Crónicas Estrambólicas
Crónica de um Primeiro-Ministro sobre Barroso - 3
Crónica de um Primeiro-Ministro sobre Barroso 3
Mais uma crónica do antigo Primeiro-Ministro António Granjo, um ilustre flaviense. É a terceira de quatro crónicas sobre Barroso, publicadas no jornal A Capital em 22, 26, 27, e 30, de Agosto de 1915. Reproduzi as crónicas exactamente como saíram, no português de 1915, incluindo gralhas tipográficas. A cópia digital encontra-se aqui . Esta terceira crónica descreve a viagem de Chaves a Boticas (Na outra semana anunciei uma crónica sobre uma ida a Montalegre, mas afinal o Granjo cortou para Boticas em Sapiãos! Culpa minha de não ter lido tudo e de imaginar coisas!) numa diligência da Mala-Posta, uma companhia que, já no Séc. XIX, fazia a carreira Lisboa-Porto em 34 horas, transportando pessoas e correio. Acho estranho a diligência ter saído de Chaves às 4 da tarde (hoje em dia seriam 5 horas, a hora de verão só entrou em 1916) mas só chegar de noite a Boticas, a passar bem as 8 da noite dum dia de agosto de 1915. Mais de 4 horas de viagem?! As diligências tinham normalmente duas parelhas de cavalos, iria a de Boticas depenada duma parelha? Boa paragem para matar a sede em Casas Novas? Pela descrição, a estrada da altura seguia o mesmo percurso da actual EN 103, que estará assente numa prévia estrada real. Não faço ideia se o castanheiro monstruoso de Curalha ainda existe, mas nós ligamos muito pouco às nossas árvores históricas. Acho estranho o castro pré-romana de Sapelos ser descrito como chegando quase à saída de S. Domingos (o único ponto onde se apanha sombra durante a tarde, antes do planalto que antecede o nicho de Sapelos). Será que o castro era maior e foi parcialmente destruído posteriormente, talvez durante as grandes plantações de pinheiros? Seria apenas um erro do Granjo? Mais uma vez reparei no gosto do Granjo em meter conversa com toda a gente que passa e na sua adoração pela natureza. Tivéssemos nós mais políticos assim, com bom gosto, e haveria melhor planeamento e menos destruição das nossas bonitas veigas e da natureza envolvente.
Luís de Boticas
A deligência da malaposta de Chaves - Inícios do Século XX
PORTUGAL DESCONHECIDO
Uma viagem de diligencia
Antonio Granjo dirige-se ás terras de Barrozo
Vae perdido o gosto pela diligencia. 0 caminho de ferro, o automovel relegaram-n’a para um plano inteiramente seccundario. Póde dizer-se que essa maravilha dos principios do seculo XIX pertence á historia da viação. Quando os aeroplanos e dirigiveis tomarem a feição pacifica de agentes de transporte, a diligencia entrará definitivamente para o museu etnographico do meu amigo illustre archeologo e philologo sr. Dr. Leite de Vasconcellos; e como isso póde acontecer nos nossos dias, vou-me precavendo, gosando a diligencia por atacado. Frequentemente, tomo um logar na imperial d'uma malaposta e ahi vou pela torreira do sol, entre as nuvens da poeira, o zumbido das moscas varejeiras e as pragas do cocheiro, por essas estradas fóra, vendo deslisar mansamente as paisagens, e parando nas pousadas á beira das estradas a conversar com os que passam, gente de volta, feireiros e aldeagantes, que trazem sempre na boca uma palavra nova ou no olhar uma imagem inédita.
Alguns horários da deligência/malaposta de Chaves publicados no Guia-Album de Chaves, nos inícios do Sec. XX
A diligencia de Boticas sae de Chaves ás quatro horas. A soalheira desaba como um chuveiro do brazas sobre o velho burgo. Em volta de torre do menagem, uma apenas perceptivel tremulina azul parece um finissimo veo de seda querendo proteger as ameias da inclemencia da canicula. Até Curalha, a frescura que sóbe do Tamega , ancorado nos presas, onde os amieiros reflectem os troncos esbeltos, suavisa um pouco a tarde.
A subida de Curalha ás Casas Novas galga-a a diligencia n'um arranque. A' direita fica uma das mais celebres arvores de vinte leguas á roda, um castanheiro, cujo pé quatro homens, de mãos dadas, abraçam a custo, e sob cuja ramaria já bivacou, n'uma escola de repetição, uma companhia inteira d'infantaria 19.
A longa estirada das Casas Novas ao Nicho de Sapelos faz-se penosamenta. Mas o sol vae declinando, e um castro préromano, á esquerda, projecta na estrada uma sombra macia. De repente, a subida termina, os cavallos trotam largo, e deante dos olhos surprezos desdobra-se o vale do Terva, e apparecem, como enormes muralhas tapando o horisonte, o Pindo e o Leiranco. E' Barroso que começa.
Vale do Terva visto desde Sapelos, com a serra do Pindo, Nogueira e Bobadela ao fundo
O solo é de transição. Ainda se vê a vinha, animando o mamelão de Sapelos, e sombreando, em latadas as ruas das povoações de Ardãos, Nogueira, Bobadela. Mas já o castanheiro domina soberanamente a paisagem e nas bordas do Terva, nos Iameiros onde a agua brilha e canta, já as vaccas barrozãs pastam, erguendo de vez em quando a cabeça elegante, de grande armação, e mugindo meloncholicamente.
A diligencia vae descendo. O sol parece querer poisar no cimo do Leiranco. Dir-se-hia que, cançado da jornada, procurava um travesseiro onde encostasse a cabeça luminosa. O anil do zenith torna-se mais profundo, emquanto para o nascente o céu se esbranquiça e empalidece. A sombra invadiu já o fundo do vale, onde as cabelleiras dos milhos se meneam levemente ao sopro debil da briza e os ouriços comem aloirando. 0 Pindo parece querer approximar-se do rio, como a dessedentar-se. Olha-se de face o sol, cujos raios brandos atravessam horisontalmento a amplidão. Para norte e sul o ceu tinge-se de rosa, a principio como uma côr secundaria, depois assumindo uma intensidade e uma extensão predominantes.
A diligencia vae descendo. A' esquerda, a vertente norte do castro precipita-se sobre a estrada. Vêem-se os fossos e os caminhos d'acesso, desventrando a cumiada. Das aldeias ascendem vagarosamente tenues rolos de fumo. O sol tornou-se o centro irradiante de zonas luminosas concentricas, que sobem quasi até ao zenith e cujas côres principaes são o amarelo e o purpura. Uma cotovia ergueu-se d'uma restolha, elevou-se acima dos ultimos galhos dos castanheiros, elevou-se acima das ultimas penedias do Leiranco, elevou-se acima do sol, e, descrevendo largos circulos, entoou a elegia do sol moribundo. Os primeiros gorgeios eram o ensaio timido d'uma flauta, mas logo uma catadupa de notas triumphaes, de oboés e de clarins, encheu o ar e alastrou sobre os montes, até se transformar n’uma suplica ardente e por fim n'um murmúrio febril. O sol vae-se occultando. As zonas luminosas desfizeram-se e deram logar a novas combinações chromaticas, mais esbatidas e doces, e n'uma disposição tal ou qualmente simetrica. O eixo simétrico é ligeiramente irisado. A cotovia desceu em vôo planado e sumiu-se entre os castanheiros.
Composição com por do sol sobre as montanhas entre Sapelos e Boticas
A diligencia vae descendo. O sol desappareceu. A massa de sombra que se vae accumulando no vale toma vagos tons azulados. No zenith o anil torna-se obscuro. Atraz do Leiranco, o ceu desentranha-se, rasga-se em prodigios. N'um grande arco de circulo, limitado por uma tinta imprecisa que logo so difine no violeta, as côres do arco-iris parecem entrechocarem-se e explodirem em maravilhas. Os olhos penetram-se de doçura, os labios entreabrem-se e a alma ergue-se, como a cotovia, acima dos montes, batendo as azas translucidas, á procura da primeira estrella…
Entra-se no vale, passa-se a ponte sobre o Terva, leva-se d’uma arrancada a pequena subida de Sapiãos e deriva-se para Boticas, entre centos de castanheiros, terras de milho e altas latadas que a noite vae tornando de misterio.
Santo Deus! Mas onde estão os pintores da minha terra?
Antonio Granjo