Quem conta um ponto... Os Jornais da Capital
Os jornais da Capital
Leio nos jornais da Capital: Papa condecora Cavaco e Sócrates. Leio nos jornais da Capital: Prostituição infantil passa das ruas para os motéis. Leio nos jornais da Capital: Lobo Antunes “Os factos não me interessam”. Leio nos jornais da Capital: Casamento gay não afecta Vaticano. Leio nos jornais da Capital: Estado gasta milhões a arrendar imóveis que vendeu a si próprio. Leio nos jornais da Capital: Aldeias sem remédio. Leio nos jornais da Capital: Como o coelho ibérico conquistou o mundo.
Estes são os títulos que leio num semanário da Capital que não consigo segurar à força de braços por ser tão grande e, por isso, o pouso na secretária do meu escritório a modinho para não levantar as folhas A4 que por aqui existem meias rabiscadas com pensamentos já gastos pela insónia que me povoa por ser um provinciano que se consome a ler jornais enormes que me falam de uma condição que sei ser tão medíocre como a minha, mas muito mais mediática.
Nos jornais da Capital, as notícias são os títulos. Por isso, à semelhança dos jornais regionais, também se lêem em cinco minutos. Depois podemos ficar mais um minuto a olhar para as fotografias, enormes, que ocupam um espaço que, num jornal da província, podem conter todas as escrituras e editais de uma edição. O que no jornal da capital é imagem capciosa, no jornal da província acaba por ser um espaço vital para a sua sobrevivência, preenchido a letra de tamanho oito, ou sete, ou quando o espaço se torna exíguo e à falta de notícias, a letra seis, que não se lê a não ser com o auxílio de uma lupa. Mas também quem é que lê as escrituras e os avisos do tribunal, ou da conservatória? É a velha luta entre a ostentação dos ricos e a economia dos pobres. Enquanto uns esbanjam o espaço das folhas do papel em estética, outros aproveitam-no para lá plantarem o seu sustento, tal e qual o nosso micro, pequeno ou médio agricultor que, numa nesga de terra, faz rebentar em vida e cor o jericó com lindos tomates, suculentos pimentos, doces cebolas, tenros feijões e deliciosas cenouras.
A primeira página é todo o jornal. Uma curiosidade: os jornais da Capital dão sempre as notícias em estereofonia. Os jornais da Capital, pelo menos os de referência, trazem sempre as mesmas notícias. Diferem apenas no cabeçalho e no grafismo. E no director. E, também, no grupo económico que o sustenta. No resto são iguais. São como as grandes superfícies comerciais: vendem todas os mesmos produtos e ao mesmo preço. O que ainda não conseguiram fazer é vender tudo num mesmo espaço e às mesmas pessoas. A todas as pessoas. Isso seria o ideal. Mas é um ideal que não anda longe de ser concretizado. Actualmente, os centros comerciais têm o mesmo poder de atracão que o santuário de Fátima. Além de no último andar serem mega cantinas, possuirem ar condicionado e lojas que têm sempre promoções. Hoje já ninguém compra porque necessita de um determinado produto, actualmente compra-se porque as lojas estão sempre em promoção. E oferecem cartões de desconto. E presenteiam os seus clientes com descontos em cartão para o mês seguinte. E no mês seguinte tem mais uma promoção, com desconto em cartão para o mês seguinte. E se o cliente não vai ao centro comercial, abala o jornal a oferecer o cartão no quiosque ao leitor fiel, seja ele de esquerda ou de direita, ou ousa mesmo ir a casa do leitor assinante do jornal, que anuncia as suas notícias nos centros comerciais, que, por seu lado, vende jornais e produtos que vêm anunciados nos jornais ou nas revistas que esses mesmos jornais trazem com o suplemento de fim-de-semana.
Os jornais da Capital, fora um que outro diário especializado em escândalos sexuais e políticos, dão ao leitor aquilo que ele quer ler, ou melhor, respeitam integralmente a sua posição político-ideológica. Por isso é que o Público é um jornal de esquerda, porque a maioria dos seus leitores é de esquerda. Apesar de o seu proprietário ser de direita e um dos mais bem sucedidos empresários portugueses. E, apesar, de o jornal dar prejuízo. Lucro só o dão os jornais que são lidos por quem não gosta de ler, não gosta de política, abomina a cultura, pensa mal dos escritores, insulta os professores, bate nos filhos e na mulher, insulta os pretos e os ciganos e brada contra os jornalistas que têm a desfaçatez de redigir notícias que vão um pouco para lá das três linhas, com mais de um nome, dois adjectivos e um advérbio.
Outra coisa que distingue os jornais da Capital, especialmente os de referência, é a extensão das notícias e a forma de pagamento dos seus profissionais. Na Capital, os jornalistas são pagos à palavra em dinheiro vivo. E, os mais responsáveis, são mesmo recompensados com prebendas. Ao contrário da província, onde os escrevinhadores são pagos à peça, em géneros e em provendas. Fora isso, são idênticos. Fora isso e o número de páginas, a quantidade e a qualidade da publicidade, a formação dos jornalistas, o carácter e a sabedoria dos comentaristas e cronistas, o talento dos leitores e a diversidade dos noticiados. Mas, fora isso, a base é a mesma. E a forma. Todos os jornais, dignos desse nome, são impressos em papel.
Ainda outra coisa que caracteriza os jornais da Capital é o teor das notícias. Senão vejamos: na província nunca a condecoração de Cavaco e Sócrates seria notícia. Já a condecoração papal de um presidente de Câmara mereceria honras de primeira página. Mas só nos periódicos de província, pois os jornais da capital não lhe dariam o mais mínimo destaque. E de condecorações está o país farto e cheio. Todos os anos, no 10 de Junho, o senhor Presidente da República farta-se de outorgar medalhas a todo aquele que aparece mais de três vezes na secção gente do Expresso, Público e Visão, o que já possibilitou a condecoração de várias personalidades lusas mais de três vezes, com condecorações distintas, mas com o mesmo fim. Mas cá na província também já a moda pegou. E ainda bem. No 8 de Julho, os funcionários mais dedicados da autarquia flaviense são agraciados com distintas comendas. Nada do que são boas práticas nos deve ser estranho. E não é.
Mas como a crónica já vai longa, registo como boa a notícia que a prostituição infantil deixou as ruas da Capital para se instalar nos motéis, pois o que não é visto não é lembrado. Congratulo-me com a sabedoria de Lobo Antunes, que despreza os factos para se concentrar na leitura simbólica dos que mataram e morreram em África. Leio com alívio que o casamento gay não afecta o Vaticano, sem atinar bem com o propósito do escrito. Não me escandalizo com as compras e os alugueres que o Estado faz a si próprio, pois eu sei de ciência certa que o Estado somos todos nós e qualquer um e que por isso pagamos os impostos com que nos pagam a saúde e a educação e as estradas, e que pagando nós a saúde e os impostos e pagando o Estado também a saúde e pagando impostos das sua compra e vendas e pagando IRS e IRC que depois arrecada para pagar subsídios aos que deles necessitam pois são povo e Estado e, bem já me perdi, mas sei, também de ciência certa, que os senhores que governam o Estado não se perdem com tanta facilidade como eu pois sabem bem as linhas com que se cosem e com que nos cosemos todos. E fico triste com as aldeias pois não têm remédio. E se quem o diz é um jornalista da capital, só nos resta o caminho da resignação. O que não tem remédio, remediado está, bem diz o povo na sua imensa sabedoria, pois por isso é Estado e por isso paga os impostos e por isso é soberano na hora de escolher os nossos governantes que também são Estado e povo e por isso são sábios. Por fim, encho-me de orgulho pelo facto do coelho ibérico ter conquistado o mundo. Não sei se antes ou depois dos portugueses também o terem feito nas suas caravelas quinhentistas. Agora estamos na época dos futebolistas conquistadores. Sei que mesmo os pastéis de Belém já conquistaram adeptos em várias partes do mundo. Estou em crer que a seguir virá o tempo do porco ibérico, da galinha pedrês e dos frangos do aviário, mas apenas dos que são criados ao ar livre. Por fim, a globalização de Portugal vai ser uma realidade.
PS – Aproveitem o mês de Setembro para engraxar os sapatos de Verão e guardá-los no sótão. Dizem por aí que o Verão de 2011 vai ser pior do que o de 2010. E que a crise vai ser mesmo a sério. O tempo das vacas magras vai regressar. Por isso todos os cuidados são poucos.