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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

16
Fev21

Crónicas Estrambólicas

CRÓNICAS DE UM PRIMEIRO-MINISTRO SOBRE O BARROSO - 15


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estrambolicas

 

Crónica de um Primeiro-Ministro sobre Barroso 15

(última crónica)

 

Mais uma crónica do antigo Primeiro-Ministro António Granjo, um ilustre flaviense. É a última das 15 crónicas sobre Barroso publicadas no jornal A Capital em 1915. A crónica está escrita como foi publicada, no português da altura, incluindo gralhas tipográficas.

 

Gostei bastante de ler esta série de crónicas, escritas por um homem culto e com grande sensibilidade para a natureza e as pessoas, entre outras. Achei a pontuação um bocado estranha mas não sei se isso terá a ver com algum revisor do jornal que terá alterado vírgulas e assim. Tem piada que o autor entrou como um leão, a gabar Barroso ao máximo, mas no final já diz que os pulmões estão cansados do ar puro… Já estaria com saudades da vida na cidade, é compreensível, há mais mundo pra lá de Barroso. Também há quem nasça em Barroso com vocação de marinheiro e não se pode travar essa gente de ir por aí afora. Isso de resistentes e que se negam a sair, é utópico, são lérias do dono deste blogue e mais alguns, mas não é bem assim como as coisas são. O inverso também é verdade para quem vem de fora fazer cá a vida, que são menos do que os que saem mas sempre existiram. Em Barroso não somos melhores que ninguém, como quase quis fazer crer o cronista ao dizer que os barrosões são o máximo e sempre ao máximo, a tal gente boa e pura e valente. Temos uma cultura muito própria mas mais nada, cá também há depressivos, alcoólicos, assassinos, ladrões, pedófilos, invejosos apenas, etc. Aliás, algumas das características que reconheço nas gentes de Barroso são a matreirice e a artimanha, ora vão ler os relatos do Bento da Cruz sobre os barrosões que, na altura do ano em que a agricultura não dava trabalho, iam por aí afora pedir para a casa “ardida”. Estórias como a seguinte não faltam. Há uns 30 anos houve um emigrante que apareceu numa oficina em Boticas para colar o quadro da bicicleta, que tinha partido. Na oficina disseram-lhe que faziam o serviço mas de momento não tinham a cola necessária, a super 18, e que ele devia tentar compra-la na farmácia. Na farmácia disseram-lhe que estava esgotada e mandaram o homem para outra loja e daí foi recambiado para mais uma ou duas, cada vez mais distantes, até que na cooperativa lhe puseram um saco de 50 quilos de adubo super 18 às costas para ele o carregar até à oficina. Isto tudo sem nenhum lojista estar combinado ou saber de nada, os manhosos de Barroso funcionam por telepatia. A arte de representação e de iludir os outros são coisas que cá passam de pais para filhos, é uma cultura enraizada, e os executantes são tão bons que normalmente os turistas nunca percebem essas qualidades, mesmo depois de carregar um saco de 50 quilos de cola às costas. Alguns são tão maus alunos que até têm que repetir a lição, o que dá direito a medalha de ouro aos artistas principais. Fiquem agora com a crónica do Granjo.

Luís de Boticas

 

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QUADROS MARAVILHOSOS

Offerece-os a regido de Barroso aos pintores, aos romancistas, aos cultores do «camping»

 

Preciso acabar. A capital deve estar fana de aturar este impenitente o irresgatável bairrista; e as cinco ou seis pessoas que porventura hajam seguido estes artiguelhos devem começar a enfastiar-se.

 

Depois, a política anima-se. E concordemos, entre o que pensa o nosso amigo e senador da República, sua ex.a. Qualquer coisa, sobre o momento psicológico em que a nação corra perigo de perder-se e seja assim justificável perante a História um ministério de concentração, e o que se passa em Barroso, onde uma companhia estrangeira explora já uma das mais ricas minas de volfrâmio do mundo e pensa utilizar o Cávado e a Fecha de sahida (cascata do Outeiro) para a electricisação dos meios de transporte e illuminação entre Douro e Minho, não temos mesmo que hesitar. Como nos cumpre, temos de ficar suspensos da palavra preciosa de s. ex.a, e conceder por favor um encolher de hombros a esses doidos que vem da estranja desventrar as nossas montanhas à procura de ignorados thesouros ou com a intenção de transformarem o fio de água em torrente de força e onda de luz.

 

E, sendo assim, como é, finalizamos.

 

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São um pouco adeante da Venda Nova as Minas da Borralha. Sobe-se por um corrego, pelo leito secco d’um ribeiro, um atalho que evita 2 km de estrada. A manhã beija a montanha.

 

A meio da encosta pára-se, e deixa-se correr a vista. Para o nascente, segue a estrada que se principiou há 60 annos e para cujo acabamento será talvez necessário que se faça uma revolução. É para esses lados, atraz das serras, que lá muito longe fica a minha terra, debruçada sobre um rio manso, no goso perene de um valle risonho, assentada sobre uma colina ainda cercada de muralhas. É pouco mais ou menos por esta hora que eu costumo chegar à minha varanda, onde cultivo mangerico, a dar bons dias ao sol. Sinto que me vae fazendo falta a minha cadeira de verga, sentado na qual, depois de jantar, conforme o velho preceito conventual acho excellente philosophar sobre as unhas e menos partes dos homens e sobre os cabellos e mais partes da mulher.

 

À vista segue um raio de sol que brinca sobre o Cávado. Ao fundo adivinha-se a ponte da Misarela ou do inferno.

 

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Ponte da Misarela

É a essa ponte que vão as mulheres gravidas, e que já abortaram, pela meia noite, pedir ao espírito das águas que lhe dá um bom parto. Parece uma lenda medieval. Eu conto-a. Quando uma mulher tem um parto infeliz, e concebe novamente, uma noite, sem que ninguém a presinta, sae de casa acompanhada do marido. À meia noite em ponto está no meio da ponte da Misarela. O marido fica à entrada da ponte para afugentar todo o animal vivente. Porque é preciso que não passe sobre a ponte nem pássaro nem cão, nem besta alguma, antes que appareça algum transeunte. Por fim apparece ou um almocreve ou um bezerreiro ou um mendigo ou um lavrador ou um pequeno pastor. Será o padrinho. E logo que appareça uma pessoa do sexo feminino quer seja uma velha remelosa que venha dedilhando as contas do rosário, quer seja uma creança que venha com a fazenda e traga entre os dentes a côdea negra do centeio, tem lugar a cerimónia. O padrinho desce ao rio, traz na concha da mão um pouco de água aparada de uma rocha cavada no meio, e a que o povo chama o caldeirão, e sob o alvor das estrellas pronunciam-se as palavras sacramentaes do batismo. Se a mãe tiver um rapaz há-de chamar-se Gervásio; se tiver uma rapariga há-de chamar-se Senhorinha.

 

Não merecia uma scena d’estas apanhada em flagrante, uma página immortal de Camillo?

 

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Ponte da Misarela

As casas brancas da Venda Nova e as águas brancas do Cávado dão à paisagem apocaliptica, feita para as tempestades, para os cenobitas, e para as aves presas, numa cena nota de suavidade. As bestas pararam também na contemplação estática da manhã doirada, e os seus perfis, projectando-se contra o azul lavado, parecem linhas de animaes estetizados ornamentando o horizonte.

 

A caminho, caminheiros!

 

Os carros, os fios telegraphicos e telephonicos, cruzam-se sobre a montanha, que uma estrada rasga, deixando a descoberto manchas de volfrâmio. As águas amarelladas do ribeiro, a 50 metros de profundidade, rugem de penedo em penedo, arrastando os detrictos.

 

Conta-se que na Suissa andam dias e dias os americanos e ingleses percorrendo os leitos pedregosos das ribeiras em busca dos moinhos de água. Uma pena de água, sobre uma rocha foi descrevendo um movimento circulatório; no meio a rocha ficou, arredondando-se; a água foi roendo a rocha, até chegar à areia; o pedaço de rocha que ficou no meio, entre o redemoinhar da água, despegou-se por fim e recebeu um movimento giratório. É o moinho d’água. Pois é pena que um archimilionario americano ou um armador inglez não venham fazer turismo por estas ribeiras barrozãs, porque escusava de gastar muito tempo para dar com o seu moinho d'água.

 

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Minas da Borralha

Estamos nas instalações da mina — barracões enormes, cobertos de zinco, onde arfam as machinas potentes; carretas rolando continuamente nos railhes; pequenos grupos de casas operárias, com as chaminés furando para a rua; a enorme lavandaria, baixando em 7 ou 8 andares, desde o cimo da montanha até ao ribeiro; as boccas das minas abrindo-se convidativas e misteriosas; os elevadores surgindo do seio da terra e descarregando o minério; e o vae-vem, os movimentos apressados, a agitação ordenada, de uma grande mina em actividade. Alguém saberá que há em Barroso uma exploração mineira que occupa 500 operários e na qual está estabelecido o regimen das 8 horas do trabalho?

 

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Trabalhadores das minas da Borralha em 1918

Fez-se ultimamente um certo barulho à volta do mr. Marijou, director d’estas minas, por virtude do projecto de lei, pendente do Senado, para a anexação da freguesia de Salto, a que as minas pertencem, ao concelho de Cabeceiras de Basto. A discussão na imprensa diária apenas arranhou um minuto o ouvido popular. De tudo isso não há já certamente a memória que deixaram as palavras transcendentaes de sua ex.a. Qualquer Coisa sobre as homorroidas do respectivo chefe. Apenas em Barroso subsiste ainda a justa revolta contra a tentativa de extorsão.

 

A caminhos, caminheiros!

 

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Minas da Borralha

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São 11 horas. A raçada do sol racha as fragas, no pittoresco dizer da região. O solo arde. As pedras queimam. O sol está no zenith. Caminhamos há uma hora com a cabeça bamboando entre os hombros, à procura, de uma sombra. O cavallo tropeça a cada passo: parece estar cego dos dois olhos.

 

Damos um cavallo por uma sombra, como o outro dava o seu reino por um cavallo.

 

Apparecem fetos, e logo se ouve cantar um pequeno fio de água por uma ravina. Acampamos atraz de uma parede, a um de fundo, para todos podermos aproveitar a sombra magra das galhas nodosas de uma giesta. Serve-se o sóbrio repasto, como comporia um clássico, e, classicamente, dispomo-nos a vencer a nova montanha, dessedentadas as gargantas no doce fio de água, que bem merecia um genial soneto do Sr. António Correia d’Oliveira.

 

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Será o último dia da jornada. Os olhos vão cançados de ver, os pulmões recebem já enfastiadamente o bom ar azotado; o coração aborrece-se já do seu rithmo perfeitamente e inalteravelmente normal; e as pernas, as pobres pernas, vão cançadissimas, juro-o de uniformemente, uniformemente, uniformemente, galgarem despenhadeiros, treparem alturas, saltarem corregos, esmagarem urzes, dentarem com as brochas cardadas das botas este imenso pavimento de rochedos em que há uns poucos de dias vimos patinando.

 

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De todo o resto da jornada, pouco vale a pena contar. Aldeias de nomes bárbaros que se viam dependuradas nas encostadas, vezeiras de gado meúdo mosqueando as serras, vaccas fazendo tilintar as suas campainhas pelos lameiros dos vales, algumas cruzes nos caminhos recommendando aos viajantes que rezem por alma do que ali morreu assassinado. Viva, tenho ainda a lembrança das mãos femininas e delicadas que à entrada de uma povoação me estenderam uma grande pota de água, vinho e mel e que constitue certamente a delícia das delícias.

 

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Vila Pequena - Boticas

Apeámo-nos, sobre a tarde, na Villa Pequena, já nas faldas das Alturas. É um bonito logarejo com as ruas cheias de latadas, os campos cheios de milhos, onde já parece ter chegado «a bênção de Deus». Ao longe, vê-se o Lasenho, donde foram levadas as duas estátuas de guerreiros que se ostentam no Museu Etnographico, nos Jerónimos.

 

O Sr. Dr. Leite de Vasconceilos anda há bastantes annos empenhado na descoberta do Lasenho. Pois informo-o que fica junto à povoação de Campos, no sopé da serra das Alturas e tem a forma de uma pirâmide cónica. E não quero nada pela descoberta — nem mesmo as palavras da Academia.

 

Sahimos de Villa Pequena já noite escura. Um guia, com um lampião de azeite, vae ensinando o caminho e tagarelando sobre moiras encantadas, lobos e salteadores. E pelas 2 horas da madrugada, com as nossas 8 léguas (1) andadas, os bigodes ensopados da geada, e as pernas mechendo-se por hábito, chegamos enfim a Boticas.

 

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A caminho de Boticas - Composição

Enfim!

 

Enfim, dirão também os leitores.

 

Fomos compondo, intervallada e arrepolladamente, conformo nos deixaram, estes artiguelhos a fim de chamar a atenção dos portuguezes e dos turistas para este canto de Portugal. Certamente, não encontrarão por cá funiculares, nem magníficos hotéis, e muito menos poderão dispor a cada canto d’urna cabina telephonica para chamar um automóvel de socorro quando se fure um pneumático. Mas quem quizer um pouco de imprevisto e for capaz de um pouco de esforço, deve visitar esta admirável região, sufficientemente grande para se fazer o camping uma estação inteira e sufficientemente ignorada para se tomarem duas notas inéditas e se tirarem algumas bellas photographias. Se há no paiz romancistas de costumes, têem matéria à farta para compor alguns volumes; se há pintores, têem os mais lindos motivos e as mais graciosas linhas de Portugal para fazerem alguns quadros maravilhosos.

 

Posto isto, como era de uso acabar antes, quando em Portugal uma mezura valia um pouco mais que um pontapé, receba a Capital, os meus agradecimentos, e a meia dúzia de leitores que se interessou pelos artiguelhos as minhas sinceras desculpas pelo tempo que lhes roubei.

 

António Granjo

30 de Setembro de 1915

 

 

 

(1) Talvez devido ao cansaço o autor duplicou a distância

13
Nov20

Crónicas Estrambólicas

Crónicas de um Primeiro-Ministro sobre o Barroso – 13


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Composição vista desde a Serra do Larouco

estrambolicas

 

Crónica de um Primeiro-Ministro sobre Barroso 13

 

Mais uma crónica do antigo Primeiro-Ministro António Granjo, um ilustre flaviense. É a uma das 15 crónicas sobre Barroso publicadas no jornal A Capital em 1915. A crónica está escrita como foi publicada, no português da altura, incluindo gralhas tipográficas.

 

Não tenho grandes comentários a fazer a esta crónica, que é quase uma continuação da última onde é descrita a subida ao Larouco. Nesta, o Granjo começa na descida do Larouco e vai até Pitões. Tem piada ver que alguns dos desejos do Granjo para a região foram realizados apesar dos resultados não serem bem os previstos. Notei aqui e ali uma outra coisa que me parecem incongruências, mas deixo para os leitores as apreciações sem eu meter o bedelho.

Luís de Boticas

 

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Serra do Larouco

 

BARROSO, FONTE DE SAÚDE

 

A descida quasi a pique, sob uma chuva diluviana, entre touças queimadas, ó coisa de que o leitor nunca fazia bem ideia. Os ramos carbonizados batendo o ensarrafuscando as cargas, as bestas deixando-se escorregar, nós segurando-nos aos cabrestos das ditas, e a água entrando-nos pelo já minguado pescoço sahindo-nos pelas já desfeitas plantas, é qualquer coisa que escapou ao Dante do Inferno. Verdade seja que chegar ao posto da guarda fiscal de Padornelos, accender uma fogueira para enxugar a roupa no corpo, beber dois golos da borracha e comer um bocado de atum de conserva com cebola e um dedal d’azeite, é qualquer coisa que escapou ao Milton no Paraizo.

 

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Padornelos

Pelo cahir da tarde estavamos em Montalegre. Certamente o leitor acredita que comemos e dormimos bem, e como isto de comer e dormir bem, sobretudo de dormir bem, vae sendo, com a crise de subsistências e a crise de revoluções, coisa por deveras apetecida, o leitor acredita que démos por bem empregada a enorme jornada e por bem ganho o nosso dia.

 

Espera-se pelo correio. O que se teria passado pelo mundo? Ter-se-hia feito a paz?  O Sr. Leotte do Rego não seria já commandante da divisão naval? O Sr. Dr. José de Castro teria deixado de ser o estadista «empalhado»? O que teria acontecido?

 

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Montalegre

Veem os jornaes. Na frente occidental, os mesmos duelos d’artilharia na oriental, a tomada da decimamilionesima fortaleza russa pelos austro-allemães; nos Dardanelos, algumas cargas de baioneta. A divisão naval continua a fazer exercícios em Cascaes; e o Sr. Dr. José de Castro continua a convencer-se que o não fadaram os destinos para cavallarias altas e se deveria ter deixado ficar pela presidência da Associação da Árvore.

 

Sacudo os jornaes, como um lobo sacode a presa. Levanto o olhar para as montanhas, para o céu. Mando apromptar a caravana: e fujo para o Alto Barroso.

 

O Cávado decorre serenamente. Uma parpalhaça canta. Por cima das restolhas plana um milhafre. Cae uma chuva miudinha. Por entre as silvas, as amoras espreitam como grandes olhos de insectos.

 

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Ponte de Frades

Passa-se o Cávado em Frades, alcança-se Covellães, e eis-nos em Paredes. Despenhamo-nos nos braços robustos do Accacio de Barros, o mais perfeito barrosão que Barroso gerou e em cuja casa o viajante encontra sempre ancoradouro seguro.

 

Já o sol declina, quando nos pomos a caminho para Fecha Velha. Não me demoro a fazer a discripção da caminhada desde Parada do Outeiro até Pitões, pelo sopé do Gerez. É qualquer coisa que vale um tomo; e é qualquer coisa que não é lícito tentar aos meus recursos descriptivos. Imagine-se um encapellado oceano de pedras, que de repente se immobilizou.

 

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As vagas ameaçam ainda o céu, suspendem-se ainda sobre o pequeno vale. É chapinhando na espuma verde desse oceano petrificado, que vamos trotando. Nada que nos revelle o homem. Aqui e ali, um ou outro muro de pedra solta que serviram para levar os lobos até aos fojos. Atravessam-se moitas de carvalhos. O sol desapparece; e na densidade da floresta o crepúsculo toma uns tons violaceos.

 

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Prendem-se os cavallos a meia encosta, e é derrubando árvores, deslocando penedos. seguindo um corrego por onde suspira um fio de água, que chegamos à formosíssima cascata. Hei-de deixar à photograpfia o encargo de dar uma ideia da beleza selvagem d’este canto de Barroso. Não há-de haver no mundo muitas coisas semelhantes.

 

O ribeiro perfura o enorme rochedo, precipita-se por um canal que a água cavou, e vem tombar entre os fraguedos, dentre os quaes irrompe uma vegetação equatorial. Por cima da Fecha, pairam algumas aves de presa; no fundo, recorta-se o Gerez; a água ruge sob as penedias em que mal equilibramos os corpos cançados; as vozes repercutem-se ao longe.

 

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Cascatas de Pitões das Júnias

Passam há séculos embasbacadas as gerações perante os rochedos, os vales, os lagos da Suissa, e eu morto ando por lá ir também embasbacar-me. Mas se alguns archimilionarios americanos presentissem estas maravilhas, viriam certamente das fontes do Mississipi e das Montanhas Rochosas passar alguns dias na contemplação destas bellas coisas.

 

Um outro paiz...

 

Sim, um outro paiz, uma estrada pelo vale do Cávado até Parada do Outeiro, à vista do Gerez, junto dos derradeiros refúgios do corço e do javardo, e um caminho acessível até à Fecha, além de trazerem ao Alto Barroso os aquistas das Pedras, Vidago, Chaves e Verim, chamariam essas creaturas tomadas do delírio deambulatório, enfastiadas dos museus, fartas das praias, resaibiadas da cidade, e sedentas da natureza e do movimento.

 

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Nenhuma estação do verão existiria em Portugal como Montalegre, desde que uma alma piedosa, ou um negociante arrojado, construisse nas proximidades um bom hotel, e desde que a estrada do Cávado, um bom caminho vicinal até ao Larouco, e a estrada já em construção, que liga a capital barrosã directamente com Braga, facilitassem alguns bons passeios.

 

Barroso seria para o paiz uma fonte de saúde, a grande estação de cura e de repouso. E essa pobre gente, cujo alimento principal é a sopa de leite desnatado, e precisa de emigrar, em camaradas, para as terras do vinho e do azeite, á busca d’uns patacos com que indireite a vida, conheceriam a prosperidade.

 

Era preciso para isso, no entanto, que os governantes pensassem n’outra coisa que não fosse nas intenções dos chefes dos grupos revolucionários e que o paiz deixasse de tremer perante o carbonário, como uma criança deante do papão. E era preciso que todos nos descemos ao trabalho de sabermos valorizar as nossas coisas.

 

N'um outro paiz...

 

Antonio Granjo

 

 

08
Jul20

Crónicas Estrambólicas

Crónicas de um Primeiro-Ministro sobre o Barroso - 10


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Cornos do Barroso

estrambolicas

 

Crónica de um Primeiro-Ministro sobre Barroso 10

 

Mais uma crónica do antigo Primeiro-Ministro António Granjo, um ilustre flaviense. É a uma das 15 crónicas sobre Barroso publicadas no jornal A Capital em 1915. A crónica está escrita como foi publicada, no português da altura, incluindo gralhas tipográficas.

 

Como esta crónica é quase toda sobre o ataque do Paiva Couveiro a Chaves e tem pouco sobre Barroso, vou pedir ao Fernando que faça uma introdução sobre este tema[i]. Só faço o reparo seguinte. Esta batalha em Chaves foi ganha pelos de Chaves, sabendo-se que um dos cabecilhas era o Granjo. Reparem como o Granjo descreve a batalha mas nunca diz que esteve lá ou faz referência ao general do comando de Chaves. Não se vangloria de nada, deixa para os outros esse trabalho, como deve ser. É este tipo de pormenores que mostram a grande classe deste ilustre flaviense.

Luís de Boticas

 

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Serra do Gerês

 

AS LÁGRIMAS DE COUCEIRO

Onde chorou o paladino quando da incursão de 1912

 

Depois de ter desvendado as Alturas, face granítica que se offerecia sob o sol oleoso e para beijar a qual parecia que todas as grandes serras se comprimiam n'um circulo de grandes vagas immoveis, tinha de fazer o circuito de Barroso — transpor o Larouco, internar-me no chamado Alto Barroso, estabelecer contacto com o Gerez, admirar as fechas (cascatas) de Pitões e do Outeiro, passar pela Borralha, tocar na Roca da Ponteira e encher os olhos, cançar os olhos, da visão apocalíptica do Regabão visto da Lomba de S. Bento, quando o sol descambava e tudo se desfazia em luz.

 

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Cascata de Pitões das Júnias

 

O que vou contar vae porventura ser tido como o producto de uma  exhuberante phantasia de meridional ou d'uma paixão regionalista exagerada até à obsecação c à mentira. No entanto, a phantasia mais exaltada era incapaz de crear e dar forma a tanta coisa admirável.

 

Às cinco horas, n'este mez de Setembro, é noite. É pouco mais ou menos, eu sei, ahora de o lisboeta se deitar, perdidas as suas últimas ilusões; mas é a hora em que por cá se levanta quem tem alguma coisa que fazer. Pois às cinco horas estava organizada a caravana, e sob luz palpitante das estrelas, marchavamos pela ponte romana das Caldas, seguindo a antiga via militar de Aquae Flaviae a Bracara Augusta.

 

Nas Casas dos Montes começos a alvorecer, O castello de Monforte projectava-se no fundo purpura do nascente como uma espécie de viseira calada. A casaria do velho burgo flaviense emergia da sombra. Um clarim tocava à alvorada.

 

Em Valdanta, o sol abria já a sua corola d'oiro. Uma ténue neblina alongava-se por sobre o cio Tamega, esgarçando-se nos amieiros. As videiras, as hortas reverberavam.

 

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Amanhecer no alto de Soutelo com a veiga de Chaves de fundo

 

Paramos para comer o almoço frio, acima de Soutelo, no meio d'um lanço vial milagrosamente conservado das iras do tempo e das unhas dos homens. Os carvalhos ladeiam a via; a vinha cobre as encostadas; é na veiga, desde Soutelo de Valdanta, entre as batatas do tarde e os milhos, lavradores gritam aos bois, premindo o arado celta ou guiando pelos corregos o carro Romano.

 

Passa-sa a hora da sesta em Calvão, photographa-se um dolmen à entrada de Castellãos e avista-se Soutelinho da Raia, fim da primeira étape, ainda com sol.

 

O Larouco, para o norte, parece um phantastico saurio com a cauda rastejando pelas Limias e a enorme cabeça, o Larouquinho, solevantada, como uma ameaça, para Montalegre.

 

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Serra do Larouco vista desde Soutelinho da Raia

Foi à entrada de Soutelinho, à sombra prásaga dos castanheiros que rodeiam o cemitério, que Paiva Couceiro acampou no dia 7 de Julho de 1912 quando marcava, certo do triumpho, sobre Chaves, e foi onde, logo no dia seguinte, outra vez acampou, esmagado sob o peso da irremediável derrota. Um pouco à direita, fora das tapadas e do baldio onde os seus soldados rouquejavam as raivas dos vencidos ou curavam as feridas, fica o castanheiro debaixo do qual se diz que Paiva Couceiro se sentou depois da derrota e, com a cabeça escondida nas mãos, chorou o seu sonho perdido.

 

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Soutelinho da Raia

 

Reconstituo esses momentos. Paiva Couceiro tinha entrado por Sendim e seguido a estrada velha, por Gralhas e Solveira acampára depois do meio dia em Soutelinho. O sol ostentava pelos outeiros o seu manto de glória; do céu cahiam bençãos; as cotovias elevavam-se no ar translúcido entoando os seus himnos triumphaes; os carvalhos pendiam para as bordas dos caminhos, offerecendo-se os combatentes. Pouco depois de ter acampado, Couceiro recebia a notícia de que se organisára em Chaves a columna mixta, composta das melhores forças da guarnição, de quasi todos os cavallos e toda a artilharia, a fim de marchar sobre Sapiães com o objectivo de impedir a junção das suas forças com as duas centenas de labregos que se haviam levantado em Cabeceiras às ordens do Padre Domingos. Couceiro devia ter sorrido, os seus olhos deviam-se ter iluminado da fé viva no Triumpho: O seu como esguio devia já sentir-se levado nas azas da victória.

 

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Ao fundo, Sendim por onde Paiva Couceiro entrou com as suas tropas, vindos da Galiza

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Planalto da Serra do Larouco que Paiva Couceiro teve de percorrer para chegar a Chaves com as suas tropas, passando por Gralhas, Solveira e Soutelinho. Ao fundo, lado esquerdo, avista-se a Serra do Brunheiro.

 

O acampamento Ievantou-se e a marcha começou, sem o regular serviço de segurança. Para quê? Chaves ia cahir de madura. Era um fructo delicioso que estava apenas à espera dos seus dentes. Pelo caminho, os soldados cantavam. As grevas de panno, as amas em bandoleira, davam-lhes um cento aspecto de salteadores. Alguns antegosavam a entrada triumphal na antiga praça forte, maquinavam a sua vingançasinha, delíciavam-se porventura na ideia do saque.

 

De madrugada chegaram ao alcance de Chaves sem encontrarem uma patrulha. Os primeiros soldados da República que os monarchistas encontram são os da carreira de tiro que o commando havia esquecido e deixado entregues à sua sorte. O cabo que commanda esses soldados, surpreendido, arma-se e apparece no cimo do Espaldão. Na guarda avançada vinham alguns desertores da infantaria 19. Estes chamam-n'o pelo nome, cumprimentam-n'o riem-se. E é esse cabo, sósinho, que do Espaldão começa o fogo.

 

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Espaldão  - Chaves, onde começou o combate do 8 de julho de 1912 entre os republicanos de Chaves e os realistas de Couceiro.

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António Granjo, ao centro na imagem (Clicar na imagem para ver post do Blog  Chaves Antiga relacionado com a mesma)

 

Fazem-se os preparativos do assalto, as flechas couceiristas chegam quase às muralhas. A companhia do capitão Tito Barreira faz refluir a onda, o combate trava-se.

 

Paiva Couceiro olha fixamente um ponto. Os solados perguntam uns aos outros, inquietos, porque não apparece a bandeira branca. A resistência prolonga-se e sobre o ponto fixo que Couceiro olha cruzam-se as balas. Mas então Chaves não se rende'? Então vieram mette-los n'um matadouro? No hospital de sangue os feridos accumulam-se; os moribundos contorcem-se pelas terras centeeiras; os mortos levantam para o ceu os olhos parados n’uma supplica derradeira e suprema.

 

A tropa fandanga encolhe-se atraz dos pinheiraes das paredes, das penedias. Paiva Couceiro olha ainda o ponto fixo, mas o seu rosto contrahido, os seus olhos apagados, denunciam a sua agonia.

 

O official de antilharia, que dirige o fogo das duas peças, e a quem a derrota já certa enlouquece, manifesta o propósito de despejar sobre a villa um montão de granadas incendiárias. Couceiro oppõe-se. Conta-se, mesmo, que para pedir a realização de tal propósito, atirou com o cavalo para frente das peças.

 

Estava tudo perdido. Paiva Couceiro ordena a retirada.

 

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Gravura/Postal retratando a retirada de Couceiro

A retirada faz-se tranquilamente. Couceiro não se pode queixar da perseguição das tropas republicanas. E à noite, sob as mesmas árvores presagas, ouvindo o gemer dos feridos, as coleras da turba-multa vencida, Paiva Couceiro procura aquele sítio ermo, em que possa chorar todas as suas illusões desfeitas em poeira e sangue. Ali, se terá revoltado silenciosamente contra os cúmplices que faltaram, contra a cobardia d'aquelles que o cercaram de incitações e de promessas e que ficaram detraz das janellas a verem deslizar o curso dos acontecimentos.

 

Acaso, n'esse instante, Couceiro perguntaria a si próprio se, em vez do paladino nun'alvaresco que queria ser, não estaria apenas desempenhando papel de cavalleiro da triste figura; e acaso, vendo passar junto dos seus pés a fronteira hespanhola, perguntaria a si próprio se não estava sendo instrumento da ambição castelhana e se promovendo a desordem na sua Pátria a História lhe não applicaria na face o ferrete de traidor...

 

Antonio Granjo

 

 

 

[i] - Nota do Blog Chaves: O post anterior, "Cidade de Chaves - Feriado Municipal - O 8 de Julho e António Granjo", serve para a  introdução solicitada pelo Luís.

 

 

 

 

02
Jul20

Crónicas Estrambólicas

Crónicas de um Primeiro-Ministro sobre o Barroso - 9


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estrambolicas

 

Crónica de um Primeiro-Ministro sobre Barroso 9

 

Mais uma crónica do antigo Primeiro-Ministro António Granjo, um ilustre flaviense. É a uma das 15 crónicas sobre Barroso publicadas no jornal A Capital em 1915. A crónica está escrita como foi publicada, no português de 1915, incluindo gralhas tipográficas.

 

Não tenho grandes comentários a fazer sobre esta crónica. Acho que há um excesso de preconceitos do Granjo contra os emigrantes no Brasil, que hoje em dia seriam politicamente incorrectos. Sobre o comunismo barrosão: sei que há cada vez menos comunismo embora ainda haja alguma entreajuda à moda antiga num arranque de batatas, numa vindima, ou coisa assim. Infelizmente, deixei os comentários a esta crónica para a última da hora e agora já não estou em condições de dizer nada. É que estive em comunismo copofónico com um amigo de Montalegre, um autêntico convívio barrosão, e agora estou bom mas é para ir dormir. Cronismo amador dá nisto. Um dia destes escrevo algo relacionado sobre isto, para compensar os leitores.

 

Luís de Boticas

 

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AINDA O COMMUNISMO BARROZÃO

Os que emigram e a influência que exercem quando regressam

 

Assim, os barrozões vão buscar à Terra Quente, ao Douro, em camaradas, os meios de subsistência que lhes nega à terra avara onde nasceram.

 

Isoladamente, vão para o Alentejo onde dão excelentes lagareiros; vão para Lisboa, onde uma pequena colónia barrozã moireja obscuramente; vão para o Brazil, para a América do Norte.

 

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Mas onde quer que o barrozão se aninhe, nos montes alentejanos, nos pateos de Lisboa, nas «praias d’além do mar», sempre dentro dos seus olhos e da sua alma vivem e cantam os colmados e os canastros das suas aldeias, os campos de milho das suas veigas, os lameiros das suas ribeiras. A saudade é para eles, homens da montanha, verdadeiramente um sexto sentido. Fóra das horas de trabalho, a que se entrega com todas as forças, com toda a brutalidade do seu ser, os momentos mais deliciosos do barrozão são aquelles em que revive a sua mocidade, alembrando os primeiros olhos dos quaes o coração «se ficou dependurado», como diz a cantiga, sobredoirando o altarsinho humilde em que commungou a primeira vez e em que os dedos maternaes espalharam papeisinhos de côr a fingir de petalas, sorrindo à ideia de que, todas as noites, ao levantar da mesa, os velhotes, lá muito longe, emquanto o vento uiva e os lobos fazem a bocca em roda das povoações, rezam o seu padre nosso para que Deus o affaste dos perigos e o livre de más companhias...

 

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Barroso - Fotografia de Artur Pastor

 

Vão para o Brazil, para a América do Norte, «para além d'água». Uns lá ficam; outros, judeus errantes à busca da imagem da fortuna, andam, andam, para afinal nem sequer se saber onde cahiram para sempre; alguns voltam. Os que voltam, um bello dia entram na povoação escarranchados n’uma boa besta, de grossa cadeia de oiro, bota fina, bem apessoados; atraz, um carro de bois, chiando que o leva o diabo, carreja as malas enormes, a cadeira de bordo e o papagaio.

 

As geiras das camaradas, o dinheiro do Brazil explicam o inexplicável. Desgraçado pássaro o que nasceu em ruim ninho, costuma dizer philosophicamente o barrozão. Como os pássaros, essas creaturas emigram para os paizes do sol, mas voltam sempre ao seu ruim ninho. Gostam de morrer sentados nos seus penedos, vendo desapparecer o sol lentamente. Parece-lhes que o corpo lhes descerá à campa um pouco mais quente e que a alma lhes levará menos tempo à subir ao céu.

 

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O papel social do brazileiro é por via de regra deletério e dissolvente. Eivado dos hábitos individualistas da cidade, pouco se lhes dando dos meios e olhando exclusivamente aos fins, não é raro que o brasileiro pretenda apropriar-se dos pastos comuns, tapar as servidões do povo, insurgir-se contra os usos e costumes, rebelar-se mesmo contra a auctoridade paterna. Também não é raro que o brazileiro se converta no usurario, levando juros exhorbitames, fazendo contractos leoninos, promovendo execuções. A usura tem frequentemente a forma do «pão aquartelado». O usuário empresta ao lavrador, para a semente um alqueire de pão, e o lavrador restitue ao usurário o alqueire e mais um quarto. Mesmo descontando à circunstância de estar sempre o pão mais caro na sementeira do que na colheita, é qualquer coisa como 15 a 18%. Nos annos em que a uma colheita abundate se segue um anno de seca e de fome, atinge as proporções phantasticas de 25%.

 

Já o soldado, depois de acabar o tempo, sahia do quartel e vinha para aldeia espalhar, com a siphilis, o desrespeito pelos velhos usos e pelos bons costumes. O brazileiro espalha a confusão e a indisciplina.

 

Ainda há poucos annos a moeda tinha em Barroso apenas o préstimo de por meio d'ella se comprarem na vila as coisas de mercearia. Seguia-se nas fainas agrícolas o sistema da mutualidade de serviços e pagava-se aos artificies (artistas) em géneros.

 

A carreja (transporte da messe aos domicílios) era determinada para todos e em dia fixado no chamado. Antes da carreja dois vizinhos faziam a contagem das pousadas (cada pousada tem cinco molhos) deante do guardador que arrematára a guardada pelo menor número de alqueires. O preço do guardador era repartido pelos vizinhos na proporção do que cada um colhera; e a carreja era feita em massa por todos os vizinhos. Ainda uma forma de communismo.

 

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Barroso - Fotografia de Artur Pastor

 

Levantadas as mêdas ou medouchas, conforme o tamanho, esperava-se a hora da malhada. Chamava-se à eira e cada qual acorria, não tendo o dono da messe outra obrigação além de dar de comer aos que trabalhassem. Era o serviço mútuo.

 

Nas espadelas do linho, o processo era o mesmo. Ajudavam-se uns aos outros, sem que houvesse a necessidade de intervenção da moeda para o pagamento de serviços, que se davam, mas que se não vendiam.

 

Ainda por muitos sítios se obedece aos antigos costumes, mas os institutos da mutualidade de serviços e da troca de géneros vão diminuindo de importância. A compra e venda, e consequentemente a moeda, vão entrando definitivamente nos hábitos.

 

Em grande parte esta evolução é devida ao brazileiro.

 

Em todo o caso, se o brazileiro, com os vicios que traz da cidade, é dentro da família communalista barrozã um elemento crítico, certo é que de vez em quando a sua bolsa e a sua vaidade erigem bons edifícios por aldeias reconditas, semeando a abundância, e que o exemplo da sua prosperidade e fortuna dão ouzio e força aos outros.

 

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N’esta região pauperrima, a arte é nula. A’ parte a canção popular, que brota espontânea como a agua das levadas, tudo se reduz a uns desenhos lineares nas espadelas, nos córnos de chamar as vezeiras. Não há em todo o Barroso uma única egreja em que appareça uma talha nobre, um azulejo, uma grinalda, uma rosacea, uma custodia. Pequenas capelas, com altares de ordinaríssima talha, muitas vezes caiada. É em volta d'estas capelas, alvejando entre os soutos dos castanheiros, ou apoiando-se no dorso das cumiadas que ainda se expõem os amortalhados e que as vaccas, com ramos de giesta floridos nas hastes em forma de lira, veem offerecer-se aos oragos e padroeiros.

 

Antonio Granjo

 

 

25
Jun20

Crónicas Estrambólicas

Crónica de um Primeiro - Ministro sobre Barroso - 8


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estrambolicas

 

Crónica de um Primeiro-Ministro sobre Barroso 8

 

Mais uma crónica do antigo Primeiro-Ministro António Granjo, um ilustre flaviense. É a uma das 15 crónicas sobre Barroso publicadas no jornal A Capital em 1915. A crónica está escrita como foi publicada, no português de 1915, incluindo gralhas tipográficas.

 

A lavoura de Barroso está muito descurada e os lavradores ainda são olhados como gente ignorante e sem estatuto. A prova: até há uns 5 anos, não havia em Boticas um vereador com o pelouro da agricultura. Não era o único concelho do Norte sem esse pelouro, Boticas não é muito diferente do resto. No entanto, todos os concelhos têm vereador da cultura porque é muito chique, mesmo que não haja um cinema, um teatro, ou uma livraria no concelho. Da agricultura nem se lembram! É uma burrice porque a agricultura foi durante séculos o sector principal da economia local. Julgo que este abandono é um dos principais motivos da desertificação do interior. Diz-se que a agricultura não dá nada, mas depois vemos partir emigrantes para ir ganhar 4 ou 5 mil euros a trabalhar na agricultura em países como a Suíça ou a Holanda, com condições climatéricas muito piores, e os nossos terrenos ficam ao abandono. Na Holanda (um país pouco maior do que o Alentejo), o sector que faz mais milionários não é a indústria, nem a finança, nem a banca, nem nada, é a agricultura. Um país tão pequeno mas que é o segundo maior exportador mundial de tomates, por exemplo. Será assim tão difícil copiar alguma coisa do que se faz na Holanda? Além da agricultura, a floresta poderia ser outra fonte de riqueza. Mas não, é desprezada, a cada 15 anos ardem as mesmas áreas florestais, que nos últimos 50 anos só se tirou fraca madeira queimada. No concelho de Boticas, facilmente se empregavam cem ou duzentas pessoas a limpar e tratar da floresta. A madeira e a resina pagariam isso. Em vez disso, brevemente teremos um grande incêndio na zona entre Boticas e Vidago. E o gado? Não se poderia cercar um destes montes sem uso e meter lá uma vezeira de 20 mil cabras? Uma cerca ficaria mais barata do que uma dessas corridas de carros onde não vai ninguém. Os pastores agradeciam e a economia local também.

Luís de Boticas

 

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A LAVOURA DE BARROSO

Uma bella lição de trabalho obstinado e de amor à terra e ao lar

 

Em Barroso, como em regra no norte, a propriedade está pulverizada. A abolição dos morgadios trouxe como consequencia a divisão e subdivisão das antigas casas; os bens de mão morta foram egualmente divididos e sub-divididos, depois do regabofe constitucional, em virtude do codigo civil.

 

Por outro lado, a população augmentou, e a terra aravel ficou quasi estacionária. Sendo a riqueza constituida pelo armentio, os melhores bocados são os lameiros espontaneos ou artificiais, nas margens dos ribeiros.

 

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Existiam em Barroso, grosso modo, 12.000 vacas em 1859, segundo o testemunho de Silvestre Bernardo de Lima, que n’esse anno e fins do anterior publicou no Archivo Rural uns excellentes Estudos pecuários sobre a província de Traz-oz-Montes. E já dizia este erudito e portuguezíssimo escriptor, que pedia sempre desculpa ao leitor quando empregava — e raro o fazia — um gallicismo:

 

«Para a tão pequena e limitada área que constitue a região de Barroso, é esta quantidade de vaccas uma quantidade admirável, extraordinária até, comparando-a com a existência de semelhante armentio em egual area, não direi de outros paizes, mas do nosso nos pontos mesmo mais ajustados e consentaneos a esta espécie de ganadaria».

 

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Não está feito ainda o recenseamento, que Silvestre Bernardo Lima substituiu por informações dos parochos e pessoas gradas.

 

O computo, porém, é muito superior, e, se já em 1859 causava admiração o facto de a região ser tão armentosa, actualmente em que as terras limadas e os lameiros espontâneos são quasi os mesmos, o esforço que este povo faz, augmentando a sua fazenda em enorme desproporção dos bens de raiz, inteiramente desprovido de meios de comunicação, sem o mais ligeiro bafo do poder, ignorado e ignorante, é certamente uma bella lição de trabalho obstinado e de amor à terra e ao lar, sobretudo n'este paiz em que a perguiça, a indolencia, a tristeza são os principais motivos dos poetas e em que pobres creaturas derrancadas imaginaram dar à gente portugueza um ideal com essa limonada fresca do saudosismo.

 

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Como se explica o desenvolvimento do armentio (em quantidade, que em qualidade vae degenerando) em Barroso? O barrosão compra a fazenda com o que ganha fora da terra.

 

As sementeiras fazem-se em fins de agosto e setembro. Ainda o pão não está na arca, ainda muitas vezes o malho não canta na eira, e já o barrosão com o seu arado celta, levanta a terra para receber o grão, que no inverno germinará sob as camadas de neve e de geada. As mulheres espadelam o linho, sacham o milho, guardam o gado. E entretanto os barrosões vão em camaradas fazer as ceifas à Terra Quente, as vindimas do Douro. Um dia, de Mirandela, de Valpassos, Torre de D. Chama, às vezes de Macedo de Cavalleiros, chega ao tio Foca ou ao tio Peguisto, que foram as capatazes das camaradas do anno anterior, uma carta convidando-os a ir fazer as ceifas. O tio Foca avisa os da terra e manda aviso aos das aldeias em roda; e no dia marcado juntam-se os da camarada e eis ahi vão, logo de madrugada, ao espontar do dia, atravez dos caminhos trepando outeiros, galgando serras, com os seus harmoniuns e os seus ferrinhos, os seus lodos e as suas mantas, cantando a última moda, enchendo o ar da sua alegria saudável, bracejando e rindo sob o sol loiro e amigo.

 

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Há ainda a tradição de que outr’ora os capatazes, quando chegava a ocasião das ceifas, se iam até às feiras da Terra Quente, com tantas ceitouras ou fouces quantos eram as das camaradas. Na feira, punham as ceitouras no chão e quem tinha as messes contratava esta ou aquela camarada conforme as suas precisões.

 

Em 20 dias de ceifa, os barrozões trazem para casa os seus 7 ou 8 escudos. As mulheres ganham 0,24 e os homens 0,30 por dia, e a molhada. Os rapazes, se atam as molhadas, ganham como os homens ou pouco menos; se os seus braços ainda não podem com esse trabalho, ganham como as mulheres.

 

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O capataz é que recebe o dinheiro de todos, dirigindo a pequena tribu errante, dispondo onde dormem os homens, onde dormem as mulheres, applicando multas, garantindo o trabalho diário. No fim das ceifas, o capataz recebe de cada um dos da camarada 0,04. Este pataco é ainda uma sobrevivencia dos tempos em que os capatazes iam às feiras oferecer as camaradas. Cada um que se acamaradava contrahia a obrigação de pagar essa quantia ao capataz, a título de indemnização pelas despezas e trabalhos da jornada.

 

Tenho ainda viva a impressão que me ficou da primeira vez que vi partir uma camarada. Havia ainda luar. Dentro das casas abarracadas, o ar aborralhado da noite de julho pesava sobre as camas como uma vara metálica. Tinha-me levantado e estava à varanda olhando um monte que ardia ao longe. De repente, do lado das Lavradas uma camarada assoma. Uma voz canta:

 

     Toda a moça qu'é bonita,

     Nunca havia de nascer;

     É com’a pera madura

     Todos a querem comer.

 

E logo outra voz responde:

 

     Todos a querem comer.

     Olha lá que comerão;

     Inda qu'alimpes a bocca,

     Não te chega lá a mão.

 

A camarada passa. Vão descalços, os socos na mão, a manta no hombro. Algumas moças vão à frente, em fila, pondo cada uma a mão direita no hombro da que lhe fica ao lado. No meio vae a cantadeira.

 

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Fotografia de Artur Pastor

 

Enchem a rua de tumulto, chamam uma ou outra conhecida, e somem-se n'um cotovello, entre os castanheiros. Apparecem n'um pequeno outeiro, um pouco adeante. As suas sombras projectam-se no chão, estirando-se sobre os penedos. Por fim, apagam-se as vozes como um murmúrio d’uma levada.

 

Era a avançada d'um povo que emigrava, à procura do valle, onde encontrasse no seu trabalho uma terra mais ubere e um ceu mais clemente? Era a vis ancestralis que arrancava dos seus eidos essa mocidade e a obrigava a levar os seus braços de terra em terra, cantando e trabalhando, rindo e amando, como outr'ora os seus antepassados levavam de terra em terra os seus rebanhos?

 

Antonio Granjo

 

 

18
Jun20

Crónicas Estrambólicas

Crónica de um Primeiro-Ministro sobre o Barroso - 7


 

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São João da Fraga, bem lá no alto da Serra do Gerês no meio do fraguedo, uma capela construída para proteção do gado em pastoreio na serra

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Crónica de um Primeiro-Ministro sobre Barroso 7

 

Mais uma crónica do antigo Primeiro-Ministro António Granjo, um ilustre flaviense. O comunitarismo barrosão já quase desapareceu, restando algumas coisas das decisões sensatas tomadas há muitos anos, como a divisão das águas de rega. Há terrenos em Boticas que só têm direito às águas dos corgos durante alguns meses e há outros que só têm direito a ano sim e ano não, obrigando à variação dos cultivos. Outra coisa curiosa, que será muito antiga, são os nomes dos terrenos duma veiga. Todos os terrenos duma veiga, por mais pequenos, têm um nome (como também acontecerá no resto do país), que seria muito útil nos tempos em que não havia topógrafos ou gps’s. Para além da evidente utilidade do nome num registo de propriedade, os nomes eram muito úteis no laboro diário: “Amanhã vais com as vacas para Lamas, que Pereiro está muito rapado!”. Já há muitos anos que não vejo ou ouço tocar um corno, que além de ser usado nas vezeiras também se tocava nas noites de despedidas de solteiro à porta da casa dos noivos para se beberem uns copos numa pequena festa. Gostei da crítica do Granjo à obsessão de muitos portugueses com tudo que vem do estrangeiro, esquecendo e desprezando a sua própria cultura. Para mim, os maiores flagelos do nosso interior rural são as obsessões com a cultura citadina e a cultura anglo-saxónica. Talvez um dia destes escreva uma croniqueta a explicar o que quero dizer com isto, apesar de achar que da maneira que as coisas estão, vai ser tempo perdido.

 

Luís de Boticas

 

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Pastagem de bovinos em Coimbró, Boticas

 

O COMMUNISMO BARROSÃO

 

O papel que desempenham os chefes de família

 

Ponhamos por agora ponto na descripção da paisagem, do solo, do ambiente em que este admirável povo de Barroso realisa a maravilha de viver, conservando zelosamente o seu ripo de família e os seus costumes, a sua indumentaria e o seu religiosismo pagão.

 

N'um paiz em que as imigrações, as invasões e as conquistas successivas engendraram o tipo de família desorganizada, o povo de Barroso, com o seu tipo de família communalista bem definido, offerece o mais espantoso exemplo de resistência à dissolação e desagregamento geraes.

 

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Fotografia de Artur Pastor

 

Quem manda em Barroso é o chefe de família. Os chefes de família reunem-se, a convite do regedor ou dos cabos de polícia, ou de dois ou três vizinhos, em volta do cruzeiro, no adro da egreja, na casa do forno, e deliberam por maioria sobre lamas do povo, os logradouros communs, as regas, as coutadas, a compra ou venda do touro, quaesquer melhoramentos ou concertos. A hora da chamada é anunciada pelo toque do corno (chifre), da buzina ou do sino.

 

Os chamados administram também a justiça. Apresentam-se as queixas àcerca dos terrenos comuns indevidamente apropriados por algum vizinho, àcerca da invasão da fazenda (os gados) em domínio privado. O chamado nomeia logo dois árbitros, faz-se uma averiguação summaria e, no caso de se provar o delicto, os árbitros assignalam o prejuizo e fixam a multa.

 

O dr. Léon Poinsard, convidado por alguns sócios portugueses da Societé Internationale de Science Sociale a vir fazer o estudo do nosso grupo nacional, atravessou Barroso de Ruivães a Boticas, e no seu livro Le Portugal Inconnu demora-se um pouco na análise das instituições e costumes barrosões.

 

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Largo, cruzeiro, bebedouro e chafariz em Vilarinho Seco, Boticas

 

Diz o veterano das sciencias sociaes:

 

«...estabeleceu-se entre esta pobre gente um conjunto de costumes, destinado a assegurar-lhe o usufruto pacifico do seu ingrato solo, costumes que, a despeito das suas formas simples e elementares, são admiráveis pela sua engenhosa precisão.

 

«D’onde lhe vem esta sabedoria tão prática e previdente? Algum legislador genial terá elaborado esses regulamentos à força de muito pensar e meditar? De modo algum. Possuindo uma organisação de família muito robusta, tendo o chefe de família uma grande autoridade, este povo, constatando as suas necessidades práticas, foi pouco a pouco modelando os costumes e regulamentos mais apropriados a satisfazê-Ias. Governando cada um a sua casa, os chefes de família, desde tempos imemoriais, entendem-se uns com os outros para encontrarem a solução mais simples e mais lógica do problema vital que a natureza lhes apresenta: adaptarem o mechanismo da família comunalista à gerência dos interesses da vizinhança, regulando amigavelmente as questões de interesse geral, tanto de carácter privado, como de caracter publico».

 

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Gado em pastoreio no alto da Serra do Gerês

 

Os chamados deliberam também sobre a celebração das festas, a administração dos rendimentos das egrejas, a venda das offertas aos santos.

 

A pobreza das terras dá logar ao afolhamento, ou ao regimen da veiga vazia. É da veiga vazia que se faz em geral o pascigo do gado miúdo, emquanto o armentio se delicia com a herva fresca e tenra dos lameiros. Desde o S. Miguel até ao primeiro de maio o gado está nos estábulos, submettido ao regimen seco. Em chegando o mês de maio o gado sae das córtes e vae para as terras pastoraes, baldias ou apropriadas. Nas terras baldias o gado miúdo (ovino e caprino) anda sempre de vezeira, e ainda n’algumas ha vezeiras de gado bovino.

 

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Chegada à aldeia da vezeira na aldeia de Stº. André - Montalegre

 

O rebanho de vezeira é a reunião de cabeças de gado de uma mesma espécie, pertencentes a diversas pessoas de uma mesma povoação em um rebanho commum ou adúa, que é pastoreado à vez nos pastos communs.

 

Em regra, quem tem dez cabeças, anda sempre à roda, dá sempre um dia, isto é, toca-lhe sempre a vez de guardar o rebanho em cada roda dos vizinhos: quem tem menos de dez folga um dia, isto é, guarda uma vez em duas rodas. A obrigação de ir com a vezeira impende sobre os donos da fazenda, que mandam os seus filhos ou as seus creados: mas às vezes assalariam entre todos um pegureiro por esse serviço.

 

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Pedrário - Montalegre

 

À hora habitual, o pegureiro ou o vizinho a quem cabe a vez, solta o pregão deita a rez à vezeira!, ou chama a vezeira pelo toque do córno ou buzina. Em Pedrario e n’outros sítios chama-se a rez à vezeira por toque de sino.

 

À noite, a vezeira volta e o pegureiro vae metendo para o curral de cada um a respectiva rez.

 

Em Pitões e n'outros lugares mais próximos do Gerez a vezeira das vacas anda na serra desde maio a setembro. O touro meiral é então o rei da serra, que percorre magestosamente em todos os sentidos com o seu cortejo de dezenas e dezenas de vacas.

 

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Pitões da Júnias com a Serra do Gerês de fundo - Montalegre

 

 

A cultura rotativa ou o alternamento da cultura com o pousio dá também logar a costumes interessantes. No anno da semeada, a folha cheia ou afrutada é coutada ao pasto comum dos gados da povoação. N'algumas partes, nomeia-se guardador para a veiga cheia, cargo que anda à roda por todos os que teem semeadas. A veiga vazia, destinada ao apascento commum, tem também o seu guardador, egualmente andando à roda. Então o guardador ou pegureiro que sae deixa à porta do que deve entrar um cajado,  a cajata, e assim fica avisado de que lhe cabe a vez.

 

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A torre sineira do boi em Travassos do Rio - Montalegre

 

 

Lembro-me de que em Coimbra se estudava com alguma abundância de pormenores o mir russo e certos costumes e instituições das tribos índias do Orenoco e das populações nomadas do platô central da Ásia, vestigios do communismo primitivo, no qual a humanidade fruiu a sua edade d'oiro e para a volta ao qual se anda preparando a grande Revolução. Não se fazia, porém, a mais leve referência aos povos dos massiços de Barroso e de Miranda. Preferiu-se sempre fazer obra fácil sobre o livro estranho, com citações exóticas, do que fazer sciencia sobre a phenomenalidade ambiente, com observações rigorosas.

 

Estes artigos, sem pretenções scientíficas ou litteráridas, pretendem chamar as atenções para Barroso, especialmente do turista, mas isso não quer dizer que o lente não deva também deitar para lá a sua vista d’olhos.

 

Antonio Granjo

 

 

 

Nota: Texto de António Granjo escrito conforme original  (de inícios do Sec. XX)

 

 

11
Jun20

Crónicas Estrambólicas

Crónica de um Primeiro-Ministro sobre o Barroso - 6


estrambolicas

 

Crónica de um Primeiro-Ministro sobre Barroso 6

 

Mais uma crónica do antigo Primeiro-Ministro António Granjo, um ilustre flaviense. Não tenho comentários a fazer a esta crónica, deixo-a já aos leitores.

Luís de Boticas

 

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A ADMIRÁVEL REGIÃO BARROZÃ

 

Porque não se faz hoje por ella o que os romanos fizeram ha perto de dois mil annos?

Quando os árabes dos desertos do oeste chegam ao valle do Nilo e param na contemplação do rio sagrado, o seu grito irreprimível é sempre: «Tanta água!» Se o alentejano que vem para as Pedras ou para Vidago curar o estômago derrancado pela respectiva sopa e suavisar na contemplação das veigas e dos longes do norte os olhos queimados da charneca — se o alentejano se visse no Côto dos Corvos ou no marco das Alturas o seu grito irreprimível seria à certa: «Tanta serra!».

 

O Gerez, o Larouco, a Cepeda, o Leiranco, o Brunheiro, S. Domingos. a Choupica, a Cabreira, a Picoreta formam um immenso círculo azul. Dir-se-hia que se dão as mãos e que, sob o sol loiro, que se derrama sobre os cimos como um oleo quente, todas essas serras dançam a roda. No meio, a serra de Barroso ou das Alturas parece esperar o momento de escolher o seu par, maneando imperceptiveImente a cabeça gentil e sorrindo às leves poeiradas d'oiro que sirandam em volta dos côtos e modelam voluptuosamente os recortes. O vento, emquanto as serras dançam, toca a sua flauta eterna. No último plano, para sul, entremostra-se a cabeça calva do Marão e, para sudeste, a cabelleira fulva da Padrela.

 

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Alturas do Barroso vista desde o alto da Serra de Barroso

Eu não sei qual seja o sabor do mel do Himeto, mas juro que as trutas que comi, a 1.257 metros de altitude, na serra de Barroso, pelas 18 horas do dia 26, apoz uma estirada de algumas leguas eram bem um manjar dos deuses. Também não sei o que seja a bemaventurança, mas juro que as duas horas que passei n'esse dia, 1.200 metros acima do Terreiro do Paço, conversando com um guia analphabeto e dois pequenos pastores de cabras, os ouvidos cheios de silêncio da amplidão, os olhos cheios da magestade da montanha, quasi tocando o céo com os cabellos, o coração dormindo dentro do peito como uma creança dentro d'um berço, a alma librando-se como uma calhandra, na atmosphera silente, todo o ser impregnado do extase das coisas — juro que essas duas horas foram bem dois instantes de bemaventurança eterna.

 

Comprehende-se que as altitudes sejam as grandes santas milagreiras dos dias de hoje. Como é possível morrer-se tão perto do sol que basta estender o braço para se lhe tocar? Como é possível perder-se a vontade de viver tão longe das paixões que os lábios, se se abrem, é apenas para dizerem uma oração, e que os pulmões, se se dilatam, é apenas para receberem o ar?

 

Como dizia algum pobre poeta, se em Portugal os poetas não se houvessem transformado em directores da polícia de emigração clandestina ou acaso das commissões de separação dos funcionários — que bom devia ser errar por aqui alguns dias, convivendo com os astros, conversando com a noite, dormindo sobre as urzes e acenando às nuvens para que viessem poisar perto de nós...

 

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Enfim, enfim, não fosse este paiz a enorme Jumencia, de que costuma falar Joaquim Madureira, e a serra das Alturas teria deixado de ser ha cem annos o pasto de verão das cabradas de Campos, Villarinho Secco e outros pequenos agglomerados de cabanas primitivas, surgindo no Côto dos Corvos ou no Côto do Sudro um esplendido hotel servido por estradas, funiculares e todos os modernos meios de transporte, onde os tuberculosos viessem refazer os pulmões, as pobres vitimas dos hábitos citadinos viessem retemperar a saúde com o leite puríssimo e a água puríssima, e os políticos e Iitteratos viessem apagar as varias febres na contemplação das coisas pacíficas.

 

N'um pais que não fosse, como effectivamente é, o “habitat” de uma população de animaes políticos, entre os quaes honrosamente me conto, aproveitar-se-hia a circunstância de Pedras e Vidago serem as nossas melhores estancias d’aguas, e ter-se-hia valorizado, para o turismo, esta admirável região barrozã.

 

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Covelo do Monte

Os romanos fizeram atravessar Barroso por duas magnificas vias, uma que vinha de Portus Cale a Bracara Augusta, passava por Aquae Flaviae e Asturica Augusta e penetrava nos Pirineus, e outra que, destacando-se da primeira, para alem da “mantio” Salatia atravessava o planalto pelas actuaes povoações de Bezerrinhos, Covêlo do Monte e Atilhó nas faldas das Alturas, entrando em Aquae Flaviae pelo sul. Ainda, atravessado o Gerez, e intemando-se nas regiões galaicas, os romanos construiram a grande via militar, que é conhecida vulgarmente pela Geira.

 

Dizer que se faça hoje por Barroso o que se fez há perto de dois mil annos será porventura uma exigencia demasiada? Pois não estará qualquer politiquelho de hoje quarenta furos acima de Augusto e qualquer jovem capitão quarenta furos acima de Cezar?

 

António Granjo

 

04
Jun20

Crónicas Estrambólicas

crónica de um primeiro-ministro sobre o barroso - 5


estrambolicas

 

Crónica de um Primeiro-Ministro sobre Barroso 5

 

Mais uma crónica do antigo Primeiro-Ministro António Granjo, um ilustre flaviense. Afinal, além das quatro últimas crónicas, o Fernando (o CEO do blogue) descobriu mais algumas, todas sobre Barroso, num total de 15. Esta descreve a viagem de Boticas às Alturas. Vê-se que o Granjo não conhecia a região e não planeou em detalhe a viagem, o que não tem nada de mal. Duas horas para fazer os 5 km de Boticas à Carreira da Lebre, a cavalo?! Atravessar o Beça num pontilhão? Enganou-se, a famosa ponte Pedrinha já lá estava (há quem diga que é romana ou medieval). É interessante a descrição de Carvalhelhos. Gosto do uso da palavra réco. Não imagino onde seriam as duas antigas estalagens de Almocreves, talvez ainda lá estejam a servir de habitação. A Empresa das águas já existia e até havia anúncios à água no jornal A Capital, no mesmo ano em que saíram as crónicas do Granjo, reparei nisso. É pena, hoje em dia, a via romana nas Alturas (uma das três que ligavam Chaves a Braga) não estar assinalada. Foi destruída? Não me admiraria.

Luís de Boticas

 

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SUBINDO À SERRA DAS ALTURAS

As aguas maravilhosas de carvalhelhos

A lenda das léguas que a velha mediu

 

 

De Boticas à serra de Barroso ou das Alturas é meio dia de jornada. As leguas, em Barroso, foram contadas por uma velha que ia andando e comendo dôces. É o que reza a lenda e é o que facilmente se constata mettendo-se a gente a caminho e internando-se, entre as serras interminaveis e os curtos plainos, até às maiores altitudes.

 

Quando monto o garrano, sobre cujo albardão irei, escarranchado e de pernas bambas, em busca do ignoto, pergunto à estalajadeira:

 

— Quantas horas levará a chegar às Alturas?

 

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Alminhas - Lavradas

 

— É já ali. Chegando às Quintas, vê-se logo Lavradas, e chegando à Cruz das Lavradas vê-se logo a serra.

 

O garrano, a cabeça baixa, as pernas escaneladas e curtas, trépa como um carneiro. O sol nasce. Uma ténue neblina encobre o fundo do valle. Uma briza um tanto áspera pica a epiderme e faz bamboar por cima das paredes os braços das vidreiras, aqui e ali amarelecidas do míldio.

 

Nas corgas prosperam a urze real e a torgueirinha, o sargaço, a esteva, a carqueja, a queiroga. A giesta vê-se raramente. Uma levada canta pala serra abaixo.

 

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O sol está já acima do horisonte. Toda a veiga reverbera. Nas perneiras e milho as gottas de orvalho fulgem como diamantes; na face adusta do granito os pedaços de mica rebrilham como flechas; babas d'oiro entrelaçam-se nas ramagens. À beira do caminho, os castanheiros deixam pender, n'um gesto familiar, os ramos verdenegros, d'entre os quaes os ouriços espreitam aggressivamente.

 

A vinha acaba. Nas Quintas, apenas, algumas latadas cobrindo as ruas com as suas sombras propicias, abrigadas da nortada pelas frontarias e protegidas as cepas das geadas por resguardos de cortiça.

 

Dobra-se o alto e na frente estende-se a ribeira do Beça. As restolhas, batidas do sol nascente, têem lampejos de prata. Dois rapazitos, guardando a vezeira do gado, fazem desenhos no caminho.

 

— É muito longe daqui às Lavradas? Um dos pequenos levanta os olhitos azues e aponta com o dedo o limite do horisonte.

 

— Por traz d'aquelle alto...

 

E os seus olhitos, duma transparencia de tarde d'outono, teem essa doçura das creanças que estão a atingir a nubilidade.

 

A caminhada leva já duas horas. Atravessa-se o Beça sobre um pontilhão inverosimil —duas ou três lages compridas em cima de meia dúzia de poldras. Acima, entre os castanheiros, esponta Carvalhelhos. O sol arranca dos colmos reflexos fulvos. As casas são térreas, de pedras justapostas, toscamente aparelhadas ou mesmo sem apparelho, tendo apenas uma porta e um cancello supplementar, destinado a impedir a sabida dos récos, dos pintos e da filharada, quando a porta tem de dar passagem ao fumo da lareira. Verdadeiras habitações primitivas, que, de longe, o sol arruivando os colmos, se diriam cobertos de pelles de animais selvagens.

 

É nésta aldeola perdida, sobrevivencia dos tempos protohistoricos, que brotam riquissimos mananciaes d’aguas silicatadas, para exploração e aproveitamento das quaes se constituiu. parece, uma empreza, mas que jazem ainda, jazem sempre, no mais lamentável e criminoso abandono. Todos os annos afluem a Carvalhelhos os doentes, assignalando-se curas maravilhosas nas condições menos favoráveis, ou, para exprimir toda a verdade, em condições muito proximas da immundicie. As aguas distam da povoação coisa de dois kilómetros. Dois cobertos de colmo protegem-nas das chuvas. Os banhos são aquecidos n'uma cozinha de campanha e ha para todos os doentes, às vezes mais de 50, tres tinas, por junto, de madeira ou folha. Os banhistas mais pobres acommodam-se aos montões nos palheiros. Apesar de tudo, a afluencia é cada vez maior, porque os testemunhos das curas são cada vez mais irrecusaveis.

 

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Carvalhelhos

Carvalhelhos foi, nos dias gloriosos da estrada velha das Alturas, quando os almocreves, com as suas récuas de machos, eram os donos do transito entre Braga e Chaves, uma paragem forçada. Dois casarões, antigas estalagens, com enormes estrebarias, attestam, esse passado de grandeza e de prosperidade.

 

O sol vae alto. Uma voz possante, do cimo d'um penedo, dominando os cerros, chama à eira; e, já no limite das Lavradas, ouve-se o cantar dos malhos. Para Villarinho da Mó, vê-se a serra golpeada das pesquizas de volframio. Uma rapariga dos seus dezaseis annos, os seios pequenos como os fructos da novidade, furando a camisa de linho, os olhos pretos luzindo como lascas de volfrâmio, sentada no sóco da Cruz das Lavradas, vae fiando a maçaroca de lã e vigiando a cabrada que retouça no montado.

 

— Pastorinha, ainda é muito longe a serra das Alturas?

 

A pastorinha sorri. Sem dúvida, o seu sorriso sabe a medronho e a mel silvestre, e os seus dentes parecem pequenas lâminas de gelo que por milagre ficassem desde o inverno entre os seus labios frescos.

 

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— Ahi de riba já se vê a serra! O garrano baixa mais a cabeça reteza mais as pernas flexíveis e eis a serra, correndo de NO. SO. como uma gigantesca vaga azul, ameaçando subverter a immensa amplidão. Parece que a espuma verde da imponente vaga chega até baixo, à chã, onde uns magros batataes se agarram à terra safara. Parece que basta estender o braço para se lhe tocar.

 

A ascenção tem sido feita vagarosamente. O pobre barrozão que vem commigo abre já a bocca e respira com soffreguidão. Dentre os penedos veem lufadas quentes. O sol, segundo o adágio regional, começa cozendo a terra.

 

Caminhamos. Mais uma hora. Os penedos encostam-se uns aos outros, como animaes cançados. Deixa dc interessar a paisagem. Os olhos fecham-se. A redea solta-se das mãos. O garrano vae à vontade. De vez em quando pára, farejando uma poça de agua. A somnolencia esmaga as coisas.

 

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Atilhó

Surgem árvores, vaccas, colmos.

 

— Ó homensinho ali é que são as Alturas?

 

O homensinho estende o mento encarquilhado para o sul.

 

— Oh! não senhora. Ali é Atilhó! Mas as Alturas será um quarto de légua...

 

Caminhamos, caminhamos. Uma aragem fresca desembocca d’uma portella. O sol a pino. O meu guia parece um rafeiro estafado, arrastando-se com a barriga, pelo chão. Galgam-se dois lanços da via romana. Enfim, a egreja caiada das Alturas surge anunciando a Terra de Promissão.

 

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Mas a serra? A serra agacha-se, como uma fera a formar o salto.

 

Pergunto a uma velhota:

 

— D'aqui ao cimo da serra?

 

A velhota esfrega os olhos roídos da blefarite, ageita o avental de estopinha e responde sacudidamente, núma voz mascula:

 

— Uma légua das que a velha mediu...

 

Succumbo.

 

Antonio Granjo

 

 

 

22
Mai20

Crónicas Estrambólicas

Crónica de um primeiro-ministro sobre o barroso - 4


estrambolicas

 

Crónica de um Primeiro-Ministro sobre Barroso 4

 

Mais uma crónica do antigo Primeiro-Ministro António Granjo, um ilustre flaviense. É a quarta de quatro crónicas sobre Barroso, publicadas no jornal A Capital em 22, 26, 27, e 30, de Agosto de 1915. Reproduzi as crónicas exactamente como saíram, no português de 1915, incluindo gralhas tipográficas. A cópia digital encontra-se aqui . Esta crónica descreve a estadia em Boticas. Inicia com a descrição da estalagem que estaria situada frente ao Toural, o antigo largo da feira, onde há agora um jardim, mesmo ao lado dos correios. Compara-se a estadia com as descritas nos livros de Camilo, uns 50 anos antes. Camilo fazia muitas menções a Barroso e há, entre outros, um bom episódio passado em Boticas no A Brasileira de Prazins. Gostei do remoque à tal avenida de Boticas, porque actualmente continuamos uns parolos, a fazer dumas toscas ruas umas pomposas avenidas. A minha querida R. da Carvalheira há muito perdeu para Av. De Chaves, a fazer prova do forte provincianismo local. O Granjo nota a falta de característica de algumas casas, mas se visitasse a Boticas actual iria ficar escandalizado, a falta de planeamento urbano juntamente com a falta de bom gosto tem produzido muitas aberrações, a vila está cada vez mais feia, sem personalidade e carácter.

 

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Vista geral de Boticas (atual)

 

A descrição da conversa na Botica, a antiga farmácia Martins, que fechou há poucos anos e distaria apenas uns metros da estalagem, diz que o Granjo seria amigo do farmacêutico. Faz-se menção à história do arcebispo de Braga que, quando no Concílio de Trento se votou a castidade para os padres, disse que podiam impor o celibato a todos menos aos padres do Barroso. Ainda agora os padres da região têm fama de namoradeiros e alguns nem se preocupam em esconder as amantes, como é caso do bendito Padre Fontes, que diz que tem tido várias. Nota-se que o Granjo era fã da poesia e dos exageros e imprecisões que eu associo a essa arte. Imagino que tenha passado muitas noites a ouvir o fado lá para Lisboa. Do Toural é impossível ver a Ribeira do Terva, a única coisa que se vê é o Corgo do Fontão, que se junta ao Terva para lá dum outeiro que impede a sua vista da vila. Também fica mal ao Granjo dizer que o Terva corria como um fio de prata e logo a seguir dizer que corria como um fio de mel. Ou é boi ou é vaca. Já antes, a propósito da maravilhosa água de Boticas, diz o cronista que a garganta seca-se. Fico com os cabelos em pé com poetas assim, mas a verdade é que está bem engendrada, não lembra ao Diabo! Como diria eu: foda-se! Tirando o exagero poético, adorei a crónica do Granjo e a sua sensibilidade para a natureza e a harmonia. A veiga de Boticas é realmente a parte mais bonita do vale e continua com uma boa parte ainda intacta, pelo menos para já, porque a nível de planeamento local as coisas têm sido uma desgraça. Até o bonito ribeirinho que corta a vila foi cimentado e transformado num canal ajardinado, uma autêntica aberração em tudo contrária ao bom gosto e ao lema da vila: naturais por natureza. O certo é que 99% das pessoas gostam de ver tudo cimentado e um dia destes vai sobrar pouca coisa que valha a pena da bonita vila que Boticas já foi. Em Boticas, para se ir á veiga tornar a água aos lameiros, exigem-se passeios cimentados para não se sujar as galochas. Uma bonita berma em terra e erva é demasiado rural para os gostos dos urbanos agricultores que vivem nas nossas avenidas. E se há raízes de árvores que partem o cimento dos importantes passeios, deitam-se as árvores abaixo sem hesitar. Parece que convém apagar tudo que sejam sinais da natureza senão ainda nos tomam por uns parolos que vivemos no meio dos montes.

Luís de Boticas

 

PORTUGAL DESCONHECIDO

 

Boticas e a sua agua

 

«O lindo bocado de Barroso que a natureza pôz como um beijo e uma benção no sopé do grande planalto»

 

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Boticas 100 anos depois de António Granjo

 

Uma noite dormida d’um somno, entre dois alvos lençoes de linho, n’uma estalagem rescendendo a macho e a ôdre de azeite, comida a posta de vitela e bebidos os dois golos de carrascão, constituia, segundo algumas personageens de Camilo, uma especial delicia. A patrôa, servidos os peros da sobremesa, contava historias de trasgos, de côcas e de ladrões; o carrascão ia arrastando para as reconditas partes dos intestinos, segundo tambem dizia o Camillo, a poeira que se accumulava nas  amigdalas, e dentro em pouco o corpo amolecido da digestão cahia como um cepo na cama. No dia seguinte accordava-se, já sol alto, com a bocca saburrenta e os ossos moidos, porque o travesseiro de palha de milho tinha escorregado para o soalho e o enxergão de palha centeia se afundára entre as tabuas de castanho da tarimba.

 

Eu gosei essa especial delicia, dormindo d’uma assentada a noite de 16 do corrente na unica estalagem que em Boticas se offerece aos míseros viandantes. Como no tempo de Camillo, a meia posta ainda é qualquer coisa de estupendo, mas o carrascão é substituido pelo palhete da terra e a patrôa já não fala de trasgos, nem de côcas. Se fala de ladrões, é, quando muito, para metter a sua colherada na discussão do orçamento.

 

Acordei já sol alto. Nunca, como em Boticas, comprehendi tão bem porque os arabes puderam fazer da ablução da manhã um acto sensual. A agua, d’uma frescura de polpa or-valhada, d’uma macieza de seio, virgem, parece derivar pela face como um veludo. Sobre a cabeça como que as caricias escorregam. A garganta seca-se. A respiração torna-se quasi sibilante.

 

Na Quinta de Santa Cruz, em Coimbra, a escadaria é revestida de azulejos até á Fonte Sereia, e eu perguntei a mim mesmo varias vezes por que razões profundas os frades tinham enchido esses azulejos de alegorias á agua e de motivos biblicos e que sempre a agua figura como elemento principal. Vim encontrar a explicação mais que sufficiente a Boticas. Esses pobres frades deviam achar detestaveis a escolastica e grammatica, e apoz algumas horas de meditação sobre os problemas tomistas e os segredos da sintaxe, uma grande ablução, por uma tarde de calma, devia ser uma sedução irresistivel. Mais que Lucifer, a agua seria para esses frades a Tentação. Como as sagradas escripturas ou os canones não prohibiam o amor á Agua, esses frades amaram-na com todos os frémitos, todas as ancias das suas carnes maceradas.

 

E a agua com que lavavam os refegos da pescoceira e os mysterios do abdomen era uma vil agua calcarea, salobra e pesada, passando pelos labios como rosalgar e cahindo no estomago como uma pedra! O eterno poema que esses frades não teriam composto á Agua, se se tivessem lavado com essa divina agua de Boticas, leve como a respiração de uma creança adormecida, doce como a face d’uma mulher!

 

Ah! que pena, sim, que pena, uma mão pequenina de fada não haver derramado sobre a agua lustral, em que lavei todos os meus peccados da vespera n'essa estalagem de Boticas, a sua amphora de nardo!...

 

...Salto para a rua, empedrada á antiga portugueza, com estilhaços ou destroços de granito, sobre os quaes  é preciso fazer alguns esforços de equilibrista, para as plantas dos pés sahirem illesas da tremenda provação. Boticas é apenas uma rua. Um pequeno terrado, em que foram plantadas algumas arvores, de porte, e que dá acesso á estação telegrapho-postal, tem o nome pomposo de avenida. Mas a villoria, apezar do seu arsinho petulante, apezar de ter uma casa revestida a azulejos, apesar dos seus telhados de telha vã e até (oh! céos!) de telha de marselha, é bem uma terra barrozã. Aos lados da rua alinham-se irregularmente as casas. Algumas são edificações urbanas incaracteristicas, mas em regra é a velha casa do norte, só de um andar, com a côrte do gado no rez-do-chão, a escada de pedra, desguarnecida, cingida exteriormente à fachada, a larga varanda de madeira deitando para a rua ou para o quinteiro e duas ou tres janellas de taipa, frequentemente sem vidros. Nas eiras, soerguem-se elegantemente os canastros, onde se secca o milho, e aos quaes uma cruz, ás vezes flanqueada de duas piramides, empresta uma nota religiosa.

 

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(apezar de ter uma casa revestida a azulejos)

 

Ao meio d’essa longa rua, um alpendre telhado, com um tosco balcão de pedra, encosta-se à parede. E' ahi que os tendeiros, nos dias de feira, vendem os lenços de ramagens, as bolsas dos relogios, os espelhos de vintem, os repertorios, os carpins de lã, as contas de latão amarello, os chapéus de palha debruados de baeta vermelha, no verão, e os barretes de carapinha, no inverno.

 

A veiga de Boticas é um grande buraco verdejante. Os montes apertam-na n’um circulo de granito. A erosão formou um magnifico terreno d’aluvião, onde as culturas participam um pouco das de Traz-os-Montes e Minho. Apparece a vinha d’enforcado. Os castanheiros dos outeiros levou-os a doença criptogamica que tem devastado as vinhas por todo o paiz , mas a meia encosta já a grande arvore medra, subindo até aos cimos a conversar amigavelmente com os penedias e as nuvens.

 

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Veiga de Boticas 100 anos depois de António Granjo

 

Passaram-se as horas da calma discutindo os acontecimentos politicos e a guerra europeia na botica, ouvindo-se algumas historias picantes de padres e gabando-se mais uma vez o genio previdente do bom arcebispo D. Fr. Bartholomeu dos Martyres, que no concilio de Trento defendeu calorosamente que, quanto ao celibato, se abrisse uma excepção para o clero de Barroso. E quando o sol começou a descambar, e a brisa, como o ruflar d’uma aza, começou a fazer ondular as frondes, eis que ahi vamos subindo o Toural, improvisado n’uma pequena encostada, e eis que os nossos olhos se estendem avidos sobre a Ribeira do Terva.

 

As latadas verdejam; as peras e as maçãs pingam das fruteiras; os milhos, com as suas cabelleiras fulvas enovelam-se atravez da veiga; nos lameiros as vaccas pastam tranquilamente, batendo com as caudas nas ancas graciosas; o Terva escorre, como um fio de prata, como um fio de mel entre os amieiros; e, no pano do fundo alveja a capella do Senhor do Monte, cujo cabeço, encarapinhado de carqueija e de urze, parece riscado á banda por uma rodeira branca. Fecham-se os olhos. As proporções diminuem, as montanhas approximam-se, as linhas tornam-se mais regulares, os relevos apagam-se, e como que fica dentro de nós um quadro virgiliano, cheio de verdura e de sol, dá graça dos troncos e do encanto das cores, em que as vaccas concebem da brisa amorosa e as abelhas prepassam como pepitas aladas.

 

Uma rapariga, na fonte, canta:

 O' Antonio, Antoninho,

Bebes agua assucarada...

Casa commigo, Antonio,

Não me tragas enganada.

 

A cantiga parece rolar no ar tranlucido. Os versos vibram, gritam a alegria e a saude. Dão a ideia de crystaes batendo uma superficie polida. As ultimas notas despedem justamente o som d’um crystal que se quebra.

 

Essa voz, essa cantiga são bem a alma d'este lindo bocado de Barroso, que a natureza poz como um beijo e uma benção no sopé do grande planalto. A alegria brinca pelas encruzilhadas com as levandiscas, as borboletas e os saltões; a saude bebe-se com o ar; e a agua, a divina agua, como um torrão d'assucar, prende-se á garganta e é ella que dá frescura e perfume às boccas dos conversados.

 

 

Antonio Granjo

 

 

 

14
Mai20

Crónicas Estrambólicas

Crónica de um Primeiro-Ministro sobre Barroso - 3


estrambolicas

 

Crónica de um Primeiro-Ministro sobre Barroso 3

 

Mais uma crónica do antigo Primeiro-Ministro António Granjo, um ilustre flaviense. É a terceira de quatro crónicas sobre Barroso, publicadas no jornal A Capital em 22, 26, 27, e 30, de Agosto de 1915. Reproduzi as crónicas exactamente como saíram, no português de 1915, incluindo gralhas tipográficas. A cópia digital encontra-se aqui . Esta terceira crónica descreve a viagem de Chaves a Boticas (Na outra semana anunciei uma crónica sobre uma ida a Montalegre, mas afinal o Granjo cortou para Boticas em Sapiãos! Culpa minha de não ter lido tudo e de imaginar coisas!) numa diligência da Mala-Posta, uma companhia que, já no Séc. XIX, fazia a carreira Lisboa-Porto em 34 horas, transportando pessoas e correio. Acho estranho a diligência ter saído de Chaves às 4 da tarde (hoje em dia seriam 5 horas, a hora de verão só entrou em 1916) mas só chegar de noite a Boticas, a passar bem as 8 da noite dum dia de agosto de 1915. Mais de 4 horas de viagem?! As diligências tinham normalmente duas parelhas de cavalos, iria a de Boticas depenada duma parelha? Boa paragem para matar a sede em Casas Novas? Pela descrição, a estrada da altura seguia o mesmo percurso da actual EN 103, que estará assente numa prévia estrada real. Não faço ideia se o castanheiro monstruoso de Curalha ainda existe, mas nós ligamos muito pouco às nossas árvores históricas. Acho estranho o castro pré-romana de Sapelos ser descrito como chegando quase à saída de S. Domingos (o único ponto onde se apanha sombra durante a tarde, antes do planalto que antecede o nicho de Sapelos). Será que o castro era maior e foi parcialmente destruído posteriormente, talvez durante as grandes plantações de pinheiros? Seria apenas um erro do Granjo? Mais uma vez reparei no gosto do Granjo em meter conversa com toda a gente que passa e na sua adoração pela natureza. Tivéssemos nós mais políticos assim, com bom gosto, e haveria melhor planeamento e menos destruição das nossas bonitas veigas e da natureza envolvente.

Luís de Boticas

 

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A deligência da malaposta de Chaves - Inícios do Século XX

 

PORTUGAL DESCONHECIDO

Uma viagem de diligencia

Antonio Granjo dirige-se ás terras de Barrozo

 

Vae perdido o gosto pela diligencia. 0 caminho de ferro, o automovel relegaram-n’a para um plano inteiramente seccundario. Póde dizer-se que essa maravilha dos principios do seculo XIX pertence á historia da viação. Quando os aeroplanos e dirigiveis tomarem a feição pacifica de agentes de transporte, a diligencia entrará definitivamente para o museu etnographico do meu amigo illustre archeologo e philologo sr. Dr. Leite de Vasconcellos; e como isso póde acontecer nos nossos dias, vou-me precavendo, gosando a diligencia por atacado. Frequentemente, tomo um logar na imperial d'uma malaposta e ahi vou pela torreira do sol, entre as nuvens da poeira, o zumbido das moscas varejeiras e as pragas do cocheiro, por essas estradas fóra, vendo deslisar mansamente as paisagens, e parando nas pousadas á beira das estradas a conversar com os que passam, gente de volta, feireiros e aldeagantes, que trazem sempre na boca uma palavra nova ou no olhar uma imagem inédita.

 

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Alguns horários da deligência/malaposta de Chaves publicados no Guia-Album de Chaves, nos inícios do Sec. XX

 

A diligencia de Boticas sae de Chaves ás quatro horas. A soalheira desaba como um chuveiro do brazas sobre o velho burgo. Em volta de torre do menagem, uma apenas perceptivel tremulina azul parece um finissimo veo de seda querendo proteger as ameias da inclemencia da canicula. Até Curalha, a frescura que sóbe do Tamega , ancorado nos presas, onde os amieiros reflectem os troncos esbeltos, suavisa um pouco a tarde.

 

A subida de Curalha ás Casas Novas galga-a a diligencia n'um arranque. A' direita fica uma das mais celebres arvores de vinte leguas á roda, um castanheiro, cujo pé quatro homens, de mãos dadas, abraçam a custo, e sob cuja ramaria já bivacou, n'uma escola de repetição, uma companhia inteira d'infantaria 19.

 

A longa estirada das Casas Novas ao Nicho de Sapelos faz-se penosamenta. Mas o sol vae declinando, e um castro préromano, á esquerda, projecta na estrada uma sombra macia. De repente, a subida termina, os cavallos trotam largo, e deante dos olhos surprezos desdobra-se o vale do Terva, e apparecem, como enormes muralhas tapando o horisonte, o Pindo e o Leiranco. E' Barroso que começa.

 

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Vale do Terva visto desde Sapelos, com a serra do Pindo, Nogueira e Bobadela ao fundo

 

O solo é de transição. Ainda se vê a vinha, animando o mamelão de Sapelos, e sombreando, em latadas as ruas das povoações de Ardãos, Nogueira, Bobadela. Mas já o castanheiro domina soberanamente a paisagem e nas bordas do Terva, nos Iameiros onde a agua brilha e canta, já as vaccas barrozãs pastam, erguendo de vez em quando a cabeça elegante, de grande armação, e mugindo meloncholicamente.

 

A diligencia vae descendo. O sol parece querer poisar no cimo do Leiranco. Dir-se-hia que, cançado da jornada, procurava um travesseiro onde encostasse a cabeça luminosa. O anil do zenith torna-se mais profundo, emquanto para o nascente o céu se esbranquiça e empalidece. A sombra invadiu já o fundo do vale, onde as cabelleiras dos milhos se meneam levemente ao sopro debil da briza e os ouriços comem aloirando. 0 Pindo parece querer approximar-se do rio, como a dessedentar-se. Olha-se de face o sol, cujos raios brandos atravessam horisontalmento a amplidão. Para norte e sul o ceu tinge-se de rosa, a principio como uma côr secundaria, depois assumindo uma intensidade e uma extensão predominantes.

 

A diligencia vae descendo. A' esquerda, a vertente norte do castro precipita-se sobre a estrada. Vêem-se os fossos e os caminhos d'acesso, desventrando a cumiada. Das aldeias ascendem vagarosamente tenues rolos de fumo. O sol tornou-se o centro irradiante de zonas luminosas concentricas, que sobem quasi até ao zenith e cujas côres principaes são o amarelo e o purpura. Uma cotovia ergueu-se d'uma restolha, elevou-se acima dos ultimos galhos dos castanheiros, elevou-se acima das ultimas penedias do Leiranco, elevou-se acima do sol, e, descrevendo largos circulos, entoou a elegia do sol moribundo. Os primeiros gorgeios eram o ensaio timido d'uma flauta, mas logo uma catadupa de notas triumphaes, de oboés e de clarins, encheu o ar e alastrou sobre os montes, até se transformar n’uma suplica ardente e por fim n'um murmúrio febril. O sol vae-se occultando. As zonas luminosas desfizeram-se e deram logar a novas combinações chromaticas, mais esbatidas e doces, e n'uma disposição tal ou qualmente simetrica. O eixo simétrico é ligeiramente irisado. A cotovia desceu em vôo planado e sumiu-se entre os castanheiros.

 

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Composição com por do sol sobre as montanhas entre Sapelos e Boticas

 

A diligencia vae descendo. O sol desappareceu. A massa de sombra que se vae accumulando no vale toma vagos tons azulados. No zenith o anil torna-se obscuro. Atraz do Leiranco, o ceu desentranha-se, rasga-se em prodigios. N'um grande arco de circulo, limitado por uma tinta imprecisa que logo so difine no violeta, as côres do arco-iris parecem entrechocarem-se e explodirem em maravilhas. Os olhos penetram-se de doçura, os labios entreabrem-se e a alma ergue-se, como a cotovia, acima dos montes, batendo as azas translucidas, á procura da primeira estrella…

 

Entra-se no vale, passa-se a ponte sobre o Terva, leva-se d’uma arrancada a pequena subida de Sapiãos e deriva-se para Boticas, entre centos de castanheiros, terras de milho e altas latadas que a noite vae tornando de misterio.

 

Santo Deus! Mas onde estão os pintores da minha terra?

 

Antonio Granjo

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