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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

04
Ago19

Souto Velho - Chaves - Portugal


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Hoje chegou a vez de termos por aqui Souto Velho, uma das aldeias da margem direita do Rio Tâmega que lhe está bem próximo.

 

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Trata-se de uma pequena aldeia localizada junto à “Praia de Vidago”, mas também no limite do Concelho de Chaves, com o Concelho de Boticas a penas 700 m e a aldeia botiquense de Valdegas a cerca de 2 km, no entanto a suas vizinha mais próximas são as aldeias de Anelhe e Vilarinho das Paranheiras, esta última na outra margem do rio, mas com um pontão de lajes de granito que as liga.

 

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Conta a lenda e a tradição que o grande senhor destas terras, de uma e outra margem do rio, foi D. Fernão Gralho, o mítico marido da não menos lendária Maria Mantela. A casa que a lenda lhes atribui é um belo casarão em granito situado na entrada do núcleo antigo da aldeia, de uma arquitetura bem interessante que se destaca ao longe, na sua altaneira posição, adornada com um elegante e também altaneiro canastro (ou espigueiro se preferirem).

 

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Como, pelo menos, já deixei aqui a Lenda de Maria Mantela ou Lenda dos Gralhos, desta vez deixo apenas aqui o link para ela:  https://chaves.blogs.sapo.pt/159092.html

 

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Desta vez, mais que a lenda que é mais ou menos conhecida por todos os flavienses, interessei-me mais por saber quem era Fernão Gralho e meti-me na grande confusão da família Gralho.

 

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Ora segundo a genealogia a família Gralho, ela será originária do Alentejo, no entanto os estudiosos desta família,  encontram-na um pouco espalhada aqui pela região mais próxima, principalmente em Valpaços (Alhariz, Stª Maria de Émeres, Rendufe, Água Revés, Possacos, Serapicos), mas também aos do concelho de Chaves, um pouco ligados à lenda, como por exemplo no Carregal, Stª Leocádia e Souto Velho.

 

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Nestas estórias dos Gralhos, há casamentos com muitos filhos, daí ser natural que eles (Gralhos) se fossem espalhando um pouco pela região, falta saber, pois não é muito conclusivo,  qual a origem e a partir de onde é que os gralhos se começam a dispersar.

 

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Para além destes Gralhos aqui das redondezas, há relatos de outros Gralhos ou talvez dos mesmos, terem existido na zona de Aveiro e Alentejo, no entanto estes Gralhos do Sul, parecem ser posteriores aos nossos Gralhos do Norte, pois os relatos que vi dos Gralhos do Sul, são de mil oitocentos e tal, a os do Norte, já eram relatos em lenda (dos Gralhos ou Maria Mantela) no ano de 1634 por D. Rodrigo da Cunha, Arcebispo de Braga e primaz das Espanhas que depois foi nomeado Arcebispo de Lisboa.

 

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Ainda a respeito desta lenda da Maria Mantela, como há dias aqui relatei a respeito da aldeia de Santa Marinha,   há muito semelhança com a estória da Santa Marinha, virgem e mártir. Diz a tradição que tinha oito irmãs gémeas: Basília; Eufémia; Genebra; Liberata (também conhecida como Vilgeforte); Marciana; Quitéria e Vitória. A lenda atribui-lhes a naturalidade na cidade de Braga, no ano 120. Seriam filhas de um casal de pagãos, Calcia e de um oficial romano, Lúcio Caio Atílio Severo, régulo de Braga, o qual, quando elas nasceram, estaria ausente da cidade. Entretanto, na cidade, não se acreditava que as gémeas pudessem ser filhas do mesmo pai. O acontecimento causou enorme embaraço à mãe que, teria encarregado a parteira Cita, de as afogar. Em vez disso a mulher, que era cristã, levou-as ao Arcebispo Santo Ovídio, para que as batizasse e lhes desse destino. Foram então entregues a amas cristãs, crescendo e vivendo perto umas das outras, até aos 10 anos de idade.  Sobre o assunto, ver mais aqui: https://chaves.blogs.sapo.pt/santa-marinha-chaves-portugal-1846275

 

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Entre estas duas estórias, dos Gralhos e de Santa Marinha, há pelo menos 1400 anos de distância, pois a de Santa Marinha conta-se no ano 200 DC e a dos Gralhos é dos anos 1600. Apenas uma curiosidade dadas as semelhanças das estórias de ambos.

 

Para terminar, tal como já é habitual, ficamos com um vídeo com todas as fotos publicadas neste blog sobre a aldeia de Souto Velho.

 

Link direto para ver  you tube: https://youtu.be/LKRMboLEba4

 

 

 

 

 

02
Abr19

Chaves D´Aurora


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  1. CÁRCERE.

 

Aurora prosseguia em sua prisão de grades invisíveis, sem que João Reis ao menos lhe dirigisse o olhar. As irmãs do meio continuavam a hostilizá-la de leve, sempre que podiam ou, quando nada, a lhe manifestarem uma discreta indiferença. Arminda, porém, sempre lhe vinha acariciar a barriga e perguntar pelo bebé. Afonso continuava a cumprimentá-la gentilmente, como sempre o fizera, sem que ninguém nunca soubesse o que lhe ia à mente, quanto a isso ou a qualquer outro facto do quotidiano. Além de Mindinha e da Mamã, Alfredo e Alice também eram carinhosos consigo.

 

Flor continuava a se desvelar em cuidados com a filha, que nunca deixara de lhe ser bem querida, tão quanto os mais de sua prole. Um dia chegou mesmo a gracejar com Aurora – Ai, menina, que não me venhas a ter sete miúdos de uma vez, como a Maria Mantela! – Ai, Mamã, não estejas a brincar com isso, cala-te, porque bem sabes que… – e as duas completaram – Os anjos podem dizer amém! – ao que Florinda deu uma breve risada e sua menina prenha esboçou, nesse raro momento, um largo sorriso. Algo que há muito tempo não fazia e não iria fazê-lo, por mais tempo ainda – Mas os anjos não podem mais desfazer o que está feito! – e, ao dizer isso, o riso de Aurita se fez siso e o juízo levou-a a uma repentina tristeza. Arrepios e um ar de preocupação toldaram sua mente – Ai, meu bom Jesus! E se… já não diria sete, mas se lhe viessem mais de um… mais de dois… mais de quantos?! –

 

É que Aurora estava a lembrar-se de uma lenda urbana que vem sendo transmitida de gerações a gerações flavienses, mormente quando todos de um clã se reúnem ao pé do lume, nas longas noites de inverno. Já pelos idos de 1634, o Arcebispo de Braga e primaz da Espanha, Dom Rodrigo da Cunha, escrevia sobre a tal senhora. Efetivamente, é possível que o essencial desse episódio tenha vindo a ocorrer, de facto, ainda que não pelos excessos de imaginação e a forma que nos legou a narrativa popular.

 

 

  1. MARIA MANTELA.

 

O que se conta da história de Maria Mantela é que, há séculos perdidos na memória, morava tal senhora com o seu marido Fernão Gralho, à Rua da Misericórdia, próximo à Igreja Matriz de Chaves.

 

Certo dia, acercou-se dela uma mulher com dois filhos gémeos, a lhe implorar uma esmola. Maria negou-se a proceder a esse gesto caridoso e ainda tratou a mendiga com certa dureza, colocando-lhe em dúvida a honestidade – Como podes, de um homem só, ter gerado mais de um filho?! – e, embora também desprovida dos conhecimentos científicos de que hoje dispomos, a mendicante sentiu-se bastante ofendida em sua honra e dignidade, mesmo após Fernão Gralho intervir em seu auxílio.

 

Não obstante o fidalgo pedir desculpas, ante as palavras grosseiras de sua esposa, além de lhe oferecer algumas moedas, a esmoleira disse então, quando a sós com Maria – Cuida que, muito em breve, poderás ficar prenha. Vais ser castigada pelo que acabas de mo dizer! – e esse praguejar causou uma profunda angústia à Mantela, durante todos os meses da gravidez que, de facto, veio a lhe sobrevir logo após o incidente. De mais a mais, arrependia-se sinceramente pelo que dissera à mendiga.

 

Quando afinal deu à luz, o marido estava ausente, pois fora caçar perdizes. O parto deixou Mantela aterrada. Nasceram-lhe sete gémeos e ela, em sua ignorância contextual – Ai, meu Deus, como há de ser isso?! Se eu sempre fui fiel ao senhor meu marido?! – posto que ainda mais se afligia, com a lembrança do que ela própria havia dito à indigente mulher. Como mostrar ao senhor Fernão Gralho esses sete filhos?! – Mãe Santíssima, o que ele vai pensar de mim?! – e, transtornada, pediu a uma criada da casa que fosse lançar ao Tâmega seis dos recém-nascidos, deixando ficar apenas o de aparência mais forte e melhor constituída.

 

A criada saiu pesarosa com os bebés, sem saber como executar essa tão hedionda missão. Caminhou pelas Poldras até ao meio do rio, colocou em uma das alpondras o cesto coberto, onde os seis gémeos dormiam e se pôs a rezar, pedindo perdão ao bom Deus pelo crime que estava prestes a cometer, ao mesmo tempo em que vacilava, presa da maior indecisão.

 

poldras-fr.PNG

Poldras. Chaves (PT). Foto de Fernando Ribeiro,

cedida pelo autor. (Original a cores).

 

Eis que, nesse instante, voltando da caça, estava a passar por ali o próprio Fernão Gralho – Que estás a fazer aqui no rio, com esse cesto tão grande, que às lavaduras não me pareces vir? Podes me dizer o que trazes dentro dele? – A mulher contou-lhe, então, que uma cadela havia parido sete cachorrinhos e ela, com muita pena, vinha até ao Tâmega para afogar seis deles, ficando em casa apenas o de melhor raça –ao que o patrão arguiu – Ora, pois, mulher, porque matar essas criaturinhas de Deus?! – e lhe pediu para ver os filhotes. A criada, após mostrar os meninos, ajoelhou-se e tudo confessou ao patrão.

 

Fernão Gralho encolerizou-se, mas logo se compadeceu da loucura da esposa, que, supondo o crime perpetrado, certamente iria arrepender-se por toda a vida, o que, de facto, já lhe ia n’alma. Achou que deveria compreendê-la e, portanto, perdoar. Reteve consigo o cesto e ordenou à serviçal que fosse dizer, à compungida senhora, que a ordem fora cumprida. Instou igualmente à criada para que esta, por toda a vida, guardasse o mais absoluto segredo sobre o real destino dos recém-nascidos. Espalhou então os filhos rejeitados em seis aldeias do Concelho de Chaves, à guarda de casais por ele remunerados.

 

Durante dez anos, Fernão Gralho tinha dó ao ver a esposa sofrer, mas considerava isso uma penitência para a Mantela, cheia de remorsos por um crime que ela julgava ter cometido, pois sempre lhe vinham à lembrança os inocentes que mandara sacrificar. Ao principiar o undécimo ano, Gralho pediu à mulher que mandasse preparar um grande banquete, ao qual de nada faltasse, pois iriam obsequiar alguns convidados. À hora desse almoço, quando Maria Mantela dirigiu-se à sala de refeições, ficou petrificada. Sentados à mesa, havia sete rapazinhos todos iguais, nos trajos e nas feições, tornando-se impossível distinguir qual deles era o único filho que ela estivera a criar. Consternada, atirou-se aos braços do marido e este esclareceu o que se passara junto às Poldras. Acabava assim, para a Mantela, o sofrimento que deixara sua alma angustiada. Antevia-se agora uma promessa de felicidade geral.

 

Diz-se que os sete gémeos tornaram-se párocos de sete igrejas, erguidas por eles mesmos em aldeias do Concelho. Muitos asseguram que, em tempos idos, havia na Igreja de Santa Maria Maior uma lápide com o seguinte epitáfio:

 

“Aqui jaz Maria Mantela,

com sete filhos arredor dela!”.

 

 

Hoje, na parte antiga de Chaves, ao Jardim do Bacalhau, há uma estátua de mulher com um filho ao colo, criada pelo Mestre Teixeira Lopes para homenagear todas as Mães. Todavia, tão logo foi assentada no local, passou a ser considerada, na boca do povo, como a estátua de Maria Mantela.

 

  1. MISTÉRIO.

 

Que raios de mistério está a acontecer lá na quinta Grão Pará? – assim comentaram entre si os colegas de Afonso, aqueles que ...

(continua na próxima terça-feira)

 

 

fim-de-post

 

25
Ago17

Discursos sobre a cidade - Por Gil Santos


GIL

 

Introito

 

Como diz o ditado “o prometido é devido”.

 

Assim, por falta de tempo e de melhor tema, aproveita-se para este “discurso” um segundo texto da obra de Fernando António Almeida, intitulada “Estórias de Portugal” editado pela Âncora em 2001.

 

A páginas 57 e seguintes, fala-nos dos sete filhos de Maria Mantela.

 

Uma estória comovente que apesar de conhecida vale sempre a pena reler, porque respeita a estórias da nossa terra.

 

CHAVES

 

OS SETE IRMÃOS

(Maria Mantela)

 

O rosto de Maria Mantela ficou de súbito fito. Parado. Toda ela se imobilizou. Petrificada. O rosto inexpressivo. Estático. Como se já não fosse deste mundo. Olhava, é certo, ainda os sete meninos que pasmavam de vê-la. Mas ela já os não via. Olhava um ponto vazio. De resto, todos os presentes se tinham calado, os olhos abertos de espanto. Nunca ninguém vira, em nenhuma das idades do mundo, sete meninos tão iguais...

 

(Eu não sei se o leitor vai acreditar. Eu próprio não sei se prefiro acreditar que este episódio não passa duma daquelas lendas tecidas ao longo dos séculos, em que se vão acumulando pormenores, a que se vão acrescentando detalhes, de que vão surgindo variantes. Então começam, aqui e ali, a proliferar versões diferentes. Os contextos cambiam. Há personagens que se esvaem, outras que ganham corpo. A certa altura o fio comum de que saíram duas versões da mesma estória torna-se irreconhecível. Por isso me vou limitar a repetir a estória de Maria Mantela, tal como ma contou uma imaginativa jovem, viajante ocasional, a quem, contrariando o que tenho por cauto costume, acedi dar lugar no meu carro, num dia de Agosto, de sol intenso, entre Chaves e Vila Real.)

 

«Eu conheci Maria Mantela, Mari Mantela como lhe chamavam. Era uma fidalga orgulhosa que habitava um velho paço enfarruscado nas cercanias de Chaves, à beira dum lugarejo sem nome. Uma daquelas mulheres que, ciente do seu poder junto de criados e dos lavradores pobres seus vizinhos, mostrava continuadamente, na fala e no olhar, no porte e no mais comedido dos gestos, ser a senhora absoluta do minúsculo território que ela tomava por reino.

 

Uma das características de Maria Mantela (já não recordo o seu verdadeiro nome de família, um nome pesado de que ela tanto se orgulhava) era o que hoje designaríamos por puritanismo farisaico. Extremamente exigente para com aqueles que, de algum modo, dependiam dela, não perdia a ocasião de se fazer ver como pedagoga e reformadora dessa tropa de labregos manhosos e maltrapilhos, os súbditos que lhe tinham caído em sorte e que ela profundamente desprezava.

 

Presunçosa, imaginava-se possuída duma sabedoria que ultrapassava os limites das verdades correntes. Impunha conceitos. Ditava normas de conduta que, fora daquele mísero e rústico contexto, não haveriam de provocar nos destinatários mais que o riso e a chacota. Pois bem. Foi numa destas ocasiões em que sobranceria e tolice se aliaram, como em tantas outras vezes, que se iria iniciar o percurso de desgraça de Maria Mantela.

 

A estória sucedeu mais ou menos assim. Estando um dia ambos, ela e o marido, tomando o fresco no balcão de sua casa, eis se aproxima uma mulher, ainda jovem e bonita, com dois filhos ao colo, enroupados num xaile já arruçado. A olhá-la, era para ambos uma desconhecida (ainda que mais tarde a tenham tomado por uma mensageira da ira divina). Lamurienta, mecanicamente lamurienta, num discurso quase encantatório, lamenta-se a pobre viandante da desgraça com que Deus quis prová-la – e ao seu homem e à miséria de sua casa –, fazendo-lhe nascer aqueles dois filhinhos de um só parto. Comove-se, enternece-se com a vista o marido, fulgura-lhe fugidio desejo, lampeja-lhe uma fugacíssima inveja, ele que esperava em vão, havia anos, um só descendente que fosse que lhe prolongasse através das idades o modesto apelido dos Gralhos a que pertencia. A esmola dum gesto de consolo, o arremesso de uma moeda velha, foi bastante para fazer elevar a voz aguda e o corpo esguio de Maria Mantela. «Mulher que concebe duas vezes e pare só uma é porque ajuntou no seu corpo a semente de dois homens!» (Na sequência desta frase, que ela pretendeu solene e pomposa, Maria Mantela parece ter também invectivado a jovem e pobre mãe já noutro registo, utilizando uma linguagem rasteira, palavras que me dispenso de transcrever quando aqui apenas se pretende narrar, para serviço do leitor, uma estória amena, exótica e de bom exemplo.)

 

Entretanto, movendo influências, bajulando primos e parentes (diria Maria Mantela com soberba e algum desprezo por ele, que não fora os seus próximos e seu marido jamais teria alcançado aquele modesto posto de escrivão em terras da India...), peitando gente no Terreiro do Paço, lançava-se Fernão Gralho burocraticamente na aventura oriental. Era tempo. Havia que robustecer o parco património dos Gralhos. É que, pouco após o encontro havido com a jovem mãe pedinte, começaram a tornar-se evidentes os sinais de que o antigo desejo de Fernão Gralho, a sua mais profunda aspiração, iria concretizar-se. Maria Mantela prometia ser mãe.

 

Finalmente provido no cargo, regressa Fernão Gralho de Lisboa para ultimar os preparativos da grande viagem. Por cálculos que mais tarde se fizeram, devia estar o escrivão designado a fazer a travessia do rio Douro quando se deu aquele espantoso nascimento de sete crianças, saídas dum mesmo ventre, o ventre de Maria Mantela. No entanto, a notícia de tal evento só a conheceria o felicíssimo progenitor nas dramáticas circunstâncias que em seguida se relatam.

 

Depois de ter atravessado a ponte romana, resistira Gralho, por qualquer impulso ignoto, à tentação de se dar a conhecer em Chaves na sua qualidade de funcionário do império, não obstante o orgulho que sentia na sua nova condição. Prosseguiu, pois, sem se deter, pelo velho caminho que seguia ao longo do Tâmega. Já avistara as casas palhoças do lugarelho vizinho de seu paço, já entretanto se escondera a negrejada torre detrás dos altos carvalhos, quando de súbito lhe surge pela frente a velha escrava Irene.

 

Não fora o velo de tristeza que o rosto da negra Irene não conseguira ocultar e Fernão Gralho ter-se-ia limitado a receber com alegria a feliz notícia que lhe dava a escrava: Maria Mantela tinha parido uma criança macho antes que terminara de soar a meia-noite da véspera. Reparando então nas duas grandes cestas que a negra carregava, perguntou-lhe seu amo que levava nelas. Respondeu-lhe Irene que uns cachorrinhos que ia deitar a afogar ao Tâmega por mandado de sua senhora.

 

Desconfiou o amo de tal recado, que os olhos de Irene a denunciavam. Ao abrir as cestas deparou-se Fernão Gralho com seis recém-nascidos. Sucumbindo ao peso da sua falsa filosofia, Maria Mantela guardara apenas o primeiro dos meninos que vira a luz. Aos outros dera-lhes o destino dos cachorrinhos rejeitados, deitando-os a afogar. Com rogos e ameaças impôs Fernão Gralho o silêncio à escrava a quem mandou regressar à sua Casa da Torre. Buscou então o pai seis amas naqueles perdidos lugarejos já da parte da Galiza a quem, sob segredo, entregou cada um dos meninos.

 

Dispostas as coisas, tomou caminho do paço. Uma vez em casa, Fernão Gralho deu grandes mostras de alegria diante do nascimento do filho, não deixando que Maria Mantela tivesse a mínima suspeita do que entretanto acontecera. As grandes festas que durante sete dias se fizeram naquela casa serviram igualmente ao festejado pai para despedir-se de familiares, amigos e vizinhos. Era entrado Abril e avizinhava-se a hora do embarque.

 

(Do que passou Fernão Gralho na travessia do golfão, dos perigos constantes com que se cruzou, nada conto ao leitor. Tão-pouco faço fé nas heroicas tropelias cometidas pelo nosso Gralho naqueles Orientes tal que mas narrou a minha ocasional companheira de viagem. Reputo-as de invenção pura, pelo que passo adiante.)

 

Passados seis longos anos, armado com alguns meios de fortuna, regressou Fernão Gralho à terra-mãe. Dilatou-se por um tempo na corte, fazendo valer em vão uns papéis amachucados que o davam por merecedor do reconhecimento pátrio. Enfastiou-se de vénias: ia-lhe minguando o cabedal. A hora, aliás, aproximava-se. Regressou ao seu Trás-os-Montes, mas precatou-se, apesar da pretidão que se lhe havia pegado ao rosto durante a sua estada nas partes orientais. Incógnito, tomou boleto em Verín.

 

De conivência com a preta Irene, sem qualquer aviso, apresentou-se no seu paço lugarenho. Maria Mantela festejava o sétimo aniversário de seu filho Simão. A luz frouxa das candeias alumiava sombria, o negrume dessa noite de 24 de Agosto. A escrava Irene, já tinha ido acordar o menino, prepará-lo para o introduzir no salão onde se reuniam as duas escassas dezenas de convidados seleccionados entre os que mais se prezavam de fumos de fidalguia. Dava a primeira badalada da meia-noite. Um a um, solenemente, todos vestidos por igual, envergando cabaias de seda vermelhas, começaram a dar entrada no salão do paço os sete filhos de Maria Mantela e de Fernão Gralho.»

 

 

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