sua época e profeta dos tempos vindouros. O conselho que ainda hoje mais me convence é: “Escreve o que te dita o coração.” Não devemos abdicar nunca da nossa própria verdade, pois de outra forma renunciamos provavelmente ao único heroísmo em que assenta o orgulho, a força e a vitalidade da literatura. Estou, estamos todos, já um bocado fartos de poetas que se dizem prosadores, de santos que se sentem rebeldes, de clássicos que dizem ser aparentados à vanguarda, de patriotas apátridas, de ativistas sociais que se identificam como eremitas. É uma perda de tempo andar a tentar explicar o óbvio.

 

João Madureira

 

 

04
Mar24

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672 - Pérolas e Diamantes: Excertos de Ulisses versus Alice

 

E diz o coxo do Nabokov, dando a mão a Lolita: “Vai lá rapaz, corre o que puderes, agora estás por tua conta, na vida ou se vence ou se perde, o resto não interessa.” Talvez o sexo, mas isso já são contas de outro rosário. Nem só os carros usam lubrificante. Crentes de todos os credos, uni-vos. Os profetas ou são uns fala-barato ou ilusionistas. Também eu aprendi a rezar na igreja e pratiquei o ritual, mas hoje reconheço que era bem melhor terem-me ensinado as ladainhas em linguagem gestual. Talvez o exercício de falar com Deus fosse agora diferente. Ele a rir-se por um lado. E eu pelo outro. Ele surdo-mudo e eu cheio de graça. Está cada vez mais difícil manter a paciência para a discussão religiosa. A superstição também é uma divindade. A Alice tropeçou no seu buraco e caiu redonda em cima do Coelhinho Branco. Coitado do láparo. A empregada doméstica portuguesa, com a sua mania de tudo limpar com Omo, fez do chão um autêntico ringue de patinagem. Madame B. lambeu-lhe a ferida com a língua com a intenção de limpar e curar a pele com a sua saliva. Dizem que tem propriedades bacteriológicas. Chegaram então os três reis do Oriente para visitarem o enteado de Dom Quixote. Doidas, doidas, doidas, andam as galinhas, para porem o ovo lá no buraquinho, raspam, raspam, raspam, para alisar a terra, bicam, bicam, bicam, para fazer o ninho. Assim falava Zaratustra. Pergunta o Embuçado: “Por que continuo a vestir este traje de serapilheira, como se fosse o arrependido facínora Dom Nuno Álvares Pereira?” Há perguntas que atormentam. Vai sendo cada vez mais difícil aturar tantos profetas. Moisés, Jesus, Maomé. Tanta religião para tão pouca fé. A verdade é que a Alice, do outro lado do espelho, brinca com as gatinhas, sobretudo com a preta que tem a culpa de tudo. A outra, que é branca, como não podia deixar de ser, ronrona de satisfação. Entretanto, a Alice para ali está, aninhada a um canto do seu grande sofá, meia adormecida e a falar consigo mesma enquanto a gata preta, a traquina, se ocupa muito a divertir-se com um novelo de lã que Madame B. enrolou pacientemente. Depois a gata branca começa a correr atrás da própria cauda. Entretanto, aparece Dom Camilo e dá um beijinho na Alice para a fazer perceber que está desgraçada, que não desengraçada. Faz parte do destino das heroínas sem propósito. Dom Camilo, com muito carinho e sentimento, vem devolver o livro que ela lhe emprestou. A Alicinha não sabe onde o colocar. A verdade é que esta casa anda de pernas para o ar. Dom Camilo diz: “Estou farto de tropeçar no teu buraco. E também no chato do teu Coelho Branco. Por que razão não lhe dás o destino devido?” Ela, colocando a gata no chão: “Por quem é, Dom Camilo, não o sabia tão insensível com os animais. Eles têm os seus próprios direitos. Especialmente esse bonito láparo, que é o meu principal conselheiro e o meu maior amparo.” “Coitada de ti, linda princesa, entregue nas patas de um coelho. A tua mãe não tem juízo nenhum.” “Olhe, Dom Camilo, vá dar a gorjeta ao cego Gaudêncio, pois enquanto não lhe pedir tréguas, ele vai continuar a tocar a mazurca Ma Petite Marianne até nos pôr a todos loucos. Ele pode ser cego, mas tem muita vontade. O meu caro amigo sabe bem que o acordeão é um instrumento sensível e que chega a sofrer quando o contrariam. E o cego Gaudêncio, quando lhe chega a mostarda ao nariz, dispara em todos os sentidos. Ou seja, toca tudo e mais alguma coisa. Reconheço que as três doninhas domesticadas que trouxe da sua Galiza são obedientes e grandes bailarinas, mas andam sempre atrás do meu coelho com más intenções.” “Também eu sofro muito. Sofro quando olho para a Madame B. É tão fixada em ti que me leva a desconfiar de alguma coisa. Estranha.” “Por favor, Dom Camilo, não se ponha agora com as suas extravagâncias.” Ele, o Dom Camilo, gosta de contrariar a nossa menina. Ulisses foi, com outros rapazes, apanhar lenha para a fogueira. É precisa muita lenha. A lareira do castelo é enorme. Pôs-se de repente muito frio e começou a nevar. Qualquer pessoa habituada a estas coisas diria que vem aí o Natal, mas não é verdade. Alice ouve a neve a bater nas vidraças. E espanta-se com esse som suave e tranquilo. Parecem os beijos que lhe dá Madame B.

João Madureira

 

 

26
Fev24

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671 - Pérolas e Diamantes: Ai, ai, ai...

 

Com o barulho das luzes, como gostam de dizer os que se julgam engraçados, anda por aí muito homem gentil a espantar morcegos. Outros iluminam com as lanternas dos telemóveis o caminho das pedras. Agora é tudo mais forma que conteúdo. Este povo não gosta de teatro, mas deleita-se com a revista. Há lá coisa mais bonita do que os encontros lúdicos das corporações de bombeiros ou os campeonatos de sueca promovidos pelas juntas de freguesia ou pelas associações culturais e recreativas! Também não é à toa que somos um povo batido pela afeição de séculos e que o nosso rei-criança tem obrigatoriamente de aparecer por entre o nevoeiro dos milagres acompanhado pela Nossa Senhora de Fátima e pelos três pastorinhos e também por um cão pastor, para os defensores dos direitos dos animais não se sentirem sós, ou mal acompanhados. Devemos evitar todo o tipo de academismo e limpar as lágrimas do desalento. E lá vamos vivendo entre dúvidas e desenganos, entre pequenas intrigas e entre amizades, umas boas e outras falsas. Sim, lá vamos debelando a indiferença neste país de alegres basbaques. Claro que a boa vida que se leva em Portugal acaba por estar carregada de ironia, mas a ironia também necessita de subtilezas. Claro que neste país de poetas, algumas estrofes ficam murchas, mas tudo tem o seu tempo. Fosse Dom Dinis vivo e todos lhe frequentaríamos a corte. Por vezes é avisado meter os amores-perfeitos entre as folhas de um velho dicionário. Não se podem anular os valores do passado, nem sobrestimar as energias daquilo que é novo. A pátria é uma transcendência. Portugal é disso exemplo pioneiro. Convém lembrar o inexcedível orgulho de termos sido os primeiros “astronautas” dos mares, quando neles reinavam os mostrengos e de ainda sermos os maiores pescadores, cozinheiros e comedores de bacalhau. Que povo teria a imaginação suficiente para inventar os bolos de bacalhau? Portugal! Portugal! Este país é o milagre profetizado pelo Bandarra. A pátria está de novo sequiosa da sua alma. Vá lá, toca a dançar o vira. Há que ter cuidado com os manipansos e estar com um olho no burro e com o outro neles. Agora não se vende apenas banha da cobra porque, para ser autêntica, tem de vir com defeito. O sofrimento da desilusão tem de ser prolongado. Ninguém quer viver uma vida honesta porque a pobreza não é futuro que se deseje. O mal já foi feito, agora há que replicá-lo. Não se podem rejeitar as sobras, nem as cascas do camarão com que se pode fazer um creme apetitoso. Não se pode desperdiçar, de ânimo leve, a boa lavadura. Os sonhos de comida só podem criar diabéticos, muitos e bons. Os soluços e os arrotos deixam tudo muito mais claro. Bravo. Bravíssimo. A nossa adesão ao marxismo-leninismo durou o tempo de um arraial transmontano e extinguiu-se logo após o fogo de artifício. A revolução nacional foi uma caldeirada de carapau e sardinha. Bardamerda para os acepipes. Que malcriados são os almirantes da marinha. E pequerruchos. Este povo povinho povo não se importa de estar sem ser. Ou de ser sem estar. Aprendeu a gatinhar já depois de andar. Perseguir a verdade é diferente de perseguir o seu sentido. Os portugueses, por uma ou outra razão, sempre estiverem peados na sua ação cultural. O Ícaro português voa com asas feitas com cera reciclada em Fátima. Será que vão derreter? A sua intenção é a teatralidade. Nós somos como peixes de água doce enfiados no mar. Ou peixes de água salgada a nadar numa das muitas albufeiras nacionais. A nossa imaginação pode não ser esforçada, mas é forçada. Faz parte do teatro domingueiro, estar dentro e fora da ação de graças. A leveza e a leviandade podemos nós muito bem com elas. O ritual do banquete e o desfile de pares, até à mesa da cerimónia, seja ela de que tipo for, provoca uma erupção do grotesco. Vamos lá então entrar no baile. Até a mesmíssima e empenhadíssima mulher portuguesa está decidida a entrar na dança espicaçada pelo mistério libertador de um sonho. O seu papel é um compósito entre o papel de criada e princesa. Pode parecer uma situação desesperada, mas também pode ser divertida. Ai a desgraça de querer ser, ou parecer, engraçado. Ai, ai, ai!

João Madureira

 

 

19
Fev24

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670 - Pérolas e Diamantes: Este é o país...

 

Este é o país do refrigério dos amores românticos, da convulsão das almas, dos maravilhosos arrebiques dos apaixonados, das pieguices. E também das missas, das paradas, da entrega de condecorações, dos arraiais com bandas filarmónicas, das solenidades pífias e do susto das almas. Este é o país amarrotado pelos piores bem-aventurados. Que desdita a nossa. Este é um país de intelectuais chatos e pretensamente snobes, pois nem isso conseguem ser. São insossos e ridículos. São apenas bons nos gargarejos literários. Possuem mentalidade de pantufa no inverno e de chinelinha de dedo, com que no verão vão à praia no Algarve. Confundem o sono com o sonho. E vice-versa. Os portugueses, lato senso, andam sempre a tropeçar nas ilusórias predestinações e a evidenciar um desconsolo nacional. Nem atam, nem desatam. Sempre entre a hóstia e o croquete, entre a cópula e a expiação. Continuam a viver no limbo da incerteza. São adeptos, filosoficamente falando, de uma epistemologia anárquica, qualquer método serve desde que resulte. Para mal dos nossos pecados, até a ignorância pode ser democrática. Ou melhor, pode ser democratizada. O mal-estar, por cá, é uma coisa íntima. Por cá, apesar da aparente liberdade sexual, larilam-se muitas piadas. E nem todas más. E melaninam-se outras tantas. E nem todas boas. Este país é o do anarco-porreirismo. Sim, é verdade que os portugueses são diferentes dos outros povos, nomeadamente dos espanhóis, o problema é que não sabem em quê. E a “saudade” foi explicação que já deu uvas. O lusismo foi talismã que já enferrujou. E o iberismo é um chupa-chupa com sabor a ranço. A diferença até pode existir, mas a indiferença é cobardia. Ao contrário do que por aí se diz, os portugueses não são avessos às mudanças, exigem é que lhas expliquem muito bem. No entanto, existe um problema, na maioria das vezes custa-lhes a compreender o argumentário. Vai daí, optam por que tudo fique na mesma. Bem tentou Natália Correia transformar a Pátria numa Mátria, mas o sonho ficou-se por meia dúzia de palavras bem escritas, mas mal empregues. O Padre António Vieira já tinha dito num dos seus sermões: “Se a pátria se derivara da terra, que é a mãe que nos cria, havia de se chamar mátria.” Natália, fazendo-se de sonsa, lá pegou na ideia, mas. Pois, mas. Mas não vá a pátria da Padeira de Aljubarrota além da pá do forno. A razão, por cá, ou é transcendental, ou poucochinha, ou subjetiva, ou antipática, ou até coisa nenhuma. Mas o que está feito, feito está. E o dito estará ou não. Os portugueses são indiferentes a tudo. Ou quase. Ao desenvolvimento, à organização, ao cumprimento de horários e, sobretudo, aos números. Daí a nossa economia estar da maneira que está. A dúvida e a fantasia são legítimas. Eu sou filho delas. E do caldo mágico do druida Panoramix. E daqui não saio. Daqui ninguém me tira. A perseverança diária faz a diferença. Daí resulta a nossa. Já o sexo está dentro de um preservativo muito mais mental que de borracha fina e transparente. Até a moral católica aí fica confinada, para mal dos nossos pecados. E para bem da hipocrisia. Olhem que a pedofilia, sobretudo a clerical, não é transcendental, nem poucochinha, nem subjetiva ou antipática. É muito mais aquilo que não parece. É a mais perfeita das ignomínias. Os portugueses estão sempre entre o riso e a paixão, enfiados no esconderijo. O amor é agora um enorme bocejo. Portugal é barroco e tem implícita a metáfora do sucesso. Ah! Ah! Ah! Por cá até os anjos são fraquinhos, esbotenados e obesos. Os mais gordinhos empanturram-se com bolas de berlim. Alguém ensinou os portugueses de que o sofrimento é purificador. Tal professor não sabia do que falava. O seu pé boto fazia-o ser rancoroso. Os portugueses são como bichos atordoados a debitar banalidades. E com elas construíram um país,  escreveram a sua história e vivem a sua vida. Não é muito, mas também não é  pouco. É alguma coisa. Se amar é precisar então que se foda o amor. Isto até é bonito dito da boca para fora. Mas o sentimento é que manda. A verdade é que os créditos históricos e morais já não chegam para servir de hipoteca. Já se venderam os anéis e os dedos estão em saldo. O nosso download já começou. Parabéns ao WeTransfer.

João Madureira

12
Fev24

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669 - Pérolas e Diamantes: Religiões e Ciência

 

Vivemos numa sociedade em que as pessoas estão viciadas no óbvio. A autenticidade é desnecessária, quando não desprezível. Tanta fé em nada e em coisa nenhuma. Razão tem Yuval Noah Harari (Sapiens – De Animais a Deuses), os últimos trezentos anos, que dizem ter sido uma época de crescente secularismo, em que as religiões foram perdendo cada vez mais importância, tem duas maneiras de ser interpretada. Se nos referirmos às religiões teístas, isso acaba por ser correto. No entanto, se estivermos a referir-nos ao que ele considera como as religiões da lei natural, então a denominada modernidade revela-se uma época de intenso fervor religioso, onde imperam esforços missionários sem paralelo e as guerras religiosas mais sangrentas da história. A era moderna foi testemunha da ascensão de novas e distintas religiões das leis naturais. A saber: liberalismo, capitalismo, comunismo, nazismo, nacionalismo. Todos sabemos que estas doutrinas não gostam de ser apelidadas de religiões, autointitulando-se de ideologias. Mas, para sermos rigorosos, tudo não passa de um exercício de semântica. Dado que a religião é sempre um sistema de normas e valores humanos que se baseia na crença numa ordem sobre-humana, o comunismo soviético ou o nazismo alemão não eram menos religiosos do que o islão, o cristianismo ou o budismo. Todas estas religiões dizem acreditar numa espécie de ordem natural sobre-humana e nas leis perpétuas que determinam as ações humanas. Os budistas acreditam que a lei natural foi revelada por Siddhartha Gautama, os cristãos por Deus e os seus profetas, os islamitas por Alá e Maomé, os comunistas por Marx, Engels e Lenine. Tudo isto parece o Triângulo das Bermudas, onde acontecem fenómenos estranhos. Convém referir que, como defende Yuval Noah Harari, a  Revolução Científica não assenta principalmente na revolução do conhecimento, mas, acima de tudo, numa revolução da ignorância. Ou seja, o grande acontecimento que lançou a Revolução Científica foi a descoberta de que os seres humanos não conhecem as respostas para as questões mais importantes. A disponibilidade para admitir a ignorância foi o que tornou a ciência moderna mais dinâmica, flexível e interrogativa. A contrário do empirismo teológico e totalitário, a ciência moderna não tem dogmas. Até as guerras são produções científicas. Por incrível que pareça, são as forças militares mundiais que iniciam, financiam e conduzem a maior parte da investigação científica e do desenvolvimento tecnológico da humanidade, desde as vacinas até a nanotecnologia. A verdade é que os EUA, depois dos drones, já começaram a desenvolver moscas biónicas espiãs e máquinas de ressonância magnética que conseguem reconhecer de imediato pensamentos de raiva ou ódio nos cérebros dos seres humanos. A ideia de que as descobertas científicas podem conceder ao ser humano novos poderes, fizeram-nos desconfiar de que o verdadeiro progresso é possível. À medida que a ciência vai resolvendo problemas julgados insolúveis, a maioria de nós vai ficando convencida de que a humanidade pode superar qualquer questão adquirindo e aplicando novas tecnologias, ficando fora desta equação a estupidez, o ódio e a intolerância. A pobreza, as doenças, as guerras, a fome, a idade e a própria morte, tal como a entendemos, não são um destino inevitável. E até o paradoxo da fome pode vir a ter uma solução, pois, em muitas sociedades como a nossa, por exemplo, há mais pessoas em risco de morrerem de obesidade do que por falta de alimentos . A morte, afirmam os cientistas, não passa de uma questão técnica. E, verdade seja dita, a esperança média de vida saltou de muito abaixo dos 40 anos para cerca de 67 em todo o mundo e para cerca de 80 no mundo desenvolvido. A ciência pode conseguir explicar o que existe na Terra, como funcionam as coisas e o que o futuro nos poderá reservar. Mas, por definição, não tem pretensões a saber como deverá ser o futuro. Isso apenas está a cargo das religiões e das ideologias, com o sucesso que todos sabemos. Sim, eu sei, a ciência é incapaz de estabelecer as suas próprias prioridades. E também não é capaz de determinar o que fazer com as suas descobertas. Mas é dela que o nosso futuro depende. Dela e do poder político e económico que a consiga financiar.

João Madureira

05
Fev24

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668 - Pérolas e Diamantes: Todos nós fomos...

 

 

Todos nós fomos fogosos, odiosos, esperançados no futuro. Foi bonito e bom, esse tempo, enquanto durou, mas de pouco nos valeu. Líamos, antes de deitar, A Mãe, de Máximo Gorki, e ficávamos mergulhados em tristeza, cerrávamos os punhos de raiva e chorávamos verdadeiras lágrimas marxistas-leninistas. Depois tudo ficou kitsch e a metanarrativa progressista deu de si, como a pele quando envelhecemos. Tudo se transformou em rugas que nem o botox consegue disfarçar. A ilusão passou para o socialismo virtual. É tudo BD manhosa, heroic fantasy e jogos de computador. Apesar de não apreciar o kitsch, nem mesmo o de Pedro Almodovar ou do Goucha, não sinto verdadeira necessidade de troçar dele. No entanto, é necessário prestar muita atenção ao que se diz e escreve, para não hostilizar os bonzos do regime. Se pensarmos bem, tudo é kitsch, as emoções, a música, a arte, a própria literatura, a ação e a mesmíssima reflexão. Então da política nem é bom falar. Ninguém, absolutamente ninguém, nem comunistas ou fascistas, conseguiu transformar a energia revolucionária em força positiva. Daí o centro político (burguês por definição) se ter tornado balzaquiano. Depois de ler Lolita, empurrou o fetichismo para debaixo do tapete. Vícios privados, públicas virtudes. Por causa disso, por aqui andamos a cumprir formalidades, estabelecer contactos, fazer compras e a tratar da roupa. E também a ocuparmo-nos da saúde e a mantermos o corpo em atividade. Por isso é que o SNS está a rebentar pelas costuras. A partir de determinada idade, viver passa a ser uma atividade maioritariamente administrativa. E porque as conversas sobre sexo acabam por ser sempre um pouco grosseiras, o melhor é falarmos de política ou de coisas idênticas como, por exemplo, o show-business. Ou sobre microssociologia, mas para isso temos de escolher bem os interlocutores, senão a conversa pode descambar e acabar em pancadaria argumentativa. Pode não parecer, mas a província também tem os seus bonzos. A província também possui a sua própria metafísica. É bom recordar. Sim, é bom, mesmo que as recordações sejam em grande parte fabricadas, moldadas, ou mesmo inventadas. Recordamos o comboio a entrar ou a sair da estação, a ida às termas, as montanhas ao redor cobertas de neve, iluminadas e banhadas pelo sol, as pastagens e o rio cintilante, as encantadoras figuras femininas, as mães e as avós que usavam vestidos compridos, véus e lenços. Os homens cumprimentavam-nas, levavam a mão ao chapéu e sorriam. Todos, homens, mulheres, rapazes e raparigas, ostentavam um ar feliz. Aquele era o melhor dos mundos. Muitos adolescentes embrenhavam-se na coleção de selos ou herbanários. O mundo era limitado, atraente, e cheio de cores vivas. Estoiravam foguetes no ar e tocavam as bandas nos coretos. Havia até anjos nas clareiras e cães que ladravam aos homens maus e pecadores. Até se escreviam cartas de amor, com letra bem desenhada, onde pontificavam palavras refulgentes como “amor”, “bondade”, “felicidade”, “ternura”, “casamento”, “fidelidade” e “felicidade”. A verdade é que só nos apercebemos da felicidade quando a perdemos. Agora já não se trata de transformar o mundo, mas de torná-lo aceitável, transformando a violência, que está associada a toda a ação revolucionária, em riso. Isso é, pelo menos, aquilo que nos ensinam os bobos do regime, que ganham boa massa sob o disfarce de humoristas. Os bobos do regime são os máximos colaboracionistas do capitalismo, pois vendem-nos, com o seu sorriso pré-fabricado, tudo e mais não sei quê. Parecem enredos dentro de enredos, filmes dentro de filmes, bonecos dentro de supermercados. Aqui convém acrescentar certos tons schopenhauerianos para evocar o absurdo da nossa existência de bons selvagens dos supermercados e dos centros comerciais. Nós por lá à procura da boa carne embalada ao vazio, onde podemos ler na etiqueta: “Nascido e criado em Portugal. Abatido em Portugal.” A epidemia das “vacas loucas”, afinal, serviu para alguma coisa. Portugal moderniza-se a uma velocidade surpreendente. E por hoje é tudo. Vou até lá fora ver o sol que apareceu entre duas nuvens e a minha casa foi banhada, suponho, por uma luminosidade fulgurante.

João Madureira

 

29
Jan24

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A sexualidade das pequenas coisas

 

O meu amigo M. chegou ao pé de mim, sentou-se, pediu um café e pôs-se a bebê-lo como só ele o sabe fazer. O seu porte é distinto, mesmo a tomar café. Ou melhor, sobretudo a tomar café. O M. toma o café como ninguém. A sua maneira de o pedir ao empregado, a forma distinta como abre o pacote de açúcar, seja ele uma pequena bolsa retangular ou cilíndrica, a maneira como o mexe, em movimentos lentos e exatos, como quem desenha uma circunferência com o auxílio de um compasso Kern, surpreende qualquer um. Já vi pessoas a deterem-se no momento de tomar as suas bicas por se sentirem verdadeiramente impressionadas com a habilidade e o porte eletivo do meu amigo na execução perfeita do ato de tomar café. O meu amigo M. sorve o café como se cada sorvo fosse o último. Ou melhor, toma o seu cimbalino como quem se despede da vida, após ter reconhecido que ela foi inteiramente preenchida com coisas boas. Mas, e para o amigo leitor se inteirar melhor do seu prazer, podemos igualmente acrescentar que o meu amigo M. toma a sua bica como se o fizesse pela primeira vez, como quem se regozija com a primeira namorada, como quem saboreia o primeiro beijo ou como quem se prepara para ter a primeira relação sexual.

 

Penso que a última parte do primeiro parágrafo foi influenciada pelo meu subconsciente, mas só disso me apercebi quando me pus a escrever o que os queridos e estimados leitores estão agora mesmo a ler. De facto, a primeira relação sexual do meu amigo foi como quem toma o primeiro café e fica desde aquele momento indelevelmente apegado à cafeína para o resto da vida, não conseguindo largar a italiana porque o seu corpo já vive dependente do estímulo do alcalóide do grupo das xantinas.

 

Mas para chegarmos até aí, primeiro vamos deixar falar um pouco o meu amigo. Naquele dia em que chegou ao pé de mim e mais uma vez tomou a sua italiana com todo a arte e esmero, que são, como já atrás referi, os traços mais fortes da sua personalidade, disse o seguinte: “Caro João, ontem o meu filho chegou a casa com os bolsos cheios de preservativos, como no dia em que pela primeira vez foi à escola e o encheram de rebuçados. Só que desta vez vinha da universidade, da festa de receção aos caloiros. Além de uma pasta, uma bata, blocos de notas, roteiros, um lista telefónica das Páginas Amarelas, um cordão com aloquete, uma proposta de abertura de conta numa instituição bancária, um cartão multibanco provisório e duas esferográficas, ofereceram-lhe vários e distintos preservativos em embalagens criativas, com distintos sabores, com ergonomias curiosas e mesmo um exemplar luminescente destinado à parceira, para, mesmo no escuro, saber sempre o que procurar e onde poder encontrar o membro fálico do mancebo sem ajuda do GPS do telemóvel. Ora, caro amigo, mesmo sabendo eu que a distribuição dos preservativos são uma forma de combater as doenças sexualmente transmissíveis, também são como que um apelo a que essas mesmas relações se efetuem. É um pouco como a história do ovo e da galinha. O meu filho mostrou-se desde logo interessado em utilizar tudo o que lhe tinham oferecido no kit universitário, afirmando que por algum lado se deve começar a vida académica. E que se ela é constituída por sangue, suor e estudo, o melhor é começá-la com as experiências mais aprazíveis. Os psicólogos dizem que ter uma relação sexual no momento da entrada para universidade ajuda a libertar a libido e por isso mesmo é uma forma estimulante de potenciar as relações intergrupais que são indispensáveis para criar os laços de amizade e integração no grupo. Representa o mesmo que no teu tempo”, disse ele para mim, “entrar com o pé direito”. Ao que eu lhe respondi: “Essa curiosa expressão utilizávamo-la como um amuleto, um talismã, um esconjuro. Mas dar preservativos como quem distribui rebuçados de distintos sabores e cores aos jovens parece-me um pouco excessivo. Olha, meu filho, lá diz o povo na sua sabedoria, o que não é visto não é lembrado.” De seguida atendi o telemóvel e a conversa ficou por ali. Mas não deixa de ser irónica a circunstância de lhe oferecerem o objeto que permitiu o equívoco da sua gestação. E calou-se. E calado ficou durante mais meia hora, enquanto fazia que lia o boletim municipal. Depois levantou-se muito direitinho e foi passear para o parque onde se entreteve a decorar “Os Lusíadas”. E ia e vinha recitando as estrofes respeitantes à Ilha dos Amores.

 

O meu amigo M. foi um jovem adiantado para a época. Na altura em que nos formámos, um preservativo era a modos como a teoria heliocentrista de Galileu no seu tempo, uma convicção contestada por quase todos. Mas, apesar da ignorância e da iliteracia da maioria, especialmente da maioria dos jovens, o meu amigo leu algures que existiam artefactos de látex que permitiam praticar sexo para além da procriação. Evidência que atualmente ainda é negada pelo Vaticano. Não propriamente a evidência, mas antes a realidade da moral cristã, que não é propriamente uma moral mas uma fé moralizante apta a defender a procriação como fator essencial das relações sexuais. Ou seja, como objetivo definitivo. Por isso se fez forte e, numa ida a Lisboa em viagem de estudo, deslocou-se a uma farmácia e pediu um preservativo. Como a farmácia estava a abarrotar com pessoas a solicitar Fósforo-Ferrero para administrar aos estudantes por ser época de exames, nem sequer lhe pediram para mostrar o bilhete de identidade. A partir daí nunca mais deixou de transportar nos bolsos das calças o seu preservativo de estimação. Demorou foi muito a utilizá-lo. Não porque lhe faltasse a ousadia e a vontade. A ala feminina é que não lhe aparava os lances. Fizesse frio ou calor, chovesse ou nevasse, o meu amigo trazia sempre nos bolsos das calças o lenço, as chaves de casa e o preservativo. Apesar da fortaleza do invólucro, a textura começou a dar de si. Ou pelo menos era isso o que nos parecia quando ele, num ato pedagógico, nos mostrava a embalagem azul que supostamente guardava uma embalagem cilíndrica de borracha virgem, tão virgem como a namorada do meu amigo. Ou até ainda mais, se tal é possível. Com o passar do tempo, e com a intensidade dos apelos da carne, um dia, um glorioso dia de primavera, o meu amigo conseguiu alcançar os seus objetivos. Passados nove meses nasceu o seu primeiro filho. Quando o questionámos sobre o facto, limitou-se a confessar que o preservativo lhe tinha saído furado. Naquela altura não havia ainda uma lei a exigir que os produtos exibissem o seu prazo de validade.

João Madureira

22
Jan24

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667 - Pérolas e Diamantes: Diabinhos e diabretes

 

O senhor padre faz exercícios de apoterapia, aprendidos de Galeno e ri com as frases escatológicas de François Rabelais. Pantagruel continua a ter o seu peso entre o clero. O artista plástico faz esboços instáveis dos camponeses a enfeixarem molhos de feno, a pitarem lenha e a malhar com os manguais as gabelas de centeio na eira. Ou a praticarem o jogo do pau. Que saudades do Malhadinhas e do Birtelo. E o escritor a colocar metáforas na sua escrita. E os pimpões a divertirem-se. E o povo a fazer belas procissões, acompanhadas com lindos salmos e responsos orientados por jovens padres com voz grossa, despachados nas orações, céleres nas missas e atentíssimos nas vigílias. Muitos deles são, por obra e graça do divino Pai, verdadeiros artistas e inteligentíssimos poetas dos apotegmas monacais. É em momentos como este que os espíritos malignos se sentem ultrajados. Isto, apesar da graça divina e o livre-arbítrio não se costumarem coordenar de forma inteligível. Mas nem tudo nesta vida pode ser objeto da arte apologética dos milagres. E depois chega sempre o momento em que as forças do bem agem com graça e benevolência para combaterem as forças do mal, que nunca se cansam de produzir danos e dissabores. Há destinos fatais, sobretudo os que são influenciados pelos astros. É há sempre um Toucquedillon a envenenar o ânimo de Picrochole, a apelar à guerra e a disseminar a violência, a perfídia e a vil ânsia do poder, utilizando sempre palavras infetadas de verdadeira malícia: “Ungi o vilão, e ele atacar-vos-á. Atacai o vilão, e ele ungir-vos-á.” Pobre do Grandgousier. Podem dizer dele que é um grande bebedor e que se acagaça, mas todos sabemos que o pai de Gargântua não sofre desses defeitos, sobretudo do segundo. Os sábios lá estão para ensinar. E nós para aprender. Dizia Octaviano Augusto: Festina lente (Apressa-te lentamente). Podem talvez dizer que, desta vez, me deu para o conservadorismo. Podem pensá-lo que eu não me amofino. Mas é fundamental que se assinale a enorme diferença que existe entre um conservador e um reacionário. Muitos conservadores, por muito que custe aos progressistas mais ligeiros, têm bastante qualidade e, alguns deles, até personalidade acentuada. Muitos conservadores possuem mesmo traços de alguma modernidade. A cultura não é uma coisa apenas para masoquistas, faquires ou progressistas enfadonhos. Vá lá, não custa nada, vamos todos jogar ao jogo da apanhada. Vá lá, não custa quase nada. Como diz Gymnaste, eu também enraiveço diabos. Ai enraiveço, enraiveço. Agarrai-me se não vou-me a eles como Santiago aos mouros. Cada um é para o que nasce. Bardamerda os diabos, diabinhos e diabretes. Eu, como Gargântua, aviso os zorros do mal: “Estais aí, ou não estais? Se estais aí, deixai de estar; se não estais, nada há a dizer.”  E mais não digo para não vos contradizer. E mais não digo para não me enraivecer, caso contrário tenho de me enaltecer e isso vai contra os meus princípios. A modéstia é uma coisa genial. E por Toutatis vos digo, que se não fosse por ser careca, me ia a esses filisteus com o engenho de Sansão. E, verdade seja dita, com a ajuda perniciosa de François Rabelais. E também porque tomo muita medicação e bebo muita água, “me vou então até ali mijar o meu infortúnio”. Eu, se me fazem chegar a mostarda ao nariz, transformo-me numa espécie de frade Jean des Entommeures, na defesa do cerrado da sua abadia. Amante do bom vinho, defensor até à morte das vinhas que o permitem fazer. E uma coisa também sou capaz de declarar, citando este corajoso monge, depois de beber uma garrafa de vinho do bom: “Confesso a Deus que, se eu tivesse vivido no tempo de Jesus Cristo, teria impedido de o prenderem no Jardim das Oliveiras. Além disso, que o Diabo me desampare se eu teria perdido a oportunidade de cortar os tendões aos Senhores Apóstolos, que fugiram tão cobardemente e que, depois de terem bem ceado, abandonaram o seu mestre quando este mais precisava deles!” E desta vez, se me permitirdes, termino com a boa filosofia de Platão (República, livro V): “As repúblicas serão felizes quando os reis filosofarem ou quando os filósofos reinarem.” E isso está para breve. Ah, ah, ah... Ah, ah!

João Madureira

15
Jan24

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666 - Pérolas e Diamantes: Confusões

 

Eu confuso me confesso. Já não consigo distinguir os loucos dos sábios, os reis dos mendigos, os republicanos dos monárquicos, os refinados dos grosseiros, a realidade da fantasia, o sagrado do profano. Nem diferenciar os populistas dos progressistas. Nem a fantasia dos factos. Nem destrinçar notícias de fake news, chineses de tailandeses, muçulmanos xiitas de sunitas, católicos de ortodoxos. Nem as teorias da conspiração da conspiração das teorias. Nem o comunismo do fascismo. Nem o socialismo da social-democracia. Nem a água benta da água da torneira. Nem a presunção de culpabilidade da presunção de inocência. E muito menos os defeitos das qualidades. Nem sequer consigo enxergar a fronteira entre ideólogos e spin doctors. Nem distinguir o criador de factos políticos Marcelo Rebelo de Sousa do seu avatar Marcelo Rebelo de Sousa presidente da República. Também faço um enorme esforço para distinguir a direita da esquerda e um esforço ainda maior para detetar a linha divisória do centro-esquerda do centro-direita. E então que dizer da delimitação da fronteira entre os populistas de direita e os populistas de esquerda. Confesso que tenho também dificuldade em distinguir os algoritmos da verdade e da mentira e as contradições das idiossincrasias. Já não sei se é a realidade que faz a informação ou é a informação que faz a realidade. Já não são os políticos que contratam técnicos. São os técnicos que contratam os políticos. Os engenheiros do caos aperfeiçoaram os algoritmos de uma forma quase ideal. Daí a democracia se estar a afundar. São Francisco de Assis já não fala aos animais do monte, utiliza a internet. Transformou-se numa espécie de Isaac Asimov, um dos pioneiros da ficção científica. São os algoritmos que fazem acontecer as temíveis máquinas políticas do populismo. O que não é difícil, pois os pretextos são diversos e evidentes: corrupção dos políticos, abuso das grandes empresas e da banca privada, precariedade no delirante esquizofrénico mundo do trabalho. Giram os tronados lá fora, enquanto cá dentro a panela de pressão começa a assobiar. Vamos ver quanto tempo demora a tampa a saltar. A arena tradicional do jogo político implodiu. Nem é preciso apanharmos os cacos. O circo é virtual, vive da internet. Nele atuam sobretudo jovens sensíveis aos temas do ambiente e do emprego, distanciados da política tradicional e indignados com o esbanjamento dos recursos e da riqueza ligados à corrupção. Podem ter vindo da esquerda, mas atualmente são sobretudo liberais sem partido e sem orientação ideológica específica. Muitos pensam que hão de conseguir arrebatar o poder das mãos de uma casta de políticos profissionais e entregá-lo ao homem comum. Mas a internet é, sobretudo, um instrumento. Eles não controlam os algoritmos. Eles são os algoritmos. Quem manda são os mentores do processo do capitalismo da vigilância que, dessa forma, captam uma quantidade enorme de dados para os utilizarem para fins comerciais e políticos. O Grande Irmão está sempre a vigiar-nos. Os mais entusiastas dos algoritmos são principalmente jovens sem qualquer experiência política ou profissional que fazem funcionar a rede e também podem ser manobrados a partir de cima. Criam avatares na vida real. Eles próprios são avatares que existem sob determinadas condições e podem ser eliminados de um momento para o outro, com o simples movimento de um dedo em cima do teclado do computador. Os partidos nascidos desta forma, angariam apoio em todo o espaço nacional, são populares tanto a norte como a sul do país, colhem apoio tanto de jovens como de idosos e captam votos tanto da esquerda como da direita. Partidos que nascem na internet são muito tentados a desenvolver as suas experimentações políticas. Waldo (Black Mirror), meio a brincar, põe o dedo na ferida quando afirma que a democracia se transformou numa piada e que já ninguém sabe lá muito bem para o que serve. Nem a quem serve. Mas todos vamos conhecendo quem se serve dela em proveito próprio. Claro que é o sistema que se revela absurdo. Mas foi ele quem construiu escolas, hospitais e estradas. Todos sabemos que quando ascende ao poder, o antissistema se transforma no novo sistema, em tudo semelhante ao velho sistema. E deste círculo vicioso ninguém conseguiu, até hoje, sair.

João Madureira

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