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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

24
Out24

O Factor Humano

Os rios Impossíveis


1600-cab-mcunha-pite

 

Os rios impossíveis

12

 

Fora daquele vale era um rio comum, com as suas águas ora lentas ora rápidas, limitado por amieiros frondosos, no Verão.

 

Mas entre as duas montanhas era bem diferente, só se deixava ver a espaços, oculto numa floresta de granito, e era preciso conhecer bem os caminhos, os seus recantos e os seus encantos, para a ele chegar.

 

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Uma abertura nas rochas, por onde os mais ágeis e menos volumosos conseguiam penetrar, e depois o deslumbramento de uma grande gruta, como uma catedral gótica, coroada por um céu azul, nos dias despejados de nuvens. Um rio que corre direito ao altar, debruado de fetos, até desaparecer debaixo do sítio onde deveria estar o crucifixo, e é engolido pelo futuro.

 

Vários metros à frente, noutro recanto do caminho, uma nova entrada, bem oculta para quem não a conheça, dá acesso a quatro toscos degraus, por onde se desce até um varandim de pedra. Quem aí se ajoelhar, pode espreitar outra vez o rio, que agora corre numa caverna menor, fazendo lembrar uma igreja cristã primitiva. Após os olhos se adaptarem `á luminosidade diminuída, podemos ver, nos dias de sorte, uma truta imóvel, voltada para a corrente, na expectativa de que esta lhe traga algum alimento.

 

Mas Manuel quando visitava aquele mistério, levava apenas um pequeno gravador, e escutava, ajoelhado, o canto Gregoriano do Convento de São Domingos de Silos.

Manuel Cunha

 

17
Out24

O Factor Humano

Os rios impossíveis


1600-cab-mcunha-pite

 

Os rios impossíveis

11

 

Embora nem todos o confessem, o verdadeiro pescador de trutas gosta de ter o rio só para ele. Mais ainda, gostaria de ter um rio onde só ele pescasse, o que em geral é impossível.

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Fotografia de Inês Torrado

É verdade que todos querem, no fim da pesca, uma merenda boa, com salpicão, pão e "um copo", e que tudo isto se faça em camaradagem, descrevendo as peripécias do dia, recordando pela enésima vez histórias antigas.

 

Mas isso é só depois da pesca solitária...

 

Por isso este poema, um sonho de todos, ainda que com versos muito rudimentares!

 

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Fotografia de Inês Torrado

Porque será que ao pegar

Na caneta pra escrever

Sempre me ponho a pensar

Na água de um rio a correr?

Com uma leveza subtil

Límpida e sem descansar

Desce lá do seu covil

Na maldição de chegar

Se eu soubesse desenhar

Um labirinto para ela

Sem saída para o mar

Já viram coisa mais bela?

Um rio sem terminar

Libertado de ter fim

Eu, pescador, a sonhar

Todo um Mundo só pra mim!

Manuel Cunha (Pité)

 

10
Out24

O Factor Humano

Rios Impossíveis


1600-cab-mcunha-pite

 

Os rios impossíveis

(10)

 

Ainda hoje, tantos anos depois, Manuel se lembra da primeira vez que viu a presa da M. no rio R.

 

A memória não lhe ficou gravada por uma qualquer beleza sobrenatural, embora ela fosse realmente muito bonita, nem sequer pela meia dúzia de trutas pescadas, em poucos minutos, nesse dia.

 

Recorda-se de quando se aproximou do rio estar a pensar no seu avô, encostado ao velho Volkswagen azul celeste, o cacifo de vime a tiracolo, a cana encostada ao ombro, o cigarro aceso, na mão direita, num longínquo mês de Maio. Teve então o sobressalto de olhar para o rio e ver, com uma nitidez tal que jura ter visto o próprio fumo a subir do cigarro, toda a cena que estava a circular na sua cabeça.

 

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Fotografia de Inês Torrado

Esfregou os olhos lentamente, para não espantar as trutas, e voltou a olhar, na expectativa de ver reflectidos nas águas, os robustos amieiros que na outra margem bordejavam o rio. Mas lá estava o seu avô, o bigode de sempre, o sinal debaixo do olho esquerdo, do qual pensava já não se recordar, o olhar triste de quem pressente que já não vai viver muito tempo, que já não vai pescar tantas vezes quantas necessitava.

 

Ficou imóvel a olhar fixamente o rio, vendo correr nas suas águas paradas as imagens do seu avô, fragmentadas mas nítidas, como quando sonhava.

 

Mas... um pescador é sempre um pescador, e ele lança a amostra e esta voa quase vinte metros até mergulhar no rio, mesmo encostada aos raizeiros da margem oposta. Um violento sacão, ainda antes de completar a primeira manivelada do carreto anuncia um trutão daqueles que são o sonho quotidiano e o motor dos pescadores.

 

Evaporam-se as imagens que corriam no rio, a vida reafirma-se, o sonho volta às profundezas, talvez onde antes estava a truta, sem saber que lá não estaria muito tempo.

Manuel Cunha (pité)

 

 

 

03
Out24

O Factor Humano

Rios Impossíveis


1600-cab-mcunha-pite

 

Os rios impossíveis

(9)

Não precisava de invocar as suas origens nem o seu trajecto passado. Era filho de um rio mas tinha dado a volta por cima e partido à conquista do seu Mundo, cruzando um arco de granito, sobre o pai.

 

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Fotografia de Inês Torrado

Não tinha afluentes e o seu caudal era constante.

 

Levava a água para a aldeia de C. e por isso alguns lhe chamavam levada, outros agueira. Na realidade ele revia-se como um rio - quem sai aos seus não degenera - costumava dizer.

 

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Fotografia de Inês Torrado

Até se gabava de ter trutas, embora escassas e, em geral, pequenas, que se deixavam levar pela corrente, desde a longínqua presa onde nascia.

 

Mas a magia deste quase rio, mais do que rio, era a de visitar as casas da aldeia, entrando em cada uma delas, em leito de granito, por uma abertura rente ao chão, na parede voltada a norte.

 

E era ver as mulheres a colherem a água com um púcaro, enchendo o pote pousado nas brasas, ou a pia de granito onde lavavam a louça.

 

As águas sobrantes saíam pela parede voltada a sul e eram usadas para regar a horta ou matar a sede ao gado.

 

Levavam com elas os ais nocturnos do prazer e da dor, lavavam os sonhos das crianças embaladas pelo rumor da corrente desse quase rio, mais do que rio.

 

(com um abraço ao meu avô, Lelo da Tenenta, que num dia de Abril de 1972, me levou com ele à aldeia de C.)

Manuel Cunha (pité)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

19
Set24

O Factor Humano

Os Rios Impossíveis


1600-cab-mcunha-pite

 

Os rios impossíveis

(7)

 

Quando se olhava desde o cimo da serra, era nítida a definição de um trajecto, de nordeste para sudoeste, como quem procura o mar.

 

No entanto era um rio sem correntes, descontínuo. Ia nascendo múltiplas vezes, em cada um dos seus generosos poços, alguns com mais de dez metros de diâmetro.

 

Apesar da transparência das suas águas, a profundidade dos poços não permitia que se avistasse o seu fundo, indefinido e misterioso.

 

A cor e o sabor das águas eram iguais em todos os poços e quando trovejava no cimo da serra, subiam os níveis das águas e estas tornavam-se barrentas, de montante para jusante.

 

Era neste estranho rio que Manuel pescava, com a minhoca, em especial nos dois poços iniciais, próximos da cumeada.

 

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Desenho de Inês Torrado

Um dia prendeu, no poço a jusante, uma truta gigante, que acabou por lhe partir a linha, após um curto combate, e desaparecer na profundeza das águas.

 

Manuel sorriu, conformado, e substitui o fio por um nylon bem mais grosso, capaz de levantar um garrafão do chão.

 

Durante semana voltou ao mesmo poço, todos os fins de tarde, sempre sem sucesso.

 

Finalmente rendeu-se à realidade e foi tentar a sua sorte no poço a montante. Logo no primeiro lançamento a cana dobrou-se toda e o carreto "cantou", cedendo fio, que desta vez resistiu firme a um longo combate.

 

Quando finalmente venceu a truta Manuel afastou-se das águas e abriu-lhe a boca para libertar o anzol. Nessa altura viu, para seu espanto, um outro anzol igual, ainda com um pequeno nylon atado, na mandíbula superior do grande exemplar que tinha pescado.

Manuel Cunha (pité)

 

 

12
Set24

O Factor Humano

Rios Impossíveis


1600-cab-mcunha-pite

 

Os rios impossíveis

(6)

 

Trazia sempre com ele um búzio, branco e esverdeado, que ocupava toda a palma da sua enorme mão. Embrulhava-o num pano de camurça e colocava-o num saco. Posto esse saco a tiracolo ficava completa a figura mítica do "homem do búzio", que percorria o interior do País no mês de Agosto e era recebido com alegria e respeito em cada aldeia aonde chegava.

 

Só ele decidia quem podia encostar o ouvido ao búzio e exigia completo segredo sobre tudo o que sentissem, sob compromisso de palavra de honra.

 

Muito para além da perda da honra, coisa que nesse tempo era sagrada, havia uma outra ameaça, ainda mais eficaz, quem contasse nunca mais podia encostar a cabeça ao búzio.

 

Eram espantosas as expressões de cada um dos escolhidos. Com a cabeça encostada ao búzio, abriam-se sorrisos, olhava-se para o infinito, algumas vezes escapava-se até uma lágrima feliz.

 

O surdo-mudo de uma aldeia quis encostar o ouvido e, depois, não foi fácil afastá-lo do búzio que nunca saía da mão do seu guardião.

 

boubac.JPG

Fotografia de "Boubac"

 

Os anos foram passando e era tal o fascínio das pessoas, com todo o foco no búzio, que ninguém se apercebeu do envelhecimento do seu guardião.

 

As pernas pesavam-lhe cada vez mais, a última aldeia obrigava-o a uma íngreme subida, para então descer ao vale, na encosta a sul. A respiração tornava-se mais difícil, a vista ia-se turvando como nunca lhe acontecera.

 

De repente pressentiu que ia morrer e teve aguda consciência do seu segredo, de ele próprio nunca ter encostado a orelha ao búzio, deixado pela sua mãe, que ele nunca chegara a conhecer.

 

Sentou-se, ou melhor deixou se cair, num último esforço tirou o búzio do saco, pousou-o no chão, e deitou-se de lado, com a cabeça encosta a ele.

 

Morreu com um sorriso sereno.

 

Do búzio foi nascendo água, num caudal crescente que foi descendo da serra, semeando amieiros nas suas margens. E formaram-se represas, com levadas e moinhos, com mós que iam parindo farinha.

Manuel Cunha (pité)

 

 

05
Set24

O Factor Humano

Os rios impossíveis


1600-cab-mcunha-pite

 

Os rios impossíveis

(5)

 

Chegavam ao fim do dia, os quatro, num velho Volkswagen cinzento, autêntico todo-o-terreno, capaz de ir aonde os demais carros não chegavam.

 

Montavam a tenda, punham o velho pote ao lume até o ouvirem cantar, pronto a receber as batatas e as couves.

 

Depois estendiam as brasas e colocavam a velha grelha, cama final das postas de bacalhau.

 

5-pite1.jpg

Fotografia de Inês Torrado

 

Benziam a comida com azeite, descortiçavam o garrafão e contavam as primeiras histórias, pela enésima vez, enquanto os dentes se iam encontrando e triturando o repasto.

 

Já de barriga cheia, distribuíam pela primeira vez as cartas, dois contra dois, como mandam as regras, e durante longas horas jogavam à luz do petromax, até esgotarem o bagaço.

 

De manhã, fugiam do saco cama, antes do nascer do dia, faziam um café rápido no fogareiro, e empurravam-no para o estômago com biscoitos secos.

 

Depois dividiam-se em dois pares e dirigiam-se ao rio que corria livremente a escassos metros da tenda.

 

Cada um via o seu rio conforme a sua experiência e as suas memórias.

 

5-pite.jpg

Fotografia de Inês Torrado

Os que pescavam a truta à minhoca, mais atentos aos fundões e aos remansos , definidos pelas fragas que se impunham ao caudal.

 

Os pescadores de amostra, sempre lançando rio acima, aproveitavam as gralheiras, onde as trutas, imóveis, agitavam as barbatanas caudais, sempre na expectativa do que as águas lhes traziam.

 

Pescavam largas horas, nem sempre com grande sucesso, mas era um ritual mantido há muitos anos.

 

Nenhum dos quatro se recordava bem de como tinham descoberto este rio, onde nunca tinham visto qualquer outro pescador. cada um achava que tinha sido um outro a descobri-lo pela primeira vez.

 

Na aldeia mais próxima, quando paravam para beber uma cerveja, muitas vezes ainda com o equipamento da pesca, a senhora do café estranhava aqueles trajes, botas de pesca e cacifos, numa região na qual não passava nenhum rio.

Manuel Cunha (pité)

 

 

29
Ago24

O Factor Humano

Os Rios Impossíveis


1600-cab-mcunha-pite

 

Os rios impossíveis

(4)

 

Dizia chamar-se Manuel e nunca quis contar-me onde era esse rio.

 

Conheci-o na grande metrópole, sentado numa esplanada, costas voltadas para o mar.

 

Um dia falou-me de um rio que fascinava todos aqueles que com ele conviviam.

 

Era paradoxal a evolução do seu caudal: engrossava à medida que a seca se ia instalando na região. Quando o sol era constante e implacável, de nascente a poente, era ver a subida das águas, a ponto de galgarem as margens secas e sedentas desse néctar precioso e raro.

 

4-164.JPG

Fotografia de Inês Torrado

Mais estranho ainda era o seu comportamento quando começava a época das chuvas: o seu leito ia ficando progressivamente mais exposto, como se as nuvens estivessem a beber na sua nascente, antes de devolverem as suas águas, dispersas numa miríade de gotículas.

 

Sucedeu mesmo que, num ano de excepcional precipitação, o rio foi definhando, até as suas correntes se transformarem num ténue fio de tristeza.

 

Só então a chuva começou a diminuir, até desaparecer, no dia em que o rio se ausentou por completo.

 

Manuel Cunha (pité)

 

 

22
Ago24

O Factor Humano

Os Rios Impossíveis


1600-cab-mcunha-pite

 

Os rios impossíveis

(3)

 

No largo da aldeia cada um o via à sua maneira, quando ele ficava imóvel por longos períodos, sentado, sempre à sombra, no banco de pedra que rodeava o velho freixo.

 

Nunca chegaram a percebê-lo.

 

Só o seu olhar brilhava, numa felicidade nostálgica. Uma criança jurava que nele tinha visto correr um rio de águas vivas.

 

Na realidade, o velho Manuel estava a pescar, em silêncio, como mandam as regras, lançando e recolhendo, rio acima, persistentemente, como só o fazem os verdadeiros pescadores.

 

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Assim o viram, anos a fio, de madrugada e ao fim do dia, estivesse bom ou mau tempo.

 

Já no fim de um Verão seco e prolongado, todas as nascentes, na montanha, já ausentes, a sua imobilidade habitual, como se ele próprio fosse a montanha, teve um sobressalto.

 

Quem assistiu viu-o agitar os braços, aflito como quem procura respirar.

 

Quando o autopsiaram tinha os pulmões cheios de límpida água doce.

 

Manuel Cunha (pité)

 

 

15
Ago24

O Factor Humano


1600-cab-mcunha-pite

 

Os rios impossíveis

(2)

 

Eram tão límpidas e transparentes as águas daquele rio, que nunca foram vistas por ninguém.

 

Como todos os rios da região, tinha as suas margens definidas por fileiras de amieiros e de salgueiros. Às vezes as suas folhas flutuavam, como pousadas no nada e afastavam-se lentamente. Nas zonas de maior inclinação, ouvia-se um rumor da corrente e viam-se as folhas a deslocarem-se mais depressa, em movimentos que denunciavam remansos e remoinhos.

 

Guiadas pelos monótonos ruídos das mós, as pessoas aproximavam-se do moinho, e olhavam com espanto para o mágico rodar das pedras, não fascinados pela farinha que elas produziam, mas porque lhes parecia que elas se moviam por vontade própria.

 

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Fotografia de Inês Torrado

As trutas, sarapintadas de vermelho, pareciam voar, rio acima, agitando as barbatanas caudais e ziguezagueando contra uma corrente invisível.

 

Quando no ano da grande seca, já nos inícios do Outono, Manuel se abeirou do rio que ele tão bem conhecia, mas que nunca vira, deparou-se com os peixes deitados no fundo, repousando num sono eterno.

 

E ao atravessar para a outra margem, não sentiu a frescura que antes lhe repousava os pés.

Manuel Cunha (pité)

 

 

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