Quem conta um ponto...

752 - Pérolas e Diamantes: Tudo é memória
Foi sempre um invejoso. O escritor. Sempre a repetir-se. A trocar as mãos. Sempre a ver-se ao espelho. Julga-se mestre, mas é apenas um epígono do autor do Sound and Fury. Pobre coitado, é maneta e nunca o soube. Acha que até mudou a arte do romance. Coitado dele. E do Steiner. Coitado do Steiner a fazer fretes a escritores repetitivos. O homem que se julga um escritor genial diz que escreve com as duas mãos, com a direita romances foleiros e com a esquerda crónicas para intelectuais de bairro. Todos eles acham que Tony Carreira e Quim Barreiros são artistas populares de qualidade. Já ao escritor consideram-no pretensioso e detestam-no porque não são capazes de ler os seus livros e muito menos de lhes perceber o sentido. Ele escreve ao pai. E o pai também lhe escreve, palavras de circunstância. O pai. O meu pai (adotivo). O pai foi-se fazendo. Foi-se idealizando. Fala quando sabe e pode. Cala-se quando deve. Tudo é imaginação. Tudo é memória. Deus. O Inferno. O Céu. Os anjos. Os Santos. Os duendes. Leonardo da Vinci. Velázquez. Goya. Miguel Ângelo. Bach. Miles Davis. Zeca Afonso. José Mário Branco. António Variações. E depois o pai a enrolar-se em desculpas como se fosse o mesmíssimo Romeu sem ter feito o luto da Julieta, como se fosse um mendigo das letras e dos suspiros e dos ais. A entrar no inverno em pânico. A ofender-se. A zangar-se. A não reconhecer os vizinhos. A interessar-se por bonecas russas, a achar bonita a sofreguidão. Assim de repente, como se fosse um bombeiro sem machado e sem mangueira a querer combater o fogo. O pai a despir a felicidade imaginada e a vestir o seu pijama com temas dos quadros de Nadir Afonso. O pai no jardim a amparar-se nas árvores, a tropeçar nos degraus da casa, a rir-se sem saber de quê. A abanar as paredes. Ou a tentar segurá-las como se fosse o Super-Homem no meio de um terramoto potente. A rezar sem palavras. Quanto mais se perde, mais há a perder. Não é, pai? Tudo perde importância. E o pai a batalhar contra a falta de ar. Agora passa horas infinitas a observar os pássaros a armarem ninho e a voarem como se estivessem loucos. E a olhar para as oliveiras e para as chaminés fumegantes. E a limpar os óculos. E a picar-se para vigiar a diabetes. E a queixar-se do reumatismo. E a limpar o pó aos bustos dos grandes compositores de música clássica. E a falar baixinho com eles. E a assobiar partes da sua música. E a falar contra os ministros e os presidentes que se entretêm a condecorar bombeiros e a confortar ceguinhos, aleijadinhos e sem abrigo para a televisão e para as fotografias dos jornais, enquanto a população bate palmas e ri como os alarves. E a assustar-se com as palavras que mais amava. E a ouvir os pinheiros. E a ver fotografias de juventude como se fossem cromos da bola. A observar pormenores. A abrir e a fechar devagarinho os livros que tira das prateleiras. O pai a cheirar a velho e a rabiscar folhas do seu caderno. A pensar nas pequenas coisas que agora lhe parecem grandes e cheias de importância. Gosta, penso que gosta, de se sentar no pátio a contar flores da magnólia, a escutar os pardais e a ver as pombas a rodar no ar. Sinto que ele sente o meu desconforto, por isso me diz insistentemente que esta é a minha casa. O que não é verdade. Ainda não perdeu a mania de colecionar antiguidades. Diz que foi com elas que aprendeu a noção de beleza. Este pássaro perdido já não encontra o seu bando, se é que algum dia o teve. E a noite a voltar e a andar às voltas e a pousar e o pai a olhar para ela. Afinal, já se conhecem de há muito. Por vezes a noite vem dentro de outra noite e o pai fica confuso e atrapalhado. Depois o tempo começa a fugir-lhe e ele adormece. Uma coisa é a dor e outra o sofrimento. Para a primeira tomam-se medicamentos. Para o sofrimento, a terapia são as palavras, os placebos da alma. Nós passamos de coisas pequenas a coisas íntimas e depois desaparecemos. Os cães fazem barulho pela noite fora. Uns a ladrar aos outros. Ando triste de tristeza funda. O pai cada dia fecha a sua porta de entrada com mais força. Diz que sente a noite a desprender-se das paredes da casa e a vaguear por ela como se fosse sua proprietária. “Mas a casa é tua”, gosta de repetir o que disse há pouco.
João Madureira



