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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

26
Jul19

Discursos Sobre a Cidade - Por Gil Santos


GIL

 

MARIA CARABUNHAS

 

A primavera daquele ano esmo verteu-se quente e seca como não havia memória. O renovo mirrava castigado pela inclemência do astro rei. A água, que nunca abundou no Planalto, era, nesta ocasião, tão escassa, que nem o rego mais prolífero da melhor lameira a deixava luzir. As poulas pejadas de gafanhotos cinzentos, qual praga bíblica, mirravam de sede com as fronças devoradas numa voracidade ciclónica. Mas, apesar de tudo, o Planalto, historicamente pródigo na produção de fruta, exibia neste ano as raras cerdeiras carregadinhas de frutos que haveriam de reluzir lá para finais de junho.

 

− Que se me dá! O que o dianho tira numa banda dá-o Deus na outra – dizia a Maria Carabunhas pelos soalheiros do lugar!

 

A tal Maria era uma cabaneira pobre que sem leira que a alimentasse vivia do expediente e da misericórdia dos vizinhos. Mulher robusta, contrariando a destino que o berço lhe traçou, estava sempre pronta para ajudar quem dos seus braços precisasse. Em contrapartida raramente lhe faltava o cibo na mesa. Os meses de inverno passava-os a tenir, mas logo que a primavera trouxesse a luz do sol e o a terra começasse a dar de si, acabava-se a penúria.

 

A Maria nasceu de outra mulher mísera, solteira e que nunca conhecera o eido de quem lhe fez a zorra. Sem pai para a proteger, cresceu aos emboleques da vida e no tempo casadoiro ninguém a quis, porque todos a tinham quando muito bem queriam. Por isso, envelhecia solteira e sem companhia certa. Por Deus querer ausente de prole. O Criador, por vezes, escreve direito por linhas tortas e fez a Maria matchorra, como lhe convinha e a quem dela dependesse.

 

Por vezes passava muito mal com a fome, o frio e as mazelas várias, porém, nada parecia derrubá-la porque a experiência lhe dizia que a um tempo de chuva se segue outro de sol! Era essa esperança que lhe alimentava os dias mais negros. A pobreza era extrema, mas não a sentia como uma fatalidade porque nunca tinha experimentado coisa diferente. Por isso, não tinha termos de comparação e vivia feliz à sua maneira.

 

Ora, um dia daquele início de verão a Maria foi à ajuda para o corte do feno do Ti Antoninho Moreiras no lameiro grande do Belão. Um trabalho duro e penoso. A Maria pegava na gadanha, como qualquer homem, e sem que ficasse a dever nada ao mais pintado, pendulava-a com entusiasmo de um lado para o outro. A cada movimento, certo e ritmado, juntava no seu carreirão uma boa mão cheia de feno. Era um regalo vê-la balançar os seios roliços ao ritmo de cada corte! Graciosa, fazia ver aos homens como se segava o feno!

 

O almoço, um guisado de cordeiro, chegou pelo meio-dia, numa giga, sobre a rodilha, à cabeça da cozinheira. Foi degustado na fresca da touça de carvalhos contígua ao lameiro. Quando eram quatro da tarde o trabalho de corte estava acabado e faltava apenas espargir o dito cujo para que secasse ao sol de junho.

 

Pelas cinco estava dispensada.

 

1600-cerejas.jpg

 

Não houve merenda porque o trabalho acabou cedo e a Maria foi para casa de barriga a dar horas. No caminho de regresso passou por uma cerdeira que o Patalão tinha no Linhar do Eiteiro e que reluzia de cerejas maduras.

 

Claro está, não resistiu!

 

Bem sabia que se fosse apanhada na ratada, levaria com o cabo do satcho pelo lombo abaixo, mas sabia, igualmente, que o Patalão se ocupava na sacha das batatas da leira do Corgo que não medravam por mor dos sintchos que as tolhiam. Por isso arriscou e guindou-se à cerdeira.

 

Encheu o fole quanto pôde e para a ceia ainda proveu uma farta abada.

 

Não estou bem certo, mas pelo desfecho do episódio a Maria teria enfardado para mais de cinco quilos de cereja francesa, não contando, evidentemente, com a potencial “carne” que pudessem ter!

 

O pior foi o que se seguiu!...

 

No dia seguinte, derreada às exigências da natureza, foi para o pátio. De cócoras, como sempre, tentou aliviar-se daquele pedido urgente que o seu intestino grosso lhe fazia. Contudo, não conseguia obter qualquer resultado e nem tão pouco conseguia perceber qualquer indício de se poder ver livre daquele desejo.

 

A barriga inchava cada vez mais, os suores frios davam lugar a torpores insuportáveis.

 

A Maria cuidava em rebentar!

 

A tripa grossa roncava quanto podia e a desgraçada não a conseguia sossegar!

 

A explicação residia no facto da Maria, esfaimada, ter engolido as carabunhas das cerejas que se amontoaram no reto e o obstruíram de tal forma que a canalização nem o “bento” deixavam passar!

 

E agora?

 

Médico não havia e que houvesse, não havia pilim para lhe pagar!...

 

Por isso, recorreu aos serviços da Tia Cândida, a médica da aldeia, que tudo curava com rezas e mezinhas. Todavia, esta doença, parecia não ir lá com estas prescrições e por isso era preciso encontrar outra solução, mesmo que radical.

 

Levaram a Maria para o pátio da Tia Cândida onde tinha sido espalhado um molho de colmo centeio para lhe servir de mesa de operações. Puseram-na de rabo para o ar e com as vergonhas ao léu. A aldeia em peso assistia ao inédito da operação.

 

A Tia Cândida tirou um gancho do carrapito e com a parte redonda foi tirando do bueiro carabunha por carabunha com paciência de Jó. Às tantas, com a pressão aliviada, o intestino deu de si e explodiu como um vulcão. A Maria urrou de alívio e os curiosos que tinham o focinho mais perto para não perderem cibo, foram prendados com a lava generosa da cratera!

 

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Fotografia de Emanuel Rocha

 

Correram para o tanque do prado apavorados para lavar os focinhos. Contudo, iam felizes não só pelo espetáculo inédito da operação, mas sobretudo pela felicidade da Maria Carabunhas que se viu aliviada de tanto sofrimento!

 

Admirável solidariedade!

 

Benditas fossem as mãos da Tia Cândida e o seu engenho!

 

Valia mais o gancho do cabelo daquela santa mulher do que o bisturi afiado do melhor médico-cirurgião da cidade.

 

Coisas do Planalto!

 

Gil Santos

 

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