Introito
Como diz o ditado “o prometido é devido”.
Assim, por falta de tempo e de melhor tema, aproveita-se para este “discurso” um segundo texto da obra de Fernando António Almeida, intitulada “Estórias de Portugal” editado pela Âncora em 2001.
A páginas 57 e seguintes, fala-nos dos sete filhos de Maria Mantela.
Uma estória comovente que apesar de conhecida vale sempre a pena reler, porque respeita a estórias da nossa terra.
CHAVES
OS SETE IRMÃOS
(Maria Mantela)
O rosto de Maria Mantela ficou de súbito fito. Parado. Toda ela se imobilizou. Petrificada. O rosto inexpressivo. Estático. Como se já não fosse deste mundo. Olhava, é certo, ainda os sete meninos que pasmavam de vê-la. Mas ela já os não via. Olhava um ponto vazio. De resto, todos os presentes se tinham calado, os olhos abertos de espanto. Nunca ninguém vira, em nenhuma das idades do mundo, sete meninos tão iguais...
(Eu não sei se o leitor vai acreditar. Eu próprio não sei se prefiro acreditar que este episódio não passa duma daquelas lendas tecidas ao longo dos séculos, em que se vão acumulando pormenores, a que se vão acrescentando detalhes, de que vão surgindo variantes. Então começam, aqui e ali, a proliferar versões diferentes. Os contextos cambiam. Há personagens que se esvaem, outras que ganham corpo. A certa altura o fio comum de que saíram duas versões da mesma estória torna-se irreconhecível. Por isso me vou limitar a repetir a estória de Maria Mantela, tal como ma contou uma imaginativa jovem, viajante ocasional, a quem, contrariando o que tenho por cauto costume, acedi dar lugar no meu carro, num dia de Agosto, de sol intenso, entre Chaves e Vila Real.)
«Eu conheci Maria Mantela, Mari Mantela como lhe chamavam. Era uma fidalga orgulhosa que habitava um velho paço enfarruscado nas cercanias de Chaves, à beira dum lugarejo sem nome. Uma daquelas mulheres que, ciente do seu poder junto de criados e dos lavradores pobres seus vizinhos, mostrava continuadamente, na fala e no olhar, no porte e no mais comedido dos gestos, ser a senhora absoluta do minúsculo território que ela tomava por reino.
Uma das características de Maria Mantela (já não recordo o seu verdadeiro nome de família, um nome pesado de que ela tanto se orgulhava) era o que hoje designaríamos por puritanismo farisaico. Extremamente exigente para com aqueles que, de algum modo, dependiam dela, não perdia a ocasião de se fazer ver como pedagoga e reformadora dessa tropa de labregos manhosos e maltrapilhos, os súbditos que lhe tinham caído em sorte e que ela profundamente desprezava.
Presunçosa, imaginava-se possuída duma sabedoria que ultrapassava os limites das verdades correntes. Impunha conceitos. Ditava normas de conduta que, fora daquele mísero e rústico contexto, não haveriam de provocar nos destinatários mais que o riso e a chacota. Pois bem. Foi numa destas ocasiões em que sobranceria e tolice se aliaram, como em tantas outras vezes, que se iria iniciar o percurso de desgraça de Maria Mantela.
A estória sucedeu mais ou menos assim. Estando um dia ambos, ela e o marido, tomando o fresco no balcão de sua casa, eis se aproxima uma mulher, ainda jovem e bonita, com dois filhos ao colo, enroupados num xaile já arruçado. A olhá-la, era para ambos uma desconhecida (ainda que mais tarde a tenham tomado por uma mensageira da ira divina). Lamurienta, mecanicamente lamurienta, num discurso quase encantatório, lamenta-se a pobre viandante da desgraça com que Deus quis prová-la – e ao seu homem e à miséria de sua casa –, fazendo-lhe nascer aqueles dois filhinhos de um só parto. Comove-se, enternece-se com a vista o marido, fulgura-lhe fugidio desejo, lampeja-lhe uma fugacíssima inveja, ele que esperava em vão, havia anos, um só descendente que fosse que lhe prolongasse através das idades o modesto apelido dos Gralhos a que pertencia. A esmola dum gesto de consolo, o arremesso de uma moeda velha, foi bastante para fazer elevar a voz aguda e o corpo esguio de Maria Mantela. «Mulher que concebe duas vezes e pare só uma é porque ajuntou no seu corpo a semente de dois homens!» (Na sequência desta frase, que ela pretendeu solene e pomposa, Maria Mantela parece ter também invectivado a jovem e pobre mãe já noutro registo, utilizando uma linguagem rasteira, palavras que me dispenso de transcrever quando aqui apenas se pretende narrar, para serviço do leitor, uma estória amena, exótica e de bom exemplo.)
Entretanto, movendo influências, bajulando primos e parentes (diria Maria Mantela com soberba e algum desprezo por ele, que não fora os seus próximos e seu marido jamais teria alcançado aquele modesto posto de escrivão em terras da India...), peitando gente no Terreiro do Paço, lançava-se Fernão Gralho burocraticamente na aventura oriental. Era tempo. Havia que robustecer o parco património dos Gralhos. É que, pouco após o encontro havido com a jovem mãe pedinte, começaram a tornar-se evidentes os sinais de que o antigo desejo de Fernão Gralho, a sua mais profunda aspiração, iria concretizar-se. Maria Mantela prometia ser mãe.
Finalmente provido no cargo, regressa Fernão Gralho de Lisboa para ultimar os preparativos da grande viagem. Por cálculos que mais tarde se fizeram, devia estar o escrivão designado a fazer a travessia do rio Douro quando se deu aquele espantoso nascimento de sete crianças, saídas dum mesmo ventre, o ventre de Maria Mantela. No entanto, a notícia de tal evento só a conheceria o felicíssimo progenitor nas dramáticas circunstâncias que em seguida se relatam.
Depois de ter atravessado a ponte romana, resistira Gralho, por qualquer impulso ignoto, à tentação de se dar a conhecer em Chaves na sua qualidade de funcionário do império, não obstante o orgulho que sentia na sua nova condição. Prosseguiu, pois, sem se deter, pelo velho caminho que seguia ao longo do Tâmega. Já avistara as casas palhoças do lugarelho vizinho de seu paço, já entretanto se escondera a negrejada torre detrás dos altos carvalhos, quando de súbito lhe surge pela frente a velha escrava Irene.
Não fora o velo de tristeza que o rosto da negra Irene não conseguira ocultar e Fernão Gralho ter-se-ia limitado a receber com alegria a feliz notícia que lhe dava a escrava: Maria Mantela tinha parido uma criança macho antes que terminara de soar a meia-noite da véspera. Reparando então nas duas grandes cestas que a negra carregava, perguntou-lhe seu amo que levava nelas. Respondeu-lhe Irene que uns cachorrinhos que ia deitar a afogar ao Tâmega por mandado de sua senhora.
Desconfiou o amo de tal recado, que os olhos de Irene a denunciavam. Ao abrir as cestas deparou-se Fernão Gralho com seis recém-nascidos. Sucumbindo ao peso da sua falsa filosofia, Maria Mantela guardara apenas o primeiro dos meninos que vira a luz. Aos outros dera-lhes o destino dos cachorrinhos rejeitados, deitando-os a afogar. Com rogos e ameaças impôs Fernão Gralho o silêncio à escrava a quem mandou regressar à sua Casa da Torre. Buscou então o pai seis amas naqueles perdidos lugarejos já da parte da Galiza a quem, sob segredo, entregou cada um dos meninos.
Dispostas as coisas, tomou caminho do paço. Uma vez em casa, Fernão Gralho deu grandes mostras de alegria diante do nascimento do filho, não deixando que Maria Mantela tivesse a mínima suspeita do que entretanto acontecera. As grandes festas que durante sete dias se fizeram naquela casa serviram igualmente ao festejado pai para despedir-se de familiares, amigos e vizinhos. Era entrado Abril e avizinhava-se a hora do embarque.
(Do que passou Fernão Gralho na travessia do golfão, dos perigos constantes com que se cruzou, nada conto ao leitor. Tão-pouco faço fé nas heroicas tropelias cometidas pelo nosso Gralho naqueles Orientes tal que mas narrou a minha ocasional companheira de viagem. Reputo-as de invenção pura, pelo que passo adiante.)
Passados seis longos anos, armado com alguns meios de fortuna, regressou Fernão Gralho à terra-mãe. Dilatou-se por um tempo na corte, fazendo valer em vão uns papéis amachucados que o davam por merecedor do reconhecimento pátrio. Enfastiou-se de vénias: ia-lhe minguando o cabedal. A hora, aliás, aproximava-se. Regressou ao seu Trás-os-Montes, mas precatou-se, apesar da pretidão que se lhe havia pegado ao rosto durante a sua estada nas partes orientais. Incógnito, tomou boleto em Verín.
De conivência com a preta Irene, sem qualquer aviso, apresentou-se no seu paço lugarenho. Maria Mantela festejava o sétimo aniversário de seu filho Simão. A luz frouxa das candeias alumiava sombria, o negrume dessa noite de 24 de Agosto. A escrava Irene, já tinha ido acordar o menino, prepará-lo para o introduzir no salão onde se reuniam as duas escassas dezenas de convidados seleccionados entre os que mais se prezavam de fumos de fidalguia. Dava a primeira badalada da meia-noite. Um a um, solenemente, todos vestidos por igual, envergando cabaias de seda vermelhas, começaram a dar entrada no salão do paço os sete filhos de Maria Mantela e de Fernão Gralho.»