Pedra de Toque
MILETE
Maria Isolete da Costa Gonçalves era a sua graça.
Mas era pelo diminutivo Milete que era conhecida e tratada por familiares e amigos.
Estudou em Chaves e em Vila Real onde cursou a Escola do Magistério Primário vindo a lecionar na sua aldeia natal, Vila Verde de Oura, aqui ao lado de Vidago, durante algumas décadas.
A Milete era minha prima direita e na adolescência e juventude convivi e conversei muito com ela.
Mais nova 5/6 anos, unia-nos o gosto antigo pelas coisas da literatura, nomeadamente pela poesia.
Era uma mulher muito lúcida e extremamente sensível.
Lia imenso e jovem ainda apaixonou-se pela arte de versejar tendo-nos legado três livros notáveis.
Destaco o primeiro que intitulou “ Paraíso Sonhado”, prefaciado pelo conhecido escritor e insigne professor universitário Urbano Tavares Rodrigues.
Este livro, recheado de belos poemas, já refletia a sua autora como uma mulher inteligente e apaixonada.
Cedo, no entanto, começou a desencantar-se com a vida, abrindo portas a fobias, desamores, medos e fantasmas que lhe coartaram a possibilidade de ter criado uma obra muito mais vasta e lhe atormentaram o quotidiano que se despenhou, antes da última morada, numa cama de hospital, em debilidade extrema.
Urbano lucidamente refere no dito prefácio “ o erotismo sublimado, a nostalgia de uma pura e ardente adolescência perdida”.
Era a Milete autêntica, genuína que o Urbano, perspicaz, extraiu do Paraíso Sonhado.
Já então a poetisa se lamentava: “ Fantasmas de um mundo tão distante, porque me atormentais ainda agora?”.
Para sofredora acrescentar: “O meu desterro quando terá fim?”.
Emociona-me quando a releio.
“Prisioneira sem estar presa,
Cativa sem ter algemas,
A não ser as que me prendem
A ti, a quem sempre amei”.
Cedo começou dolorosamente a sofrer com as suas angústias, as suas decepções e desilusões que lhe percorreram a vida mas que belamente espelhou em versos.
“Tudo na história humana está errado.
Os homens erram com perseverança edificante.
Eu não sou mais que um erro crasso”.
O amor infeliz que a perseguiu e torturou está bem patente nos últimos versos do seu soneto Recordação.
“Não mais verei teu rosto junto ao meu,
Não mais contemplarei o fim do dia,
Sentindo as tuas mãos a me afagar
Em vão, desejo agora um beijo teu,
Perdi-te… E a minha única alegria
Consiste apenas em te recordar”.
Milete apagou-se de frágil, de débil, docemente serena, há pouco mais de um mês.
Com medo da vida, foi-se libertando, definhando sem a dor que não queria, envolvida nos seus receios, mas numa paz celeste.
Escolheu o seu repouso e como queria, levou só flores brancas, a cor dos seus poemas, dos que nos deixou, e dos muitos que levou consigo.
Querida prima, permanecerás etérea, lívida e em paz, certamente muito acariciada pelos teus versos.
António Roque