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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

03
Nov25

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752 - Pérolas e Diamantes: Tudo é memória

 

Foi sempre um invejoso. O escritor. Sempre a repetir-se. A trocar as mãos. Sempre a ver-se ao espelho. Julga-se mestre, mas é apenas um epígono do autor do Sound and Fury. Pobre coitado, é maneta e nunca o soube. Acha que até mudou a arte do romance. Coitado dele. E do Steiner. Coitado do Steiner a fazer fretes a escritores repetitivos. O homem que se julga um escritor genial diz que escreve com as duas mãos, com a direita romances foleiros e com a esquerda crónicas para intelectuais de bairro. Todos eles acham que Tony Carreira e Quim Barreiros são artistas populares de qualidade. Já ao escritor consideram-no pretensioso e detestam-no porque não são capazes de ler os seus livros e muito menos de lhes perceber o sentido. Ele escreve ao pai. E o pai também lhe escreve, palavras de circunstância. O pai. O meu pai (adotivo). O pai foi-se fazendo. Foi-se idealizando. Fala quando sabe e pode. Cala-se quando deve. Tudo é imaginação. Tudo é memória. Deus. O Inferno. O Céu. Os anjos. Os Santos. Os duendes. Leonardo da Vinci. Velázquez. Goya. Miguel Ângelo. Bach. Miles Davis. Zeca Afonso. José Mário Branco. António Variações. E depois o pai a enrolar-se em desculpas como se fosse o mesmíssimo Romeu sem ter feito o luto da Julieta, como se fosse um mendigo das letras e dos suspiros e dos ais. A entrar no inverno em pânico. A ofender-se. A zangar-se. A não reconhecer os vizinhos. A interessar-se por bonecas russas, a achar bonita a sofreguidão. Assim de repente, como se fosse um bombeiro sem machado e sem mangueira a querer combater o fogo. O pai a despir a felicidade imaginada e a vestir o seu pijama com temas dos quadros de Nadir Afonso. O pai no jardim a amparar-se nas árvores, a tropeçar nos degraus da casa, a rir-se sem saber de quê. A abanar as paredes. Ou a tentar segurá-las como se fosse o Super-Homem no meio de um terramoto potente. A rezar sem palavras. Quanto mais se perde, mais há a perder. Não é, pai? Tudo perde importância. E o pai a batalhar contra a falta de ar. Agora passa horas infinitas a observar os pássaros a armarem ninho e a voarem como se estivessem loucos. E a olhar para as oliveiras e para as chaminés fumegantes. E a limpar os óculos. E a picar-se para vigiar a diabetes. E a queixar-se do reumatismo. E a limpar o pó aos bustos dos grandes compositores de música clássica. E a falar baixinho com eles. E a assobiar partes da sua música. E a falar contra os ministros e os presidentes que se entretêm a condecorar bombeiros e a confortar ceguinhos, aleijadinhos e sem abrigo para a televisão e para as fotografias dos jornais, enquanto a população bate palmas e ri como os alarves. E a assustar-se com as palavras que mais amava. E a ouvir os pinheiros. E a ver fotografias de juventude como se fossem cromos da bola. A observar pormenores. A abrir e a fechar devagarinho os livros que tira das prateleiras. O pai a cheirar a velho e a rabiscar folhas do seu caderno. A pensar nas pequenas coisas que agora lhe parecem grandes e cheias de importância. Gosta, penso que gosta, de se sentar no pátio a contar flores da magnólia, a escutar os pardais e a ver as pombas a rodar no ar. Sinto que ele sente o meu desconforto, por isso me diz insistentemente que esta é a minha casa. O que não é verdade. Ainda não perdeu a mania de colecionar antiguidades. Diz que foi com elas que aprendeu a noção de beleza. Este pássaro perdido já não encontra o seu bando, se é que algum dia o teve. E a noite a voltar e a andar às voltas e a pousar e o pai a olhar para ela. Afinal, já se conhecem de há muito. Por vezes a noite vem dentro de outra noite e o pai fica confuso e atrapalhado. Depois o tempo começa a fugir-lhe e ele adormece. Uma coisa é a dor e outra o sofrimento. Para a primeira tomam-se medicamentos. Para o sofrimento, a terapia são as palavras, os placebos da alma. Nós passamos de coisas pequenas a coisas íntimas e depois desaparecemos. Os cães fazem barulho pela noite fora. Uns a ladrar aos outros. Ando triste de tristeza funda. O pai cada dia fecha a sua porta de entrada com mais força. Diz que sente a noite a desprender-se das paredes da casa e a vaguear por ela como se fosse sua proprietária. “Mas a casa é tua”, gosta de repetir o que disse há pouco.

João Madureira

27
Out25

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Motivos, crenças e descrenças poéticas ou coisa parecida

 

O que não tem justificação, justificado está. Este texto, propositadamente inconclusivo, até podia ir por aí, mas não vai. São insondáveis os caminhos do Senhor, dizem. Mas não é este o caso. O Poema Infinito vive da variação irónica e inventada do seu nome. Há acasos assim, pois é infinito enquanto eu for vivo. Tanto quanto sei, o seu mistério reside na capacidade de expansão contínua de sentido, sustentada por uma linguagem que não se deixa fechar em si mesma. A sua principal característica reside na reconfiguração de cada verso, onde cada palavra é capaz de abrir múltiplos caminhos de interpretação; na sua inexauribilidade semântica, pois vive da tensão entre o que eu pretendo dizer e o que ainda serei capaz de transmitir; na procura constante de um ritmo fluente e meditativo; na intertextualidade filosófica e mística, pois, por incrível que pareça, procuro socorro nos fragmentos bíblicos e apócrifos. E também numa espécie de erotismo ontológico, onde o desejo não é apenas físico, mas, sobretudo, espiritual.

 

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Ai Salomão, Salomão, o quanto me ensinaste! Penso que a luta do poeta, perdoem-me a imodéstia, se baseia na abertura constante de sentido, sem aprisionamentos estilísticos ou semânticos, daí a sua característica supostamente infinita. O poema não termina, ele tem de continuar dentro do leitor. Daí a perseverante tentativa pela intensidade, pelo ritmo, pela densidade simbólica, pela tensão emocional, pela fluidez. Sinto-me muitas vezes a mergulhar dentro do labirinto da linguagem. A conceção infinita não reside na sua extensão, mas no processo de metamorfose contínua.

 

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O poema não avança, transforma-se. Escrevo cada verso na tentativa de reescrever o anterior. Cada imagem dissolve-se no preciso momento em que nasce a seguinte. É essa intenção criativa que dá a sensação de movimento interno perpétuo, como se fosse um organismo verbal em mutação constante. A minha inspiração, confesso, não vem de um escritor mas do movimento perpétuo do compositor e guitarrista Carlos Paredes. Ao contrário de muitos poetas que separam o abstrato do sensível, a provável novidade destes meus poemas está na intenção de fundi-los. O pensamento emerge do desejo, o desejo da memória e a memória da linguagem, numa espiral contínua, num ciclo que nunca se encerra. A voz d’O Poema Infinito não é um “eu” estável, nem sequer baseado num “narrador” tradicional. Pelo menos nisso acompanha as minhas características primordiais. Tanto é uma entidade oscilante, como um sopro inexorável de vida, como um silêncio cósmico, ou até um verbo. Ora isso confere-lhe um tom muitas vezes oracular, mas sem cair na pompa solene dos poetas proféticos. Os meus poemas não se situam no tempo linear. Existe neles uma temporalidade suspensa, elíptica, como se estivéssemos a ler um presente que já existiu, mas que poderá surgir de novo. A sua originalidade, a existir, não reside naquilo que dizem, mas, sobretudo, na forma como se pode escrever continuamente o inefável. Essa é a minha constante luta pela depuração da linguagem.

 

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Pegando no exemplo rural dos meus antepassados, os meus poemas nascem da intenção de lavrar o campo fértil da linguagem, humedecido pelas chuvas antigas da memória, da tradição, da filosofia. Colhendo palavras como se fossem raízes, ervas, fragmentos de pedra e de ossos. É o campo transformado em lugar de linguagem perpétua, fixando a memória do tempo, personificando o desejo como gesto metafísico, como ausência, como um história filtrada pelas ruínas, tudo a explodir num fluxo contínuo. O Poema Infinito é um texto que se escreve contra o fim, numa espécie de lume que arde sem conclusão. O que não tem explicação, explicado está. E o que é isso de arder sem conclusão?, perguntarão vocês. Bem, nesta espécie de escrita é “arder sem consumar-se”, é uma espécie de “sarça ardente”, uma espécie de chama que não se apaga porque não procura um fim, mas a busca permanente da intensidade. Em termos poéticos e existenciais, é manter-se em estado de combustão criativa ou afetiva, sem chegar ao esgotamento, nem à sua resolução. Arder sem conclusão significa manter os versos em suspensão, lineares, mas em suspensão, como se cada imagem prometesse algo que nunca se realiza totalmente, numa espécie de tensão contínua entre o que se diz e o que se cala.

 

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Significa também evitar a prisão do sentido, ou seja, não dar ao leitor um “fecho” narrativo, moral ou mesmo simbólico, mas deixá-lo em trânsito, em deslocamento constante. Significa ainda usar a linguagem como engrandecimento, não como ferramenta de explicação. As palavras brilham, colidem, criam zonas de luz e sombra, mas nunca um mapa completo. Significa, finalmente, recusar o ponto final como destino. O poema pode até terminar fisicamente, mas a sua energia é tal que o pensamento do leitor tem de continuar a inflamar-se até à última linha. Tem de viver na intensidade do inacabado. O poeta escreve como quem atravessa um incêndio, que é a linguagem. Por isso, O Poema Infinito não termina: ele tem de recomeçar sempre em quem o lê.

 

(Texto de João Madureira – Apresentação do livro “O Poema Infinito – Livro Segundo” – Chaves 23/10/2025)

 

20
Out25

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751 - Pérolas e Diamantes: Será verdade?

 

Tive uma professora que usava blazer, penteava-se com uma permanente chique e tinha muitas opiniões com travo a limão. Fumava cigarros com filtro de mentol. Diziam que gostava de amar. A eito. Não fazia distinções entre sexos. E afirmava que era incapaz de ler bestsellers. Foi a primeira mulher que conheci a quem chamaram de intelectual. Uns de forma acintosa. Outros nem tanto. Julgavam-na uma fada má. Era no tempo em que a cidade era um clube de homens e rapazes, onde as mulheres e as raparigas ficavam a ver. A feminilidade sabotava a autoridade… masculina, só podia. Por isso não era vista com bons olhos.

Diziam que era uma mulher ambiciosa, pois queria ser escritora. E uma mulher ambiciosa não era digna de confiança. As mulheres tinham de ser brandas. Essa era a caraterística essencial da criatura feminina. Além disso, ela usava, como já disse, e volto a repetir, o cabelo armado, batom vermelho-escuro e falava alto com os homens. O que era sinal de arrogância. Alguns diziam que esses eram traços de uma loucura protestativa. As mulheres bem-educadas deviam balbuciar o seu discurso e sussurrar o seu amor.

Será que a ambição das mulheres, sobretudo a artística, é patológica?

Os julgamentos populares estão imbuídos de subjetividade. O lado emocional costuma possuir as almas. Andamos todos, ou quase todos, enredados no tédio. Tanto dá assim, como assado.

Será verdade?

Vamos lá pôr um pouco de pimenta nisto. Li algures que Nabokov, o autor de Lolita, se achava tão genial que nem sequer fechava o seu próprio guarda-chuva e que era Vera, a sua fiel esposa, quem lhe lambia os selos. Cada um é refém da sua própria subjetividade. Será que ele era um tonto ou um génio? Será que podia ser as duas coisas ao mesmo tempo? Todos somos reféns da nossa perspetiva. Será que o romance Lolita pode ser julgado apenas pelos seus méritos estéticos? Será possível calcular a perversidade dos atos em comparação com a grandeza da obra?

Claire Dederer defende que “o consumo da obra de arte é um encontro entre duas biografias: a biografia do artista, que pode perturbar a visão da arte; a biografia do espectador, que pode moldar a apreciação da arte. Isso acontece em todos os casos”.

Mas a arte está cheia de maus exemplos: a música e os textos de Wagner, que muita gente considera um génio, são indissociáveis da ideologia nazi. Ou seja, o mestre era um antissemita apologético. Simon Callow fez o seguinte resumo: “O antissemitismo de Wagner… era mais do que um pecadilho bizarro e mais do que um preconceito: era uma obsessão, uma monomania, uma verdadeira neurose. Todas as conversas de Wagner se desviavam para o judaísmo.”

Para que conste, o antissemitismo também foi cultivado por intelectuais da craveira de T. S. Elliot, Dostoiévski e, para nossa grande surpresa, pelas escritoras Edith Wharton e a mesmíssima Virgínia Woolf. Será possível admirar a obra dos génios e ignorar a mácula dos seus comportamentos e discursos aberrantes?

Mas voltemos a Nobokov e a Lolita. Claire Dederer põe o dedo na ferida quando defende que “o conhecimento da biografia de um artista afeta o modo como vemos a sua obra e, neste caso, o conhecimento da obra afeta o modo como olhamos para a sua biografia”. Será que Humbert era Nabokov? Provavelmente não, mas.

Mas, um pouco para se libertar dessa associação, escreveu que “a melhor parte da biografia de um escritor não é o relato das suas aventuras, mas a história do seu estilo”.

Porque escrevo eu sobre isto? Pois porque não nos devemos identificar com o silêncio.

Todos sabemos que os pensamentos não são atos e que as histórias não são crime, mas.

Dizem que o crítico Walter Benjamim escreveu que “na base de uma qualquer obra de arte há uma pilha de barbaridades”. Será isto verdade?

Claire Dederer diz que, enquanto criança, temia ser mulher. As exigências da maternidade, que são inexoráveis, assustavam-na. Confundia-a a ideia de alguém ser artista e mãe. Ela tinha razão. Convenhamos que não é coisa fácil. Mesmo nada fácil.

Hemingway escreveu que a maior dificuldade da escrita é “saber o que se sentiu realmente e não o que deveríamos ter sentido e tínhamos sido ensinados a sentir”.

Estou em crer que isto também se aplica à condição da mulher nos tempos atuais. 

João Madureira

13
Out25

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750 - Pérolas e Diamantes: Etc. e tal… al… al… al.

 

São sempre lentos, e metafóricos, os encontros imediatos de terceiro grau com o poder. Em termos de ideais já há pouca coisa a que nos possamos agarrar. As coisas são como são. Esta é a época do irrealismo consciente. Todos falhámos. Viva então o passado otimista. O futuro vai ser ainda melhor. A utopia fez-nos tropeçar e cair. Tudo ficou pelo caminho. Até o próprio caminho. Quando começamos a ficar com a visão turva, acabamos por ir parar a um beco. E muitos deles não têm saída. Sentimo-nos em suspenso. Estamos todos a sucumbir à homogeneidade. Das 7000 línguas do mundo poucas irão sobreviver. O inglês está a devorar tudo. A memória já é mais ossos do que outra coisa qualquer. A nós chega-nos sobretudo o passado. É como olhar para a luz das estrelas. Muito do que aconteceu é uma luz que se extingue a cada momento que passa. O amor ficou na Cochinchina. A mítica sociedade da igualdade, da fraternidade e da liberdade, tem o cheiro da desilusão. A sociedade não mudou. O que mudou foram os paradigmas. Independentemente dos sítios para onde vou, Trás-os-Montes é, e será sempre, o meu sítio favorito. Pensei que depois do 25 de Abril este país ia ser uma espécie de filme à Kusturika, mas não, saiu-nos uma curta-metragem do Godard, chata, desenxabida, perversamente intelectual e kitsch. Uma peça de mistura entre a música de António Variações e Quim Barreiros. Um país extremamente limitativo e parcial. Transformaram o 25 de Abril num cliché. Foi o pior que lhe podiam ter feito. De heroico passou a hiperbólico. Somos um povo que aguarda, que espera. Mas que não sai do sítio. A pormo-nos ao sol para fazer sombra. Partilhamos agora o tédio, a solidão, o cansaço, a angústia e o desespero. Sempre a vivermos na margem da História. Somos a perfeita ideia da fragilidade. Ficamo-nos no passado. Na fadista dos limões, no jogador de futebol de cor, no celibatário presidente do conselho (o tal avô cavernoso que instituiu a chuva, como cantou Zeca Afonso) e na senhora que gosta de aparecer a pastorinhos doentes e alucinados. A ansiedade da verdadeira revolução acabou por matar a revolução. E a malta começou a entoar delírios e revelações, pois, como cantam os Linda Martini, evocando a canção de José Mário Branco, “a cantiga é uma arma e faz dói-dói”. Tudo em falsete trémulo para não incomodar os donos disto tudo. É uma porra, pá! Andamos todos a dissimular o bem-estar, neste país de aventuras cheio de personagens de prestígio. Sempre a levedar as expectativas. Por aqui há factos, mas não consequências. Estamos sempre no lugar da indefinição. Da indecisão. Mas somos um povo agradável. Que sabe ser um bom anfitrião. Somos um povo mimético. Imitamos tudo. Portugal está poluído de dramas. É difícil ganhar energia. Somos a síntese da ironia. Não lhe conseguimos escapar. Mas é tudo feito de forma involuntária. A luz está sempre do outro lado. Uns são supostamente fracos e outros são supostamente fortes. Estamos livres mas não somos livres. Vivemos dentro do nosso próprio paradoxo. Dizem-nos para tomarmos banho dentro da nossa história, mas esse rio já secou. A História é sempre um passo de prestidigitação. A nossa lógica não é política, mas poética. As nossas memórias estão cheias de ferrugem. Cada um conta a parte da história que lhe importa. Até o fadinho se tornou cómico. Já não se bebe copos de tinto nas tabernas chiques, mas shots de red bull com aguardente tricolor, acompanhados por bolinhos “tipo de bacalhau” vegan. Será dramático? O drama está sempre naquela nossa tentação de correr atrás dos outros. Ai os fantasmas do passado! Em vez de sonharmos, andamos por aí fora a perguntar pelos sonhos. Este povo povinho povo é levado a confundir alegorias e metáforas com a própria realidade. Esta gente devia ter vergonha em ser resignada. A resignação é o nosso fardo mais pesado. Fuck, fuck, fuck. Escrevo isto em inglês para não impressionar os espíritos mais sensíveis… ao português. Está na hora de tomar a medicação. Está na hora. Está na hora de a malta se ir embora. Já que não conseguimos viver com estilo, toca lá a aprender a morrer com estilo. Fo… Fuck, fuck, fuck… etc. e tal… al… al… al.

João Madureira

 

06
Out25

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749 - Pérolas e Diamantes: A fascinante retórica dos burros

 

Sonho muitas vezes com a sarça ardente aos pés de Moisés no monte Sinai. Ele, Deus e a lareira a alumiar e a aquecer a remissão dos pecados. Eu gosto do fogo nos dias frios. Mas não gosto de negligenciar o resto. Nem a família, nem o navegar, nem o instinto, nem a direção das ondas. Eu a encostar-me à inquietação. Caminho na direção do rio, com passos largos. E gestos longos. Estou dentro do meu próprio filme. Descanso os dedos das mãos nos bolsos. Estamos a desaparecer, devagarinho. Eu a preocupar-me com o meu espanto. A zangar-me, lentamente. Não é normal. Pusemos meia dose de imaginação e outra meia dose de bom gosto e a merda deste país sem sair do lugar. Aqui só se ouve o eco da retórica. A fascinante retórica dos burros. O enfado. Eu a adormecer de espantado no meio de uma discussão sobre Jazz. Free ou não free. Os falsos gestos de amizade também aleijam. Eu possuo mais males que bens. As pessoas da família principiam a desaparecer. E a ideia das flores. E a memória da avó e os seus olhos aguados. E o colo da mãe e do pai. Os seus sorrisos são agora como sombras. Continuo apaixonado pela minha avó. Aos domingos almoçava em sua casa. Dava-me carinho. Depois o tempo começou a devorá-la. Não sem antes devorar o avô. “Atenção”, diz o fotógrafo. A morte deixou de ser uma palavra. Agora é muito mais do que isso. A morte já é uma pessoa da família, mas ninguém a consegue fotografar sozinha. A casa está cheia de silêncio. A figueira junto ao poço está decrépita. O velho moleiro morreu. O jardim está abandonado. O senhor Martins deixou de poder ter bebedeiras sublimes. No entanto, os cachos das buganvílias continuam a florir sobre o muro. As coisas inúteis têm tendência a perpetuar-se. Este tempo arrevesado promete mais tristeza do que chuva. Aproximo-me e retrocedo, como se estivesse a jogar às escondidas. Sim, ainda me recordo da minha infância. Foi cedo que aprendi que as princesas também podem ser malcriadas, caprichosas e histéricas. Por vezes sofro a consequência das analogias. “Que entrada é esta, Alice? Não deixes fugir o Coelho Branco.” Naquele tempo engolíamos as perguntas. Respondia-se sempre com demasiada firmeza e pouca amabilidade. As homilias eram autênticas armadilhas de submissão, desculpa e arrependimento. A retórica não tinha nenhuma subtileza. Era para enfartar brutos. Havia um fantasma em cada esquina. Um bufo atrás da porta. E um inimigo em cada encruzilhada. Era um tempo para homens bêbados e para cavalos cansados. Nascia-se para ser servil e depois morrer. Eu preferia acreditar em duendes e fadas que apareciam e desapareciam com um piscar de olhos. Eram eles e a menina que sorria para mim quando nos cruzávamos na rua. Eu abria muito os olhos e via que os dela também brilhavam. Depois veio a liberdade, mas foi coisa pouca. A liberdade não se basta a si própria. A liberdade? Porra, e a liberdade pá? Pois sim, a liberdade para aí está exangue, anémica, cheia de colesterol, triglicerídeos, paranoica e quase demente. Aí estão de novo os filamentos vagos da realidade. Os cheiros a flutuar. Os vultos ao sol a provocarem sombra. Coisas sem importância que aumentam a finalidade da vida. E a realidade a dar-me caneladas. E a escrita a inquietar-me. Tanta vírgula, tanto verbo, tanta indecisão. Tanto ajuste. Tanta certeza, tanta aflição. Tanto e tão pouco. Isto não tem nada de romântico. Uma coisa sei agora, de ciência certa, que a vida é uma coisa simples, mas, ao mesmo tempo, complicada. Sendo que o contrário, por vezes, também é autêntico. A verdade é que os pavões a costumam complicar. Mas a sua bela cauda armada não passa de um conjunto de penas. Fora elas, são tão feios como os perus. O melhor mesmo é chamá-los de Bobby, pois acabam sempre por ser os melhores animais de estimação dos seus donos. São peritos em metamorfoses. Bichos-da-seda ou rãs daquelas que se põem a inchar para ficarem do tamanho dos bois. Acabando por estourar no ar como balões em dias de aniversário da criançada. É difícil mastigar esta realidade. Dizem que se aproxima uma espiral catastrófica. Espero bem que não. Mas as hemorragias de gratidão também acabam por matar. Sinto-me preso nesta ratoeira do mal menor. A democracia não se pode reduzir a isto. A liberdade é frágil. A realidade é frágil. Mas a verdade é tão frágil que dá pena.

João Madureira

 

29
Set25

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748 - Pérolas e Diamantes: Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Aaaaaaaaaaaahhhh!!!

 

Nós. Nós gostamos de. Nós gostamos de cortar a realidade em fatias fininhas, como o fiambre, para a conseguirmos misturar com a mediocridade e fazermos uma tosta mista. Há lá povo mais criativo! Somos muito bons a cozinhar restos, conseguindo confecionar uma refeição ainda melhor. Não nos faltam potencialidades. Apesar disso, gostamos de sentir que existe uma certa ordem no mundo, que há uma certa hierarquia dominante nesta sociedade caótica e desolada. E gostamos de dormir em paz com a nossa consciência. Por favor, não nos tirem a alegria de ver os outros felizes, homens, mulheres, jovens e crianças. Cães, gatos e pintassilgos. E ainda as foquinhas do Zoo da Maia. É verdade que a nossa felicidade implica uma certa hermenêutica complexa. Mas convém lembrar que também somos filhos de Deus. Talvez filhos ilegítimos, mas, mesmo assim, filhos. Claro que também há por aí muito filho da puta, com vossa licença. Mas estão perdoados, esses que tais. A viabilidade do mal é eterna. A do bem, nem por isso. Qualquer tipo de abordagem é uma questão filosófica sensível. Por alguma razão, ainda não suficientemente estudada, somos um povo onde os poetas compõem versos grandes, cantigas, trovas, sonetos, éclogas, canções, odes, sextinas e elegias. Tudo metaforicamente tratado: violência, relações sociais, comerciais e mesmo amorosas. E também a guerra, a doença e a morte. A grande maioria dos nossos poetas reflete a psicologia do nosso povo povinho povo, por isso são sisudos, cismadores pensativos, muito dados às elucubrações. E também à ironia. Povo que gosta de ir fazer curas anuais às termas e aos locais onde se pratica a melhor filosofia do lazer e do maldizer. Este é um país de Torgas, Pessoas, Camões, bajuladores e berradores. A teatralidade faz parte da nossa identidade. Por isso temos a fama de moralistas e filósofos da treta. Muitos de nós aprendemos a respeitar a poesia à base de uns cachaços bem dados. Uma das artes mais bonitas dos portugueses é adquirirem dicionários com que enfeitam uma parte das estantes. Não os consultam (para quê, mas gostam de olhar para as suas lombadas. Mesmo eu faço isso de vez em quando. Elaboro, com vossa licença, uma lista sumária dos meus, apenas porque sim: Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea – Academia das Ciências de Lisboa (2 volumes); Grande Dicionário da Língua Portuguesa (6 volumes); Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (6 volumes); Língua Charra, Regionalismos de Trás-os-Montes e Alto Douro – A. M. Pires Cabral (2 volumes); Dicionário Picaresco e Satírico de Trás-os-Montes e Alto Douro – Armando Ruivo; Calé de Rebordelo – Adamir Dias. Por muito que nos custe somos todos muito pernósticos. Gostamos de mandar a rapaziada caçar gambozinos. De chamar badalhocos e trampolineiros aos adversários, pois somos capazes de ver os agueiros nos olhos dos outros e não enxergar a trave que temos nos nossos. Vá lá, o melhor é não asnear e repetir as orações. Cada um é para o que nasce. E tu nasceste, meu povo povinho povo, para fazeres progredir o pequeno comércio. De tudo. Até das almas. Sempre com as tuas mentirosices inofensivas/defensivas, a abrir a janela para ver passar o tempo. Mas o que sempre consegues é ficar cheio de frio, com os olhares fragmentados a bater de encontro às estátuas. Vá lá, não te quero assaltar com recomendações. Era o que mais faltava. Disso estás tu de barriguinha cheia. Aprendeste essa arte desde os descobrimentos. És uma caravela sempre a reboque. Do vento, das marés e dos outros. Sempre a dares cabo do infinito sem saíres do lugar. Sim, tenho de admitir, isso é sabedoria. Sabedoria que já te vem dos teus egrégios avós. Da sua glória. Sim, gostas de te ajoelhar. De chorar lágrimas sentidas. De peregrinar. De esfolar os joelhos no cumprimento das promessas. Gostas de desenhar tempestades. Desde que te deixem. Eu tu ele e ela nós vós eles e elas sempre encarquilhados debaixo das velas pandas da nossa história. Sempre a viver meses maus, mesmo na primavera, mesmo em Abril. Aquilo do 25 não passou de um bom filme. Agora, para desopilar o fígado, costumamos ir, de braço dado, ver as aldeias divertidas, com os seus cantinhos sossegados, as suas ruazinhas empedradas, o musgo dos muros e comer, nas casas dos nossos antepassados, uns petiscos pitorescos. Amo-te povo povinho povo. O meu amor por ti até pode parecer reinação e ranger, mas é genuíno. Aaaaaaaaaaaahhhh!!! Vá lá, não me mates que sou teu filho. Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Aaaaaaaaaaaahhhh!!!

João Madureira

22
Set25

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747 - Pérolas e Diamantes: Confissões e Delírios (Excerto II)

 

Haiku (transmontano) número oitenta e quatro: A primavera / volta sempre / quando o vento oscila.

O hebreu Moisés estabeleceu em número de 10 os mandamentos, isto após escutar uma voz que lhe vinha de uma sarça ardendo no meio das trevas, no monte Sinai. Mas foi o papa Gregório I, o Grande, quem estabeleceu em sete o número de pecados mortais: Soberba, Inveja, Ira, Preguiça, Avareza, Gula e Luxúria.  O que agora sabemos é que a neuroplasticidade não possibilita ao cérebro humano distinguir mais do que sete informações em simultâneo. O meu pai (adotivo) passou uma parte da sua vida concentrado num cenário pós-religioso e na luta entre o bem e o mal. É aquilo que nos incomoda o que nos leva a pecar. Várias vezes o ouvi a citar o filósofo Pierre Bayle: “A inclinação a fazer o mal não se encontra mais numa alma destituída do conhecimento de Deus do que numa alma que conhece Deus.” Foi ele que separou a fé da moralidade. A nós cabe-nos a tarefa de nos preocuparmos com os males de que somos responsáveis. Deus, a existir, tomará conta do resto. Diz o pai que o que nos leva a ter comportamentos egoístas e antissociais é o excesso de dor social. Provavelmente, o pecado é inato em nós. Agostinho de Hipona confessou em livro que roubou peras, fazendo disso a exegese que distingue um comportamento banal de outro abominável. Eu, também o poderia confessar, mas, por sorte, não roubei peras, fiquei-me pelas maçãs, pelas cerejas e um que outro melão. Já o pai nunca roubou nada, nem sequer uma pedra ao rio. E ele tinha tantas! Eu sigo a percursora ingenuidade de Montaigne, fingindo confessar as suas falhas, pois teve sempre o cuidado de revelar apenas as que eram adoráveis. Ou seja, Montaigne foi o melhor mestre dos políticos atuais, pois pretendia enganar as pessoas dizendo a verdade. Ele demostrou que isso era possível. Defeitos adoráveis, qualidades desprezíveis. O pai diz, e eu concordo, que os romancistas clássicos são, além dos melhores, os maiores produtores de lugares-comuns. Os seus romances estão repletos de enormes descrições e de personagens comoventes e odiosas. E daí não saem. Existem lá pelo meio personagens ilustres e sublimes que são como ferretes na nossa memória. Os melodramas, a eles se devem. Mas como são deles, temos de os aceitar. Por isso, agora são produtos comerciais de largo espectro. Tal como os antibióticos que combatem a doença e logo se transformam num problema para uma nova infeção.

Um padre amigo do pai veio entregar-lhe uma tartaruga e o respetivo aquário, a única coisa que um casal desavindo não conseguiu repartir. Nenhum dos dois quis ficar com o bicho. O pai fez que não entendeu quando o senhor pároco lhe lembrou que ele se tinha voluntariado para ficar com o pacato quelónio. Eu já sei para quem vai sobrar a herança.

Haiku (transmontano) número oitenta e cinco: O pai e o filho / chegaram montados / num cavalo bem arreado.

O pai é feito de silêncios e palavras. De coisas hipnóticas. De demoras constantes. Os seus pensamentos vão e vêm ao ritmo das batidas do mar nas rochas. O espaço existe. E depois volta a existir. O pai tenta esconjurar o silêncio mas cada vez mais desaba dentro dele. Os crepúsculos caem sem anoitecer. Ele parece cego. O pai, por vezes, toca piano como se quisesse falar com alguém que não está presente. A inspiração vem-lhe da dor. O pai parece um desígnio de Deus, é a prova provada da sua insignificância. Da sua inutilidade prática. Coitado do pai. Coitado de Deus. Coitados de nós. “Pai, pai, vem cá. Não adormeças já. Faz-me companhia. Vem cá. Preciso de ti.”

O meu pai (adotivo) não se cansa de contar o caso hilariante de um vizinho seu que se reformou com 45 anos e que se gabava de nunca ter realmente trabalhado. Passava a vida a gabar-se de que enganava todos os dias o patrão. Quando ele o mandava fazer uma coisa, o burlão punha-se a fingir que trabalhava, fazendo tempo até à hora de sair. Ele, o pai, ri-se até às lágrimas. Eu não consigo. Sobe por mim uma raiva que me provoca uma má disposição abrangente e dolorosa.

O pai, depois de ter ido rezar, pôs-se a falar dentro da sua doença de Alzheimer: “São os povos de fronteira, aos quais eu pertenço, aqueles a quem o ímpeto religioso nunca falta. A ameaça do inimigo é sempre uma constante. A devoção dilui-se em lendas e misticismo. ‘O Quinto Império’ proposto pelo Padre António Vieira, e professado por Pessoa, que se dava muito ao ópio e ao absinto, ao vinho e à aguardente, pois o misticismo vive muito dessas dependências, é uma das propostas e das provas mais interessantes e evidentes.”

Fingir é uma arte. É a arte da mentira. O pai nunca conseguiu ser um verdadeiro artista.

João Madureira

15
Set25

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746 - Pérolas e Diamantes: Indo eu por... Gargântua & Pantagruel acima

 

E indo eu por esse Gargântua & Pantagruel acima, ou abaixo, pois para o caso tanto monta, à procura de ditos e feitos heroicos, guiado pela fina pluma de Mestre Rabelais, logo me encontro com bons homens, bebedores mui ilustres e até com Diógenes, o filósofo cínico, ainda mais cínico do que eu. Será possível? Vá lá, estou a brincar. E, para mal dos meus pecados, acabo por me perder nos grandes pormenores da defesa das cidades. Ei-los. Uns retiravam dos campos para as fortalezas móveis, o gado, cereais, frutos, vinho, vitualhas e as necessárias munições. Outros fortificavam muralhas, erguiam bastiões, cavavam fossos, reforçavam as barras das ameias, erguiam andaimes, preparavam rampas, fabricavam guaritas, elevavam parapeitos, fechavam seteiras, colocavam sentinelas e faziam sair patrulhas. Uns preparavam as vestimentas guerreiras, enquanto outros preparavam as armas pessoais e máquinas bélicas. Esses eram os de lá de cima. Os de cá de baixo aguçavam chuços, picos, ganchos, alabardas, podoas, forquilhas, clavas, machados. Enquanto uns exercitavam os seus facalhões, outros desenferrujavam os bracamartes. Até as mulheres, por mais virtuosas ou velhas que fossem, mandavam brunir o seu arnês, pois, segundo o narrador, as antigas Coríntias eram corajosas em combate e estas não lhes queriam ficar atrás. Diógenes, também segundo o narrador, vendo aquela azáfama e não estando obrigado, por quem de direito, a fazer fosse o que fosse, limitou-se a contemplar aquela atitude e a ficar calado. Passados alguns dias, o filósofo, vendo que era chegado o momento de fazer algo, ofereceu, a um dos seus velhos companheiros de estudo, os seus livros e apontamentos, escolheu um belo terreiro nos arredores da cidade e aí fez rebolar o tonel de argila que lhe servia de abrigo contra as injúrias do céu e, com grande empenho espiritual, estendeu os braços e fez ao seu abrigo cerca de setenta aplicativos, dois quais destaco sete: o rolar, bajular, acoitar, esmurrar, emporcalhar, lavar e enfeitiçar. Depois transportou-o por montes e vales, como Sísifo fez com a sua pedra, ao ponto do tonel ter ficado muito danificado. Um dos seus amigos perguntou-lhe então o que levava o seu corpo ou o seu espírito a atormentar assim o tonel. Tendo o filósofo respondido que, não lhe estando destinado outro cargo na república, ele enraivecia-se com o seu abrigo para que no meio de um povo tão fervoroso e ativo, não o acusassem de ser por ali o único cidadão indolente e ocioso. Até porque a filosofia, em tempo de guerra, não vale um caracol. Sendo o narrador, o nosso querido e estimado François, um pouco débil, não tendo conseguido ser alistado e colocado na parte ofensiva da defesa de França, pegou no seu tonel diogénico e pôs-se a filosofar. E também se pôs a beber. Ninguém sabe ao certo naquilo que tinha melhor desempenho. Era bebendo que ele deliberava, discursava, resolvia e concluía. Ria e escrevia. Rabelais era um fiel seguidor dos seus génios inspiradores. Énio escrevia enquanto bebia e bebia enquanto escrevia. Ésquilo bebia enquanto compunha. Homero nunca escrevia em jejum. Catão nunca escrevia antes de beber. E não ponho mais nomes no escrito para não parecer enfadonho. No entanto, não me vou daqui embora sem recontar a peripécia de Ptolomeu, que um dia, entre os despojos e os ganhos das suas conquistas, mostrou aos Egípcios, como se estivesse num circo, um camelo de duas bossas todo preto e um escravo pintalgado, de tal forma que uma parte do seu corpo era preta e a outra branca, não segundo a largura do diafragma, mas em sentido perpendicular, coisa até aí nunca vista no Egipto. Esperava ele com aquela surpresa conquistar ainda mais o amor do povo. Mas, ao contrário do esperado, ao serem confrontados com o camelo, eles, os do povo, ficaram assustados e indignados. E ao verem o homem pintalgado, alguns fizeram troça, outros abominaram-no com se a criatura fosse um monstro infame, criado ou por erro da natureza ou por distração divina. A tese é que o vinho e a filosofia apenas servem para chatear as pessoas. Que os filósofos são dementes e que os escritores cómicos apenas servem para fazerem de bobos da corte. Provavelmente isto pode parecer um pouco confuso, mas, se beberem um pouco de um bom vinho tinto do Douro, como eu fiz durante a escrita deste texto, logo lhe encontrarão o sentido. Ou a falta dele. Pois, para o caso, tanto monta. De beber, de beber, de beber eu não posso deixar… hic… se o vinho é que alegra a gente… hic… hic… hic… eu fico contente por me emborrachar… hic… obrigado Rabelais… hic…

João Madureira

08
Set25

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745 - Pérolas e Diamantes: Os profissionais da manipulação

 

Mesmo o estado democrático quer controlar o que é noticiado, sobretudo na televisão. O estranho é que mais do que querer controlar a realidade, pretenda controlar a virtualidade. Insistem sempre no jogo duplo. Para alguma coisa servem os assessores, que são, quase todos, criadores de notícias falsas. A pedido dos patrões, desinformam através da manipulação da informação, mexendo os fios dos bonifrates, como se estivessem num teatro de fantoches. Compram as notícias em troca de favores. Afastam as vozes incómodas. Distribuem tachos e prebendas, títulos e cargos públicos. Os seus representantes dizem-se democratas isentos, mas não passam de manipuladores (profissionais do comentariado/comissariado). E eu conheço tantos! Tantos pavões com cauda de plástico a quem remuneram para papaguearem propaganda política embrulhada em papel celofane de comentário, como aconteceu com um tal de Bugalho, que agora passeia a sua brilhante inutilidade no parlamento europeu. Immanuel Kant dizia que cada ser humano tem uma disposição natural para a metafísica. Ou seja, que cada um de nós, mesmo que não estude filosofia, tem um certo entendimento das coisas. Mas a verdade é que estes novos fazedores de opinião (profissionais do comentariado/comissariado) parecem bonecos feitos a partir de uma conceção superior, vestidos de determinada maneira que decoram determinados textos e que depois os despejam em espaços de opinião rigorosamente vigiados, premeditados, editados e difundidos. Esta é a filosofia da coisa: embasbacar os saloios. A ética são as circunstâncias. Pior do que o medo, é a consciência da traição. Não a traição ao partido, mas a traição às ideias que o formaram e enformaram. Aristóteles, dizia, provavelmente na brincadeira, que “muita gente morreu porque queria ser corajosa”. E até ia mais longe, declarava também que os audazes, os intrépidos audazes, também são cobardes, mas em vez de fugirem para trás, fogem para a frente. Por seu lado, Sócrates assegurava, para quem o queria ouvir, que falava sempre das mesmas coisas da mesma maneira, nos seus combates dialéticos contra Cálicles, que falava sempre de maneira diferente sobre coisas diferentes. Os ditos comentadores (profissionais do comentariado/comissariado) não querem saber da realidade. Apenas querem, com a manobra das palavras, criar uma espécie de realidade que se adeque ao seu pensamento. Aos interesses de quem lhes paga. Aos subtis interesses de quem lhes paga. E bem, por sinal. Muitos deles são manipuladores porque gostam de o ser. É assim que se realizam e se tornam úteis. Aos que lhes pagam. Ou seja, juntam o útil ao agradável. Também eles têm a sua própria escala de necessidades. A que se segue uma escala de desejo. E depois surge a escala do prazer. É então que a manipulação acontece, como se fosse um processo natural. E esse pensamento manipulado e manipulador, faz com que do lado de lá do ecrã, o basbaque pasme, fique admirado, se espante, se sinta fascinado por qualquer coisa que o tal comentador (profissional do comentariado/comissariado) ou analista, diga, defenda ou ataque. Quem recebe honrarias, torna-se passivo relativamente a quem as oferece. Ninguém se submete à ideia da neutralização dos excessos. A canonização dessa gente que se diz comentarista provém de uma falácia. Terem um espaço específico é uma forma complexa de catecismo. O comentário livre e isento, pode ser, por vezes, contraditório, mas tem de ser, obrigatoriamente, antagónico com o exercício do poder. Os comentaristas (profissionais do comentariado/comissariado) do regime são gente capaz de nos vender uma feijoada à transmontana como um prato vegetariano, se o porco se alimentar de produtos biológicos. Fazem da realidade um jogo de legos que montam e desmontam a seu belo prazer, para melhor a compreendermos. A verdade é que manipulam sempre os resultados para irem de encontro aos seus desejos, que mais não são do que os desejos de quem lhes paga. Mais do que saber qual é a resposta, o que devemos tentar saber é qual será a pergunta que eles colocam a si próprios. O comentário manipulado é um jogo de espelhos. E de egos. Ou seja, também esta nossa democracia, dita liberal e social-democrata, tem os seus tartufos. Tartufos e cogumelos são bons para os tachos. Com ou sem vitualhas. Bem vistas as coisas, é só virtudes. Mas apenas os mais coloridos são alucinogénios.

João Madureira

 

01
Set25

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744 - Pérolas e Diamantes: Andava eu com...

 

Andava eu com a minha máquina fotográfica a tirar retratos aos participantes de uma dita festa dos povos cheia de romanos embonecados e de arraia-miúda enroupilhada de dourado e coisas assim, quando me vi ali no meio dos políticos do poder autárquico, e afins, em campanha eleitoral disfarçada de inauguração do evento, onde não faltaram as chefias das forças militares, ajaezadas de gente que é capaz de ir para a guerra fardada mas que não participa numa já lá vão para aí 50 anos e apenas disparam tiros sei lá de quê nas carreiras de tiro. Reparei que o clero primou pela ausência (será que os pagãos ainda lhes metem medo?), bem assim como a oposição autárquica, que, ao que me disseram, anda muito dividida, pois em vez de escolherem um homem da casa, que o havia sério, competente e disponível, foram convidar um independente, já pretendente ao cargo vai para muito tempo, que não se mostra capaz de unir uma família desunida. E carente. E desnorteada. Senti-me, na verdade, insuficientemente embonecado para participar naquele circo ambulante. Senti-me como um palhaço triste a colaborar naquela alegre palhaçada. A ver umas bonitas e competentes bailarinas a dançar para dar nas vistas, um par de senhores a brincarem aos imperadores e um presidente de câmara com cara de caso. Pensei que é notória, nessa tal festa dos povos, uma glorificação pelo invasor, pelo colonizador, pelo opressor. E os ditos povos nem vê-los. Mas. Existe neste país a atração fatal pelo endeusamento de quem sempre o tratou mal. Começando pelos romanos e acabando nos franceses. Ou espanhóis. Ou ingleses. No final da pantomima, depois de uma piada grossa do dito imperador, e do seu assessor, sobre orgias, o senhor presidente, entre o atarefado e o presciente, convocou os jornalistas, uns mais do que outros, convém dizer, para proferir umas banalidades sobre a tal festa, que os jornalistas engoliram, que remédio, e acabaram por difundir como se fossem factos. Ou coisa parecida. No fundo, os presidentes das autarquias gostam de transformar pantomima em factos que os jornalistas reproduzem, muitas das vezes, sem crivo ou critério. Uns mais do que outros. Claro está. Pois a vida custa a todos. Mas, ao que sabemos, o senhor presidente gosta de trazer os jornalistas sempre atrás de si. Ele vive deles. Eles respondem-lhe na mesma moeda. Porque será? Não é por causa da comunicação social que o senhor presidente, com ares de George Clooney, perderá as eleições. A comunicação social é-lhe favorável, fiel, confia nele. E esse badalado descuido da atribuição de subsídios a um clube de futebol já passou à história. Falou-se dele, mas à boca pequena. Quase toda a gente vive dependente da Câmara ou da gente que nela manda. Os pequenos descuidos críticos são pagos com língua de palmo. Esta campanha eleitoral está a ser uma festa pegada, com foguetes, bailaricos, inaugurações, beberetes. E à volta, os montes a arder. As sirenes dos bombeiros a tocar. As chamas do inferno a iluminarem as noites. E o povo da urbe na festa. A fazer ouvidos de mercador. Sensível no palavrório e indiferente nos atos. A vida são dois dias. E Portugal que arda. São necessários aviões para combater os incêndios? Para o ano vamos pensar nisso. Agora vai de gastar o dinheirinho nas festas, seja dos pontais, dos povos, dos santos populares, das jornadas da juventude. Tudo num virote. Todos a colecionar cadernetas de cromos autárquicos. Devem ser às dezenas de milhares a encherem as rotundas deste país de caras larocas. Uns mais assim, outros mais assado, mas tudo vinho da mesma pipa. Um faz que vaz ou vaz que faz, aquele ama, o outro merece mais, uns mais assim e outros mais assado, uns a rirem outros a olharem fixamente o transeunte nos olhos, como a cobra faz aos passarinhos. Uns garantem ir realizar tudo e mais alguma coisa. E os outros afiançam dobrar a dose. Todos prometem o que o povo quer alcançar desde que o povo é povo: sol na eira e chuva no nabal. E o povo povinho povo faz mais um esforço inglório para acreditar. E lá vai com os da feira e vem com os do mercado. E até é tão altruísta, crente e benévolo, que vota nos que lhe andam sempre a mentir, ou a fugir à verdade – e digo isto desta forma para não ferir a sensibilidade dos leitores mais sugestionáveis – em troca de uma esferográfica, ou coisa que o valha. Pergunto-vos, será que o vosso voto vale assim tão pouco? Faço agora uma pausa e ponho-me a ler os programas políticos, de olhos piscos. Adormeço a cantarolar a canção dos Heróis do Mar: “Não há ninguém capaz de me dar o que eu queria, alegria, alegria…”

João Madureira

PS: Notei que nesta festa havia três imperadores, um que se limitava a pronunciar brejeirices serôdias, outro que só acenava e sorria. Afinal, qual deles era o fake? Provavelmente o terceiro.

 

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