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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

03
Mai17

Cartas ao Comendador


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Meu caro Comendador (Post scriptum) (23)

 

 

O Comendador foi hoje a enterrar. Nem mal nem bem, nem mau nem bom! Acontecem estas coisas a quem está vivo e depois deles partirem fica em nós, a eles sobreviventes, uma espécie de nostalgia, nem bem isso, um arrependimento do que com eles não vivemos embora estando e do que com eles vivemos sem ter estado! Qualquer coisa de muito ténue e ao mesmo tempo decisivo e determinante, como se nos viessem parar às mãos as cinzas de uma incineração que nem pedimos, nem forjámos, nem quisemos e que talvez por isso não omitimos! Fica em nós um misto de lamento, dor e sofrimento pelo que não dissemos, pelo que não fizemos, pelo que não sentimos e, em oposição a isto, pelo que dissemos, fizemos e sentimos!

 

Por um momento a nossa vida para. Enquanto o corpo desce, sustentado por cordas que seres humanos seguram entre as mãos e alternando forças o deixam descer, enquanto não vêm outros com pás colocando ou repondo a terra que os seus corpos há-de cobrir, visita-nos um sentimento estranho de tomada de consciência: então era para isto que estávamos destinados?! Qual é agora a surpresa? Estávamos fartos de o saber, durante anos sabíamos e soubemos que um dia isto ia acontecer, mas acreditávamos que quando isso fosse já estaríamos, ao menos moralmente, preparados! Como se isso fosse possível!

 

Hoje, enquanto o canto gregoriano ecoava na igreja de Santa Clara, presentemente em obras de restauro, eu procurava nos bolsos do casaco um qualquer objecto que, junto consigo, o fizesse acompanhar ao Paraíso. E perguntava-me: o que diria Deus quando o senhor lá chegasse? Bateria por certo à porta antes de entrar, como ditam as regras da boa educação, até aí eu sabia, mas que diriam do outro lado? “Sim, entre!” ou apenas “Sim!” Entraria o senhor neste segundo caso ou aguardaria que de forma explícita lhe fosse concedido entrar ou ainda, dizendo melhor, que oficialmente se formalizasse o convite?

 

Bem sei, não passam de pormenores estas minhas questões, mas os dois sabemos como elas ou a resposta a elas é importante no estabelecer e desenvolver das relações humanas! Concordará talvez comigo se eu acrescentar: a pobreza das relações humanas!

 

“Sim, entre!”, é qualquer coisa que se diz quando se está seguro e se não teme qualquer invasão de privacidade por ela estar assumidamente bem guardada! Já o simples e isolado “Sim!”, reflete alguma insegurança no pronunciar de quem o diz e deixa algum constrangimento em quem espera do outro lado pela resposta. Instala-se a dúvida: devo ou não entrar!? E neste silêncio que dista a pergunta da resposta passa, às vezes, inutilmente a vida!

 

“Sim, entre!” É a única coisa que nos devia ser permitido dizer a quem tem a confiança de nos bater à porta. Nunca é atrevimento bater, mas sempre será arrogância o não permitir entrar.

 

Se a questão é ou foi de atrevimento, teremos depois tempo de o analisar! No momento, devemos ter abertura para receber seja o que for ou seja quem for que se nos dirije porque devemos por sempre a hipótese que a pessoa que o faz, pode precisar de nós e nós estamos cá também para isso ou deveríamos estar.

 

Mas falamos de Deus, um ser que não é terreno, do qual nem sequer sabemos se tem sentimentos posto que na ausência de um corpo, com que sentirá ele? Com o Espírito, o Santo? É com o espírito que se sente e que se tem as emoções? Na verdade Ele não precisa disso para nada! E pode perfeitamente bastar-Lhe a percepção dos sentimentos porque as pessoas que são muito inteligentes conseguem substituir umas coisas pelas outras e dar-lhe a mesma finalidade. Nem sempre nem nunca! Em tudo há excepções!

 

Mas, dizem as más-línguas, que Ele gosta de ser avisado e saber quem está, antes de abrir a porta.

 

Ironia das ironias, para não dizer injustiça consumada! Ele que sempre surge do nada, a todos nós, sem aviso prévio, sem consulta, sem perguntar se pode, sem as melhores notícias! Toma-nos de assalto, ceifa-nos a vida e da vida, não nos dá uma segunda oportunidade, não nos perdoa nem mesmo quando lhe suplicamos, não nos ouve quando imploramos, não nos estende a mão quando choramos ou a seus pés nos ajoelhamos e quer educação e respeito da nossa parte!? Então não é com o exemplo que se ensina? Não é dando-nos ao respeito que somos respeitados? Sim, o Todo-poderoso pode dar-se a estes luxos, mas está na nossa liberdade poder julgá-Lo, ou não! Quem é que Ele pensa que é, acaso Deus?! Quem faz Dele isso? Nós, sem nós Ele não é ninguém! E é esta lógica universal que é toda como nossa!

 

Perdoe-me estes devaneios, afinal é do dia do seu funeral que estou a falar, mas o senhor conhece-me e sabe que não é por mal, começando a pensar nem os tambores africanos me impedem o concluir das coisas ainda que, nas mais das vezes, isso não seja de todo sinónimo de ter encontrado a verdade ou nem sequer de seguir uma lógica ou até de ser racional! Dedução apenas, associação de ideias, como quem instintivamente come cerejas, umas atrás das outras, mas que só decidiu comer a primeira!

 

Estranhei o facto de que, enquanto o caixão descia, eu não sentir qualquer remorso ou inquietação por não cumprir com o seu último desejo, do qual eu era o único e fiel depositário e com documento escrito! Ao contrário, senti uma espécie de libertação ao ter consciência de não poder decidir sobre a minha vida, mas poder fazê-lo sobre a sua morte! E a circunstância foi exactamente esta: que diferença é que isso faz?! As promessas têm, ou deveriam ter, garantia vitalícia e, com tudo o que estava a acontecer, eu não sentia que se tratasse de nada disso!

 

Ainda que de início a ideia me tenha parecido perversa, como se de alguma forma eu me estivesse a apropriar de uma coisa que não era minha, embora o caso fosse apenas o tratar-se do manifestar de uma vontade, instantes depois ignorei-a com uma facilidade e ligeireza que de novo me preocuparam e perguntava-me intimamente: o que diabo se passa comigo para não dar importância nenhuma àquilo que, em determinada altura, me chegou a parecer um elogio que, vindo de si, contava sempre a dobrar! E foi crescendo em mim um sentimento estranho a que não sei dar nome, que vacilava entre a indiferença e o desprezo, mas que não era nem uma coisa nem outra porque eu seria incapaz das duas! Seria?!

 

Quando dei por mim estavam já as pás a alisar o terreno, o Sol estava forte nesse dia e eu senti uma tontura tão aguda que teria mesmo caído ao chão, no mesmo que o cobria, não fosse alguém que reparava em mim ter-me segurado com firmeza pelo braço! Demorei anos a compreender a sua atitude e não me refiro a uma em particular ou isolada, refiro-me à que tinha perante a vida!

 

Passa também por aí ou sobretudo por aí este sentimento anacrónico que hoje me invadia. Em determinada fase da nossa vida temos absoluta necessidade de que os outros nos compreendam, para aprovar depois, os nossos actos, mas não é absolutamente necessário que assim seja!

 

É no dia, exactamente no dia, em que prescindimos disso que se torna em nós claro a gratuidade com que até aqui vivemos! Dar satisfação de quê, a quem? Nunca isso nos foi claramente pedido e, ainda que o tenha sido, porquê? E, sim, levo ao limite, ainda que tenhamos uma qualquer necessidade inexplicável de responder a isso, para quê?

 

Foi isso que eu hoje percebi enquanto o que agora morto se substituía ao que foi vivo em si! A morte de um Deus! Parasita em todos os sentidos!

 

Esta mudança de estado físico foi-se entrando em mim numa permeabilidade que por certo eu permitia, mas da qual não me dava conta. Dou-lhe agora conta disso a si, embora em mim eu tenha a dúvida com que sempre ficarei de se isso adianta alguma coisa para o bem entender das coisas! Dessas e de outras, posto que agora me refiro a todas! O senhor tinha a resposta a isto e nunca ma fez saber, esperou que fosse eu a descobri-la para que não pudesse esquecê-la. E, sei agora que teria sido importante na altura tê-la comigo quando não a tinha e que agora, que a tenho, não me faz diferença nenhuma!

 

Chegámos a horas diferentes ao mesmo sítio, porque partimos de pontos diferentes, talvez até do mesmo ponto, mas de outro pressuposto!

 

Tenho hoje como verdade, nunca absoluta porque a isso me não atrevo, de que o presente nunca será vivido no tempo certo, adequado ou ajustado a ele, porque a realidade nunca a esse tempo é conhecida! Vagueamos entre o extremo do que queremos e aquele do que nos achamos com direito a ter e nunca, é verdade isto, conseguimos determinar o tempo, o espaço e com quem isso pode acontecer! Dá pena, anos depois, ver essa verdade surgir à nossa frente quando já não podemos fazer com ela nada!

 

O corpo dentro do caixão desceu às profundezas da terra e não tive ocasião de lhe dizer em vida, embora as oportunidades não faltassem, de que o que queremos, sentimos e desejamos está sempre aquém da nossa realidade física!

 

Há certamente uma forma, um como e um tempo certos para isso, e nunca poderei compreender como tão sábio que era e foi, o senhor nunca conseguiu encurtar a distância, travar o momento, indicar-me o caminho, dizer-me por onde eu devia ir ao meu encontro! Não o sabia!

 

A desilusão está aí.

 

Paz, neste dia, à sua alma.

 

Do seu para sempre amigo

José Francisco

 

 

 

 

26
Abr17

Cartas ao Comendador


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Meu caro Comendador (22)

 

Afinal, não sou capaz! As cartas, quando lidas por mim, gosto delas, mas quando lidas imaginando que é o senhor a lê-las, acho-as tão aquém, tão pobres, tão esvaziadas de sentido! Pergunto por si: Para quê isto? Porquê isto? Que significado tem o que aqui é dito e o que aqui, sem ser explícito, é, da mesma forma, dito, escrito?

 

De quem vêm estas palavras? Onde pretendem chegar? Há uma direcção nelas, um propósito? Qual? E não vejo nestas “suas” perguntas qualquer resposta à altura delas. Sei que pode não as fazer, nem sequer as pensar, mas não serei eu a poder dar-lhe essa decisão.

 

Envio-lhe esta última, as outras que anteriormente lhe escrevi, serviram-me ontem para acender a lareira e saiba, facto curioso, que mais depressa que o papel, ardeu nelas a tinta das palavras!

 

Estranho é eu, enquanto aquecia nas mãos o meu conhaque e segurava entre os dedos o meu charuto, vê-las a arder sem qualquer lamento, assistindo simplesmente a esse acto de combustão pacífico! (Sem a vírgula, ficamos sem saber o que é pacífico: se o estado em que eu fiquei ao assistir ao acto ou se a forma como decorria o acto em si! Talvez as duas sirvam!)

 

Ao mesmo tempo que as palavras se iam convertendo em cinza, da tinta preta subia aos céus uma luz branca. Se fosse crente diria que era, à semelhança da alma que se evade dos corpos quando eles perecem, também uma alma, pois que após a morte tudo é imaterial e o que distinguirá um ser que foi vivo de outro que nunca o foi?!

 

Mas o senhor, acreditaria nisso? Que das minhas palavras, depois de ardidas, se desprendeu uma massa invisível com consistência de alma?

 

Meu caro Comendador, se há coisa que sempre admirei em si, foi esse seu pragmatismo de não querer ver nas coisas mais do que as coisas são ou mais do que elas se julgam ser. E, por mais que lho tivesse dito que sempre haveria de chegar um dia em que todos nós havíamos de descobrir o quanto estávamos enganados, o senhor nunca se deixou incluir nesse grupo e eu respeitei-o sempre, também por isso.

 

Hoje, enquanto as cartas ardiam, eu senti uma paz tão grande! Não a sei medir nem encontro nada que se lhe compare para lha poder descrever. O melhor que lhe sei dizer é que senti um enorme alívio, semelhante ao que sentimos quando alguém que nos fez muito mal morre e nós pensamos: “Este, já não me faz sofrer mais!”, maneira de dizer, podemos conseguir a mesma coisa quando decidimos que a pessoa morreu e deixamos mesmo definitivamente de a ver sem que haja necessidade absoluta que morra! Toda a necessidade é relativa, disse-mo tantas vezes e eu sem nunca perceber do que o senhor me estava a falar, pois que para mim tudo era tudo, nada existia por partes nem metades nem parcelas, ou se era ou não!

 

Mas, voltando às cartas, as letras saíam das linhas imaginárias, bailavam, entrelaçavam-se e faziam desenhos, grafismos, imitavam fotografias. Houve uma altura em que me pareceu até um filme, tal era a rapidez com que as imagens das fotografias se sucediam uma após outra e com o evoluir da peça e o caminhar lentamente para o fim, o meu estado de espírito elevava-se e, facto para mim inexplicável, a última carta que ardeu foi a primeira onde, por uns segundos, ainda consegui ler as primeiras frases e sabe qual foi a palavra que me saiu? Nenhuma dessas!

 

Poupo-o, por isso, a uma série de questões às quais, nem eu que as fiz, sei responder.

 

Tenho hoje como verdade, não o enumerar de pressupostos racionais, argumentativos ou outros, premissas lógicas com relação estabelecida de causa e efeito, filosofias coerentes e bem sustentadas, mas tão só a paz interior.

 

Sou quem sou e tenho pena que o senhor não tenha percebido isso, nunca porque a sua inteligência o não tivesse permitido, porque lhe permitiu mais do que isso, mas porque eu não lho soube explicar. O sentimento tem esta limitação comparativamente ao raciocínio: nem todas as palavras servem!

 

Sinto-me hoje, não direi na obrigação, mas no dever, posto que parte de mim, de lhe explicar que esta minha atitude não tem nada a ver com aquele pecado mortal de que em tempos lhe falei! Estar-lhe-ei para todo o sempre grato por me ter feito notar a consciência que me passava ao lado. O que aconteceu foi eu ter percebido que o senhor não era, em boa verdade, o destinatário das minhas cartas. E, mais uma vez, a si o devo!

 

Tomei consciência disso no dia em que ficou sem me responder a três cartas que lhe enviei, ou que supus lhe ter enviado, e como a minha vida não parou por causa disso, percebi que não dependia a seguinte, da sua resposta à anterior e percebi, também, que o facto é que eu escrevia para mim e que o que o senhor me estava a fazer notar era que não podemos adiar a nossa vida ficando reféns da resposta dos outros, porque aquilo que adiamos para depois pode nunca acontecer, porque enquanto preparamos a nossa ideal resposta à vida, ela não espera por nós como nós esperamos por ela e percebi, ainda, que talvez fosse demasiado tarde para lhe dizer o que devia ter dito e feito há muito tempo.

 

Falta-me perceber porque recorre o senhor a estratégias tão difíceis e indiretas, digo pouco lineares, para me dizer o que seria tão simples, sendo o senhor um dominador nato da língua portuguesa, mas, se bem o conheço, recorre a esses caminhos tortuosos para me fazer pensar ou concluir que as respostas às perguntas que lhe faço e até às que lhe não faço, estão dentro de mim. Compreendo-o e digo-lhe que comigo essa atitude até funciona, mas não lhe garanto que resulte com toda a gente! Até isto o senhor sabe porque me conhece a esse ponto e está tão por dentro de mim que se não fosse isto uma verdade o senhor teria escolhido certamente outro caminho ou outra forma de me demonstrar as mesmas coisas!

 

A este propósito faz-me lembrar um amigo que em tempos tive e que de cada vez que eu precisava dele, ele me ignorava e quanto maior era o meu desespero e lho fazia saber, mais ele me desprezava. Deixei de o procurar por isso mesmo, porque me pareceu não só uma pessoa cruel, mas falso na amizade.

 

Um dia, quando estava a morrer e eu me fui despedir, ou dizer até breve, estas coisas a gente nunca sabe como falar delas, confessou-me a esse respeito que nessa altura me achou muito frágil e que se me tivesse ajudado eu poderia no futuro voltar a fraquejar, mas se me abandonasse e me deixasse sozinho na dor, eu perceberia a força que tinha dentro de mim! Pelo seu estado debilitado, minto, por educação, não consegui nem bater-lhe nem insultá-lo, embora me apetecesse fazer as duas coisas! Deixei-o morrer assim, sem perceber se ele realmente acreditava no que dizia ou se não passava de um perfeito idiota! A diferença, não me fez diferença!

 

Quando um dia regressar de Londres, e se regressar porque já percebi que essa cidade o fascina, talvez por ter de bom o mesmo que o Porto tem e por não ter as memórias que do Porto não quer ver lembradas, assim é a memória dos homens inteligentes, haveremos de ter certamente oportunidade de falar destes e de outros assuntos que consomem alguns dos seres humanos, digo-o tendo por certo o que é de todo incerto: o seu regresso. Admiro-o por isso, pela coragem que tem em tomar decisões que embora estejam contra o seu sentir, servem na perfeição a sua ambição de futuro ou o seu ideal de presente! E digo isto consciente de que a coragem está, não propriamente no tomar de decisões, o que é relativamente fácil porque até eu o consigo, mas no saber depois lidar e viver com elas!

 

Dizia, se regressar de Londres, avise-me com alguns dias de antecedência porque quero preparar um jantar especial para comemorar a nossa eterna amizade. E digo-lhe isto porque sei que não aprecia surpresas. Enquanto eu pagaria uma fortuna para ver a minha reacção ao desconhecido, o senhor paga o mesmo para se preparar para o que o espera. E isto que dantes eu não entendia, está para mim hoje claro: quer comemorar com antecedência a festa a que vai, contrariamente a este seu amigo que festeja só no fim o que lhe dão de início. Formas de ser, atitudes diferentes, nem melhor nem pior, é assim o modo e o destino dos homens!

 

Se, por decisão do destino ou pura teimosia, que ele é arrogante a esse ponto, e embora seja o que sinceramente eu menos espero que aconteça e o que menos desejo, regressar naquele móvel rectângular de madeira, sei que consigo posso falar da morte com esta clareza sem que o senhor mo leve a mal, farei como combinado e prometido, a não ser que o mesmo destino decida também por mim e contrarie ou inverta os factos vulgarmente ditos normais, de abandonar primeiro esta vida aquele que há menos tempo nela está.

 

Saiba que ainda assim, concordarei com ele porque a vida de cada um não se mede em quantidade, mas em qualidade e a minha, mesmo que o senhor o contradiga, é largamente diferente da sua. Esclareço: refiro-me à intensidade com que vivo as coisas! Eu tenho o finito por eterno e o senhor tem por finito o finito! Vivo por isso mais em menos tempo! Mas, para que possa cumprir com o acordo, peço-lhe que mo deixe escrito, por causa daqueles pormenores legais a que, em sociedade, nós temos de obedecer. Ninguém acreditaria, só dito por mim, que a sua vontade fosse essa e por isso, para que possa dar cumprimento ao seu desejo, rogo-lhe que tenha a maçada de se deslocar a um notário que reconheça a sua assinatura como sinónimo da sua vontade.

 

Não gostava de terminar esta carta desta forma, com receio de que a nostalgia ou saudade, traduzida a anterior palavra do grego para a língua portuguesa, sob pena de que ela se instale em mim e comande os meus próximos dias! É perigoso isto de nos habituarmos às coisas, sejam elas boas ou más. Veja um exemplo: há uns tempos encontrei um amigo de infância e vendo-o a mancar perguntei-lhe o que lhe tinha acontecido. Disse-me que tinha sido operado a um pé fazia um mês. Um ano depois voltei a encontrá-lo e vendo-o da mesma forma a mancar comentei: já vi que a operação não correu bem, ao que ele respondeu: Não, a operação correu bem, eu é que me habituei a mancar e agora não consigo andar normal!

 

Concordará comigo se lhe disser que, às vezes, temos de ser mais ousados que o destino e desafiar, não digo a ordem natural das coisas porque seria pecado, mas o normal desenrolar dos acontecimentos e introduzir algum relevo no terreno para que a satisfação do seu objectivo ou a sua superação nos permita maior satisfação individual. Clarifico: porque não tira umas curtas férias e vem a Portugal verificar se o que deixou para trás está lá ou se continua no seu actual presente?! O senhor percebe bastante mais destas coisas que eu, mas a ideia que lhe estou a sugerir é no sentido de perceber se a partida lhe serviu efectivamente de cura ou se o que o senhor mais não fez foi enfiar-se num buraco até que o descubram ou, exactamente o contrário, enfiar-se num buraco para que nunca o descubram!

 

Talvez esteja na altura de invertermos papéis! Que lhe parece?

 

Sempre o mesmo grande abraço do seu

José Francisco

 

 

19
Abr17

Cartas ao Comendador


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Meu caro Comendador (21)

 

Concordo novamente consigo! Estranho seria o contrário disto! Há sempre um grau de incerteza nas conclusões que tiramos da observação empírica quando não questionamos os meios com que a experiência foi concebida, desconhecemos os pressupostos e ignoramos os objectivos que estiveram na sua origem ou na sua criação! Parece-lhe mais correcto substituir criação por invenção? Também o senhor vê uma grande diferença nisto?

 

Sabe como eu sou nesta matéria, ponho tudo em causa: o que é tido como certo e o que é tido como incerto. A razão de isso ser, continua a ter razão, é a minha procura desesperada da verdade! E isto, ainda que seja por mim conhecido e o aceite como razoável, não deixa de colocar-me a questão: porque o faço?

 

É, ou talvez seja, para salvaguardar o erro. A busca do conhecimento universal da parte! Ainda que muitas vezes duvide do significado disto, da sua realidade ou intenção, não deixa de ser para mim um motor cujo princípio de funcionamento eu não hei-de morrer sem conhecer! Embora aceite pacificamente que, em substituição da verdade, eu me possa contentar ou satisfazer com um gémeo dela, verdadeiro ou falso, basta-me o serem irmãos, filhos do mesmo pai e da mesma mãe!

 

A implicação que o conhecimento dessa verdade terá na minha vida, não o sei neste momento medir nem avaliar, mas o senhor sabe como o presente não é para mim prioritário, ainda que isso seja por mim reconhecido como um erro crasso! Tenho esta limitação, que assumo! Penso sempre em termos de futuro, é uma questão de conjugação dos verbos: quando tenho uma coisa nas mãos, em vez de pensar no que é que faço com ela, penso no que farei com ela! O senhor acha que eu sou um idiota ou um visionário?

 

Mas, dizia, a verdade que nos aparece em imagem ou refletida à nossa frente é, ainda assim e para mim, sempre questionável! O meu desespero ou ânsia de a ter, não poderá dar-lhe contornos falsos, precipitados, irrazoáveis, inexistentes? É um contrassenso: por um lado procuro a autenticidade, o que é genuíno, mas ao mesmo tempo tenho consciência de que a procura desenfreada de uma necessidade que tenho pode, pela sua urgência, ser um produto de ficção, uma sublimação, compensação ou substituição daquilo que naturalmente eu gostaria verdadeiramente que existisse! Sempre a mesma coisa a limitar-nos, o raio da perspectiva que até para arquitectos será provavelmente difícil de distinguir, querendo, uma da outra, sendo a outra várias!

 

Já reparou, voltamos sempre ao mesmo, como é que havemos de separar o que é natural do que não o é, posto que quase tudo é natural? A própria luz do Sol nos é capaz de induzir em erro, modificando até a cor das coisas sobre as quais incide ou sobre as quais faz sombra e a luz do Sol nunca poderá ser vista como artificial pois que até se usa como sinónomo dela luz natural! Mas também já esgotámos este tema, as palavras valem o que valem!

 

As nossas necessidades ou são controladas ou nos levam à loucura! E, coloco-lhe aqui a questão, quem poderá decidir ou determinar sobre isso?

 

Já lhe aconteceu, por um lado sentir-se livre pelo poder do poder de decisão e por outro prisioneiro pela mesma razão?

 

Claro que há uma forma, embora nada simples, de resolver estas questões! Já uma vez falámos disto: não as fazer. Outra, ainda mais difícil, é fazê-las e saber responder-lhe e outra, a que escolho, é colocar-lhas a si. Fácil para mim e simples para si.

 

Bem-haja

José Francisco

 

 

12
Abr17

Cartas ao Comendador


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Meu caro Comendador (20)

 

Ainda não lhe disse, faço-o agora, mas comecei a publicar e, desde essa altura, tenho recebido as críticas mais improváveis que possa imaginar! Erros científicos, erros literários, erros de concordância, em plural e género, incoerência nos raciocínios, falta de lógica e razoabilidade…

 

Falam-me em assegurar o lado terapêutico da escrita, como se eu fosse médico, farmacêutico, curandeiro que seja! Julgam-me padeiro, que tem uma receita; mecânico, que tem um objectivo; alfaiate, que faz fatos por medida; canalizador, que desentope ou purga! Nessas profissões deve haver, ao menos suponho eu, uma intenção, mas não o afirmo porque não é a minha área nem eu as domino para poder falar delas!

 

Perguntam-me porque não penso em conter um pouco a inspiração, de forma a poder arrumá-la antes de a utilizar ou de me servir dela! Sugerem-me que vale a pena ir aprendendo a parar um pouco para refrear alguma desarrumação que não potencia um resultado tão bom quanto afinal podia de facto ser!

 

Que uma vez por outra, volte atrás e pense se tudo está desenhado de acordo com a intenção inicial ou se, estando arrumado, está de acordo com intenções que posteriormente tenham surgido; se a ligação merece ser melhorada ou se vale a pena fazer um pequeno desvio de algum tipo e que devo interagir com o texto assertivamente! Construção civil, tijolo sobre tijolo!

 

Sugerem-me que pense dez segundos antes de começar a escrever, não sei se são os mesmos dez que devemos contar para nos acalmar, não vejo relação nisto, mas pode ser obra do diabo que ele tece-as; ou até, veja, porque não corrijo no fim as ideias que se desviaram do propósito inicial, como se houvesse na escrita algum propósito! Referem-se a ela como se se tratasse de um trabalho, ao invés de um acto criativo!

 

Dão-me conselhos, o senhor acredita nisto? Pois é verdade!

 

 

Mas não se preocupe comigo, tenho a coisa controlada! Mostro-lhe como: aqui há uns meses publiquei uma crónica de uma ironia, sarcasmo ou cinismo, não direi invulgar posto que em mim é o corrente, também não digo que a coisa fosse transparente que não era, porque também isso em mim não é vulgar, mas pareceu-me clara, embora não directamente óbvia, digamos que era facilmente entendível! Pois não foi, nem minimamente! Uma das críticas foi que o texto tinha uma leveza tão grande que dispôs bem as pessoas! Pensei: ai valha-me Deus! Mas não comentei, sorri em vez disso!

 

Ou seja, o impacto que estas críticas têm em mim é que eu, por curiosidade, vou ler aquilo a que se referem, agora já com esta informação adicional, e sabe que não encontro, onde os outros lêem o que lêem e onde para os outros é fundamentada a crítica, qualquer lógica no que dizem! Pergunto-me sobre isso, se estarei a perder a lucidez ou até mesmo a enlouquecer, pois que não vejo no suposto evidente nada de verdade!

 

A maioria das pessoas não entende o acto de criação e não serve de muito explicá-lo. Primeiro porque nunca se entende uma coisa que se não tem nem sente, e não estou a fazer juízos de valor, o senhor sabe que eu não gosto disso; depois porque nunca o criador saberá explicar por que motivo faz uma coisa que lhe é inevitável!

 

Mas não posso, mais uma vez, falar em nome dos outros porque eu não estou sob a sua pele! Digo-lhe isto apenas em tom de desabafo porque me parece simplesmente que não faz nenhum sentido dizer a um escrivão que há erros no depoimento e sei que o senhor me compreende, o que me é, por agora, o bastante e o suficiente. Não aspiro, neste momento, a mais do que isso.

 

Não sei se concorda comigo, mas o que me parece não estar claro para quem lê, é o pressuposto de que é o autor que escreve quando nas mais das vezes é um pseudónimo, heterónimo ou o que lhe queiram chamar!

 

Mesmo que ao escrever eu me sentisse tentado, que não sinto, a mudar ou a acrescentar alguma coisa, nunca o faria, não fosse eu, com esse acto de pura leviandade, distorcer algum sentido que para o seu verdadeiro autor é o fundamental! Deus nos livre, era preferível roubar!

 

E o que me preocupa mais é, não vai acreditar, não o que dizem a esse respeito, mas o facto de eu me não importar com isso! É como se estivessem a falar de alguém, o que é verdade, que eu conheço, mas que não sou eu, e vejo por isso a crítica com isenção, e toda a minha defesa vai no sentido de respeitar a opinião de quem escreve e pensar que se fosse eu a não entender o que está escrito concluiria, antes de fazer uma consideração a esse respeito, que tinha talvez uma qualquer limitação que me não permitia chegar ou acompanhar o raciocínio do autor, mas nunca passaria pela minha cabeça que ele se tivesse enganado! E o que faço, então, é ler mais uma vez, à espera de que se me faça luz cá dentro porque, teimoso como sou, penso sempre: algum sentido isto deve ter! E não demoro a encontrá-lo, talvez não ao pensamento de quem escreveu, mas a um que me satisfaça! Não é este o trabalho de um leitor? É honesto, querermos embrulhar uma prenda num papel mais pequeno que ela?

 

Mas, já percebeu que o meu problema não é minimamente este! É verdade, começo a pensar se terei sido eu sempre fiel na tradução e que talvez me aconteça num caso ou noutro não ter percebido bem a caligrafia e acabar por escrever coisas, ter colocado lá palavras, que não eram as originais! Instala-se a dúvida de ter copiado bem ou mal, que neste caso são sinónimos!

 

Pois não sei, humildemente lhe confesso que não tenho solução para isto, mas também não me parece grave o facto, pois que se quando em alguém que escreve, houvesse nele o receio da discórdia, escrevia não talvez com palavras, mas com números! Porque a matemática, dizem, é exacta e não susceptível de interpretação!

 

Com o abraço do seu

José Francisco

 

 

22
Mar17

Cartas ao Comendador


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Meu caro Comendador (17)

 

Hoje acordei desiludido e, não fosse o ter consciência disso, não teria isto qualquer importância! Lembro-me a este respeito de um comentário seu e o senhor sabe perfeitamente em que contexto mo disse: só se vai curar quando deixar de se preocupar com o óbvio! Saiba que até hoje ainda não fui capaz! E isto decorre talvez do facto de acreditar que nada do que acontece é por acaso, rectifico, de que tudo o que acontece tem certamente uma explicação, embora nem sempre eu a conheça ou saiba sequer qual é! É esta, penso que poderei dizer, falsa esperança que me remete não raras vezes, pecaria menos se dissesse com frequência, para uma amargura que às vezes se me entranha nos ossos.

 

Explico-me melhor: finalmente alguém me disse o que eu já sabia! Agora não tenho como ignorá-lo. Enquanto a certeza foi só minha, podia chamar-lhe o que queria, bem sabe como são estas coisas do foro íntimo, a gente faz o que quer e ninguém tem de saber de nada. Conseguimos com uma facilidade extrema duvidar das certezas que temos e acreditar nas maiores mentiras, por isso mesmo, porque nos dá mais jeito! E quantas vezes vivemos assim, deliciosamente enganados até ao dia em que alguém de fora nos diz o que há muito sabemos. Ainda aqui, os nossos mecanismos de defesa operam ao limite! Se for um estranho não damos importância nenhuma, mas se for alguém por quem temos estima, consideração e respeito é o diabo, não há como fugir a isso. É por demais evidente, concordo consigo, que ainda assim inventamos desculpas como o pôr a hipótese de termos percebido mal, que não foi bem isso que a pessoa quis dizer, que talvez esteja a exagerar, que não tenha toda a informação disponível para tirar essa conclusão ou até, é verdadeiramente incrível isto, que nos estão propositadamente a enganar, para nos poupar a coisas piores!

 

É essencialmente por isto que hoje lhe escrevo! Lembra-se do dia em que isto me aconteceu pela primeira vez e o senhor me gritou dizendo: “Chega!”? Sei que já lá vão mais de trinta anos, mas nunca apaguei esse seu acto da memória porque funcionou comigo como um despertar para a vida, foi sinónimo de: Acorde!

 

À semelhança do que então se passou, precisava hoje que me fizesse o mesmo, embora desta vez a coisa tenha, não digo contornos piores posto que isso seria impossível, mas certamente mais graves! É que desta vez o problema não se resolve fazendo-me ter consciência dele! Desta vez eu quero, em consciência, depois de ter tomado consciência dele, continuar a ignorá-lo!

 

Está a perceber não está?! E escolhi escrever-lhe a si porque sei que sabe perfeitamente distinguir este sentimento daquele outro que é o de nos querermos propositadamente enganar. Com este último, o senhor já me ensinou em tempos a saber lidar, mas do que hoje lhe falo põe-me algumas dificuldades acrescidas.

 

Sem qualquer critério de eleição para referir este em primeiro lugar, coloco-me a questão da medição do ser consciente e sei perfeitamente, ao menos julgo-me disso consciente, que me estou a meter num beco sem saída.

 

Faço um parênteses literário, acabei, também consciente, de utilizar um pleonasmo pois que beco é por definição qualquer ponto sem saída e o ter-lhe acrescentado outra, é uma tentativa de usar o objetivo da hipérbole, mas em sua substituição! Falhada a tentativa de medir fisicamente em graus de adjectivos, grandezas imensuráveis, apelo a outras soluções menos objectivas, mas neste caso necessárias. O senhor sabe como me preocupa o racional!

 

Pergunto então que credibilidade terá para mim o querer? E, da mesma forma, quero medi-lo, ou seja, até que ponto eu quero?

 

Qualquer um, à excepção do senhor, estaria aqui já perdido, mas como no seu caso eu sei que me segue em pensamento, ainda que só muito raramente ele seja linear, prossigo.

 

Para medir o querer, analisá-lo ou pesá-lo eu tenho de introduzir aqui outra grandeza: o sentimento. Até que ponto eu sinto para, ainda assim ou apesar disso, querer?

 

Parece-lhe correcta esta ordem dos factos ou colocaria, se fosse o senhor a fazê-lo, a vontade à frente do sentimento, digo, antes?

 

É o que queremos que define o que sentimos ou ao contrário? Escolhendo uma das duas, é sempre da mesma forma, ou depende dos casos? E o que é que faz depender ou variar as vezes em que é uma ou outra?

 

O senhor também é um jogador! Embora nunca mo tenha expressamente dito, há coisas que não é necessário que se ponham em palavras. Sei até, um dia podemos discutir sobre isto, porque o faz. É uma das formas que tem de ensinar. Até aqui eu sei. O que já não sei e gostava de o saber, é se essa também é uma das formas que tem de aprender! Digo isto porque no meu caso, suspeito, com algum grau de confiança, que é disto que se trata e que em alguns casos esta atitude se sobrepõe à outra. Sim, dependerá essencialmente dos temas e mais das pessoas a que os temas dizem respeito.

 

Aproveito para lhe dizer o quão grato fico sempre que, desta forma elegante, o senhor me faz notar alguma imprecisão, seja ela de escrita, pronúncia, raciocínio, comportamental ou qualquer outra a que se refira. É justamente essa sua atitude que ao longo dos anos que dura a nossa amizade me fez crescer de forma livre, ainda que o senhor sempre saiba para que lado a minha sombra se inclina!

 

Dito isto, termino hoje aqui, ainda que seja improvável neste ponto fazê-lo, o senhor sabe-me desconcertante e nunca isso o incomodou, bem pelo contrário.

 

Com o abraço deste seu amigo

José Francisco

15
Mar17

Cartas ao Comendador


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Meu caro Comendador (16)

 

 

Falo consigo como falo comigo. Já uma vez lho disse e o facto de o senhor não o ter comentado até hoje, esse e outros aspectos, não traz para mim qualquer impedimento ao nosso entendimento. Sei interpretar os seus silêncios como o senhor sabe interpretar a minha ausência deles, mas o que hoje se me apresentou clarividente é que ambos podemos estar iludidos!

 

Repare o senhor que o facto de supostamente haver duas cabeças com um único cérebro, levanta-me a questão se cada uma delas terá uma parte do seu cérebro que complementa a outra?! Sendo optimista, se nas duas cabeças haverá uma parte omissa, como que apagada, que sem capacidade de decisão deixa que a outra se imponha! Usando alguma imaginação, se manifestando-se só uma é um sinal de que a outra concorda, se uma parte delas ou nelas se está perfeitamente nas tintas para a expressão de ideias e pensamentos da outra, se ainda que em silêncio poderá discordar na íntegra de tudo o que a outra exprime e que apenas, por um sinal evolutivo, ultrapassou já essa necessidade de se explicar por existir nela, arrisco dizer, um pensamento livre e sereno, sinónimo de: estou numa fase da vida em que nada me incomoda. Ou se na dualidade existe, em vez de sobreposição, uma absoluta divergência sendo que uma se manifesta e a outra não! Quem cala não consente, ou então diria: eu também penso assim! Faz parte da natureza humana, porque é fácil, assumir ideias partilhadas, há um reforço de opinião pela mesma, as pessoas sentem-se mais seguras quando há um apoio de retaguarda. Já é contrário à mesma natureza humana dizer-se: eu, penso exatamente o contrário. A cobardia no exprimir de ideias é muito mais frequente e por isso é talvez mais provável que quem cala não consente! Esta é apenas uma das razões porque o silêncio me é penoso: não sei o que esconde, não sei o que encerra, não sei o que pretende, não sei o que raio pensa quem se cala! Sei que esta é uma divergência nossa!

 

O raciocínio não tem necessariamente, para fazer sentido gastar tempo nele, um determinado objectivo. Só por si, o exercício dele, pode ser útil e levar-nos a um outro propósito que pode até ser superior ao primeiro. É isto que eu nunca lhe conseguirei explicar e lamento por si! Quantas vezes tenho chegado a conclusões interessantes por insistir num raciocínio aparentemente sem lógica, raiz, sustentação razoável ou base estrutural? Quantas coisas surgem do nada, da catarse de ideias aparentemente infundadas ou sem sentido?

 

Há o acaso, também, sim, seja o que for que esteja na sua origem, ele surge-nos no dia a dia. Ter a noção disso é já um grande passo: se estivéssemos a dormir nunca o reconheceríamos! Fechar os olhos depois disto é a atitude de quem não quer saber! Pode fazer sentido se tivermos tomado a decisão conscientes de que foi uma escolha! Já é mais difícil para mim aceitar isso como um acaso sem intervenção minha! Que as coisas que nada me dizem respeito aconteçam, é pacífico, mas se elas têm consequências em mim, aí eu já questiono: fui ouvido? Se não, há que apagar o giz do quadro, não vá alguém copiar mal!

 

Mas isto resulta de uma estrutura construída em cima de uma base que considera o homem com direitos e obrigações e este conceito não está muito difundido! As pessoas acham-se com direitos e isentas de obrigações! Sim, claro que sim, falo das morais. A maior parte das pessoas exige dos outros o que não exige de si! Está tudo estragado: como é que eu posso ter respeito por pessoas que dão uma coisa como exemplo e praticam o contrário dela? E, sim é primário, perdendo o respeito pelo outro nada de bom se pode construir à sua volta. Se nos mereceram alguma estima podemos fazer algum luto, caso contrário, a vala comum poupa-nos tempo. É apenas uma imagem, embora saiba que entende as ideias de per si, prescindindo da sua representação!

 

As imagens são uma necessidade minha, uma descrença de que se possa apreender completamente uma ideia sem uma imagem que a sustente porque a imagem se memoriza em segundos! Sim, estou consciente, o senhor memoriza raciocínios à mesma velocidade, mas eu sou mais humano!

 

Um grande abraço do seu

José Francisco

 

 

08
Mar17

Cartas ao Comendador


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Meu caro Comendador (15)

 

 

Pois é meu caro amigo, hoje levantei-me da cama com a convicção dos doidos, inabalável, mesmo quando tudo à nossa volta aparenta e afirma ser, a dizer não é! Confiante de que a felicidade, caso exista, a haveria de encontrar, por mais sórdido que fosse o momento e mais recôndito o local. E achei, subitamente achei! No nada, veja o senhor do que somos capazes quando queremos! Ou do que somos capazes quando disso nos achamos capazes! Poder-lhe-á parecer que brinco, mas não!

 

Basta às vezes decidir para ter, pois foi o que hoje me aconteceu. Deixei chegar as coisas até ao ponto onde elas mais não poderiam ir sozinhas, para que depois elas se voltassem para mim e percebessem, embora sem dizer, a partir daqui preciso de ti! E eu estava lá, onde sempre estive, mas onde só agora fui notado! Funcionam assim as coisas e funcionam bem, o que é preciso é aceitar que assim é!

 

Temos sempre a tendência mórbida de querer alterar as coisas, de as forjar ao nosso pensamento, de as submeter ao nosso destino. Temos um desejo inato de opressão como se tivéssemos nascido tiranos! E não lhe pergunto, desta vez, que explicação tem para isto porque a resposta a ela me não interessa para nada! Simples demais para ser verdade, mas é?! A simplicidade das coisas só entendíveis por espíritos simples, por almas puras, por matéria invisível, por corpos não corruptíveis. Há-os sim senhor, digo-lho eu que os há! Que crianças, que coisíssima nenhuma! Ou hoje o senhor está parvo ou eu encarnei num morto! Claro que sim, uma não exclui a outra e de vez em quando, já reparei e perdoe-me por lho dizer tão francamente, mas o senhor de vez em quando ausenta-se! Se fosse noutro dia, que não o de hoje, perguntava-lhe por onde anda nessas alturas, mas para além de não o querer saber receio que não seja bem nas alturas que anda! Rasteja sorrateiro, dissimulado, como se estivesse no dia de carnaval com o disfarce no bolso, disponível para o colocar na presença daqueles a quem, quando sem ele, não consegue enganar! Muito poucos, concordo inteiramente consigo.

 

Dizia então que foi no alheamento, não misturando nisto distância física, que surpreendi o gato escondido com o rabo de fora! A felicidade cintilava, não basta aqui a palavra brilhava e perceberá rapidamente porquê, sem qualquer ruído audível no que parecia ser um dia normal de sol. A normalidade resumiu-se a que predispôs a que esse sentimento fosse perceptível. A partir daqui as coisas passam a existir, já não há como travá-las, nem que o quiséssemos e nós nem sequer queremos.

 

Foi exactamente assim que se revelou hoje em mim o que eu procurava com tanta ansia de encontrar e com absoluta urgência, não no sentido de ter, mas no seu contrário, no de não ter!

 

E não tive de facto! Surpreendeu-me isto, como tantas vezes que estive empenhado em ter se revelou hoje que a dificuldade em o atingir estava tão simplesmente no deixar de ter ou precisar.

 

E as mesmas coisas pareceram-me de facto umas outras, algumas delas novas como se nunca em toda a minha vida eu as tivesse visto ou passado por elas. E a diferença estava aqui, é que as coisas começaram, ao invés, a passar por mim. E consegui isto tão facilmente que no princípio até cheguei a duvidar se isto não seria mais um daqueles sonhos enganadores que parecem realidade até ao momento de acordar! Desconfiei, sabe como eu sou, bom demais..., fácil de mais..., hum..., alguma coisa aqui não deve estar bem! Mas estava, tudo bem! Finalmente, com a paz que me vinha de dentro eu podia conviver no mundo com tudo o que me era adverso, com tudo o que era insano, com tudo o que me era insuportável, com tudo o que crescia à minha volta no intuito de me impedir o sol, de competir comigo, de comer o alimento que me sustentava, de consumir a água que me hidratava, de apagar a chama que me animava, de levar ainda mais para longe o que já me era inatingível!

 

Ridículo meu caro amigo, não há nada de mais ridículo do que a pretensa intenção de alguém acreditar que pode ser por nós! É fácil ser mais e é fácil ser menos, mas nada mais é possível, porque o que nos torna verdadeiramente superiores e únicos é a sabedoria do que escolhemos para compensação do que temos a mais e do que temos a menos. É esta substituição das partes no todo, que faz de nós quem somos e só não lho digo a si, porque o senhor sabe melhor do que eu como é que isso se faz. A diferença entre nós é que eu tentei dizer-lho e o senhor tentou esconder-mo e isso é o que distingue as boas das más pessoas, embora no seu caso não tenha sido este o caso e é por se tratar dessa excepção que eu nunca dei importância nenhuma a esse facto. A amizade também é isto, conhecer as regras e as excepções a elas!

 

Do seu

José Francisco

 

 

01
Mar17

Cartas ao Comendador


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Meu caro Comendador (14)

 

Lembra-se daquela nossa conversa, subitamente interrompida, em que falávamos de nostalgia?! O senhor a dar uma gargalhada franca e eu sem perceber o que se passava, por estar a misturar os três marcos do tempo: passado, presente e futuro?! Pois, com as limitações que tenho e que honestamente assumo, entendi agora! Continuo a louvá-lo por me “obrigar” a retomar a consciência sempre que o meu pensamento anda perdido, divaga, vagueia e em vez de me chamar tolo, como seria vulgar entre os mortais, o senhor remete à suposta inteligência que me reconhece eu ter! Agradeço-lhe por essa atitude! Quantas vezes duvido disso mesmo, quando no relacionamento social não encontro par e apenas conflito! Só o senhor para me fazer entender, mais do que isso, aceitar, que nem todos temos as agulhas aferidas no mesmo sentido ou no momento certo e que a dificuldade reside não na limitação da comunicação entre pares, mas tão só no facto de estarmos em horas diferentes no mesmo local! Como é que eu haveria de perceber isto sem que fosse o senhor a dizer-mo?

 

Já uma vez falámos disto e não chegámos a conclusão nenhuma por estarmos de acordo: quem diz o quê? Se fosse outro a dizer-mo, eu nem sequer o ouvia, mas, posto que é o senhor, eu dou a isso uma importância extrema! Bem me conhece, instalada a questão dá-me conforto colocar-lha. Porque é que eu hei-de reconhecer como supremo aquilo que é o senhor a dizer-mo quando se fosse um outro eu não gastaria sequer dois segundos a escutar? Voltemos mais atrás. As mesmas coisas têm para mim critérios diferentes dependendo da consideração que eu tenho por quem emite essas opiniões! E, está mesmo a ver qual é a dúvida, se eu me engano? Ou, o que não é o mesmo, se eu me deixo enganar, porque a relação que tenho com quem se manifesta dessa forma é uma relação estreita? Lá estamos nós outra vez a misturar as coisas, a ter critérios de ponderação diferentes para as mesmas coisas por existir um sentimento de base a toldar-nos a razão! Como é que isto se contorna? Ou será que podemos deixar assim?

 

Já discutimos bastante sobre a emotividade e o raciocínio! Como é que nos livramos desta dupla? O senhor e eu sabemos que esta questão não é fácil e se bem que alguns de nós passem ao lado disto, por defeito de alguns, naqueles que nos valem a pena, esta questão é fundamental! Estamos aqui, entregues a quem? Era tão mais fácil pertencer à generalidade!

 

Começamos a perceber o facilitismo e a conveniência do ser idêntico a, do pensamento colectivo, e não conseguimos, talvez por deformação de base, seja ela genética ou de formação, aceitar que, ainda assim, é o sermos diferente de, uma vantagem! Nas circunstâncias habituais, digo, nas mais das vezes, isso é entendido como um handicap!

 

Mas, vale-me o senhor! Chegados aqui, pergunto-lhe se a ambiguidade é para si um acréscimo ou um défice!? Digo, mais precisamente, se o critério interior que temos de permitir a uns tudo e a outros nada, é uma conquista nossa, racional e ponderada ou um desvio comportamental?

 

Nesta fase da nossa vida, quando alguém nos aborda, independentemente do que nos queira dizer, nós já temos a resposta! Rapidamente vamos ao arquivo, apelamos à memória e emitimos pareceres que não têm às vezes rigorosamente nada a ver com quem está à nossa frente ou sequer com o que nos é dito!

 

Estamos militarizados, talvez a palavra seja forte, mas neste momento não encontro outra para ilustrar esta atitude quase formatada de nos defendermos sem que haja ninguém a atacar-nos!

 

Sim, concordo novamente consigo, é um reflexo! Ao longo da nossa existência fomos confrontados com situações que exigiram da nossa parte uma reacção, uma decisão, uma atitude, uma resposta e, por culpa disso, ficámos naturalmente treinados a ponto de agora, quando alguém nos faz um louvor, uma festa, um elogio, seja o que for, nós reagimos desproporcionadamente! A pessoa que emitiu esse gesto não entende a nossa reacção e acha-nos desajustados, inadaptados, esquisitos! Alguns de nós fogem neste momento, outros ficam. Os que ficam têm ainda uma oportunidade, os que fogem renunciaram a ela sem ter consciência disso!

 

Eu continuo aqui, sem distinguir o bem do mal e o mau do bom! Tenho por sistema não julgar ninguém sem que o próprio mo explique, mas na maioria das vezes o outro não sabe ou não quer. A quem não sabe, eu permito-o, a quem não quer, eu não entendo!

 

Nada disto seria grave nem teria qualquer implicação não fosse esta cruz de ter um pensamento activo que julga o passado e as consequências dele no futuro deixando por viver o presente, o único que interessa! E, sendo isto em mim consciente, o problema é plural: porque faço isso e o que me impede de fazer o contrário disso?

 

Disse-me uma vez, o senhor lembrar-se-á certamente disso, que só há uma atitude sábia: viver cada dia como se fosse o último e eu, péssimo aluno, faço exactamente o contrário: vivo cada dia como se fosse o primeiro! O primeiro de muitos que não tenho a certeza de ter, mas em que tenho a necessidade absoluta de acreditar, porque só isso poderá justificar a lentidão com que atinjo os objectivos ou as metas que idealizei para mim no útero materno, desconhecendo na altura as dificuldades do mundo real para o qual um dia havia de nascer, antes ou depois do tempo!

 

Sempre um abraço, deste seu amigo

 

José Francisco

 

 

22
Fev17

Cartas ao Comendador


cartas-comenda

 

Meu caro Comendador (13)

 

Nunca lhe disse isto antes, mas, erradamente ou não, acredito que nunca é demasiado tarde para dizer o que sentimos! Já para o que pensamos, me pareça sempre cedo!

 

Desde que o senhor se mudou para Londres, ficou em mim, não digo um vazio, já que em tempos me explicou que vazio não é isso posto que o seu regresso é provável, mas uma sensação de espaço por preencher, à semelhança de um jardim por todo o lado repleto de árvores e flores, mas no qual uma porção de terreno, não classifico propositadamente a sua extensão porque a não sei medir, aguarda que o jardineiro ponha lá uma qualquer semente.

 

Digamos que quando alguém mais atento se passeia por ele, repara nesse canteiro deserto e questiona-se sobre a razão por que, até agora, não foi lá nada posto em lugar do que então estava. Começa aqui um erro: pressupomos que alguma vez lá tivesse estado alguma coisa, que foi arrancada, queimada, destruída, esquecida, abandonada ou ignorada. Pode não ter sido assim!

 

Antes de perceber isto, pergunto: haverá lógica nisto? Podemos nós tirar conclusões de um todo quando só conhecemos uma ínfima parte?

 

É talvez por esse motivo que a mera observação ou contemplação do mundo nos é tão difícil e nos não leva, em causa directa, à sua compreensão. Julgamo-nos os sábios do planeta, mas falta-nos a razão para isso.

 

Não é necessário, digo eu que pouco sei disto, ter havido qualquer coisa antes para se sentir uma ausência depois! O nada, por si só, não é um espaço por preencher? Não pode ser um vazio?

 

Ao pensar nisso temos de ter presente o conceito de tempo e com ele o de espaço embora, se formos sérios, percebamos que o segundo não se relaciona obrigatoriamente com o primeiro. Poderia dizer-lhe, sem certeza absoluta, que o tempo requer espaço, mas que o espaço pode não requerer tempo! É relativo, depende sobretudo daquilo que estamos a falar. Se forem sentimentos é uma confusão: tempo e espaço sobrepõem-se, mas se nos referirmos a raciocínios, já é cada coisa a seu tempo e o espaço passa para segundo plano!

 

No dia da sua partida, questionei-me interiormente sobre as razões que o moveram a tomar tal decisão. Pelo respeito que por si tinha e tenho, seria incapaz de lhe colocar a questão. E se o não fiz na altura, muito menos o farei agora, fora do tempo e do espaço. Mas retenho até hoje a enorme dor que deixou transparecer no olhar, o semicerrar das pálpebras, o franzir da testa, a crispação do rosto, a rigidez dos lábios! Apenas lhe escapou, a pedido e contrariamente ao que seria seu desejo, uma palavra!

 

Percebi que se tratava de uma fuga, qualquer coisa a que não era capaz de pôr termo e ao mesmo tempo continuar a conviver. Decidiu então pelo corte definitivo, permanente, irreversível. Em si isto é possível!

 

Quando o deixei no aeroporto, passou pela minha cabeça dizer-lhe que se era de si que fugia, não resultaria, uma vez que se levava consigo, mas inclinei-me mais pela hipótese de que estava a deixar cá aquilo de que pretendia afastar-se. Ainda aqui senti vontade de lhe perguntar se estava certo de que era mesmo isso que queria, mas contive-me porque em si tudo era, ao menos aparentemente, certo.

 

Passados estes anos, em que não sei de si senão por estas cartas, tenho ainda por explicar em mim se de facto conseguiu aquilo a que se propôs e se em momento nenhum, mesmo que tenha sido ele escasso, se viu tentado a questionar-se sobre essa atitude. Claro que sim, a minha dúvida não está aí! Sei perfeitamente que resistiria de forma implacável a essa tentação. A minha dúvida é se a terá ou não sentido! E o porquê disto, que parece não ter importância nenhuma, é eu perceber com que grau de certeza é que se decidiu, pois que se ela fosse absoluta o senhor não teria partido! É isso que me interessa, tendo-o em tantas coisas como uma referência para mim, conhecer as suas fraquezas dar-me-ia, não conforto, mas tranquilidade, sabê-lo humano, perceber que até para si há coisas que lhe são superiores!

 

No fim das tardes quentes de Verão, quando a brisa marítima sopra, vem-me às vezes uma ou outra frase das nossas conversas e pergunto-me do que dependerá o seu regresso! Talvez não regresse, talvez nunca tenha partido! Mudou-se simplesmente para Londres.

 

Nem para mim nem para si!

 

Um abraço deste seu amigo

 

José Francisco

 

 

15
Fev17

Cartas ao Comendador


cartas-comenda

 

Meu caro Comendador (12)

 

 

Começou ontem a ter corpo em mim, a ideia de escrever um livro, uma ideia sem qualquer propósito. Veja!

 

Os personagens viajam todos no mesmo comboio, mas em carruagens diferentes. Não se conhecem, pior do que isso, não se veem. De quando em quando deslocam-se à carruagem bar, onde se encontram, mas passam uns pelos outros sem se aperceberem uns dos outros, como se vivessem em diferentes níveis de realidade, paralelos entre si, mas não sobreponíveis nem interceptáveis.

 

O comboio não é expresso, tem várias paragens onde entram e saem novos passageiros. Varia neles tudo, o perfil, as roupas, a bagagem, as pessoas que os acompanham, os passados que carregam e os futuros em que acreditam. Têm diferentes esperanças, experiências de vida, intenções, sonhos, projectos e ambições. Há entre eles muitas coisas em comum, que não descobrem em toda a viagem, porque não comunicam entre si. O que uns sabem, serviria a outros se o soubessem e poder-lhes-ia até modificar para sempre o futuro ou o desenlace das suas vidas. Nunca o saberão. Importaria saber os motivos porque assim é, mas também nunca o saberemos.

 

Na carruagem bar, este cenário repete-se uma e outra vez, único ponto da vida em comum e única possibilidade de isso acontecer, passam de novo uns pelos outros como se lá não estivessem uns e outros em simultâneo. Nunca, por toda a sua vida, vai acontecer outra oportunidade destas, que desconhecem, por ignorância e atitude, ser também única. Em nenhum deles está presente a ânsia do conhecer e do saber. Limitam-se a passar uns pelos outros. E, embora sendo o destino o mesmo, saem aleatoriamente nas paragens e apeadeiros, que se sucedem no percurso deste comboio regional.

 

As crianças, mais atentas e pertencendo a uma realidade mais permeável, de vez em quando trocam olhares e sorrisos com os passageiros, mas a essas é-lhes permitido outro estatuto, embora não merecedor de qualquer interpretação. Ninguém repara nisto, ainda não são reconhecidas como seres humanos, capazes de alterar ou ditar o futuro. Andam todos à procura da mesma coisa ou de coisa nenhuma. Em muitos dos casos ficaria sem resposta a pergunta, se fosse feita, que não é!

 

Durante a viagem fazem as coisas mais díspares e insignificantes. Sem pôr nisto qualquer juízo de valor, fazem malha as mulheres, leem jornais os homens, brincam as crianças, dormem os gatos e permanecem atentos os cães. Qualquer alteração a esta normalidade é denunciada por um olhar dirigido por um vizinho, que reprime ou aprova o comportamento do outro. Por instinto, corrige-se. Parece viver-se ali uma sociedade anárquica onde, sem rei nem roque, as coisas acabam por fluir sem acontecer.

 

De súbito, interrompendo o que há de irreal em tudo isto, uma senhora intercepta o olhar de um jovem que não tira, desde o início da viagem, os olhos dela. Pensa, o que faço? Se não lhe interessasse ignorava-o, mas interessa-lhe. Devolve-lhe um sorriso, que ao jovem parece natural e espontâneo, mas que não é. Nada nas mulheres, mesmo nas jovens, é espontâneo. Foi pensado, refletido, intencional, há nele um qualquer propósito que desconhecemos. Em segundos, a senhora, também jovem, mediu com exactidão os prós e contras dessa atitude. Nos mesmos segundos, imaginou-se com ele no altar, levada pelo pai, escolheu até a cor das flores, viu a cara dos filhos que teria com ele, a partilhar uma vida ou, ao contrário, a ter um encontro ocasional sem consequências nenhumas, uma satisfaçao pontual de um desejo sexual provavelmente há muito tempo reprimido. Decidiu por este. O jovem que recebe o sorriso nunca saberá isto. Acredita na inocência das mulheres com a mesma naturalidade e convicção com que acredita na das crianças, embora estejamos a falar ao mesmo tempo de anjos e demónios. Inversamente os termos na ordem dos sujeitos, se quisermos usar de rigor na escrita, aplicando-os em correspondência. Pormenores que qualquer um entende.

 

O jovem pensa de si para si, que teria sorte se saíssem os dois do comboio na mesma paragem, sem perceber que esse seria o grande azar da vida dele. E anseia por isso, mas não sabe como o vai saber nem o que o espera. Apela para que o destino interceda por ele, longe de acreditar ou perceber que quem vai interceder contra ele é a jovem senhora, que em segundos, os mesmos de há pouco,  já decidiu que ele não vai ser o homem que a espera no altar, mas ao contrário, que o vai fazer sofrer, desprezando-o, depois de tirar dele o que quer. E não quer grande coisa, uma noite bem passada, onde o carinho e o romantismo o vai deixar a ele confundir-se com amor à primeira vista, sem da parte dela haver qualquer paixão.

 

O jovem não estabelece a relação, não percebe nem intui que a sua atitude de se levantar na paragem do seu destino, condicionou a saída da jovem senhora, que não tem destino nenhum, a sair exactamente na mesma e acha aquilo uma feliz coincidência, bastante pior do que isso, acha que Deus ouviu as suas preces.

 

Já percebeu não já? A intenção ou propósito que não existia de início, começou com o desenrolar da história a ter um fim. Neste preciso caso, concreto. A gratuidade da vida, que por ironia só temos uma, a determinar o que devia ser uma opção nossa! Muito pior, a dissimular que foi opção nossa, quando na verdade nos arrastou para ela!

 

O senhor acha que é assim que se escrevem os livros, grande parte deles e que se vivem as vidas, a maioria delas ou que no seu começo há verdadeiramente um objectivo ou um propósito bem definido? Assusta-o isso ou aceita bem que assim seja? O aleatório não o perturba? Nem mesmo quando tem poder efectivo?

 

Pergunto-lhe, se no dia em que o romancista escreveu o primeiro capítulo tivesse acordado só no dia seguinte, teria escrito o mesmo?

 

Claro que sim, sempre!

 

Do seu

 

José Francisco

 

 

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