Quem conta um ponto...
655 - Pérolas e Diamantes: Éfférreá
Tempos estranhos estes, onde há mais gente a escrever e a publicar do que gente a ler. Se é que esta gente que escreve teve algum dia a intenção, ou a paciência, para ler algo de qualidade. Quando se queimam etapas, a ignorância ganha estatuto. Proliferam por aí as canonizações e o deslumbramento das entropias e dos dogmas da insignificância e a crucificação da inteligência. Os panegíricos desequilibram a criação. Encomendam-se os argumentos, os lugares-comuns, as lágrimas, os aparatos melodramáticos, a inconsciência neorrealista, a irresponsabilidade estilística e lá vai a personalidade pelo rio abaixo. Uns viciam-se em razão. E outros em a mandar às malvas. Esta gente já não quer salvar nada, nem coisa nenhuma. A sua literatura está carregada de morrinha, de alpista, de hábitos de marketing, de depressão pessoana, ou de traseiros de Judas em forma de memórias de elefante de porcelana chinesa. Tudo pechisbeque raivoso, tudo angústia do avançado que falha penaltis arranjados pelos árbitros. Tudo tragédias sem nada dentro. Tudo mares de água doce e piscinas de água salgada. Tudo peixe de aquacultura. Tudo uma revolta de ganzas embrulhadas em virtuosismo aprendido em workshops de escritores desesperados. Tudo produto de uma osmose virtuosa que mistura efeitos especiais com luz estroboscópica. Emoções profundamente melodramáticas vindas de corações cheios de arritmias, literatura de sussurros e ais de sexos solitários e, ao mesmo tempo, solidários em agonia vegetariana. Escritores deste tipo estão sempre entre algures e nenhures, vigorosamente alienados, tomando as dores dos outros como suas, defendendo os partos naturais, mas parindo as suas obras com cesariana, experienciando o mimetismo, chorando lágrimas de plástico. Misturar o Tintim com o Ulisses de James Joyce só pode acabar mal. E por aí andam esses anacronismos cheios de fantasmas agoirentos. E de sexo tântrico. Uns escrevem poemas, castigando os versos como se fossem arame ou fazendo poesia de fusão entre uma sexualidade torturada e tortuosa e o lirismo dos jogos florais de antigamente. Outros escrevem contos para crianças para ganharem notoriedade ou leitores, já que os seus denominados romances não interessam nem ao menino Jesus. São uma espécie de escritores trôpegos sempre a esbarrarem e a caírem em cima da mesma mediocridade adaptativa, que eles julgam meritocracia académica. Mais flores dá uma figueira. A verdade é que essa literatura envergonhadamente mística depressa azeda. E envelhece com pouca elegância. O seu experimentalismo não tem novidade nenhuma, parágrafos de três minutos de leitura e depois vira o disco e toca o mesmo. Melodias serôdias, cheias de lugares-comuns, conceitos reinantes e críticas cheias de mofo e de exceções imediatas. É tudo tão compreensível que se torna incompreensível. O seu revivalismo peripatético é difícil de distinguir da parasitagem literária. A maioria destes escritores rebenta com as suas referências implícitas. São como bombas de carnaval deitadas na semana santa. À custa de quererem ser populares, apenas conseguem ser anacrónicos. Crónicos anacrónicos. A sua hipotética relevância baseia-se nos rodriguinhos textuais. E contextuais. Orgulham-se de não serem cínicos nem céticos, são apenas ascéticos e dispépticos. Fazem mal a digestão dos textos que os impressionam, daqueles que se assemelham a lâminas cortantes e que invocam a paixão e a rebeldia. Fogem deles como o Diabo da cruz. Os seus exercícios de esperança saloia são confrangedores. Ecletismo rebuscado, variações textuais com barbas, remisturas desesperadas, falta de criação. Sempre a escreverem de forma pretensamente envolvente, mas desgastante. Eles não escrevem literatura, mas textos de salão. Música de saleta. Filarmónica de dança. Que não se dança. Nem emociona. Sempre oscilando entre o bonito e o corriqueiro. Literatura de ambiente, com pequenas doses de ideologia barata e de amor da treta. Literatura pregadora. Sempre dentro dos cânones, previsível, risivelmente cacofónica, cheia de glória viciada e de incompetência impressionista. Como há músicos que compõem música para elevador, agora também há escritores que escrevem com o objetivo de serem convidados para as atividades das bibliotecas escolares. Para alguma coisa tem de servir o Plano Nacional de Leitura. “Então, malta, e para o PNL não vai nada, nada, nada, nada? / Tudo! / Mas mesmo nada, nada, nada, nada? / Tudo! / Então, com toda a cagança, com toda a pujança, aqui vai um F… etc.”
João Madureira