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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

16
Set24

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698 - Pérolas e Diamantes: A direção correta

 

Os burros da democracia são pequenos. Os burros do fascismo eram grandes. Bem vistas as coisas, nem sequer os historiadores percebem bem a História. Nem as histórias. Os burros pequenos são bons de substituir. Já os grandes eram outra coisa. Morriam vitimados pela fome urgente. Tudo era tão lento antigamente! As horas infinitas. As segundas-feiras cheias de urtigas. A tristeza perpétua. A esperança inexistente. A pátria a chamar por nós. Ultramar. Mentiras e derrotas transformadas em vitórias e verdades. Nós sempre os peões do xadrez. O silêncio. O amor e o silêncio. O amor. O silêncio. O silêncio. O silêncio. O ultramar. Nós na escola a afagar mentiras. E a suportar as reguadas do professor. E a rezar orações para que a palmatória do verdugo de crianças se quebrasse e lhe batesse na testa para o fazer chorar. Ou arrepender-se. Por vezes o passado irrompe pelo presente e provoca calafrios. Tanta coisa começou a correr para tropeçar e cair a meio do caminho. Faz parte da história. Continua a ser triste ver homens a vender passarinhos engaiolados. Ou lembrar beatas a espanarem o pó aos santos. Ou a recordar o som cavo do vómito dos bêbados ao saírem das tabernas. Ou a rememorar a ida às hóstias para o padre Zé e a recompensa de ficar com as sobras do pão ázimo. Ou as manhãs de domingo a ler os livros de banda-desenhada do Mandrake, do Flash Gordon, do Cisco Kid, do Luís Euripo e do Príncipe Valente. Ou os mergulhos de mar na colónia de férias. Ou as cabeçadas dos robertos nas feiras. Não sei se me consigo salvar no meio deste turbilhão de memórias. Há gente que diz escrever crónicas. E escreve-as, de facto. A ser assim, porque assim é, eu escrevo outra coisa. Situações, intrigas e pretextos de superfície ficam para os sábios, que são os sabidolas de sempre. É duro andar atrás da verdade e encontrar a mentira. É ainda mais duro investigar a mentira e encontrar a verdade. Nada é aquilo que parece. Olhamos para o interior e vamos perdendo o sentido. Consomem-nos os anjos e os demónios, as leituras, as abordagens e a solidão. E os mal-entendidos e os despojos dos dias. E as narrativas sem factos. E os factos sem narrativas. Em verdade, em verdade vos digo, o bem não é feito de círculos concêntricos. Eu procuro, como muitos outros, o sentido da vida, mas nesse descaminho apenas encontro os Monty Python a escreverem as piadas mais sinistras e inteligentes do mundo. Always look on the bright side of life. Na volta cá os espero. Todos almas do Purgatório a aquecerem-se nas labaredas das palavras e nas imagens do catecismo. A piedade é toda gasta em churrasco e minis. Mas, verdade seja dita, cada um de nós oculta dentro do seu peito um coração sensível. A verdade é que no Purgatório apenas se apanham queimaduras de segundo grau. Ou seja, dá para aguentar. O vento traz da serra o cheiro enjoativo das mimosas. Não sei que horas são neste mundo onde elas estão por todo o lado. O tempo antigamente ficava lá longe. Agora está aqui perto de nós. À espera. E nós à espera dele. E ele à espera. De nós. Não há como fugir-lhe. Jesus tinha razão quando avisava, no Evangelho de São João : “Não entendeis o que eu digo porque não entendeis o que eu penso.” Uns morrem de juventude e os outros de velhice. Isto continua a não fazer sentido. Dizem que o furor poético nasce da desordem. Isto continua a não fazer sentido. Metáforas indiretas são agora a minha fonte de alimentação. Provavelmente, não se desce de uma cruz vivo. Essa é a minha certeza religiosa. Saint-Exupéry dizia que é preciso gostar das pessoas sem o mostrar. E eu a tropeçar neste entendimento, nessa ternura vigilante. A revolução faz-se por dentro. Será que os anjos usam óculos? Alguém voa por cima dos pesadelos. E eu a beijar o orvalho. À espera. A embrulhar um sorriso como se fosse um pastel de Chaves. A inclinar-me para trás por causa da dor nas costas. A cruzar as pernas em sentido contrário. A esconder a aflição debaixo da ironia e a discutir a ilusão da literatura. A vigiar o desleixo. As palavras não consolam. Os anjos, além de míopes, ficaram obesos. Nos sonhos de criança não cabiam as angústias da prosa. A direção correta é uma coisa invisível.

João Madureira

 

 

 

09
Set24

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697 - Pérolas e Diamantes: Urtigas

 

Por aí andam espalhados os servis que não possuem qualidades, apenas pretensões. Há também os eremitas que, mesmo estando presentes, estão ausentes. O orgulho tem os seus inconvenientes. Todos o sabemos. Ainda continuo a ter uma arreigada fé nos velhos relatos. Por vezes prefiro ignorá-los para não me preocupar ainda mais com aquilo que não merece preocupação. O entusiasmo já enfraqueceu. Mas. Mas, por vezes, experimento uma estranha vontade de rir. Outras, as lágrimas afloram em meus olhos. Foram os desgraçados dos livros que fizeram de mim um romântico. E um sonhador. Nada disso me favoreceu. O desenvolvimento da inteligência e da cultura tem sempre consequências imprevisíveis. E nada despiciendas. As ilusões magoam. Sei-o agora. Mas. Mas mais vale tarde do que nunca. O tempo não está bom para passeios. Nem para devaneios. Dizem que a franqueza faz honra. É tudo treta. Por vezes ainda se ouvem os ecos da flauta tocada pelo flautista de Hamelin. Nós tardamos a esquecer aquilo que nos causa embaraço. Os ratos de agora não se apanham com trigo roxo. São filhos do autoproclamado homem santo, Rasputine, que vomitou o veneno que lhe ministraram por causa de uma úlcera crónica. A literatura faz-me confundir realidade e sonho. A confusão tomou conta das minhas memórias. A leitura do catecismo. A luta diária. A mudança das estações. As manhãs geladas. A campainha da escola. As noites escuras e frias. A sala de aula. As tardes vagamente iluminadas e mal aquecidas. As fatias de pão com manteiga. Os livros dobrados no cantinho da margem. As ardósias estaladas. As reguadas. Os cadernos molhados de lágrimas. Os cortes de cabelo à pela-porcos. Os domingos chuvosos. O toucinho grelhado no espeto. As férias grandes. Os banhos no rio. Os primeiros namoricos. Pausa. O cavalo indolente do tempo parte mais uma vez com o seu passo acostumado. O que é, para mim, grande motivo de reflexão. As mãos do tempo que pegam nas correias do cavalo são agora mais magras e brancas, parecem até transparentes. Olho para o lume e penso que o fogo também se extingue. A mãe e o pai já se foram há muito. Desse borralho já não surge calor, apenas um pouco de luz estelar. Vamos lá então remover as brasas, espevitar as velas e tomar o chá, com um pouco de aguardente velha. O velho sentimento familiar penetra na casa, como se fosse um sopro de ar frio. Aproximo-me das memórias com passinhos de lã. Permanece o mesmo ar frio e a luz a extinguir-se. Lembro-me de ouvir, sozinho, o relógio da igreja bater as horas de inverno. Sentado no quarto. Triste. Triste o quarto. Triste eu. Tristes as horas. Triste o sino. Triste o livro sobre o qual eu estava debruçado. Tristes as memórias do recreio da escola quando a respiração dos rapazes se transformava em vapor e subia no ar. E eles a soprarem nos dedos para atenuar o frio. E a baterem com os pés na terra para aquecerem os pés. E eu, de olhar vazio, a espreitar para as memórias, sem as poder encarar de frente. Brilha agora o vazio. Tenho um certo medo de acordar os mortos. Ou melhor, as suas memórias. Lembro-me das palavras duras dos adultos a equivalerem-se a pancadas. Algumas memórias dançam comigo ao crepúsculo. Ativo o lume, mas o humor não melhora. As ausências já são mais do que muitas. Algumas memórias riem-se sem olharem a meios. Outras choram. Outras fazem de mim um vincelho. O vento varre o plaino, exatamente como outrora. Agita as folhas. Ajuda as aves a voar mais lá para o alto. Pausa. O avô costumava, nessa altura, contar uma ou duas histórias bizarras e desorientadas. Sem moral. Lembro-me que o tio João se costumava rir aos solavancos. E a avó se refugiava num azedume passageiro. Há sempre dificuldades em penetrar nos dédalos da moderna Babilónia. Há os que bebem. E existem os que se babam. A efusão de confiança é uma coisa bonita de se ver. Nem sempre o caminho mais curto é o melhor. Estou comovido. Quase tanto como quando tive de me separar do meu cavalo de pau. Passei a andar a pé e a brincar sentado no escano. A paz dos domingos reinava até à madrugada de segunda-feira. A paz das manhãs domingueiras eram quase santas. Saíam cânticos das igrejas. Os fiéis primeiro iam inquietos e depois regressavam irrequietos. Nisso residia toda a diferença. Depois seguia-se o almoço e uma tarde pasmacenta. E logo após vinha o dia seguinte. Segunda-feira era como caminhar num campo de urtigas.

João Madureira

 

02
Set24

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696 - Pérolas e Diamantes: Tiagos e serafins...

 

Para o bem todos os cuidados são poucos. Pois quase sempre se tem de romper por ele dentro, quer chova ou faça sol. Além disso é necessário ter fé. Senão ninguém aguenta isto. E ter instinto de sobrevivência, também. Quando soa a hora há que sair da cama. E pouco importa que chiem os carros e ladrem os cães. Cantam os galos para aí duas vezes e meia e o tranglomango põe-se de viagem e atravessa as poldras para cortar caminho. A voz da negação ficou rouca. Pedro ficou afónico senão, além de Jesus, também negaria Tomé e os dois Tiagos e João e Filipe e André e Bartolomeu e Mateus e Tadeu e Simão e Judas Escariote. Agora já não há contrabando, nem contrabandistas. Apenas existem comerciantes e homens de negócios. Só rumores e açudes de conveniência. Debaixo das pedras apenas sobrevivem lacraus e grilos brancos. Depois do roubo, há que esconder o seu fruto bem escondido. Mas os ladrões de agora já nem isso fazem com préstimo e enfiam-no em livros. Andam todos à coca. E relincham os burros porque querem ser compreendidos pelos cavalos. E zurram os cavalos porque pretendem ser entendidos pelos burros. E desentendem-se os homens. E o Demo a rir-se dos parvos, que somos nós todos. E os pobres a lazarar, pois, dizem as estatísticas, apenas no pequeno retângulo luso, são para aí mais de um milhão. Afinal, o sol da democracia, mesmo quando nasce, não é para todos. Para eles há mais eclipses do que os estudados. Há muito cuco a cantar pelos pinheirais. A consumição leva-lhes anos de vida. O problema é se não houver mão benigna que os contenha. Há cerca de cinquenta anos que lhes andam a dizer para terem paciência que de perto se vai ao longe. E eles sem saírem do lugar, sempre a andar à roda como o burro na nora. Com tanta cantoria, parece que estamos na aldeia nos tempos da velha senhora. Canta o galo, cantam as pegas, as melras e depois os rouxinóis. Seguem-se as rolas, o cuco e a poupa. Cantam os senhores abades o tantum ergo e chiam os eixos dos carros de bois. Vergam-se os homens e as mulheres na grande comédia da sujeição. E as vacas a ruminar e o vento a soprar e o sol atrás das nuvens a fazer-se de engraçado. E o Menino Deus lá na igreja à espera que o deitem nas palhinhas porque o Natal lá virá no dia certo. As grandes vacas benzia-as Deus Pai. As enfezadas tinham sido sopradas pelo Demónio. Os doutores possuíam muitas, mas poucos eram os que sabiam jungui-las. Tropicavam pelas lajes dos caminhos os tamancos ferrados, a caminho da feira. Em tempo firme costumava soprar o vento-cieiro, que varria as várzeas e levava, ou trazia, o som dos sinos. Era o tempo em que os garotos despertavam cedo das suas enxergas com a pila arrebitada por causa da bexiga cheia e a iam despejar fora de portas, ou vertiam águas mesmo da própria soleira. Havia muito remediado que era amigo de acudir a um pobre numa precisão. Um rico nunca o fazia. Havia mais pecadores que pecados. E todos os anos se dava uma epifania de Reis Magos, tontinhos todos três, atrás do ramo do cometa. Eram tempos em que as doceiras iam com cestas à cabeça para as feiras, os camponeses conduziam novilhos à corda e as mulheres mais afoitas seguiam por esses caminhos fora sentadas em burrinhas passeiras. Havia papagaios que arremedavam o cacarejo de galinhas poedeiras e homens que arremedavam os papagaios brejeiros. E as mulheres engravidavam muitas vezes e nem sempre dentro do casal. Havia muitos faunos à solta por esses bosques fora. Erguiam-se procissões por essas freguesias adiante cumprindo com votos antigos. Alçava-se cruz por tudo o que era outeiro. Os andores tinham andadas, umas sobre as outras, como se fossem torres. Muitas vezes era necessário esgalhar as árvores dos caminhos para eles passarem. E, em dias de festa, os serafins lá do céu, dançavam ao som da tocata dos clarinetes e dos pífaros. Em dias de romaria comia-se e bebia-se à tripa forra. Lá para o fim do arraial era certo e sabido que os da banda de cá, já bem bebidos, pegavam nos seus varapaus e iam pegar-se com os da banda de lá e acabava tudo à porra e à massa, como era tradição. Muitas vezes, era necessário ir buscar o médico que ficava a pernoitar na casa do padre para o que desse e viesse. Ainda me lembro da última vez que fomos com o meu pai à festa da Torre de Ervededo. Ele disse de forma premonitória: “Vinde à procissão que lá vai a sair. Vinde que pró ano já cá não estou.” A minha mãe balbuciou: “Olha lá saem os andores…”, enquanto lágrimas grossas lhe corriam pelo rosto.

João Madureira

26
Ago24

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695 - Pérolas e Diamantes: Está na hora de...

 

Lembro-me de chorar baba e ranho no Café Terra Fria, em Montalegre, vendo o filme “Amor de Perdição”, de António Lopes Ribeiro, sobretudo no momento em que o cadáver de Simão Botelho é lançado à água e a infeliz e mal-amada Mariana o segue em mergulho suicida. Era o tempo em que se dizia serem as crianças o futuro da nação, mas mal chegavam a rapazes eram enfiados em quartéis e enviados para a guerra colonial defender a fé e o império. O que era mentira. A fé era uma treta vingativa e o império uma mentira andrajosa e espúria. Mas este pobre país viveu sempre envolto nas nuvens baixas de um nevoeiro sebastiânico coxo e enfezado. Lembro-me também de sentir o mesmo tipo de tristeza quando vi o filme “O Último dos Moicanos”, precisamente quando o infeliz índio de cabeça rapada e com poupa é morto por golpe de arma traiçoeira. Até a voz me tremia quando falava dessas aventuras cinematográficas com os meus amigos ou colegas. Era eu um rapaz frágil, em todos os sentidos. Possuía então a delirante mania do cinema. O que me levou a realizar algumas curtas-metragens em super8, inspirado por gente que frequentava a tertúlia intelectual do Vinte e Um, instalado num sótão do nosso pequeno Hotel Chelsea.

 

Por vezes vou até à minha aldeia. Passo pelo planalto, pelos prados e pelos baldios. Faço isso principalmente quando tudo começa a verdejar leve e timidamente. Paro por vezes, à beira da estrada, junto aos caminhos e ponho-me a reparar nas jovens urtigas pequenas e ainda delicadas, cujas pontas já se deixam ver à flor da terra. Ponho-me então a imaginar que dali a dois meses se vão transformar em plantas rígidas, altivas e ameaçadoras. Algumas pessoas são assim. Penso.

 

Penso então na cidade, nos canteiros dos jardins alinhados e geométricos. E nos relvados sujos com dejetos de cão. As pessoas parecem atordoadas. Põem-se em fila no multibanco para levantarem dinheiro, para irem comprar raspadinhas e hambúrgueres. Ou deslocam-se até aos Centros de Saúde marcar consulta. Ou dirigirem-se aos cemitérios para trocar as flores de plástico de inverno pelos narcisos, crisântemos e gerberas da primavera, naturais. A azáfama humana comove-me e perturba-me. Somos tão frágeis e transitórios. Tão expostos à destruição. A primavera da vida é um curto interlúdio entre o nascimento e a morte. Vivemos sitiados. Nos nossos corpos avança imparável a decomposição. Partem os nossos entes queridos e a sua memória esvanece-se como murmúrios até nada ficar. As recordações mais valiosas esfumam-se.

 

Por vezes visito museus. Parecem casas assombradas.

 

Questiono-me com frequência porque razão gostamos de certas pessoas e não de outras. Provavelmente o objetivo da evolução é uma questão estética e nada tem a ver com adaptações. Quero crer que à evolução interessa a beleza. Para isso é necessário alcançar as formas mais perfeitas. Dessa maneira, talvez a vida faça algum sentido. Os pessimistas são necessários para dar razão aos otimistas.

 

Depois, com a intervenção silenciosa do tempo, a beleza começa a dissipar-se sob uma rede de rugas e sulcos.

 

E por aqui andamos, soturnos e resignados, a reparar na amargura dos outros, a fingir entusiasmo, a esquecer o futuro e a ver ciscar os pombos nas calçadas. 

 

A inevitável realidade é demasiado devastadora. As coisas boas terminam de repente, enquanto as más continuam. A realidade atual tem fissuras e começa a notar-se-lhe uma brecha. É preciso coragem e paciência para reagir a esta ironia pós-moderna, a este liberalismo da treta, a esta democracia de pechisbeque.

 

A verdade é que os aspersores continuam a jorrar água nos jardins públicos e os cães continuam a defecar na relva verde. Concentro-me no estalido titânico do mecanismo, enquanto os pombos voam baixo, pousam na calçada, debicam as migalhas do chão e ciscam quando lhes apetece.

 

E as pessoas a experimentarem sorrisos.

 

Eu tento permanecer neutro.

 

Eu tento parecer neutro.

 

O melhor é uma pessoa deixar-se ir na corrente.

 

É defeito de fabrico, os escritores estão sempre a ver coisas que lá não estão. As pantomimas causam-me algum desconforto.

 

A luz da tarde ficou bloqueada. Os aspersores voltam a regar o jardim. Os donos continuam a passear os cães. Os cães voltam a defecar na relva. Os pombos voam baixo, pousam, bicam as migalhas e ciscam no empedrado. Está na hora de… voltar.

João Madureira

 

                                

19
Ago24

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694 - Pérolas e Diamantes: Andamos todos fartos e cheios...

 

As heranças são sempre problemáticas. Uma coisa é herdar riqueza e outra é herdar a pobreza. Mas há algo que me continua a intrigar, os pobres são sempre mais generosos que os ricos. Estou em crer que isso faz parte da sua genética. Os pobres gastam aquilo que têm e aquilo que não têm. Já os ricos, pois… cansam-se de bondade. Aos pobres ninguém os leva a sério. Aos ricos, pois… quando chegam a velhos sofrem de Alzheimer para se esquecerem de como enriqueceram. Os pobres vão à feira. Os ricos deslocam-se até ao mercado… de capitais. Os pobres são pessoas. Já os ricos são pessoas… boas.

 

No princípio não havia nada. Era só escuridão. Então chegou Deus e disse que se fizesse luz. E criou a terra e os mares, a erva, as árvores e os seus frutos. E as aves e os peixes. E do barro criou o homem, dizem que à sua imagem e semelhança. E colocou-o no meio de um jardim luxuriante em tons de verde, onde poderia viver feliz até ao final dos seus dias. No Éden, tudo lhe estava destinado. Deus apenas o proibiu de comer da árvore da ciência, do bem e do mal. Dizem, e nós acreditamos, que Adão se sentia só. Então Deus pegou numa das suas costelas e dela moldou Eva. Eva era uma mulher bonita, dentro da sua nudez pura. Eva era a carne da carne do Adão. Mas ele era vegetariano. Apenas pensava em comê-la. Metaforicamente. Apareceu uma serpente que convenceu Eva a desobedecer. Então Eva deitou-se numa cama de fetos e convenceu Adão a deitar-se em cima dela, mas ao contrário, para ver se as peças encaixavam. Alguém interpretou mal o guião divino, por isso Deus tentou novamente encenar a peça. Adão montou Eva de novo e Deus enfureceu-se a valer. Só Eva podia ser a culpada de tudo aquilo. Possuía, ou era possuída, pelo pecado, que tinha a forma de um buraco, e estava situado entre as suas pernas. Condenou-a a parir. E com dor. E a ele a comer o pão ázimo produto do suor do seu rosto. Estava descoberto o pobre. Deus expulsou-o do Jardim das Delícias, pelo portão das traseiras. Então resolveu criar outro Adão, mas não tão primário. Não sabemos lá muito bem o que lhe aconteceu, apenas que saiu pelo portão principal com a missão de procurar o outro Adão e o proteger, dando-lhe trabalho, educação religiosa e um tugúrio onde viver.

 

A verdade é que o livro dos livros não dá resposta a várias perguntas: Porque existem ricos e pobres? Porque existe Deus? Porque existem pecados? O que fazia uma serpente no paraíso? Qual a razão de a mulher ser inferior ao homem? Qual a razão de os homens beberem bagaço e possuírem barba? Por que razão quase todas as canções falam de amor?

 

Começou a nevar. Muitas pessoas já não se lembram de como é nevar. Do silêncio que se instala na cidade.

 

Antigamente tinha-se medo do frio. Tinha-se medo da fome. Tinha-se medo de Deus. Tinha-se medo do Demónio. Tinha-se medo de tudo. Enquanto o fumo vadiava dentro das cozinhas até encontrar respiradouro entre a telha-vã, as pessoas choravam e comiam.

 

A minha avó dizia que os pobres são muito lambareiros.

 

A rapaziada de agora, como dizia o mestre Aquilino, só serve para fanfar. Todos aprendem depressa a arte de dissimular. E até são capazes de rimar.

 

Afinal quem é que responde pelas voltas que o mundo dá? As resistências atuais são feitas de opiniões. E opiniões leva-as o vento. A atmosfera é peganhenta, feita de talvez sim, provavelmente sopas.

 

Andamos todos fartos de sobejos. Sobejam os ordenados, sobejam os empregos, sobeja a educação e a saúde. Sobeja-nos a cultura, pois agora já tudo sabe ler, escrever e contar. Sobejam os nove meses de inverno e os três de inferno. Sobejam as pombas. Sobeja-nos o fastio. E o amor. Sobejam-nos os sorrisos. Sobejam os arrotos a marisco. Sobejam as alvíssaras e os milagres dos enriquecimentos ilícitos. Sobejam-nos heróis do mar. Sobejam-nos ideias. E sobejam também os cogumelos nos montes porque é mais fácil ir comprá-los ao supermercado, já limpinhos e maneirinhos. Sobeja tudo. Nada nos falta. Por isso é que damos o voto tanto a Pedro como a Paulo. As ovelhas continuam a dar lã, o problema é que falta gente que as tosquie. Também nos sobeja a vontade porque não sabemos lá muito bem o que fazer com ela. Tudo se reduz a um problema de vontade. Olá futuro, prepara-te que nós estamos para chegar.

 

Já vamos a caminho.

 

João Madureira

12
Ago24

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693 - Pérolas e Diamantes: A dor

 

Estou longe do mar e cheiro o longo instante das ondas e o frio das suas águas e vejo o terceiro minuto depois da partida e penso que tudo exige atenção e paciência e que é preciso vigiar o voo das gaivotas e a fé e as suas mudanças de cor e depois o ar começa a pousar sobre a areia e o sal a pegar-se à pele e nós a metermos no bolso o dia acabado de passar e a respirar devagarinho enquanto os pinheiros estremecem e as mulheres vocalizam oscilações e uma espécie antiga de vontade de chorar não de tristeza nem de alegria mas de um terceiro sentimento enquanto os velhos jardineiros tiram de dentro das luvas as suas mãos impregnadas de raízes e caules e folhas e flores e nuvens de forma vagarosa enquanto fecham os olhos para não chorarem e abrem a boca como passarinhos para se alimentarem de memórias que as suas mães lhes deixaram dentro da cabeça e assobiam e respiram e orvalham bocas sequiosas enquanto a noite se levanta e os dedos dos jovens desmontam pétalas e constroem paciências e falam entre si enquanto os grilos dentro das gaiolas começam a cantar e a comer-se uns aos outros por falta de espaço e os homens retiram da cabeça os chapéus como se fossem indignos de felicidade enquanto escutam sons murchos e então eu finjo acanhamento e delicadeza e imagino campos semeados de ternura e a Marquinhas da Ajuda a rezar o terço e a embaciar a redoma de vidro onde está a sagrada família feita de barro e a avó a acender os pavios de azeite enquanto chove nas pálpebras do pai que continua a fumar enquanto os cães acendem os seus latidos e os rapazes púberes sonham com nádegas das deusas gregas enquanto as mulheres maduras vão a caminho da missa e o sacristão toca o sino e os perus cantam glu glu glu e o sacristão toca dlão dlão dlão e o pai não diz nem sim nem não louvado seja o senhor e o nosso entusiasmo e o nosso fervor e a nossa admiração por Lázaro a crescerem que depois de ressuscitar logo se vai pentear e pôr brilhantina e eu a colecionar exatidões e declarações proféticas e a fazer crescer e a encolher a imaginação como se estivesse distraído ou à procura de algo que é difícil de encontrar como uma genitália em descanso à beira-mar enquanto os guerreiros fazem intervalos dos seus dramas e os garotos gritam como se tudo fosse ao mesmo tempo precário e divino enquanto os pirilampos mágicos iluminam nossas senhoras de alumínio pintadas à mão e depois começo a gostar de sopa de nabiças e a dizer palavras que consigo colocar entre parêntesis e a reparar nas rugas do pai e da mãe e a encher os bolsos com rebuçados e a dar migalhas de pão ao pintassilgo e a pendurar-me na porta da cozinha para levantar a espinhela ao mando das orações do Birtelo e depois a apalpar o bolso de trás das calças para sentir a fisga pronta para intercetar o voo dos pássaros assustados e o enfermeiro à espera que eu desça as calças para ficar com as nádegas ao léu para ele espetar a agulha da seringa e eu a marcar olhares e a imitar gestos e a lavar os dentes e o pai a fazer a barba com a gilete e a avó a rir-se para as horas infinitas e tudo a crescer depressa e eu a caminhar devagar e o tempo a crescer e o romance a acabar e o amor a ficar cada vez mais carnal e eu a precisar de silêncio e o pobre pai a morrer tão depressa e a sua morte a irromper de súbito pelo meu presente enquanto os acasos se vão formando da soma de várias partículas e a noite a falar comigo e eu a desfazer-me em angústia e a reconhecer cores e cheiros e luz enquanto tudo fala comigo e a casa de banho a encher-se de vapor e pavor tudo traduzido em surpresa e tonturas e lágrimas nos olhos dos pecadores que iluminam as ideias e a mãe a desfalecer e o pai a morrer depressa e a provocar-me dores terríveis no peito e eu a tentar escrever sonetos a Cristo e as rimas a caírem-me das mãos como se fossem chumbo e eu aos encontrões à tristeza e a enfiar nos bolsos rotos as catástrofes e as desgraças e o avô a dar pontapés no oratório e eu a riscar as palavras do catecismo enquanto a dimensão religiosa se vai perdendo como as notas produzidas pelas teclas de um piano enquanto a vida vai ficando cada vez mais cheia de uma ternura insuportável e repleta de páginas e páginas de espelhos que nada refletem e o meu olhar a voar sobre o mistério das coisas e o olhar a encravar e a encravar e a… que dor insupor… tá… vel…

 

João Madureira

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

05
Ago24

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Portanto... seguido de Epístola (reservas)

 

Portanto...

Hoje acordei tarde. Mas não era isso que eu tinha programado. Por isso estou um pouco chateado. Eu chateio-me por tudo e por nada. Tenho de reconhecer. Mas também gosto de cumprir com aquilo que programo. E se eu programei acordar hoje cedo tinha de acordar cedo. Só que acordei tarde. Não foi muito mais tarde do que aquilo que tinha programado, mas foi mais tarde e isso é que me está a incomodar. É que eu se programo uma coisa gosto de a cumprir à risca. Mesmo que isso pouco afete a minha vida diária. Não gosto de me desleixar, nem nos horários. A culpa não foi do despertador, que é coisa que eu não uso. A culpa é minha. Eu se programo acordar a uma determinada hora, acordo a essa hora e mais nada. Eu sou assim. O que programo gosto de cumprir. E se eu programei acordar cedo, tinha de acordar cedo. E acordei tarde. Por isso estou chateado. Eu também me chateio por tudo e por nada. Mas como sou assim, não tenho desculpa. Não é que eu goste de me chatear. Acho mesmo que ninguém gosta. Mas aquilo que tem de ser tem muita força. E aquilo que uma pessoa decide tem também de ter muita força. Portanto, se eu programei acordar cedo tinha de acordar cedo. E mais nada. Podem pensar que sou uma pessoa obcecada, mas pouco me importa. O que eu gosto é de cumprir com aquilo que programo. Eu devo obediência aos meus princípios. Para mim os princípios são tudo. É como a moral. Ou há moralidade ou comem todos. Pois bem, se cada um cumprir com aquilo que determina a mais não é obrigado. E isso é muito importante numa sociedade. Especialmente se ela for desenvolvida e democrática. Ou democrática e desenvolvida, que é o mesmo mas com as palavras trocadas. Trocar as palavras também é muito democrático e até se pode considerar um sintoma de desenvolvimento. Por isso Portugal é um país tão desenvolvido. Fora de brincadeiras. Os portugueses gostam muito de trocar as palavras. Gostam até de trocar a palavra. Palavras leva-as o vento, mas a palavra só a leva o dinheiro. O dinheiro é sagrado. Bem assim como a palavra dada. Só que se for dada também pode ser arregaçada. Mas palavra arregaçada é chão que já deu uvas. Agora já ninguém dá uvas. Só os bons dias. E isso se o passeante estiver de bom humor. Está cara a palavra. É como a gasolina. Mas a gasolina serve para fazer andar os carros e as palavras não fazem andar nada. Pelo menos à primeira vista. Porque até há palavras que fazem andar, especialmente os animais. Bem, não são bem palavras, são a modos que onomatopeias. As onomatopeias são engraçadas. Eu gosto muito de onomatopeias e de outras coisas. Gosto de andar de comboio. Gosto de acordar cedo quando programo acordar cedo. E mais vale cedo que tarde. E mais vale tarde que nunca. E gosto de cumprir com a palavra dada. Mas é vício, porque agora já ninguém cumpre nada. E também para que serve cumprir com a palavra dada. Palavras leva-as o vento e o vento nada me traz, o vento é pensamento e voa com ele próprio. Isto quando há vento, porque se não houver vento as palavras ficam no mesmo lugar e o pensamento fica a modos que congestionado como o trânsito nas entradas das grandes cidades. O problema do trânsito nas estradas das grandes cidades é uma coisa muito séria. Por vezes apetece-me rir quando oiço essa informação na rádio. E penso: porque raio é que as pessoas só querem ir para as grandes cidades? As cidades grandes são também um assunto muito sério. Muito sério mesmo. Penso até que é um dos assuntos mais sérios que há. Mas a cavalo dado não se olha o dente. E por hoje é tudo.

 

Epístola quinta

Escrevo-te daqui de baixo. Escrevo-te daqui de baixo, das terras de C. esperando que estejas bem. Eu cá estou a gozar os rendimentos com muito entusiasmo e dedicação.


Com mais dedicação que entusiasmo, para ser rigoroso e sincero. Levanto-me logo de manhã cedo, corro junto ao rio, depois tomo banho, volto à rua e sorrio para quem passa. Depois passeio um pouco e vou tomar o pequeno-almoço. Bebo muito leite e muita água e como muita fruta fresca. Também leio os jornais no café ou nos bancos do jardim. A seguir passeio um bocado pelas ruas da cidade e, por vezes, paro para ouvir um pouco da música com que graciosamente nos brindam muitos músicos de Leste que por aqui passam. Cerca da uma da tarde vou almoçar a um restaurante pequenino que mais parece uma gruta. Mas a comida que servem é de boa qualidade. E bem sabes que isso para mim é que é importante. Depois desço mais algumas ruas, subo algumas vielas, percorro alguns recantos, visito alguns bairros e medito junto aos templos.


Posteriormente, vou outra vez até ao café ler revistas científicas. Entretanto bebo mais leite e água, como mais alguma fruta fresca e sorrio para as pessoas que sorriem para mim. É muito frequente parar outra vez para ouvir mais música. Eu sou um rapaz simpático e educado, o que implica que por vezes compre um cêdê para dar de comer a quem toca e dar de beber a quem canta. É esta a minha obrigação. Também observo montras, varandas, janelas, portas, os desenhos dos passeios, os declives dos telhados, o empedrado das ruas da zona velha, os olhares dos gatos e dos velhos que se sentam junto à porta das suas casas para observar quem passa. Têm olhos tristes, os velhos. Olham para mim como quem olha para uma sombra. E isso dói-me muito. Dói-me mesmo muito. À noite, vou jantar a outro restaurante que mais parece o museu da casa da moeda. Tem um ar decadente e um pouco descuidado, mas a comida é boa e, como tu bem sabes, isso para mim é que é importante. Depois passeio mais um bocado junto às margens do rio e fico em paz com o mundo. Por vezes passam por mim pares de namorados sorridentes e eu sorrio também com muita satisfação. Eles quase sempre retribuem o sorriso. E eu torno a sorrir. Em certas alturas volto à rua principal e lá encontro novamente mais músicos a tanger os seus instrumentos. Então paro um pouco e escuto mais uma pequena modinha. Assim a modos que bem-disposto, ou vou para o meu quarto ler algum livro, ou dois, ou três, com intervalos regulares entre eles, ou, então, vou ao cinema, mas quase sempre saio de lá melancólico. Os filmes são de uma qualidade mais que desprezível. Mas eu gosto de ir ao cinema. Para mim é um ritual. Mais do que um filme, o que busco são lembranças e sensações dos meus tempos de cineclubista. Bons tempos. Por hoje é tudo. Um abraço.

João Madureira

PS - Não te esqueças de dar os três porquinhos-da-índia à cascavel (Crolatus durissus).

29
Jul24

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692 - Pérolas e Diamantes: O macaco cego

 

Um povo falhado é um precipício. E por aqui andamos a prestar homenagem às pedras, a escrever versos desavindos, a imaginar guias turísticos das cidades, a reparar nos saramagos e nas verbenas, nas ruas empinadas, nas curvas acentuadas que nos levam aos bairros tristes ou às aldeias abandonadas, a memorizar as noites de luar e o silêncio escuro das noites de inverno, a passear a solidão e as suas melancolias, a admirar estátuas em contraluz, a contemplar a cintilação do seu bronze, a verdura das magnólias e o branco enferrujado das casas, as ameias das muralhas, a direção longínqua do mar e das nuvens azuis que deslizam no céu quando está bom tempo e as tardes coadas, a interrogar almas, a pensar no tempo incalculável da matéria, a debater ideias opostas, a traçar destinos, a ser fiel a ideias infiéis, sempre entre anjos e demónios e a fixarmo-nos nas coisas simples e nas coisas que estão por detrás delas e no amor e na dor e no infinito e na sede que ele provoca e nas ausências e na semelhança entre deuses e nas portas que se abrem e naquelas que se fecham e, depois, quando atingimos o cume da felicidade, tropeçamos na pedra de Sísifo e lá vamos nós de novo colina abaixo ao rebolões. A luta sisífica continua. As ideias por aqui parecem feitas de vapor. E as epifanias continuam a repetir-se. Os raios de sol da tarde aquecem o espaço. Há um certo ar de quietude. Umas pessoas andam a imitar outras pessoas. É como quem joga um jogo. A pantomima define as suas próprias fronteiras. Os macacos japoneses bem nos ensinam, mas ninguém quer aprender. Mizaru não quer ver o mal e cobre os olhos. Kikazaru não quer ouvir o mal, tapa os ouvidos. Iwazaru, que não quer falar mal, veda a boca. Tudo parece turvo e indistinto. O mundo está cheio de excitações vazias. De sentimentos sem significado. Isto tanto dá, porque olhando para trás e para a frente não se vislumbra mais do que um horizonte desnudo. Já não se pode arrepiar caminho. Há sempre os atuantes e os oponentes que vão mudando de posição conforme os ciclos. Muitos mudam até de ideias para não mudarem de sítio. E há outros que mudam de sítio para não mudarem de ideias. Mas são sempre uma minoria. Quando não a minoria da própria minoria. E também há em ambos os grupos os intriguistas, os direitistas, os esquerdistas. E os pecadores. A maioria são redondos, redundantes, sem qualquer utilidade científica. Aviso: isto não é uma embrulhada é um verdadeiro labirinto. E todos sabemos que os labirintos não se fazem a si próprios. E o génio não está ao alcance de todas as consciências. Era o que mais faltava. Uma sociedade desse tipo era a loucura total. A linguagem petulante é sempre cultivada de propósito. É com ela que os medíocres se alimentam. À míngua não morrerão. Mas em verdade vos digo, o mais avisado é não complicar demasiado as coisas, por vezes o melhor mesmo é o desprezo. Quando se vai à guerra, mesmo que seja a civil, o mais sensato é ter esperança no triunfo, mas também levar embrulhado num pano de cozinha o temor da derrota. Não é prudente ignorar a verdade. O mais acertado é falar como os gregos e sonhar como os celtas. O povo aí está para obedecer. Instintivamente. Este glorioso povo que não faz outra coisa na vida a não ser falar e sonhar. Claro que também trabalha, mas isso é nos intervalos entre as nove e as cinco. Claro que existem os factos. Mas os factos, quando se opõem à opinião geral, não falam por si sós. Dizem que os homens são perigosos, mas as mulheres são-no ainda mais. Depois de contemplarmos o amor, o difícil é saber para onde dirigirmos a esperança e entender os sinais: os triângulos, os círculos, as espirais, as retas, os pontos, os arabescos e as fugas. E os montes de Vénus. Mas, para isso, necessário se torna pertencer a uma loja ou seita secreta, pois só aí existe a fonte da descodificação. Para que a vida não seja um disparate, deve-se fugir da realidade, do equilíbrio e da razão, pelas escadas secretas da fantasia. Há sempre uma mentira que consegue contentar toda a gente. E neste país nem é necessário ser-se muito imaginativo. Obviamente que uma pessoa vai vivendo e aprendendo. E depois de tanta aprendizagem e de aturar tanta imbecilidade social, eis que chegámos ao momento exato de, tal como Hugo Pratt, sentirmos o desejo de sermos inúteis. Que desilusão, Corto Maltese! Que desilusão!

João Madureira

22
Jul24

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691 - Pérolas e Diamantes: Houve tempos...

 

Houve tempos em que os cinemas eram como catedrais, imensos auditórios. Com cortinas fechadas sobre os ecrãs próprios para os 70 milímetros. Eram vastos mundos de ilusão, onde as pessoas se podiam refugiar. Os cinemas eram uma nova religião. Capazes de nos modificar, de alterar a nossa perceção. Olhávamos para os ecrãs e partilhávamos momentos de transcendência, ilusões, desilusões. E medos. Eliminávamos alguns medos durante algumas horas. E pensávamos que éramos felizes dentro da nossa infelicidade intermitente. Éramos como voyeures controlados, sentados na escuridão a olhar para sentimentos e existências secretas. A vermos coisas que não devíamos estar a ver. Antes de o filme começar, as luzes iam diminuindo lentamente, ainda que faltassem alguns minutos para a cortina subir. Quando o pano ascendia, o ecrã iluminava-se de repente. Primeiro viam-se trailers, depois notícias do mundo, a seguir desenhos animados e, por último, o filme. A rapaziada, e a gente de menos posses, sentava-se na plateia. Os mais endinheirados iam para a tribuna, que era o balcão da sala, para onde se entrava pelo piso superior. Muitas das vezes saímos do cinema desiludidos, outras consolados, divertidos, ou ainda com vestígio de lágrimas nos olhos. Umas vezes éramos cowboys, outras heróis de Kung Fu. Umas vezes amantes, outras amados. Umas vezes crianças, outras adultos. Umas vezes heróis. Outras vezes vilões. Tornávamo-nos personagens nem sempre agradáveis ou fáceis de controlar. Ao nível dos sentimentos. Nos filmes de ação e nos cómicos ouviam-se frequentemente gritos e risos exagerados. As verdades eram inocentes. Pelo menos era isso que pensávamos. O cinema também era um bom pretexto para beijos rápidos e apalpadelas nas coxas das namoradas. Muitos adolescentes criavam as suas próprias fantasias baseados naquilo que viam no cinema e liam nos livros. O sexo era muito limitado, pois as jovens de então eram muito cautelosas e os jovens pensavam-se agentes secretos. E os contracetivos não estavam logo ali à mão de semear. Tinha que se ir à farmácia. E a terra era pequena e toda a gente se conhecia. E todos gostavam de cochichar. O ambiente era opressivamente conservador e as famílias ostensivamente religiosas. As pessoas jogavam jogos de aparências e faziam questão em manter a discrição. Apesar disso, as raparigas usavam bandoletes na cabeça e minissaias e os rapazes cabelo comprido e calças à boca de sino. Era uma forma de imitar o mundo exterior e de disfarçar a frustração. As fantasias sonhadas, quando pronunciadas, soavam irónicas e falsas. Os nossos sonhos estavam reclinados nas cadeiras das piscinas dos filmes franceses. Quando estávamos em grupo, fazíamos poses como se estivéssemos em frente do fotógrafo na cerimónia da comunhão solene. A sorrir para a câmara. Ninguém queria ficar mal no retrato. Muitos falavam ininterruptamente e todos fumavam. Muitos julgavam-se fabulosos e radicais. Mas eram apenas pose. Pensavam-se bonitos, mas eram apenas aleatórios. O ambiente era claustrofóbico, como se estivéssemos dentro de um armário. A realidade era entediante, mas não havia outra opção. Havia muitos bêbados. Bebia-se mais vinho do que água. Muitos descontrolavam-se, ficavam meio zangados, e outros caíam para o lado ou adormeciam. Os que se julgavam mais radicais, pronunciavam as palavras com muito desdém, perguntando ou respondendo com esgares desdenhosos e exagerados. Gestos súbitos costumavam inflamar-lhes a fúria. Era normal acabar tudo à porrada. Depois aparecia a polícia, as mulheres e os filhos dos que eram casados a gritar e os cães vadios a ladrar. Os mais discretos abriam então as mãos e acenavam como se fossem alienígenas notívagos e punham-se na alheta. As outras narrativas da cidade eram de idêntica idiotice. Também as havia de escárnio e maldizer, a cargo dos diversos poetas do burgo. A realidade doía como ferida aspergida com sal. Claro que havia causas e efeitos, mas as ligações não estavam ao alcance da maioria. Tudo parecia aleatório, irrelevante, enfadonho, triste. E era-o de facto. Uma coisa vos digo, é muito difícil sair deste tipo de realidade ileso. Essa realidade era muito parecida com um filme de Béla Tarr, especialmente de Sátántango. Boa para filmes a preto e branco, mas dolorosa na vida real.

João Madureira

 

 

15
Jul24

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690 - Pérolas e Diamantes: As mentes disponíveis

 

Os factos até podem ser falsos, mas o que interessa é que as convicções sejam autênticas. As falsificações involuntárias não são sujeitas a julgamento. A chegada da primavera tanto pode ser uma boa tristeza como uma triste alegria. Dependendo das terras, das árvores, dos largos e dos jardins. As mentes disponíveis estão sempre dispostas à indignação. Ninguém sabe nada sobre o povo e muito menos o próprio povo. O povo povinho povo gosta de se fazer de artista de rua durante o dia e de ditador à noite, dentro de casa, para a mulher e os filhos saberem quem manda. A realidade é um buraco que o vai consumindo. Sempre à espreita de fantasmas que não lhe dão descanso. Cortaram-lhe as raízes. Já não sabe às quantas anda. Vive de forma apressada, perdendo-se quase sempre dentro do labirinto da sua peregrinação interior. Tem necessidade de se lembrar daquilo que nunca esqueceu. Sempre de lança ao alto nas suas batalhas quiméricas, ao som da música do flautista de Hamelin. Sempre a lavar a alma. No seu cantinho é normal sentir as promessas como ameaças. É normal este povo confundir a santidade dos lugares santos. Parecem-lhe todos iguais. Fátima desde Vila Verde da Raia até Portimão, Funchal e Angra do Heroísmo. O país semeado de pequenos santuários de granito e envidraçados, de um mau gosto notável. Sente-se órfão de uma mãe ausente e de um pai ébrio e peregrino. A ampliar Deus e a reduzir-lhe as virtudes. Carregando cânones, tempos míticos, espíritos, frigoríficos, tradições, sinos, relíquias, crucifixos ao peito, sangue, suor e lágrimas. E desapontamentos. E máquinas de finos. Sempre a escolher o rumo na base da inclinação do caminho. É necessário manter o movimento. A paz costuma aborrecer os exércitos acampados. Nos dias de névoa, o povo povinho povo, mal escuta o toque do sino ruma a sua casa e acende a lareira, ou a braseira, ou o aquecedor a gaz. E come, bebe e dorme. No verão ruma às praias do Algarve porque o turismo cultural o aborrece. Sempre a cair e a levantar-se dos buracos de realidade onde tropeça. Vive entre o assombro e o desassombro. É ciclotímico, existindo entre a depressão e a euforia. Por vezes deita no pão pingos de unto e outros de espanto. O que interessa é que estejam quentes e saibam bem. O que interessa é que o forno coza. O que interessa é acordar com os pezinhos a bulir. E ver fazer as medas de feno e prestar homenagem às alfaias agrícolas que descansam agora nos museus rurais. E ir observar nos hipermercados os patos e as galinhas já mortos e embalados. Tudo bem educado e dentro dos parâmetros democráticos. O livre-arbítrio é uma fantasia de filósofos libertários. Lá onde a beleza das flores perde significado. E o povo povinho povo sempre com o complexo da profecia cristã de o galo cantar três vezes antes de Pedro negar conhecer Jesus. Ou o espantalho perceber que está a tirar comida à passarada. É difícil manter a coesão da nossa realidade. Portugal parece uma salada de frutas feita apenas com pêssego em calda importado de Espanha. Por isso é que a nossa independência nacional é insípida. Está na hora de irmos apanhar míscaros para os montes e prestar homenagem ao Capuchinho Vermelho e à avozinha. E o povo povinho povo, como borboleta ansiosa, a arrojar-se contra as luzes da ribalta. Ou a queimar as asas nas chamas das velas de Fátima. Mas tudo isto é amor. Cheio de piadas inocentes. A discutir os males do mundo com boa-língua. Brindemos então a esta nova técnica. Sempre a calcorrear os caminhos longos, neste país tão curto. A visitar as feiras do fumeiro, os desfiles de caretos e as feiras medievais. E a fazer coleções de canecas. E a armazenar as sobras da alegria que os políticos e os comentaristas espalham nos órgãos de informação às mãos largas. Depois do desfile da brigada ligeira, no dia das cerimónias de distribuição de medalhas de mérito, tem de se ir colocar os círios nos locais adequados. Tudo está garantido neste país à beira-mar plantado. A placidez do amor, a doçura do carinho, a devoção aos anjos, aos santos e à Virgem e o coito interrompido ainda fazem parte da nossa verdadeira identidade.

João Madureira

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