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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

21
Abr25

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727 - Pérolas e Diamantes: Toda a realidade é... e não é...

 

Toda a realidade é empírica. Isso leva-me a estar sempre com um pé em Husserl e outro em Heidegger. E com os dois na sua fenomenologia. A verdade é que a filosofia não é uma ciência de verdades universais. Uma dúvida metódica: por que razão os seguidores de Marx são fanáticos? Mas numa coisa têm razão, a liberdade não pode ser alcançada na poltrona. Um paradoxo: as liberdades são construções ideológicas. Autoilusões. Cada um vive a sua. E tem de lutar por ela. Eu, por exemplo, continuo a ter o sonho marxista de que será possível criar uma sociedade onde se caça de manhã, se pesca à tarde, se pastoreia ao final do dia e se faz crítica depois da refeição. Isto sem jamais nos tornarmos caçadores, pescadores, pastores ou críticos. Esta é a fantasia do marxismo. Eu acredito nisso porque acredito em fantasias e também porque sei que os seres humanos são naturalmente criativos e sociáveis. Mas também concordo com Isaiah Berlin que criticava Marx porque o filósofo alemão subordinava tudo a uma teoria determinista da história e que isso o colocava “entre os grandes fundadores autoritários de novas crenças, subversores e inovadores implacáveis que interpretam o mundo em termos de um único princípio claro e ardentemente defendido, denunciando e destruindo tudo o que entra em conflito com esse princípio. A crença dele… era daquele tipo ilimitado, absoluto, que põe fim a todas as questões e dissolve todas as dificuldades”. Por isso é que “reformista” é um termo ofensivo para os marxistas. Eles acreditavam (agora já não sei) que a sociedade comunista só podia chegar através de uma revolução violenta. O que faz dos marxistas (sobretudo os leninistas) fanáticos, não é o facto de acreditarem que o capitalismo é injusto, que a propriedade privada deve ser abolida ou que tudo tem de ser alcançado através de uma revolução. O que os torna fanáticos é a crença de que a revolução é inevitável. E que tudo é legítimo para a provocar. A revolução não é, sequer, passível de discussão. Ela vai acontecer. Quer queiramos ou não. Só é necessário perceber quando é que estão criadas as condições para a desencadear. Há sempre uma porta entreaberta para podermos entrar nela. Mas depois ninguém dela pode sair. Os marxistas (do rito leninista e trotsquista) acreditam piamente que a liberdade e a igualdade são conceitos inseparáveis. O zelo em excesso também mata. Estou até em crer que foi isto o que aniquilou o comunismo enquanto prática. Peço de novo ajuda a Berlin: “Tudo é o que é: liberdade é liberdade, não igualdade ou equidade ou justiça ou cultura, ou felicidade humana ou uma consciência tranquila.” Eu continuo a pensar que a liberdade se baseia, sobretudo, no princípio da tolerância, que permite que as pessoas escolham os seus próprios gostos e valores e que persigam os seus próprios fins. Mas convém esclarecer que a tolerância não é diferente da liberdade, da igualdade ou da sociedade sem classes. Tem apenas outro fim. Mas será possível tolerar as pessoas intolerantes? As pessoas intolerantes raiam a obscenidade. Mas. Mas convém lembrar que o nosso sistema democrático está baseado na liberdade e na dignidade dos indivíduos. Os estados comunistas ignoraram, logo desde o início, estes valores. Foi por isso que fracassaram. Mas eu ainda tenho uma réstia de esperança no futuro da humanidade porque li “O Manifesto Comunista” num livro brochado, como os editados pelo saudoso Miguel Torga, possuindo eles uma característica comum, são muito rebarbativos. E até poéticos. Sendo que o livro de prosa poética de Marx e Engels é um pouco mais chato do que os diários do escritor de São Martinho de Anta. E então que dizer da poesia de Adolfo Correia da Rocha, feita a golpes de podão. Já oiço por aí dizer: “Apóstata.” Pois que o seja. A mim não me assustam os bajuladores. Estou até em crer que a obra de Miguel Torga consegue aguentar, com um sorriso maneirinho, as minhas penosas críticas e consegue sobreviver ainda melhor sem o cântico dos sereios bajuladores. A verdade é que comprei “O Manifesto Comunista”, “Os Bichos” e o “Tintim” num quiosque da minha terra. O 25 de Abril tinha saído há pouco do forno. Depois baralhei tudo. E comecei a escrever poemas e cartas de amor. Sim, eu vivo da paródia. Peço desculpa.

João Madureira

14
Abr25

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726 - Pérolas e Diamantes: Podem não acreditar, mas eu... sou tímido

 

Podem não acreditar, mas eu, apesar de me considerarem rebelde, ou até provocador, sou simplesmente tímido, atencioso, dedicado à família e à memória dos meus pais. Sou mesmo simpático, apesar de não o parecer. Posso até dizer que a família gosta de mim. E eu dela. Nasci no Portugal profundo. No tempo em que ainda existiam fadas do lar. Nesse Portugal reservado, tradicional e respeitador, cheio de serviços religiosos, batizados, casamentos e funerais. E ouvia rádio. E também conseguia, com algum custo, imitar “It’s Now or Never”, de Elvis Presley, uma canção que não é nem blues nem rock’n’roll, mas simplesmente uma modinha napolitana, a versão de “O Sole Mio”. Sou assim mesmo, genuíno que chegue para me sentir português. Ou melhor, eu quero pensar que sim. Sou mesmo encantador, para os que me conhecem de perto. Mas também consigo ser cáustico, irreverente, revelando, quando quero e a razão me assiste, uma certa propensão antissistema. A verdade é que eu não acreditava em Deus, mas nos Beatles. Apesar de não apreciar muito a sua música. Agora já nem nesses pindéricos acredito. Deus é uma personagem dura. E os Beatles são como perucas sopradas pelo vento da desilusão. Continuo a não apreciar muito a sua música, mas continuo a gostar de gracejar, apesar de tentar fingir o contrário. Os Beatles ficaram lá atrás, nos bailes de finalistas, onde é o seu verdadeiro lugar. Mas tenho de ser sincero, só muito tarde me dei conta de que a canção “Please Please Me” é sobre sexo oral. Quem diria! No entanto, tenho de reconhecer que Sgt. Pepper’s Lonely Hearst Club Band é um “álbum com arte de capa com pretensões em superar toda a arte de capa”, como aprendi com Louis Menand (O Mundo Livre). Mas, tenho de reconhecer, também contém algumas canções interessantes. Possuo, no entanto, um pequeno defeito: vejo as coisas que os outros veem, mas de um ângulo ligeiramente diferente. Essa atitude, por incrível que pareça, faz muita diferença. Além disso, como tudo leva a supor, não tenho nenhuma vocação para mártir. O que é em tudo contraditório com o tal ângulo de visão divergente. O que algumas pessoas acham que é irresponsabilidade, não passa de desenraizamento. E eu para aqui a rufar o tambor da vulgaridade. Valha-me Deus! A pensar como posso ocupar os dias. Haja paciência! Vivo numa ambivalência hesitante, entre Kierkegaard e Woody Allen ou entre Eduardo Lourenço e João César Monteiro. Sim, eu quero sonhar que um dia ainda vou ter uma casa com um sicómoro e um pequeno jardim a servir-lhe de cenário. Não vou deixar-me derrotar pela realidade. Por vezes ela, a realidade, é colaborante. Há dias onde chega até a ser divertida. Mas, tenho de admitir, está cada vez mais gorda, confusa e derrotista. Nisso parece-se muito com as pessoas que a produzem. Tenho saudades quando ela era espirituosa, inteligente e confiante. Por vezes convivemos mal. A realidade está a precisar de fazer uma pequena dieta. E eu a necessitar de me deixar de conclusões inconclusivas. Não é fácil entretecer os nossos conceitos filosóficos com a vida quotidiana. É como viver entre a fornalha e o frigorífico. Sou uma espécie de híbrido, existindo entre a mais fantasiosa das realidades e a mais real das fantasias. Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! O que verdadeiramente interessa é o fator humano. Não é verdade? O caminho para Ítaca é sempre longo. Mas todos sabemos que a ilha fica sempre do lado de lá. A realidade, para ser lida, necessita de ser (d)escrita de forma comovente. Não é, caros amigos?  Do outro lado do espelho vive sempre uma Alice. E isso é maravilhoso. Não é verdade? É complicado quando nos tornamos a caixa de ressonância da realidade e dos seus protagonistas. A pretensa ficção tende a tornar-se monótona. E também é inquietante um homem, ou uma mulher, só saber escrever e não saber fazer mais nada. O desejo pode ser sempre uma outra coisa. Parece que estou a fugir ao teor desta crónica. Mas não é verdade. O que eu quero é passear pelo campo, apanhar legumes na horta e escrever sobre a maravilha que é ter uma vida sã. O resto é muito complicado de (d)escrever. O que eu vou mesmo fazer é ir de excursão até ao meu velho refúgio da montanha. Está visto, eu não sou adito à felicidade. Apesar de a procurar e muitas vezes tropeçar nela. É como ter um cotovelo de tenista apesar de nunca ter jogado ténis. E, para terminar, uma boa ideia. Vou criar a Associação dos Preguiçosos Rebeldes. Pretendo aumentar a minha autoestima. 

João Madureira

 

07
Abr25

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725 - Pérolas e Diamantes: Aquanatur Palace... hip, hip, hurra!

 

“Já viste o novo Cine-Teatro?” Ao ouvir tais palavras, apeteceu-me pular de alegria. Depois de tantos anos de abandono e ruína, o salão estava finalmente pronto para exibir cinema, bailado artístico, teatro e música. E lá fui eu. Mais uma vez. Ao engano. Entrei lá para dentro e. Desenganei-me. De imediato. Não com o espetáculo de dança, mas com a sala. Sentado numa cadeira elegante apenas conseguia ver o cocuruto das pessoas à minha frente. E também o fumo iluminado que parecia nascer das bordas do palco. Cheirava bem. Do mal o menos. Senti-me enfiado dentro de uma gruta perfumada. Numa cratera surrealista. Uma menina, abancada ao meu lado direito, queixava-se que não via nada. E uma senhora sentada sobre o meu lado esquerdo, afirmava o mesmo, resignada. Mesmo assim porfiamos em desfrutar do espetáculo, espreitando de um lado e do outro dos cocurutos, vislumbrando, por vezes, os braços e as pernas das bailarinas a agitarem-se no ar, com muito engenho e arte. Presumi. Senti então uma dor no cotovelo esquerdo quando olhei lá para diante e vi os do Protocolo, mais as suas digníssimas famílias, sentadinhos nos lugares privilegiados, junto ao palco, de iPhone em riste, prontos a fotografarem as bailarinas nas suas magníficas poses. Fotos que muitos deles, sobretudo os do Protocolo partidário, partilharam no Facebook, ou no Instagram, nessa mesma noite, por apurado sentido estético, elevado orgulho bairrista ou mesmo substantivas razões ideológicas. Ó Chaves, nobre cidade, pelo Tâmega beijada… Até as lágrimas me vieram aos olhos. Admito que senti, além das citadas dores de cotovelo, mais do esquerdo que do direito – eu pecador me confesso –, um pouco de ciúme e alguma raivinha por não pertencer a essa ilustre e memorável casta de cidadãos e cidadãs. O Protocolo não é para todos. Isso é que era bom. Nem nunca poderá ser. Até a democracia, essa promíscua, exige decoro. E hierarquia. E responsabilidade. O respeitinho é muito bonito. À saída encontrei o senhor presidente da câmara que prontamente cumprimentei. E até ousei colocar-lhe uma questão retórica sobre a cor das paredes da nave espacial (batizada modestamente de Aquanatur Palace) e das luzes estroboscópicas que iluminam os degraus e as paredes, dispersas pelo estômago da nave espacial intergaláctica. Esta ilusão é da minha inteira responsabilidade. Logo ali, o insigne autarca, me deu explicações pormenorizadas sobre a enorme dificuldade que a autarquia teve em negociar as saídas de emergência. Cá fora não encontrei nem o Chewbacca, nem o robô maneirinho que anda sobre rodas e projeta hologramas, nem o robô de lata dourada que tem dificuldades visíveis de locomoção e diz muitos lugares-comuns, nem o príncipe Luke, nem a princesa Leia, e muito menos o Indiana Jones. E se o Darth Vader passeou por ali, fê-lo de forma muito discreta, talvez respirando por uma palhinha ergonómica, das boas. E bebendo água das Caldas da garrafinha promocional da autarquia. Confesso que por vezes me senti dentro de uma maqueta retratada por um miniaturista, uma figurinha inexpressiva a espreitar pelo janeluco do submarino amarelo. We all live in a yellow submarine… Ai que saudades! Com estes níveis de desenvolvimento não sei onde a nossa cidade vai parar. Eu, apesar de agnóstico, acredito piamente no seu rejuvenescimento. Já que estamos a falar de cinema, admito que estou de acordo com o guião autárquico. Fui-me convertendo às ideias do senhor presidente lendo, relendo e meditando nas sábias palavras vertidas, e expostas, nas suas entrevistas solicitadas pela redação dos editores do Boletim Municipal, a pedido do seu diretor. Resumindo e concluindo. Eu, como já referi, aprovo o guião. O filme vai ser um êxito de bilheteira. Só pode. “Curioso” – disse uma senhora de meia-idade, muito observadora e fã dos filmes dos irmãos Coen, – “o senhor presidente tem muitas parecenças com George Clooney, versão Chaves TV1. Até nisso é um predestinado aos mais altos voos. Jovem, garboso, bem-falante, educado, culto.” Eu, para não me ficar atrás, afirmei perante o pequeno grupo que fazia o favor de nos ouvir: “A nossa cidade está embriagada de sucessos. Nas Caldas, nas Freiras, no Bacalhau, no Arrabalde, etc. Pedir mais é arrogância. Claro que também existe em seu redor alguma controvérsia. Mas não é legítimo minar a notoriedade de tais façanhas. A Aqua Valor é uma ideia inteligente. Mesmo muito inteligente.” Teimei em pensar, até pelo facto de toda a gente que me conhece saber da minha teimosia, que, apesar de os romanos terem sido os invasores, os colonizadores e os civilizadores das terras de Aquae Flaviae, juro que agora me sinto um pouco mais romano. Todas estas mudanças vieram ao encontro das minhas (nossas, vossas, deles) expectativas. Por isso aqui vai: “Então malta, e para a CMC não vai nada, nada, nada, nada? / Tudo! / Mas mesmo nada, nada, nada, nada? / Tudo! / Então com toda a cagança, com toda a pujança, e todo o espírito flaviense, apostólico e romano (socialista, os que forem desse rito), aqui vai um... (todos devem gritar o que lhes vai no peito e na alma). Os turistas, à cautela, devem proferir hip, hip, hurra!

João Madureira

 

31
Mar25

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724 - Pérolas e Diamantes: Figurantes e figurações

 

Estive numa terra entre montanhas onde o ar era tão puro que se podia servir numa chávena. Muitas vezes me virei contra a brisa e consegui sorvê-la devagarinho como se fosse um peixe, sentindo nas guelras o oxigénio a misturar-se com o ozono. Vim de lá com os pulmões como novos. Passeei por aquelas terras sorrindo ao longo das áleas de estátuas e árvores, todas elas colocadas com mestria de arquiteto paisagista. Estátuas de reis espadaúdos e de princesas ramificadas. De Adões testiculares e de Evas vaginulares, com as parras nos sítios errados, mas com os genitais nos lugares adequados. Todas em mármore fresco ou em calcário, tão branco como o açúcar. Também havia por lá museus ornamentados com baixos-relevos do passado glorioso daqueles povos, de quando ainda andavam com machados, se vestiam de peles e copulavam as mulheres como se fossem cavalos. Eles. E elas, éguas rabonas. Confesso que por ali andei admiradíssimo com a inacreditável fidelidade dos artistas perante os modelos. Se aquilo se tornasse realidade ia ser o bom e o bonito. Alguém, a meu lado, fazia questão de falar explicitamente, e com orgulho, daquela realidade primitiva. Fomos também visitar lindas aldeias com casas pequeninas, com as flores debruçadas nos parapeitos das janelas e nos aros das varandas, onde os guias colocavam, com subida mestria e com as suas frases perfeitas, mães e futuras mães, todas sólidas camponesas, mulheres e raparigas loiras, que nem pareciam deste mundo, mas do Olimpo das deusas. Todas possuíam peitos ostensivamente bonitos e, quando por algum motivo, tinham de se deslocar de um lado para o outro, faziam-no sempre devagarinho, como se fossem estatuetas animadas. Pelo menos era isso o que os guias diziam. Um senhor, a meu lado, pequeno, por sinal, entusiasmado com as figurações, disse, para quem o quis ouvir, que não é necessário ser-se de estatura avantajada, o realmente importante é sentirmo-nos grandes. A verdade é que ao pé daquele jardim de estátuas, baixos e altos relevos e árvores seculares, todos nos sentimos como os anões da Branca de Neve no dia do seu casamento. Naquela cidadezinha da floresta revigorei-me também com boa comida e bons vinhos, feitos de castas especiais. As raparigas, como nos benévolos livros de outrora, bebiam apenas copos de leite de vaca. Aqueles povos, segundo estudei, estão habituados a vencer porque sabem que a sensação de vitória é determinante. Muitas das tardes, quando o sol brilhava, os criados, vindo de lá de longe, muitos até das nossas terras, levavam chávenas de leite ou chá às meninas, ou mesmo taças de gelado ou leite quente para as piscinas azuis onde nadavam belas mulheres de cabelos louros, completamente nuas. E eu, como se fosse um médico, podia olhar para todas elas e observar os seus corpos claros, a ondular, a afastarem os braços e as pernas, em movimentos rápidos, a esticarem o físico em belos movimentos de natação.  A observar os raios de sol a iluminar os azulejos azuis ou verdes do fundo das piscinas, onde as belas nadadoras, ao terminarem os seus exercícios de natação, encolhiam as pernas, punham-se em pé e ficavam ali paradas para que a água escorresse pelos seus corpos, pelos seus peitos (maminhas, talvez) e barrigas, a passarem as mãos pelo cabelo, ou pelo púbis, como se estivessem a rezar uma oração ao deus da criação. Depois comiam e bebiam devagar o que lhes apetecia. Muitas delas, depois da oração e da eucaristia, voltavam à piscina, como se tivessem esquecido alguma coisa na água, mergulhavam e continuavam a rezar, juntando as mãos, afastando a água e nadando de novo. Disseram-me que eram rituais de fertilidade. Elas, quando olhavam para nós, era como se não existíssemos. Eu sorria e não deixava transparecer nada, como muito bem me ensinaram os meus pais. Depois o tempo começou a arrefecer e os hóspedes do hotel onde eu estava começaram a ficar como os poetas antes de começarem a escrever poesia. Então vim-me embora. Na hora da despedida a banda tocou uma musicata solene. Tão solene e bonita que até chorei. Ali de pé, emocionado. Depois entrei no autocarro, com o olhar sombreado pelos ramos dos carvalhos.

João Madureira

 

24
Mar25

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723 - Pérolas e Diamantes: Os do protocolo. Chiça!

 

Se reunirmos coisas insignificantes em si mesmas, elas podem adquirir importância. Mas não é por isso que nos devemos modificar levianamente. Há ocasiões em que não podemos ocupar o lugar que nos destinam à mesa devido a uma indisposição. Faz parte da vida e das regras do protocolo. Não é avisado sentirmo-nos cómodos quando somos os últimos a descer para a sala das refeições. Apesar de terem sugerido que ali nunca existiu qualquer ordem estabelecida. É falso, mas o mais avisado é fazer que acreditamos na mentira. Por inteiro. No fundo, tudo não passa de uma questão de fé. Esperança. E caridade. Não é fácil o protocolo. As suas leis intrínsecas. As suas regras implícitas. Nos jantares protocolares, mesmo a comida se torna aborrecida. É tudo demasiado delimitado. Inclusive as migalhas que caem da mesa. E então que dizer dos solilóquios. Fala-se de tudo que vem à baila, enquanto uns mastigam e outros sorriem e meneiam a cabeça em sinal de aprovação. Há até aqueles que, como diz um personagem de Charles Dickens, “preferem ser derrubados por um homem que tenha sangue azul a ser levantado por um que o não tenha”. Tudo não passa de uma questão de protocolo. Existem também sempre aqueles que são exímios em formarem uma aliança defensiva contra um inimigo comum: nós. Nós estamos sempre destinados à confusão e à perdição. Nós tanto somos vítimas do temor como do espanto. Nessas alturas, os anjos bons costumam abandonar-nos e ali ficamos sozinhos a tentar sobreviver. Ao protocolo. Sem naufragarmos. O mais avisado é não dizer nada de importante e acreditar que os importantes despejam bênçãos sobre nós. E nós, para não estragarmos o protocolo, em vez de responder, devemos levar à boca o cálice de vinho fino. E sorrir. Como se eles fossem muito, mas mesmo muito, inteligentes. Eles, os do protocolo. Os protocolares. Sempre a fazerem soar os sinos do seu tempo. Até porque são eles os seus proprietários. Eles a porem o seu ar pensativo e a coçarem o queixo como se estivessem a barbear-se. Eles a falarem e a insinuarem que possuem ainda qualquer coisa de reserva para o que der e vier. Os outros que se amanhem. Faz parte das regras do jogo. Democrático. Ó bendita democracia! Nós temos que, a pouco e pouco, irmo-nos familiarizando com as nossas esperanças conforme se forem apresentando as ocasiões. A ocasião faz o ladrão. E tão ladrão é o que vai à horta como o que fica à porta. Agradeço aos do protocolo o terem-me facilitado esta confidência. Benditos sejam, pois são gente capaz de nos convencer dos sacrifícios necessários para atingir a desejável mediania. Essa coisa que passa a tornar-se uma parte integrante da nossa vida. Nós não queremos ser felizes, apenas rezamos para que a infelicidade não nos bata à porta. Nós o que gostamos é de nos abandonarmos às delícias da melancolia e tomarmos café expresso duas a três vezes por dia. Alguns, os mais melancólicos dos melancólicos, descobrem, por vezes, que estão sozinhos no mundo e começam a versejar como se fossem cucos à procura de pôr os ovos no ninho alheio. Outros, os que se habituaram a acreditar nos do protocolo, acabam por passar a vida a sorrir e a não reconhecerem o seu rosto no velho espelho lá de casa. Outros, ainda, passam a piscar os olhos e a beber whisky de qualidade média com duas pedrinhas de gelo, agitando-as de vez em quando para produzir o respetivo efeito sonoro. Há lá coisa mais distraidamente protocolar! É tudo tão porreiro pá que dá ganas de uma pessoa calçar umas sapatilhas e botar a fugir dali para fora. Ou até com as tamanquinhas do Zeca Afonso: “A fadiga é um dom da natureza. Chiça! Com as minhas tamanquinhas, p’ra quem não faz fortuna, mata as penas e faz covinhas…”. Com as nossas tamanquinhas toca a chispar, porreiro pá, bora lá! Já os marialvas costumam correr em cavalos que arqueiam o pescoço e levantam as patas como se também eles, os cavalos deles, pertencessem ao protocolo. Há também burros que fazem parte do protocolo. Mas manda o protocolo que não se fale deles. E eu vou cumprir com as regras protocolares. A qualquer momento, tudo à nossa volta acelera, assume a forma de um vórtice, ou de uma tempestade, e engole-nos. Vá lá, não nos deixemos cair em tentação. O protocolo é um gozo.

João Madureira

10
Mar25

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721 - Pérolas e Diamantes: O mundo é um lugar estranho...

 

Nunca são os inimigos que nos traem. O mundo é um lugar estranho. E as pessoas ainda o tornam mais estranho. “Vá lá, João, mostra alguma gratidão”, diz-me a minha cigarra falante, que gosta de rimar. “Vá lá, enfim!” E lá vou eu em direção às ruínas. À Torre de Ervededo. Vá lá, não vale a pena falar sobre nada. A pendente da encosta das memórias é tão inclinada que dá vertigens. Os estreitos carreiros de outrora já não vão dar a lado nenhum. Nem eles. Nem eu. As palavras não são exatas. Nunca o são. Nem os sentimentos. Nem as memórias. A Torre ainda não é uma ruína, mas está a desmoronar-se. A minha memória de menino fica à porta da velha casa. Oiço um ruído surdo e prolongado. Os alicerces da memória estão em vias de ceder. Os lábios da mãe mexem-se, mas não dizem nada. Borboletas noturnas voam na direção dos seus olhos, que se fixam nos olhos do pai. O pai penteado. A mãe desgrenhada. O pai fuma. A mãe canta. O vestido da mãe é preto, com uma risca branca no colarinho. Para os idiotas todo o saber é idiotice. O vestido desce até ao chão, dando a ideia de que ela não caminha, mas apenas desliza. É linda. A minha mãe é linda. A minha mãe. É. Linda. Apesar de agora ser apenas uma fotografia que sorri. O mundo é pequeno para tantos tolos viverem nele, não é mãe? Muitas mulheres, homens e crianças, que habitam nos meus sonhos, dormem junto ao rio, olhando as estrelas. A mãe parece estar agora amarrada no céu. Presa. O som de um trovão soa ao longe. Acordo dentro do sonho. A escuridão chegou durante a madrugada. A memória mais recente está a devorar a mais antiga. Temos de continuar a procurar utilidade para a vida, pois sentido não tem. Alguém a tirou do texto. Uma coisa é escrever histórias. Outra, bem diferente, é acreditar nelas. Ninguém come ficção, a não ser os anjos. E os demónios. Não é fácil suportar a verdade. E aqui estou eu a perder o ânimo com a violência do mundo. A voz da avó eleva-se sobre o ruído do vento. Eu corro pelo soalho. O vento lá fora desapareceu. Ando à procura de algo de novo, mas não é hoje que o vou encontrar. Os reencontros podem ser como tempestades. “Sai daqui. Sai daqui, já!”, diz a avó. “Eu nunca cheguei a entrar”, respondo. Acordei a meio da noite no meu quarto ainda às escuras. Pensei que tinha acordado por causa do pesadelo. Mas foi a avó que entrou dentro do meu sonho para me acordar. Sinto o cheiro intenso de flores a arder. Esta história não obedece a plano nenhum. Provavelmente é por causa do cachimbo de ópio do Camilo Pessanha. Uma flauta chora. A mãe também chora. E o pai. E a avó. E eu também choro. Há sonhos grandes e há sonhos rápidos. Este não é nem uma coisa nem outra. É outra coisa. Que noite lenta, esta! Faço um enorme esforço para não deixar cair no poço do esquecimento certas imagens que continuam a habitar a minha memória. Pisco os olhos e vejo tudo baço. Não me olhes assim, mãe. Eu não tenho resposta para as tuas perguntas. Apenas os homens mentirosos te conseguem responder. A eles tanto lhes faz. A mim não. Lembro-me de dançar sozinho ao som da rádio lá de casa. O Mário ainda era vivo. E parecia alegre, até ao momento em que colocou a Mauser debaixo do queixo e apertou o gatilho. “Porquê?”, perguntas tu, mãe. Pois não sei. Só sei que deixei de dançar ao som da música que ouvíamos no Siera lá de casa. E deixámos de embebedar o peru para servir na ceia de Natal. Ou na consoada. Ou no dia de Ano Novo. Não sei, mãe. Ainda não consigo abrir um sorriso como deve ser por causa disso. A felicidade é a mestra da duplicidade. Afligi-me quando uma flor virgem me rebentou na boca. Não sabias, mãe? Às vezes acordo, aflito, entre os meus antepassados. Sim, mãe, fiquei com cara de espelho. Já não sou eu que me reflito. São os outros que gostam de se ver. Ainda me lembro de montar no burro e cair. E de ver o pai montar no alazão e correr à desfilada pelos montes fora para vir ao casamento do tio. E de me colocar em cima da sela e de eu agarrar as rédeas com demasiada força e de este se erguer sobre as duas patas e me derrubar. Foi uma vez para nunca mais. É preciso ter cuidado com as memórias. Por vezes parecem ruas direitas e as vielas prometem levar-nos onde dizem que vão, mas de repente torcem-se, serpenteiam e desembocam onde não queremos ir. Alguns desses lugares não têm retorno.

João Madureira

03
Mar25

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720 - Pérolas e Diamantes: Dissonâncias pescadas num livro

 

O pai fala erraticamente, mas só na aparência. Ele fixa-se nas frases. Escrever não tem a ver com a imaginação, mas com a memória. Há uma coisa de que ele não gosta: da memória de elefante dos armados em prodígios. Da sua falsa modéstia, da sua inveja insuportável. Por isso é que quando lhe falam no escritor que escreve com a mão de Deus ele vai logo tratar das galinhas. É ele e eu. Há pessoas intoleráveis que dizem acreditar em Deus, porque se pensam um dos seus órgãos. Ereções todos temos, enquanto a próstata não nos passa rasteiras. Esses génios dizem gostar de pessoas bem-educadas, mas eles são de uma má-educação inacreditável. Neles são sempre os livros que estão a escrever quem define o rumo da escrita, ou então as vozes que lhes falam ao ouvido. Sujam a sua escrita com falsa modéstia bolsada em entrevistas miseráveis. O pai tem pouco apego aos escritores famosos e aos bens terrenos. Os filósofos gregos, todos eles, sempre defenderam que essa é uma boa disposição mental.

Um dia fomos a Bruxelas visitar o museu Brel, cantor-compositor que o pai adorava. O museu estava vazio. O pai chorou. Muito. Ao entrar no museu, o pai pensou na sua aldeia, também ela um museu abandonado. Já lá não vive quase ninguém. Jardins esventrados, poços abandonados, erva devoradora a tomar conta de tudo, casas destelhadas. Mesmo os corvos se afligem. A vibração do abandono desespera até os cães que se tornaram vadios. Na igreja ouvem-se os murmúrios das almas. Já roubaram a santa e o padre pôs em bom recato o cálice e os castiçais de prata. As árvores são comidas pela tristeza. Lá está o rio a seguir aos carvalhos e os melros a seguir à erva ruim. Tudo desalinhado. Tudo desgrenhado como as espigas de milho. Tudo seco como a palha centeia. Por lá até as rãs choram. Até os anjos de pedra da igreja mirraram como se fossem de verdade. Os campos estão defuntos, as árvores de fruto emaranhadas, os santos amputados, as janelas sem vidraças, a madeira das portas ressequida, as salas sem eco, as cozinhas sem lume, o tempo sem código de acesso. Dizem que mesmo os animais têm insónias: os cavalos, as vacas e os cães. Sobretudo os cães. Até o tempo por aqui morre. Devagar. Devagarinho. E os velhos de samarra, mesmo no verão. E corvos, muitos corvos, a voar. O pai diz muitas vezes que lhe apetece disparar sobre os corvos e sobre as silvas e sobre os pinheiros que estão todos infestados de bicharada ruim. A mim falta-me a coragem para lhe ir buscar a caçadeira. Na paragem da carreira dormem agora os cães.

O pai lembra-se das fogueiras, dos foguetes, das estrelinhas, dos folhetins radiofónicos, do cego que tocava acordeão nos bailes, do burburinho dos homens durante a missa, com um pé dentro e outro fora da igreja.

Agora só há enterros, enterros de gente pobre. Por cima das pessoas voam pombos desorientados. E sombras. As pessoas que vêm aos enterros parecem sombras assustadas. Só querem que aquilo passe depressa para se irem embora. As sombras movem-se. Como se fossem pessoas. Parece que por vezes se separam como se tivessem medo umas das outras.

O pai a anunciar que vai chover.

Ele preocupado com a febre dos cravos, com a fragilidade do vento, com as pombas viúvas, com os cedros que se transformavam em Adamastores. A pegar ao colo os passos perdidos, o medo, as lágrimas. Ou a tentar domesticar o pomar. Ele a refletir os ângulos, a desenhar os espelhos, a fotografar as ameaças. Ele a tentar engolir reflexos em vão. A olhar para mim. O tempo a voar. E a pousar nos ramos das árvores. E a chilrear. E a flutuar embrulhado nos seus próprios abraços. E a rir dos segredos. Ele sozinho à mesa. Ele sozinho, a ler os livros malditos. Ele a fumar cigarrilhas feitas de almas e purgatórios e pecados. E de aborrecimentos. O pai a regar a horta. A dar a volta à capela. O pai a engolir a paciência. A bolsar a paciência. O pai a devorar as horas do relógio. O pai a tentar pegar em mim como se eu fosse seu filho. Como se eu tivesse medo do escuro. E ele medo de mim. Principiou a chover. E o pai a chamar pelo anjo de pedra. E o pai a tentar dizer adeus com as asas. E as penas a caírem. O pai, o crucificado da igreja. Eu, o menino a choramingar na manjedoura, depois de terem apagado as luzes do presépio.

João Madureira

 

24
Fev25

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719 - Pérolas e Diamantes: Um homem não chora

 

Nas minhas peregrinações interiores, nunca deixo de admirar os pormenores do velho trajeto que me leva sempre aos lugares da minha infância. Esses caminhos estão colocados no ângulo tranquilo da minha memória. Talvez um pouco afastados uns dos outros, mas suficientemente perto entre si para poderem fazer sentido. Por vezes distraio-me e ando de cá para lá até escutar as vozes deles. Daqueles que me continuam a fazer muita falta: o avô, a avó, o pai, a mãe. E também o sobressalto das horas a soarem no campanário da igreja e o eco dos seus passos e a casa antiga e as ilusões e o amor da minha mãe ainda viva. As árvores estão podadas, os montes desbastados, o jardim regado e cheio de botões de flor. As portas permanecem abertas. E o tempo, ali está, sentado defronte da minha janelinha. O Birtelo costumava recitar fantasias que ainda povoam a minha memória. E os gnomos a descerem pelos raios de luar. Eles. Os gnomos. E eu. Eu. E. E os olhos do rebanho das ovelhas que pastavam nos prados. Esse foi o período da tristeza e da alegria a coexistirem ao mesmo tempo. Muitas vezes eram tão idênticas que nem eu as conseguia distinguir. Em certas alturas é complicado encontrar o caminho de regresso. Penso que o passado não pode ser um espectro vingador. Há situações em que até a nossa companhia consegue ser pesada. E as histórias da carochinha não chegam a ser compensadoras. O rosto do passado pode ser expressivo. E ali está a face da mãe cheia de firmeza e bom senso. E o rosto do pai, contemplativo e triste, a observar as chamas da fogueira. E eu a tentar olhar para o futuro que parece estar a ser talhado para mim. Os livros podem ser enganadores. O futuro, quando eu tentava olhar para ele, costumava dissipar-se um pouco lá mais ao longe. Olhei várias vezes para trás, para a linha do horizonte, que brilhava ténue e à distância. Eu tentava sempre manifestar-lhe o meu espanto através de frases breves e concisas. Mas nem o eco conseguia escutar. O passado parecia ser enorme. Mas o futuro foi anão. Vá lá, não acreditem em mim. Sou um pantomineiro. Ah! Ah! Ah! O futuro não é desagradável. Mas tem alguma falta de princípios. Ah! Ah! Ah!  O mundo, caros amigos, continua dominado pelos embusteiros. O futuro costuma pagar como fala, pouco e nem sempre a horas. Claro que há futuros deveras risonhos. Provavelmente o meu malbaratou muitas das suas qualidades antes de me conhecer. Eu tentei embelezar-me para ele, como me tinham ensinado. Mas de pouco serviu. Por vezes somos levados a rir porque vemos os outros rir. Ah! Ah! Ah! A crer na grande maioria das pessoas, as suas infâncias foram puras e cheias de claridade. Todos acreditamos naquilo em que queremos acreditar. Mas as suas auréolas de anjos são mais fruto da imaginação do que fundadas na realidade. A maioria das vezes, a nossa infância fica para ali especada, no meio do caminho, misteriosa e respeitável, sem querer acreditar naquilo que dizemos acerca dela. As memórias da infância, e também da adolescência, devem ter uma boa porta de acesso, mas também uma escada de serviço para ser usada em caso de incêndio ou terramoto. “Que extraordinária sagacidade”, dirão muitos dos leitores, mas isso é porque ainda não conhecem muitos dos recursos do meu intelecto. Eu, bem vistas as coisas, apenas pretendo contentar-me com o vosso afeto, que me dá satisfação e me enche de orgulho e alegria. Mas também espero que tolerem os meus caprichos e manias. Os bons leitores, tal como os bons amigos, (re)conhecem-se nas ocasiões. Pronto, já sinto atenuar-se o rumor de algumas memórias de infância, transformando-se num zumbido longínquo. Não há nada melhor do que as invocar. Umas dão para escrever histórias, crónicas e poemas. E outras para ir redigindo, à velocidade de cruzeiro, alguns romances. Certas alturas, vem cheio de luz, lá do seu buraco negro, o avô João Lorde, tira a sua boina, pega na navalha e em pedaços de madeira e põe-se a talhar uma junta de bois e um jugo. Depois olha para mim e sorri. Eu olho na sua direção com olhos piscos. Não choro. O João Augusto não chora. Era o que mais faltava. Um homem não chora. Não é avó? Um homem não chora. Um homem não…. Isso é fácil de dizer.

João Madureira

 

 

17
Fev25

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718 - Pérolas e Diamantes: E aqui estou

 

E aqui estou, perto de um lago extenso e azul, que vai mudando de cor conforme a hora do dia e a inclinação da luz, das nuvens e da orientação de quem o observa. Se olharmos mais para longe, perdemos a vista entre as montanhas. Se o fizermos da janela de casa, na direção da aldeia, vemos telhados vermelhos, árvores altas, jardins e alguma estatuária. Estou cheio de expectativas. Mas não sei de quê. Tento pensar nalguma coisa profunda, tipo amor, liberdade, inteligência artificial, aventura, mas, infelizmente, as palavras que me ocorrem parecem-me um pouco cómicas. Dizem que viajar é verdadeiramente enriquecedor. E até comovedor. Mas, a maioria das vezes, quando o faço, desiludo-me. Provavelmente não fui feito para isso. Incomoda-me a multidão de turistas, as línguas que eles falam, especialmente o alemão, e, sobretudo, os vendedores de bugigangas. Inquietam-me as casas velhas delimitando as ruas retorcidas, as canoas dos pescadores, as estátuas sujas pelas pombas, os palácios e as catedrais cheias de túmulos de homens famosos e os turistas a tirarem fotografias a tudo o que os envolve. Quase sempre regresso a casa desiludido, lembrando-me do pôr-do-sol e dos murmúrios de alegria que escutei pelas ruas. É uma espécie de alegria programada. E então que dizer dos piqueniques, da música dos acordeões que tocam melodias saloias e dos pares a dançar como se estivessem em cima de brasas! As praias ainda me incomodam mais, primeiro porque não sei nadar, depois pelo creme solar que tenho de esfregar na pele, e ainda pela água fria, pelas ondas ou pela falta delas, pela areia, pelo vento. E então que  dizer da neblina, do nevoeiro, do sol, da chuva e das alterações climáticas. E a vida a escapar-nos por entre os dedos. Depois regressa o sol, o vento ergue-se forte, as ondas embalam os barcos e a ondulação torna-se feroz. Fico então com visões assustadoras, afogamentos, barcos a naufragar e eu a afundar-me lentamente, pois não consigo chegar à superfície. Depois o vento amaina e as vagas diminuem. Para me acalmar, resolvo ir comer um jantar revigorante, num restaurante caro. Há dias em que tento dormir uma sesta, mas acabo por me desiludir, de novo, porque acordo sempre maldisposto. E tusso. E espirro. Depois vou até à praia e lá estão os magricelas e as gordas a tomarem banhos-de-sol. Ao voltar, é impossível evitar as habituais bancas empilhadas de bugigangas. E os grupos de turistas japoneses que seguem um guia com um pequeno estandarte em riste. Sempre a imitarem respeitosamente os passos do cicerone, que fala sempre inglês. Um dia fui atrás dum grupo desses visitar um velho palácio de que toda a gente fala bem. Fizemos a visita em passada rápida, atravessámos longos corredores, paredes tapadas por velhas tapeçarias de um mau-gosto muito rebuscado, espelhos deveras elaborados, salões enormes cheios de mobiliário muito antigo, livros do tempo dos apóstolos, quadros retratando a fealdade aristocrática dos velhos proprietários. Nos quartos, as camas estavam cobertas por colchas sumptuosas, prontas a cobrirem os moribundos desesperadamente esperançados de que a extrema-unção os encaminhe para o céu. Nem que fosse o Santo Sudário! Gostei apenas do jardim, onde passeámos por entre laranjeiras e limoeiros, magnólias, oleandros e, soube-o pelo guia, entre a inebriante fragrância floral das camélias, rododendros e rosas estrangeiras de várias cores. Apesar da aparente beleza, experimentei uma sensação desagradável. Encontrei a minha própria mesquinhez. Tornei-me consciente do meu passado e de muitas das suas desvantagens. Sei que posso, por vezes, causar uma boa impressão. Mas. Mas continuo a não ter qualquer receio em encontrar a verdade. Acolho-a sempre de bom grado. Nunca deixo que ela seja um convidado intruso. Os homens são maleáveis. Isso eu sei. Até de cor. O difícil em tudo são as combinações ousadas. Na maioria das vezes não percebemos aquilo que somos. Uma coisa é fazer amigos. Mas isso é mais fácil quando somos novos. Agora o melhor é mitigar os inimigos. A boa escrita não surge por causa da qualidade do papel onde se escreve. Mas a má está sempre cheia de artifícios e enganos. E aqui estou, perto de um extenso lago azul…

João Madureira

 

 

10
Fev25

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717 - Pérolas e Diamantes: Os bombeiros de cima e os de baixo

 

Uma noite destas acordei sarapantado porque estava a sonhar (em forma de pesadelo) que havia fogo cá em casa. Eu, este vosso amigo, ainda de olhos remelosos, fui atacado pela dúvida metódica. Ou seja, se devia chamar os bombeiros devotos do rito do punho direito erguido ou os que são zelosos dos dois dedos esticados em V. Uns, segundo a tradição, são conhecidos como os Bombeiros de Baixo e outros são identificados como os Bombeiros de Cima. Eu, como sou agnóstico, não sabia bem para onde me devia virar. Ou a quem apelar. Ou para onde telefonar. Além disso, como tenho amigos nas duas corporações, fui invadido pela dúvida metódica, do tipo: se peço a uns, os outros acham que milito nos do punho; se solicito os serviços ponderosos dos outros, os tais que levantam os dedos indicador e o médio, também conhecido entre a criançada como o dedo do meio, quando vão assistir à missa das práticas eleiçoeiras, logo irão cochichar que me deixei subalugar por um qualquer irmão de aventalinho liliputiano regular. E daí, dessa suposição aleivosa, nem os seguidores de D. Nuno me conseguirão libertar. Enquanto os do punho insinuam e os dos dedos esticados comemoram, entre sorrisos, bifanas, croquetes e copos de vinho branco de pressão, alguém, a meu mando, assiste a uma indistinta tertúlia invasiva e procrastinadora, bem ao estilo de um qualquer Richelieu administrador dos escuteiros. E vem de lá bem comido e bem bebido, mas sem informação que valha a pena. Eu, já um pouco dividido, não sei se deva rezar ao São Caetano ou à Senhora da Aparecida. Na verdade, agora também vou com os da feira e venho com os do mercado. O melhor, mesmo, é rezar a São Floriano, o padroeiro dos bombeiros. Mas será que ele protege tantos os apaniguados do punho como os dos dedos estendidos em V? Se assim for, a divisão pode trazer-lhe alguns imbróglios argumentativos. Tanta santidade para coisa nenhuma. O problema vai ser quando os rabos de palha pegarem fogo. Nas paredes dos quartéis veem-se as fotos dos comandantes e dos presidentes, todos bem-postos. Alguns assemelham-se, de tão cândidos, a peixinhos apanhados no anzol. Temos de reconhecer que uns parece que sorriem por estarem em tão boa companhia. E os outros também. A verdade é que os quartéis de bombeiros são, atualmente, uma espécie de observatório. Todos sabemos que as estruturas dirigentes são recomendações umas das outras.  Os risos de outros e de uns aproximam-se ou afastam-se conforme as conveniências. Se sim, sim. Se não, sopas. Reparo agora que numa mão tenho um cesto cheio de gladíolos e na outra um repleto de margaridas. Mas estou atrapalhado pois se pouco percebo de bombeiros, sobretudo das suas diferenças, ainda menos atino com os protocolos, com as conveniências e com as intervenções territoriais confiadas a cada corporação. Afinal, como distribuí-las sem ofender as suas inclinações mais profundas? As escolas que frequentaram até podem ter sido idênticas, ou até as mesmas. Mas os rituais são diferentes. O objetivo é o poder. Sempre. Sempre o poder. O poder, sempre. E a qualquer preço. Que é um preço alto. Mas apenas ao alcance de quem possui os devidos sestércios partidários. Roma não paga a traidores. E saldos só nas grandes superfícies. Mas cada um possui a sua escada Margirus. A cada um o seu poleiro. E onde há galo não canta galinha. E onde há galinha não canta frango. Depois vejo e revejo o resumo das histórias e vai tudo dar ao mesmo. Objetivo. Uma coisa tenho que reconhecer, estes novos chefes dos bombeiros estão cada vez mais aprazíveis, mais elegantes, mais risonhos, mais enfarpelados. De fato azul, a sorrir e a falar, não há quem os distinga. Tudo neles parece maravilhoso. O sorriso, a mão direita colocada sobre o lado esquerdo, onde presumivelmente estão os seus corações, quando escutam e entoam o Hino Nacional. A verdade, verdadinha, é que tenho todas as razões para estar tranquilo. Tem chovido muito. E eu continuo a vê-los sorrir, sempre satisfeitos e com o olhar em movimento. Apesar de serem duas corporações, com a duplicação de chefias e outras coisas que tais, uma única ideia me tranquiliza, a de saber que zelam pelo aconchego do nosso lar comum: a nossa querida e heroica cidade. Esta espécie de pesadelo, em forma de sonho, ou vice-versa, é como um conto de fadas. Apenas arrisca acabar bem. Tudo pode parecer imobilizado, mas basta um pequeno toque da varinha mágica da fada-madrinha e toda a máquina se põe em movimento.

João Madureira

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